Cultura livre como liberdade positiva
Traduzimos um texto que nos convida a refletir sobre um tema sempre importante por aqui: a cultura livre. Foi publicado em maio de 2024 por Mariana Fossati, socióloga uruguaia e ativista da cultura livre, parte do Ártica Online, parceiro deste espaço já há muitos anos. Ao final, fiz alguns comentários a respeito de pontos do texto, como a insuficiência do acesso à informação e aos bens culturais para garantir que todos os indivíduos e coletivos possam participar livre e igualmente na vida cultural; e a necessidade de uma política do cuidado dentro das comunidades e movimentos da cultura livre.
CULTURA LIVRE COMO LIBERDADE POSITIVA
Por Mariana Fossati, em Ártica Cultural
Tradução e adaptação: Leonardo Foletto
Como definimos liberdade quando falamos de cultura livre? Há algum tempo, escrevi que a cultura livre não é apenas uma filosofia, expressa em práticas concretas através das quais tornamos as nossas obras livres quando as compartilhamos. A cultura livre se expressa não só na ética de “compartilhar é bom”, mas também, de modo concreto, nas licenças que utilizamos, onde e como compartilhamos – e também no apoio a reformas progressivas dos direitos de autor. Gostaria agora de voltar à dimensão filosófica da liberdade na cultura livre, com a intenção de clarificar para que é que fazemos cultura livre e porque é que a defendemos.
Muitas vezes, ao longo da minha militância neste tema, senti que falo de uma coisa quando falo de cultura livre, enquanto os críticos falam de outra. Sobretudo os críticos “de esquerda” acusam aqueles que defendem a cultura livre de serem liberais, ou associam “cultura livre” a “mercado livre”. Durante muito tempo ri destas associações grosseiras, mas sinto que hoje, mais do que nunca, e sobretudo no conceito de cultura livre, a noção de liberdade deve ser reapropriada pelos movimentos de defesa dos direitos, para nos diferenciarmos claramente dos movimentos de direita autodenominados “libertários”.
Num artigo crítico aos libertários em seu blog, Rolando Astarita, [conhecido professor de economia argentino, estudioso do marxismo] fala da diferença entre liberdade negativa e liberdade positiva, no sentido proposto por Isaiah Berlin. A liberdade negativa é a possibilidade do indivíduo atuar sem interferência ou coerção, e é limitada pela liberdade dos outros e pela lei. A liberdade positiva é a capacidade real de exercer a autonomia e de se auto-realizar, o que depende não só de cada pessoa, mas também de condicionantes sociais. É por isso que Astarita entende que a tradição marxista enfatiza sobretudo a liberdade positiva.
O artigo de Astaria me serve como inspiração para este post, porque a cultura livre pode ser entendida desde qualquer uma destas noções de liberdade. Creio, porém, que é necessário esclarecer onde colocamos nossa ênfase.
Se entendermos a cultura livre em termos de liberdade negativa, nos resta apenas a ideia de acesso sem interferência a qualquer recurso cultural ou de informação de que um indivíduo possa necessitar. Desde que esse acesso seja legal e que não afete os direitos de propriedade de terceiros. Daí a importância da licença (que é um contrato privado) e a ênfase no fato de cada indivíduo ser livre de conceder autorizações de acesso e utilização da sua obra (sua propriedade privada). As licenças livres funcionam com base numa renúncia a uma parte dos direitos de propriedade intelectual. É minha liberdade, enquanto proprietário, de renunciar a uma parte desses direitos. Já o acesso aberto é a liberdade de acessar e utilizar toda a propriedade intelectual que outras pessoas disponibilizaram de forma aberta, dentro dos limites da licença que escolheram. É um sistema aparentemente equilibrado que reafirma a tese de que a propriedade, a liberdade e um mínimo de regulação estatal que as garanta são suficientes.
Mas se a nossa compreensão termina aqui, estamos perdendo algo fundamental. O efeito prático deste tipo particular de renúncia de cada indivíduo a uma parte da sua propriedade intelectual produz uma contribuição para o bem comum intelectual. Este bem comum, no seu conjunto, constitui uma reserva de conhecimentos que já não é uma questão individual ou contratual entre particulares, mas que nos remete para uma dimensão social e coletiva. É a partir daqui que a noção de liberdade negativa fica aquém, ao passo que a liberdade positiva permite alargar o horizonte e nos conduzir a uma noção de cultura livre que acompanha a proteção e o reforço dos bens comuns, juntamente com uma expansão dos direitos sociais.
A cultura livre, em termos de liberdade positiva, é a ideia de que deve haver recursos culturais abundantes, acessíveis e plurais, para que todos os indivíduos e coletivos possam participar livre e igualmente na vida cultural. O ativismo da cultura livre não é apenas a defesa da propriedade e da liberdade individual, mas a procura ativa do alargamento do direito de acesso, utilização e participação na cultura a toda a sociedade. Isto inclui a democratização radical da criatividade, do pensamento crítico, do conhecimento prático, do prazer estético, do entretenimento, da identidade e do patrimônio cultural.
