Piratearam a História da Arte
Acho fascinante a ideia de uma história da arte pirata.
Em tempos de repetida criminalização da pirataria e dos downloads, é importante recuperar alguns momentos, histórias e anedotas na história da arte em que a apropriação criativa (e “ilegal”) rolou solta e gerou produtos variados – algo que mais ou menos temos tentado por aqui com as três edições da série Pequenos Grandes Momentos Ilustrados da História da Recombinação (detournement, machinima e cut-up).
Nos faz lembrar que nada se cria do nada, que toda criação vem de outra, que a criação se defende compartilhando, que os direitos autorais precisam ser revistos face à nova realidade digital, que o plágio tem uma história longuíssima, que muitos ilustres foram também plagiadores – e que ele, o plágio, apesar de uma ação sempre presente no mecanismo da produção artística, continua tendo um peso relativamente escasso no discurso sobre a criação artística ou sobre o status do artista.
Com tamanha expectativa é que fui ver “História da Arte Pirata“, um remix do clássico de 1950 “A História da Arte”, de Ernst Gombrich, criado/organizado pela artista Bia Bittencourt. A ideia do livro é a seguinte: provocada pela amiga inglesa Lyn Harris – que comanda o “Piracy Project“, projeto que tem o objetivo de criar uma biblioteca de livros de arte pirateados em Londres – Bia convidou artistas amigos e abriu uma chamada para receber colaborações no site IdeaFixa. Na chamada, ela explicou que a ideia era “funzinear” o clássico da história da arte de Gombrich – um dos livros mais conhecidos no ramo e leitura comum nos cursos de artes.
Bia selecionou os materiais compilados e enviou a cada um dos artistas uma cópia da página do livro a ser recriada. De tanto material que recebeu, surgiu a ideia de fazer um livro mesmo, não “apenas” um fanzine sob a obra de Gombrich. A grana necessária para 100 cópias numeradas (R$3,5 mil) veio via Movere.me, um site de crowdfunding.
Foi assim que o livro saiu em edição impressa com CD encartado – que, como eram cópias numeradas, já está esgotado. Mas além desta surgiram mais “edições”: uma “para ver” online, outra “para roubar”, em forma de download no MediaFire, e outra em mídias para ouvir e baixar. Os nomes dos artistas participantes estão ao fim do livro, assim como dos 41 que contribuíram no Movere.me para a produção do livro.
Quando fiquei sabendo do livro, em agosto do ano passado via Caderno Link do Estadão, pensei que a obra seria uma compilação de momentos & causos saborosos de pirataria/roubo/apropriação indébita na história da arte mundial – algo que eu gostaria muito de ler.
Mas não é essa a proposta aqui. Em suas 128 páginas, “História da Arte Pirata” traz interpretações visuais (ilustrações, desenhos, gravuras, colagens) e sonoras (áudios no CD encartado que podem ser escutados no site) das antes austeras páginas do livro de Gombrich. São diversos estilos, abordagens e práticas que funcionam como (re)criações visuais que, não raro, exigem idas e vindas entre a obra pireteada e a sua derivada – algo que eu não pude fazer, por não ter o livro de Gombrich em mãos.
[No decorrer da feitura desse post, descobri que existe uma cópia do “História da Arte” de Gombrich disponível no Slideshare.]
Mas o fato de “História da Arte Pirata” estar mais para um objeto-arte do que propriamente um “livro de história” é uma surpresa das boas. As interpretações presentes na obra são instigantes, criativas, bizarras, belas, provocadoras e compõe um objeto-arte-fanzine sensacional. Permitem também uma leitura/apreciação desconexa, do tipo “abra uma página sem critério e aprecie”. E falo isso apenas olhando a versão online – provavelmente a impressa é ainda mais atrativa.
[Vendo as fotos do lançamento – uma delas logo aqui acima – na galeria Choque Cultural, em São Paulo, percebo que, neste caso, a versão impressa é REALMENTE mais interessante ].
Não ser aquela história da arte pirata que imaginei, com causos, obras, brigas e barracos envolvendo a apropriação criativa (ou não) de outras obras, traz até uma sugestão: a de que essa história precisa ser escrita – ou (re)escrita, remixada, compilada, traduzida, rearranjada, reciclada, enfim.
[Leonardo Foletto]
História da Arte Pirata
Bia Bittencourt (org.)
Comments:
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zonda bez (@zondabez)
super bacana a proposta: não sei se o gombrich iria gostar da apropriação – e o vasari,hein?! – mas ‘samplear e roubar’ é coisa do zé cafofinho, da gaby amarantos e nossa também :!
Reynaldo Carvalho
Muito bom. Leonardo, se puder, dê uma olhada nisto:
http://objetosimobjetonao.blogspot.com/?v=0
É um texto do Fred Coelho sobre autoria/Chico Buarque/ Roda Viva. É o segundo post.
Abs.