
Semiótica do fim – apresentação
Mais ou menos um ano atrás, estive em Amsterdam, na Holanda, para participar do Mozilla Festival, um dos principais (e únicos) festivais internacionais que trata de ativismo, cultura e arte digital de modo conectado. Encontrei pessoalmente Geert Lovink, diretor do Institute of Network Cultures (INC), que há algum tempo conhecia de leituras e trocas de e-mails, e entreguei pra ele a cópia em português que fizemos, com a Funilaria, de “Extinção da Internet“, livro que ele havia escrito dois anos antes, em plena pandemia, para uma aula na Universidade de Amsterdam. Saí do INC – um oásis gráfico/de pesquisa interdisciplinar que ocupa quase um andar inteiro da Universidade de Ciências Aplicadas da capital holandesa – com a sacola cheia de alguns dos livros que eles produzem. Um deles se chamava “Semiótics of the End: On Capitalism and the Apocalypse”, de 2023, que inaugurava uma nova coleção do Instituto, “Network Notion”. Li todo no voo de volta e, logo que cheguei no Brasil, comentei pra Rodrigo Côrrea, designer e editor da SobInfluencia: “li um livro impactante que tem a cara do que vocês tem publicado”. Mandei o PDF – livre em inglês aqui, como todos do INC – e alguns meses, vários e-mails trocados da editora com Sbordoni e uma tradução competente de Victor Hermann depois – o livro está feito, bonitaço, em pré-venda, disponível fisicamente a partir de meados de julho de 2025. Escrevi a apresentação, que publico aqui abaixo como um convite à leitura dessa curta e provocativa série de ensaios sobre o fim.
[Leonardo Foletto]
O livro que você tem em mãos é uma coletânea de 13 ensaios que investiga como o fim do mundo se tornou apenas mais um signo do que Alessandro Sbordoni, ecoando principalmente Franco “Bifo” Berardi, chama de “semiocapitalismo”. Trata-se de uma fase específica e avançada do capitalismo onde a produção de valor tem se deslocado da fabricação de bens materiais para a produção e circulação de signos, informações, afetos e relações sociais. Como diz Bifo, em um trecho citado nesse livro, “o semiocapitalismo coloca as energias neuropsíquicas para trabalhar, submetendo-as à velocidade mecanicista e forçando a atividade cognitiva a seguir o ritmo da produtividade em rede
A tese – se podemos assim chamá-la num texto tão aberto a provocações e leituras distintas – é que o fim do mundo é “apenas mais um signo” do semiocapitalismo: o apocalipse, tal como tradicionalmente concebido, não ocorrerá porque já está em curso permanente. Em sua visão, não há mais diferença entre o fim do mundo e o próprio capitalismo: ambos se reproduzem incessantemente segundo a lógica semiótica do capital. Este livro, então, se apresenta como um manifesto que nos convida a pensar sobre o que significa “fim” hoje.
Nos 13 ensaios permeia um diálogo com a famosa formulação atribuída a Frederic Jameson, mas popularizada por Mark Fisher em seu livro “Realismo Capitalista”: “é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”. Fisher argumentou que o capitalismo se apresentou após 1989 como o sistema político-econômico “padrão” com o qual nenhuma outra forma política estrangeira pode disputar, criando uma condição psicológica coletiva que torna muito difícil pensar em qualquer alternativa. A intuição de Fisher também é compartilhada pelo próprio Bifo em “Depois do Futuro” (lançado no Brasil em 2019 pela Editora Ubu): o “lento cancelamento do futuro”, diz Bifo, torna cada vez mais difícil imaginar futuros por decorrência também do afogamento coletivo pela superoferta de informação libertada na internet.
Sbordoni, entretanto, propõe ir além desse diagnóstico ao sugerir que ainda não imaginamos suficientemente estes “fins” – e que “o fim é apenas o começo”. Faz isso oferecendo um diálogo direto com alguns dos mais influentes nomes da crítica cultural e da filosofia dos últimos 40 anos, de Jean Baudrillard a Bernard Stiegler, Byung-Chul Han, Jacques Derrida, Giorgio Agamben, Nick Land, Slavoj Žizek, Tiqqun, Susan Sontag, além do jás citados Bifo Berardi, Mark Fisher e outros tantos. Este cardápio apresentado compõe uma espécie de banquete filosófico que nos alimenta de diversos , que cobrem diferentes aspectos de nossa vida acelerada pelas tecnologias do início do século 21, e que por conta disso necessitam paradas estratégicas para digerir e assentar as ideias – também para buscar relacionar as ideias apreendidas com as nossas experiências e reflexões cotidianas.