Se persistem condições sociais que excluem muitas pessoas de usufruir efetivamente dos bens culturais, mesmo que formalmente não exista qualquer impedimento, então não podemos falar de liberdade. A falta de recursos econômicos, de acesso a infraestruturas culturais, de conetividade significativa, de educação pública de qualidade, de diversidade de propostas culturais, ou de obras acessíveis, reutilizáveis e partilháveis, limitam a liberdade positiva das pessoas. Pode não haver censura ou controle estatal autoritário sobre os conteúdos que circulam – e, no entanto, ainda pode não haver liberdade cultural.
Por isso, a nossa militância pela cultura livre não se resume à afirmação da soberania individual de dar e receber recursos culturais, num cenário de propriedade intelectual garantida pelo Estado. A nossa militância é o alargamento da fruição e da participação na cultura a nível coletivo através da defesa dos bens culturais comuns. As licenças livres são, neste quadro, uma estratégia coletiva e não apenas uma opção individual, porque entendemos que, num contexto de crescente privatização da cultura, elas ajudam a construir, proteger e reforçar os bens culturais comuns para que cheguem a toda a comunidade. Queremos construir uma cultura livre para uma sociedade livre. Mas uma sociedade livre não é uma sociedade de proprietários livres, mas uma sociedade emancipada das estruturas de poder econômico e de privilégio social que obstruem este potencial coletivo.
BREVE COMENTÁRIOS À CULTURA LIVRE COMO LIBERDADE POSITIVA
Leonardo Foletto
Alguns comentários para dialogar e apontar discussões futuras para uma pensmento filosófico sobre a cultura livre. O argumento principal do curto e importante texto de Mariana é detalhado pela própria nos comentários ao post no blog. Para ela, as quatro liberdades da cultura e do software livre não podem ser vistas somente na perspectiva de liberdades negativas, a partir da diferenciação entre liberdade positiva e negativa trabalhada no texto. Isso ocorre por duas razões principais: a primeira é porque, na prática, ao libertar a cultura do direito autoral, geramos um bem comum e, normalmente, uma comunidade à sua volta, passando então para o nível do coletivo. A segunda é porque entendemos que “compartilhar é bom” não só para os indivíduos, mas para a comunidade, já que o acesso ao conhecimento é um direito básico para se poder exercer qualquer liberdade criativa – e há necessidades humanas, de ligação e de cultivo da uma cultura comum que são de ordem coletiva, e que são condicionantes para a autorrealização das pessoas. É uma visão que reitera a necessidade do progresso técnico e científico não ser exclusivo para poucos, mas sim generalizado.
Faço a ressalva que um tema crucial hoje na discussão sobre cultura livre não é trabalhado com ênfase no texto de Mariana: as assimetrias de poder envolvidas na questão do acesso à informação e aos bens comuns digitais. Não foi abordado porque não era intenção inicial, e também porque certamente renderia um texto muito mais longo – ou vários. O argumento central aqui, que discutimos também a partir do prefácio de Mckenzie Wark ao seu “Um Manifesto Hacker”, é de que a liberdade de acesso não tem se mostrado suficiente para garantir que todos os indivíduos e coletivos possam participar livre e igualmente na vida cultural, como defende Mariana no texto.
É uma situação parecida com a discussão em torno da inclusão digital: qual inclusão queremos? a das plataformas das big techs, baseada em sugar nossa atenção para extrair lucro a partir da produção contínua de dados? Aqui vale se perguntar também: qual acesso queremos? o acesso a lixo informacional e cultural, que entope e cansam nossas mentes e dificultam nossa percepção de uma realidade e ação comum? Se não é esse tipo, qual é? Existe alguma forma de se trabalhar os limites de ações de acesso sem tocar em questões mais complexas como a do tempo gasto e a da organização coletiva? Como me lembrou o Alexandre Abdo, quando falamos dos Pontos de Cultura e do programa Cultura Viva no Brasil, seu sucesso enquanto política pública e ação transformadora de pessoas e locais se deu mais com a capacidade de criar condições mínimas – financeiras, sociais e humanas – para as pessoas terem tempo e organização de usar, aperfeiçoar e cuidar do que foi produzido, do que somente a questão de se ter acesso a computadores com software livre instalados. Quando se desestruturou as condições mínimas citadas, o acesso aos computadores com software livre e a cultura livre criada em torno disso se tornou uma questão gradativamente menor, a ponto de ser abandonada por muitos pontos depois.
Mais acesso à informação, à tecnologias digitais ou a bens culturais não necessariamente significa consciência crítica, como escrevi em “A Cultura é Livre”. Lembro da crítica que César Rendueles [em Sociofobia] fez ao copyleft: romper as barreiras de livre circulação da informação e do acesso aos bens culturais não é suficiente para uma melhoria geral das condições de vida global sem tocar nas condições sociais de produção desses bens culturais e da informação. A enorme importância hoje do tema do trabalho digital, dada à proliferação do trabalho precário a partir da plataformização, confirma isso.
