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Reflorestar a internet

Li nas últimas semanas um artigo instigante, chamado “We Need to Rewild the Internet”, publicado pela também interessante Revista Noemag, feita pelo Instituto Berggruen, sediado nos Estados Unidos – o artigo também saiu em ptbr pelo Outras Palavras. As autoras são Maria Farrel e Robin Berjon; a primeira é escritora que trabalhou com políticas de tecnologia em espaços como a Câmara Internacional de Comércio e o Banco Mundial; o segundo, especialista em governança digital que trabalhou em diversos lugares, inclusive no board de diretores do World Wide Web Consortium. Estamos falando então de duas pessoas da área de governança e policy digital, não cientistas, ativistas nem filósofos ou antropólogos da tecnologia. 

A “alternativa refloresta”, como fala a versão publicada no Brasil, traz a inspiração da agroecologia para repovoar a internet de forma mais saudável, de modo a afastar os oligopólios, refazer as estruturas e esperar, assim, que a diversidade da internet, tal como uma floresta, renasça. O artigo começa pela história da silvicultura científica alemã para apresentar  “uma verdade atemporal: quando simplificamos sistemas complexos, os destruímos e as consequências devastadoras por vezes só são óbvias quando é tarde demais”. A “patologia do comando e controle” realizada nas florestas alemãs está ocorrendo com a Internet, levando ambas ao mesmo destino: devastação. 

Maria Farrell e Robin Berjon trazem também exemplos do urbanismo para defender a diversidade como resiliência. “Os bairros de uso misto eram os mais seguros, mais felizes, mais prósperos do que os bairros planejados e controlados”, citando o clássico publicado em 1961 “The Death and Life of Great American Cities”, de Jane Jacobs, para defender a diversidade como resiliência. “Quanto mais soluções proprietárias são construídas e implantadas em vez de soluções colaborativas baseadas em padrões abertos, menos a Internet sobrevive como plataforma para inovação futura”.

Daí vem o rewilding, um termo que, na biologia, visa restaurar ecossistemas saudáveis criando espaços selvagens e biodiversos, o que pode abrir espaço a redes alimentares complexas para o surgimento de relações inesperadas entre espécies. Fazer um rewilding com a Internet, argumenta o texto, é mais do que uma metáfora, mas uma estrutura e um plano, que busca respostas para diversas questões, entre elas: como continuamos a trabalhar quando os monopólios têm mais dinheiro e poder? Como agimos coletivamente quando eles subornam nossos espaços comunitários, financiamentos e redes? E como comunicamos aos nossos aliados a sensação (e a necessidade) de consertar tudo isso?

Pôr em prática este plano passa por muitos fatores, entre eles dois principais: descentralizar o acesso e dar mais autonomia aos usuários. Algo como o que já fazem sistemas como o conhecido Fediverse, um conjunto de servidores federados usados para publicação na web e hospedagem de arquivos, base por trás de Mastodon e GnuSocial – uma proposta, aliás, que já está em nosso “Pequeno Compêndio da Independência Independência Digital”, criado 2021 em parceria com o Goethe Institut de Porto Alegre.

O texto fala que devemos garantir incentivos, tanto regulatórios e financeiros, para apoiar alternativas que incluam o gerenciamento de recursos comuns, redes comunitárias e “uma infinidade de outros mecanismos de colaboração que as pessoas têm usado para fornecer bens públicos essenciais, como estradas, defesa e água potável”. A construção de novos imaginários tecnopolíticos – algo que falamos com alguma frequência aqui e balizador do projeto de Experimentações Tecnopolíticas dentro da Coalizão Direitos na Rede – aqui é incentivada por autores que não estão trabalhando diretamente no campo ativista ou político, mas no de policy makers. Embora em áreas teóricas distintas, o trecho a seguir dialoga com Geert Lovink em seu “Extinção da Internet” que publicamos ano passado: “Acomodados em plantações tecnológicas rígidas em vez de ecossistemas funcionais e diversificados, é difícil imaginar alternativas. Mesmo aqueles que conseguem enxergar com clareza podem se sentir desamparados e sozinhos. Rewilding une tudo o que sabemos que precisamos fazer e traz consigo uma caixa de ferramentas e uma visão totalmente novas”.

Nessa linha, a ideia de “escolha algorítmica”, citada no texto a partir da rede Bluesky, lembra o ecossistema de produção de software de código aberto: é uma proposta que permite que a comunidade traga novos algoritmos aos usuários, com o objetivo de substituir o “algoritmo mestre” convencional, controlado por uma única empresa, por um “mercado de algoritmos” aberto e diversificado, dando mais transparência para o processo de escolha das informações a serem mostradas em feeds diversos. Tal qual na ecologia, o papel do Estado aqui é pensado para potencializar as alternativas de substituição aos monopólios/monoculturas, sejam elas de produção de alimentos ou de algorítmicos. A posição da alternativa rewilding é a de usar agressivamente o Estado de Direito para primeiro nivelar o capital e o poder desiguais e, em seguida, correr para preencher as lacunas com melhores maneiras de fazer as coisas.

Outra ideia importante da proposta é a de descentralização da infraestrutura. Não é novidade que Google, Amazon, Microsoft e Meta estão consolidando profundamente seu controle na infraestrutura da internet a partir de aquisições, integração de cima pra baixo, construção de redes proprietárias, criação de pontos de estrangulamento e concentração de funções de diferentes camadas técnicas em um único “silo” de controle. Você também deve saber que quem controla a infraestrutura determina o futuro – inclusive o energético, tema cada vez mais comentado hoje devido às gigantescas necessidades de água e energia que os data centers necessitam para fazer tantas IAs generativas funcionarem.

