A Heroína do Domínio Público
O Centro de Estudos para o Domínio Público da Universidade de Duke, nos EUA, resolveu criar em 2006 uma simpática história em quadrinhos para tentar elucidar as tenebrosas fronteiras que separam o uso de material de domínio público daquele que tem uma “propriedade” intelectual, aqui especialmente focado na produção de documentários e nas leis dos Estados Unidos.
Para facilitar a didática, o desenhista Keith Aoki e os roteiristas/professores James Boyle e Jennifer Jenkins criaram a personagem Akiko – a Heroína do Domínio Público na imagem da capa que abre este texto – uma documentarista que ousou captar a pulsação de um dia nas ruas de Nova York num documentário.
Mas nem tudo é tão fácil quanto parece, e Akiko vai se dar conta disso ao perceber que para tudo que sua câmera olha há uma restrição de nome “direito autoral”. Dentre várias perguntas e frases de ordem, ela questiona: “Quadros, música, escultura. Tudo isto está protegido pelos Direitos Autorais?“.
Diante da resposta positiva, ela prossegue com suas dúvidas, que se colocam cada vez mais imediatas para a produção do já citado documentário sobre Nova York. “Parece um Campo Minado. Tenho medo de descobrir o que está protegido por direitos de autor e o que não está da forma mais difícil: quando a distinção explodir na minha frente“.
Akiko fica então sabendo do triste óbvio: só não precisará se preocupar com direitos autorais se a obra que for usada estiver em domínio público, o que no caso americano significa 70 anos após a morte do autor, podendo chegar a até 95 anos após a publicação da obra em questão.
[Vale dizer que no Brasil, como comentamos no penúltimo post, este prazo também é de 70 anos, que inexplicavelmente deverá ser mantido mesmo com reforma da Lei de Direito Autoral. Para comparar, dê uma olhada nesta tabela que mostra os prazos do copyright em praticamente todo o planeta.]
É então que a HQ informa à documentarista que nem tudo está perdido: nos EUA, existe a questão do fair use, um dispositivo que deveria permitir a crítica, paródia, o comentário e o remix, usos efêmeros ou acidentais de obras protegidas por copyright – que, por sinal, não existe no Brasil e nem pretende existir com a reforma, ainda que alguns artigos tratem de usos semelhantes àqueles identificados no fair use americano.
Mas para cortar a esperança nascente de Akiko, ela fica sabendo que o fair use norte-americano está cada vez mais bagunçado, um verdadeiro “jardim das delícias” da propriedade intelectual, nas palavras da história. Como o fair use é subjetivo, imagina-se que não é algo fácil distinguir o que seria um uso acidental de um uso proposital, por exemplo. Aí entra outra questão: a sabida e cada vez mais crescente queda de $$ das gravadoras/estúdios e afins fizeram com que estas, a fim de tirar o último centavo possível antes de sua queda, começassem a apertar o cerco aos tribunais sobre o que seria esse tal uso, complicando de vez aquilo que já era complicado.
A partir daí, desfilam na HQ casos de abuso do esquecimento do fair use, todos absurdos. O primeiro narrado é exemplar: trata dos problemas que o documentarista Jon Elser teve durante a gravação de “Sing Faster“, filme que narra a produção das óperas do “Ciclo do Anel“, de Richard Wagner, sob a perspectiva de quem trabalhava nos bastidores. Em determinado momento do filme, a câmera captava diversos trabalhadores jogando damas num bar, enquanto a ópera era executada no teatro. Havia uma televisão neste bar, que no exato momento da cena estava passando um episódio de Simpsons. A cena era curta (4 segundos!) mas nem por isso a Fox, dona dos direitos autorais dos Simpsons, deixou de querer cobrar 10 mil dólares pelo uso dos segundos do desenho no documentário. Jon Elser não aceitou pagar, pois a “cena” era um caso clássico de fair use. Mas, para evitar incomodação com a gigante e podero$a Fox e um atraso de anos de julgamento para o lançamento do filme, teve que retirar a cena.
[Detalhe: o criador dos Simpsons, Matt Groening, ficou sabendo do caso e não se importou com o uso de sua criação em outra. Quem se incomodou – e que sempre costuma se incomodar em casos desse tipo – foi quem explora comercialmente os direitos de reprodução da criação.