Um passo aqui, talvez, seja mais em direção a uma política do cuidado do que do acesso: como criar e pôr em prática protocolos de cuidado dentro das comunidades de bens comuns livres para que estes bens não sejam apropriados sem critérios, desrespeitando as indicações das licenças (livres) e usados para o enriquecimento de ainda menos pessoas, como no caso do uso de dados sem consentimento para treinamento e sistemas de Inteligência Artificial Generativa de empresas como Meta e Open IA? Como estabelecer condições sociais dignas de produção e fruição desses bens culturais e informativos alocados dentro da perspectiva da cultura livre?
Não há resposta clara aqui, mas talvez se fazer esta pergunta nos leve a repensar a cultura livre mais em termos de cuidado do que de acesso. Organização da abundância (de informação e bens culturais) que não seja baseada em restrição econômica e técnica como a promovida pela propriedade intelectual. O que nos leva a um outro ponto de reflexão não novo, mas cada vez mais pertinente: a reinvenção do sistema de direito autoral, agora baseado na idade de uma liberdade positiva, como Mariana aponta no texto, mas que não deixa de garantir a proteção e o cuidado com os abusos e as condições sociais de produção desses bens culturais. A cultura livre, enquanto movimento, representou de alguma forma uma “reforma cidadã” do direito autoral, com as licenças produzindo um espaço de “lei alternativa” que levou a descentralizar o controle e potencializar a inteligência e experiência humana. Será ainda possível pensar numa reforma de direito autoral que potencialize esses aspectos, sem descuidar da proteção e das assimetrias de poder típicas do capitalismo? Ou é mais provável que, com a popularização das IAs generativas, vejamos uma reforma imposta pelo capital que vá na linha de permitir a livre concentração, materializada nos modelos gigantes das big techs, a fim de cada vez mais potencializar uma (pseudo) inteligência artificial desregulada sob controle dessas grandes empresas e destinada a gerar renda (cada vez mais) para esse capital?
Ale Abdo
Ni! Excelente texto da Mariana. Ótimos comentários, posso até dizer que faço minhas as tuas palavras ;D
No curso sobre o Futuro da Informação, lá nos idos de 2010 (quando nos conhecemos!), discutindo o Software Livre e a Wikipédia eu apresentava uma distinção entre acesso (transparência), contribuição (participação), e a arquitetura sociotécnica que potencializa e integra ambos (modularidade). Outra grande questão é a energia, os recursos e o tempo para essas atividades. Mas uma última é a motivação. Cultura livre para quê? Onde a cultura livre se encaixa no nosso modo de vida?
Se não vamos construir e contar nossas próprias histórias, criar novos imaginários, nos libertar da posição de indivíduos consumidores midiáticos, não precisamos de cultura livre. O progresso técnico-industrial garante que com o custo de um almoço por mês podemos passar todo o nosso tempo livre assistindo tanto superproduções enlatadas como clássicos cult. E mais, se esse tempo livre é mínimo, a questão dessa vontade nem sequer se põe: será o tempo de descansar na frente do streaming, do game, ou mesmo do leitor de ebook. Sem motivação e sem tempo, pensar uma produção cultural em escala que não seja uma mercadoria não é sequer uma possibilidade.
Diferente de outros comuns como o software livre, onde a expressão reificada (o software) integra uma lógica de produção dos “meios” e pode assim aproveitar-se da energia do sistema produtivo, desenvolvendo-se em dialética esquizofrênica com sua personalidade “código aberto/open source”, a cultura livre só pode existir dentro de um projeto político que trabalhe o desejo de viver uma “cultura viva”.
Dito isso, é preciso reconhecer que há muitas, muitas brechas que correspondem à ideia de cultura livre, que em termos jurídicos geralmente encontram-se às margens do direito autoral. Saraus de poesia/rap/slam, bandas de garagem, sites de fan-fiction, rodas de sampa, o pixo e o grafite, o live-coding, clubes de repente, grupos de RPG, vários elementos da cultura popular etc, além de universos inteiros de artes do corpo. Se o impulso por viver culturas livres não é generalizado, ele é bastante presente.
Mas é preciso observar igualmente que essas manifestações não competem em complexidade ou escala com as produções proprietárias. E isso enfim aponta para que o necessário, como você dizia, é o cuidado com a energia, recursos, tempo, e a arquitetura propícia, inclusive formas de organização adaptadas, para essas atividades. De novo, o sucesso dos pontos de cultura testemunha a favor. Por outro lado, é preciso assumir mais claramente a questão da motivação, do tipo de cultura que desejamos viver, que é o gancho político para podermos organizar esse cuidado, seja por meios estatais ou por meios comunitários.
Se não queremos viver num mundo onde um monopólio nefasto (pleonasmo) controla as expressões – personagens, cantos, histórias, imagens – que formam nossas memórias e identidades, as da nossa família e de nossa comunidade, então temos de investir em estruturar e financiar um circuito explicitamente dedicado a um modo de viver a cultura oposto ao proprietário. E nisso, as licenças não devem ser vistas como uma solução, mas apenas como um artifício na demonstração de que uma outra cultura é possível.