BaixaCultura

A armadilha Disney

.

Construí meu império com uma ajudinha do domínio público, mas não vou permitir que ninguém mais faça o mesmo

A inocência de todos os produtos criados pelo senhor Walt Disney (1901-1966) esconde muitas mensagens subliminares e ações no mínimo obscuras e contraditórias, e isso tu já deve saber faz algum tempo. Se não sabe, aí vai uma delas (e perdoem a eventual destruição de positivas imagens guardadas na nossa infância permeada pelos desenhos disney): os estúdios Disney vem gastando periodicamente milhões de dólares em advogados e lobistas para garantir que seus personagens não caiam no domínio público. Toda vez que o famoso Mickey Mouse chega perto do seu prazo de validade, as leis dos EUA são alteradas para alongar o controle, impedindo que os personagens possam ser utilizados gratuitamente pelo público.

Foi isso que ocorreu na última mudança, em 2003. As obras registradas depois de 1923 tinham um prazo de 95 anos para caírem em domínio público [ou seja, para que os direitos econômicos não pertençam mais a ninguém, o que permite que todos possam copiar a obra a vontade]. O famoso Mickey Mouse, que apareceu pela primeira vez em 1928, teria seus direitos econômicos liberados em 2003. Mas eis que em janeiro deste mesmo 2003 a suprema corte dos Estados Unidos aprovou uma pequena extensão de 20 anos para estas obras, numa iniciativa logicamente que apoiada e patrocinada pelo grupo Disney – além de Mickey, Pluto (em 2006), Pateta (em 2008) e Pato Donald (2009) estavam com prazos de seu copyright por vencer. [Para quem quer saber mais, este artigo, em inglês, detalha o caso]

O que a Disney não costuma expor é que a ação para “proteger” seus personagens é bastante contraditória, para dizer o mínimo, pois a própria empresa se apropriou – e muito! –  de personagens em domínio público e/ou criados por outros autores para fazer seus maiores sucessos. A começar pelo próprio Mickey, que surge na animação Steamboat Willie (1928), considerada uma das primeiras animações com som da história, que é uma paródia descarada do filme Steamboat Bill, Jr.(1928), dirigido por Charles Reiner e estrelado pelo ótimo Buster Keaton. Assista ambos, a animação e o filme com Buster Keaton, e compare tu mesmo a “semelhança”.

Como conta o blog Burburinho, foi mesmo na década seguinte que começou o mergulho de Walt Disney no domínio público em busca de inspiração, que resultou numa série de filmes animados que até hoje são bastante conhecido de todos. Vejamos a lista:

A Branca de Neve e os sete anões (1937) se inspirou num dos inúmeros contos infantis dos irmãos Jacob e Wilhelm Grimm, os famosos Irmãos Grimm;

_ Pinocchio (1940) é baseado em um personagem do escritor italiano Carlo Collodi, que apareceu pela primeira vez em  “Storia di un burattino“, livro publicado em 1883;

_  “Fantasia (1940) mistura trechos de temas musicais eruditos (a sinfonia pastoral de Beethoven, a Sagração da Primavera de Stravinsky, dentre outros) com poemas clássicos (de escritores alemães como Goethe, em O Aprendiz de Feiticeiro, ou Hoffman, em O Quebra-Nozes, musicado por Tchaikovsky em um conhecido balé).

_ Cinderela (1950) é um dos contos de fadas mais conhecidos (e antigos) de todos os tempos. A animação da Disney foi baseada na história escrita pelo francês Charles Perrault, publicado em 1697.

_ Alice no País das Maravilhas (1951)  é baseado no livro do escritor inglês Lewis Carrol, publicado pela primeira vez em 1865;

Peter Pan(1953) na peça infantil Peter and Wendy, que originou um livro homônimo publicado em 1911, ambos de autoria do também inglês J. M. Barrie;

_ A Bela Adormecida(1959) é outro conto de fadas conhecido, também publicado por Charles Perrault em 1697 no livro “Contos da Mãe Gansa“;

.

Ainda há mais diversos casos, inclusive nos desenhos mais recentes. A Pequena Sereia (1989) é uma adaptação de um conto do século XIX escrito pelo dinamarquês Hans Christian Andersen; Alladin (1992) é tirado do ramo sírio da monumental obra As Mil e Uma Noites, enquanto Pocahontas (1995) é baseado numa personagem conhecida da história dos Estados Unidos, assim como O Corcunda de Notre Dame (1996) é um personagem criado pelo francês Victor Hugo em “Notre-Dame de Paris“, publicado em 1831, e Mulan (1998) se alimenta de um poema chinês do século V, chamado “A balada de Mulan“, e por aí vai. O uso de personagens do domínio público por parte da Disney é até um caso exemplar de como se buscar inspiração no passado. Mas aqui lembro as palavras citadas no mesmo post de antes do Burburinho: Walt Disney lançou a carreira do seu personagem mais popular fazendo o que hoje os advogados da sua empresa não permitem que seja feito com suas criações: reciclando material original produzido por outros autores.