Esse assentamento de ideias e a conexão com referências próximas a nós é facilitado pela profusão de referências à cultura pop, já que a análise do livro, embora parte de filósofos de uma “alta teoria”, digamos, também quer entender algo que é prosaico e comum: como o apocalipse está presente nos produtos culturais que nos cercam neste século 21.
Aqui, vemos desde a música pop de Britney Spears (“Till the World Ends”), que na visão de Sbordoni se insere numa narrativa do fim como consumismo sem finalidade, numa “catástrofe do sentido” esvaziada de realidade pela repetição, até como “Vingadores: Ultimato”. No filme, que teve uma das maiores bilheterias da história do Cinema, os mortos retornam à imagem no desfecho do filme para anunciar um próximo filme do Universo Marvel – o que, na visão do autor, exemplifica a ideia de o fim, em si, é um signo de mais reprodução, mais simulação e repetição do mesmo.
Há ainda um cardápio enorme de músicas, filmes, ações e objetos estéticos citados e analisados sob a perspectiva crítica de Sbordoni, que incluem o glitch, por exemplo, e os backrooms– um estranho fenômeno na internet, originário do 4chan, misto de lenda urbana e espaço físico (inventado?), um lugar de transição que poderia figurar num hipotético (e hipnótico) clipe de “Road to Nowhere” dos Talking Heads remixada por algum DJ de trap nascido nos anos 2000.
Você ficará surpreso (ou não) em saber que o autor deste livro é um linguista e filósofo italiano nascido em Cagliari, maior cidade da ilha da Sardenha, na Itália, no mesmo ano em que a internet comercial estreou no planeta – 1995. Atualmente vivendo em Londres, onde trabalha para a editora de acesso aberto Frontiers, Sbordoni é também autor de “The Shadow of Being: Symbolic/Diabolic” (2023) e editor da revista britânica Blue Labyrinths, junto com o autor do posfácio deste livro Matt Bluemink, e da italiana Charta Sporca, ambas provocativas publicações digitais que tratam de filosofia, literatura, música e cultura digital. “Semiótica do Fim” foi publicado originalmente em inglês em 2023 pelo Institute of Network Cultures, de Amsterdam, dirigido por Geert Lovink, um dos principais e mais longevos teóricos e críticos da cultura digital – que, não por acaso, compartilha de muitas das referências citadas por Sbordoni, além da abordagem alta teoria e cultura pop da internet, como você pode ver em, por exemplo, “Extinção da Internet”, publicado em 2023 no Brasil pela Editora Funilaria em parceria com o BaixaCultura.
Este livro pode oferecer ferramentas conceituais relevantes para nós, brasileiros, também porque aqui parece haver um terreno fértil para o desenvolvimento da “anti-assombrologia” – o conceito que Sbordoni e Bluemink desenvolvem para pensar além dos fantasmas que assombram o presente. Se Mark Fisher escreveu sobre a assombrologia, em “Fantasmas da Minha Vida” (lançado no Brasil em 2022 pela Autonomia Literária), que “o futuro é sempre experienciado como uma assombração”, no Brasil experimentamos algo distinto.
Nossos fantasmas também vêm de futuros não realizados que, mesmo assim, insistem em irromper no presente através da urgência, da escassez e de nossa habilidade, aqui tornada indispensável, de festejar – e tudo que está implicado na festa, sobretudo a corporeidade da diversão manifestada na dança. Nossa produção cultural – do funk carioca ao tecnobrega, dos memes novelescos aos passinhos – não apenas processa ansiedades sobre o fim, mas remixa constantemente novos começos a partir do que parecia destruído (ou esquecido). A crítica de Sbordoni ao semiocapitalismo ressoa aqui, para além de um diagnóstico melancólico, também como um reconhecimento de uma capacidade brasileira de criar outros circuitos, outras relações com o tempo que desafiam a lógica linear do apocalipse capitalista. Se o autor propõe que “o fim é apenas o começo”, no contexto brasileiro isso não é metáfora, mas uma necessidade: somos especialistas em transformar precariedade em potência, nem que seja para fazer do fim do mundo mais uma oportunidade de recomeçar – e dançar. Todo apocalipse, no fundo, também é véspera de festa.
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