Outro caso desproporcional dos direitos de autor é relatado no prefácio à edição, escrito por Dave Guggenheim, produtor/diretor de, entre outros, “Uma Verdade Inconveniente“:
“O pior exemplo que eu posso dar aconteceu quando eu estava a fazer um filme chamado The First Tear, um documentário que acompanha cinco professores durante o primeiro e traiçoeiro ano a trabalharem numa escola pública. No clímax do filme, um professor, que está a levar os alunos pela primeira vez numa visita de estudo, ouve a canção “Stairway to Heaven”, do Led Zeppelin. É simultaneamente divertido e trágico observar o momento em que ele anuncia aos jovens “Esta é a melhor canção que alguma vez foi escrita”, ao mesmo tempo que aumenta o volume. O professor exulta de alegria, revelando-se pela primeira vez diante de seus alunos. (…)
Tudo no filme prepara este momento e quando o público vê a cena ri e chora, porque ao mesmo tempo é comovedor e trágico. Mas a maior parte do público não chega a ver esta cena no filme. No DVD, que ainda se encontra à venda, a cena foi omitida porque não consegui autorização para utilizar “Stairway to Heaven”. Graças a lacunas arcaicas, pude usar a canção num festival de cinema e na televisão pública americana, mas a partir do momento em que entraram em cena o uso com fins comerciais fui proibido de usá-la. Não porque não pudesse pagar para licenciar a canção, mas porque nunca consegui localizar os detentores dos direitos autorais ou seus representantes (que são vários, o que é outra triste história).
É diante desse “abuso comercial” por parte dos detentores de direitos autorais que Akiko transforma-se na Heroína do Domínio Público, fazendo algumas perguntinhas que vocês já devem ter vistos por aqui: “Nossa cultura esta a ser atacada por um incontrolável ‘monstro de direitos’. Como é que chegamos a este ponto? Para que serve este sistema? Serão os direitos de autor na verdade prejudiciais aos artistas?”
Há outros quantos exemplos de abusos do não uso do fair use na HQ, assim como mais explicações sobre creative commons, ambientalismo cultural e de outros casos que ilustram o crescimento da cruzada contra qualquer tipo de uso de material protegido por copyright – mesmo aqueles que, teoricamente, se encaixariam muito bem no fair use. A edição original em inglês da HQ, de 2006, está disponível para download grátis, assim como a em português (de Portugal, vale dizer), que ganhou a tradução em 2009 de uma aluna portuguesa da Duke, Ana Santos, e é a edição do qual tiramos as imagens da HQ para este post.
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Créditos de todas as imagens: 1.
Comments:
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Eduardo
Oi, queria fazer uma versão do comic em espanhol mas não sei como colocar o texto nos globinhos, existe uma forma fácil de fazer isso?
Voce tem o texto em português que aparece ao começo?
Obrigado.Eduardo
Ppirataargenino#gmail.com
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baixacul
Olá Eduardo,
acho que seria legal tu contactar o pessoal do Centro de Estudos para que eles disponibilizem a tua tradução lá, e quem sabe te indiquem o programa que usaram. O e-mail parece ser cspd#law.duke.edu.
Confesso que não sei de algum programa específico para por o texto nos balões. Talvez o Photoshop ou o Comic Life. Na página de tradução do Centro, tem uma versão de tamanho grande das páginas com os balões em branco. Mas tenta ver com eles primeiro.
Espero ter ajudado.
Abraço!
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Eduardo
Obrigado, escrivirei para os do Centro e perguntarei, do texto em português que aparece nas primeiras páginas da versão não o tem?
Saudações.
Eduardo.
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Tarcísio
Muito bom. A questão dos direitos autorais está em contato com a vida das pessoas o tempo todo. E a importância que eles alcançam está diretamente ligado ao dinheiro que eles envolvem. Seria impossível fazer arte contemporânea sem driblar algumas questões exdrúxulas dos direitos autorais. A ideia dos quadrinhos para jogar luz ao ponto que essas leis chegaram é para lá de criativa. definitivamente, esse tipo de ironia é uma forma louvável de inteligência.