Imagine se em todas essas histórias os estúdios Disney tivessem que pagar os copyrights pela reprodução e adaptação. É certo que as animações nem existiriam, e todos nós que crescemos na década de 1990 teríamos uma infância muito mais triste (ou não).

Mulan, personagem de um poema chinês do século V

*

É esta “armadilha” realizada pelo senhor Disney que trata o curta “The Disney Trap: How copyright steals our stories“, escrito e produzido por Monica Mazzitelli, integrante da Fundação Wu Ming – que tu já deve ter ouvido uma porção de vezes por aqui – e do coletivo Iquindici, que tem por peculiar missão ler obras ainda não publicadas com o objetivo de dar um retorno aos autores e, também, promover a adoção de licenças abertas (copyleft, creative commons) na indústria editorial italiana.

Em pouco mais de 11 minutos, o video fala um poquito da trucagem dada pela Disney nas leis de direito autoral para que seus personagens continuem em domínio público. Para ilustrar o caso, a diretora Monica “interpreta” Molly Bloom, personagem de Ulysses, de James Joyce [a do clamoroso monólogo final], que já deveria ter sua obra em domínio público se não fosse pela ajudinha da Disney. O video está em inglês com legendas em italiano:

[youtube=http://www.youtube.com/watch?v=MqySp7Nq5j0&feature=player_embedded#]

**

P.S: O prazo para que uma obra entre em domínio público varia bastante, e já foi muito menor do que é hoje nos Estados Unidos e no Brasil, absurdos 70 anos após a morte do autor, para obras criadas a partir de 1978. É por essas e outras que defendemos aqui desde o início a reformulação das leis de direito autoral, o que vai ser discutido no seminário “O direito à educação e a reforma da lei de direitos autorais“, neste próximo sábado, no Instituto Paulo Freire, em São Paulo. O BaixaCultura estará lá e promete um relato na sequência.

[Leonardo Foletto.]

Créditos imagens: 1, 2, 3.

Comments:

  • Paulo Rená

    Leonardo, aqui tem uma ótima tabela (em inglês) para os diferentes prazos de duração dos direitos autorais adotados pelos países.

  • Camille

    Nunca foi com a cara daquele musical, Fantasia.

    Gostei da frase que Monica usa no documentário:
    “If you do it for free, you can use it for free.”

  • Camille

    corrigindo,
    nunca fui*

  • baixacul

    Obrigado Paulo, já tá anotado e registrado.

    Camille,
    Eu nunca vi inteiro fantasia, mas o restante vi (e na época que vi) adorei todos. Especialmente Alladin, o meu preferido por muito tempo. Mas tu vê que a hipocrisia da Disney é algo complicado. Acho genial eles terem usado essa enorme arsenal de boas histórias antigas em domínio público. Mas que deixem fazer o mesmo com “seus” personagens, ora pois!

  • monica mazzitelli

    Obrigada!!!
    I am very proud for this, thank you for watching and appreciating my short film!!
    Monica

  • Leonardo

    Hey Monica,
    Thank you so much for your contact!
    Congratulations for your “copyleft” actuation.
    sincerely,

  • Bruno

    Bem, aparentemente, eles também plagiaram uma obra de Osamu Tezuka para criar O Rei Leão: trata-se de Kimba, o Leão branco.

  • Edmundo Santiago (@edmsantiago)

    Sinceramente?

    Acho errado o lobby para impedir que as histórias e filmes entrem em domínio público. Mas acho justo que a empresa consiga manter os personagens.

    Republicar as histórias sem autorização da Disney, assisti-las na internet e etc, devem ser legalmente permitidos. Afinal, são documentos históricos.

    Agora, usar o personagem em lancheiras, fazer novos filmes sem a participação da Disney, criar games e etc com eles deve sim ser proibidos. Aí se está dilapidando o patrimônio de uma empresa só porque é antigo, e não pq traz algum beneficio, seja cultural ou de qualquer outro tipo, para a sociedade.

  • Beto Mendes

    Recomendo a todos um outro lado da mesma moeda, o livro “Para ler o Pato Donald”, analisa o fato de todos os personagens infantis do disney vivem com os tios ou tias, cultivando uma família como do,Bart simpson ou do family guy, onde os pais sao ignorantes e os filhos pródigos, que estudam para ser escolarizados.

  • baixacul

    Beto,
    Obrigado pela dica do “Para ler o Pato Donald”. Realmente, é uma leitura importante.
    L.

  • fabs

    galerê, como assim vocês só permitem comentários direto nas matérias com login em redes proprietárias? isso é meio incoerente com o tipo de política que vocês defendem, não?

    • baixacultura

      Caro, temos o comentário do facebook, e temos este comentário aqui, que não precisa estar logado em nada pra ser publicado.

Deixe um comentário para Edmundo Santiago (@edmsantiago) Cancelar resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado.

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.

Back to top
Disque:

info@baixacultura.org
@baixacultura

Tradução