Contra isso, a proposta do texto é não consertar, mas refazer a infraestrutura. Proposta ousada: regenerar uma infraestrutura aberta e competitiva para as gerações “que foram criadas para assumir que duas ou três plataformas, duas lojas de aplicativos, dois sistemas operacionais, dois navegadores, uma nuvem/megaloja e um único mecanismo de busca para o mundo compreende a Internet” . Se a Internet para você é o enorme silo de arranha-céus em que você mora e a única coisa que você pode ver do lado de fora é o outro enorme silo de arranha-céus, então como você pode imaginar outra coisa?

Na etapa final, o artigo fala que apesar da enorme dificuldade da tarefa, “muito do que precisamos já está aqui”. Os autores comentam, nesse ponto, dos limites das políticas regulatórias: “além de os reguladores buscarem coragem, visão e novas e ousadas estratégias de litígio, precisamos de políticas governamentais vigorosas e pró-competitivas em relação a aquisições, investimentos e infraestrutura física.”

Aqui também citam duas questões ligadas à soberania digital – embora não usem o termo. Defendem que as universidades devem rejeitar o financiamento de pesquisas de empresas de tecnologia, “pois ele sempre vem acompanhado de condições, sejam elas ditas ou não”. Em vez disso, precisamos de mais pesquisas tecnológicas financiadas publicamente com resultados divulgados publicamente – pesquisas que, por exemplo, possam investigar a concentração de poder no ecossistema da Internet e as alternativas práticas a ela. 

Ao final da leitura, saúdo o fato de que mesmo pessoas de “dentro do sistema” (ou quase isso) reconheçam que devemos recuperar o controle de grande parte da infraestrutura da Internet e propor uma alternativa à monocultura algorítmica imposta pelas big techs a partir da plataformização da vida. Não deixo de notar também que as saídas apontadas por eles também não são novidades, mas caminhos que outras pessoas já comentam faz alguns anos. Por exemplo: uma destas saídas escrita no texto é manter a internet, a internet – ou seja: defender que se mantenha aberta e colaborativa a forma como foram feitos os protocolos e padrões técnicos que sustentam a infraestrutura da Internet. Algo que muita gente da área vem dizendo há anos, seja o criador da WWW Tim Berners-Lee, ou eu mesmo, em 2011, num texto hoje ingênuo de defesa de uma internet livre, onde citava Yochai Benkler e Lawrence Lessig para falar que podemos manter a internet – também tecnicamente – do jeito que ela foi feita a partir de nossa luta ativista. 

Curioso que, neste mesmo texto, cito como espaço de proteção desses princípios o Fórum da Internet, evento que naquele ano (2011) era criado pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil justamente para defender a internet como ela foi construída. Participei desse primeiro fórum como relator e lembro bem dos 10 princípios defendidos, que incluía a defesa da neutralidade (privilégios de tráfego devem respeitar apenas critérios técnicos e éticos, não sendo admissíveis motivos políticos, comerciais, religiosos ou qualquer outra forma de discriminação ou favorecimento), da inimputabilidade (a internet é meio, não fim; as medidas de combates a crimes na rede deve atingir os responsáveis finais e não os meios), dentre outros oito. De lá pra cá, o CGI continuou defendendo esses princípios, que, por sua vez, foram ou violados – zero rating manda lembranças à neutralidade da rede – ou se tornaram questionáveis – hoje é quase consenso por quem defende a regulação das plataformas a defesa da responsabilidade dos intermediários, os meios, as plataformas, e não apenas os usuários finais.

Outro princípio elencado como saída na alternativa “refloresta” soa um tanto velho também: que os prestadores de serviços – e não os usuários – sejam transparentes. Uma frase que poderia ser bem uma variação do que Julian Assange e o Wikileaks já traziam nos anos 2000: “Transparência para os fortes, privacidade para os fracos”. Este era o lema  quando defendiam uma ética da transparência contra o muito falado fim da privacidade, especialmente a partir do uso de criptografia forte – outro ponto que nós já discutimos por aqui, ainda em 2015, e que por sua vez é a base conceitual dos Manifestos Cypherpunks do início dos anos 1990.

O fato dos caminhos apontados em “We Need To Rewild The Internet“ soarem um tanto velhos não desmerece a leitura do texto e a reflexão (e ação) a partir dele. Pelo contrário: nesse momento de aceleração contínua a partir do impulso das tecnologias digitais e dos algoritmos proprietários na modulação de nossas vidas, parece que se faz necessário dizer novamente o que já foi dito. Repetição como estratégia de fixação, documentação,  memória, ou de lembrança de que, de fato, muita coisa “já está aqui”, falta levar adiante.

[Leonardo Foletto]

P.s: Depois de publicado, me lembrei que essa metáfora do reflorestar se relaciona com a ideia de permacultura digital, que vem sido trabalhada faz anos pelas Redes das Produtoras Culturais Colaborativas, especialmente a partir de Fabs Balvedi. Inclusive foi tema da Conferência Nacional de Cultura Digital neste 2024, como contamos aqui. Outro texto que comenta a ideia de ir contra a monocultura algorítmica da internet é este, recentemente publicado no blog Sou Ciência, da Folha de S. Paulo, por Soraya Smaili , Maria Angélica Minhoto , Pedro Arantes e Alexsandro Carvalho. As metáforas estão parecidas não são por acaso.

 

Comment:

  • Berna

    Hola Leonardo y comunidad de BaixaCultura! Hace mucho tiempo que sigo tu trabajo y estos aportes me parecen fundamentales que puedan difundirse también español. Me gustaría colaborar para mejorar la versión en español, ya que contiene algunos errores pequeños. ¿Cómo podría hacerlo?

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