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A história das coisas

Prefiro a idéia de providência à de coincidência e disso de modo algum resulta que eu me furte a apreciar a beleza narrativa da segunda, essa espécie tão charmosa de sintaxe do acaso. Um post que começa na coincidência, no comentário de um professor de teoria literária concluindo um raciocínio, ‘na próxima vez em que forem comprar alguma coisa, lembrem que a mercadoria carrega uma história’.

Ele nem eu tínhamos idéia de que conversávamos sobre o tema do curta que eu havia baixado na noite anterior, esse aqui ó, e que só assistiria no dia seguinte à aula, um pouco chateado por tratar-se de uma versão dublada, e pronto pra te dizer que, caso isso também te irrite, dá pra assistir em inglês no site oficial do filme.

The Story of Stuff são 20 minutos de uma bem-fundamentada, acessível e cuidadosa explicação dos motivos básicos pelos quais é possível dizer que vivemos num morto-vivo tóxico que gira sobre o próprio eixo e ao redor do sol. Um planeta condenado mesmo.

O argumento básico do filme se aproxima bastante do que vem dizendo há várias décadas o poeta, antropólogo e ecologista (dos mais inteligentes) norte-americano Gary Snyder, de que escolhemos pra chamar de nosso um sistema de produção que, além da óbvia brutalidade que só o cinismo nos leva a tomar por normal, possui uma característica que nega o modo básico de funcionamento do planeta: ele nunca pára.

Enquanto a natureza opera através de ciclos (desde a respiração até a dinâmica do plantio e da colheita), o capitalismo tende a resolver inclusive suas crises por meio do estímulo e da intensificação do consumo. Como bem resume a mocinha de A História das Coisas, é a publicidade quem funda a sociedade americana moderna [e, acrescento, funda o modelo de democracia onde ‘iguais oportunidades’ equivale a ‘iguais oportunidades de consumo’, modelo que terrivelmente serve de base pros países latino-americanos], a publicidade que lustra mercadorias estrategicamente construídas pra durar apenas o suficiente para renovar a fé no consumo.

Não é difícil perceber o caráter totalizante da economia de mercado. Basta pensar que ela devora esferas aparentemente alheias à economia, como a educação (do primário ao vestibular, da graduação às pós-graduações da vida, toda a genealogia do aprendizado é organizada para culminar no famigerado Mercado de Trabalho) e a família (o que significa se tornar ‘independente dos pais’ senão ganhar a própria Grana, comprar o próprio carro, enfim, ser responsável por seu próprio consumo?).

No meio disso tudo, a ideologia do cinismo tem dado um cacete certeiro no pensamento utópico [eu pessoalmente me convenço cada vez mais de que a utopia é a única vacina possível contra o cinismo iúpe], covardemente caricaturizado como ‘idealismo’, e a ecologia virou sinônimo de ong ou coisa de viajandão, completamente destacada da esfera à qual pertence: a vida cotidiana [Digressão. é Roberto Piva quem lembra que o deus original da ecologia era o mesmíssimo Dionísio da festa e do vinho, radicalmente diferente do Francisco de Assis católico].

O pequeno triunfo do documentário é que se trata da apresentação de uma proposta, da divulgação de uma prática possível, de economia responsável e sustentável. Dá lá uma olhada. No site dá pra se aprofundar no tema também. Se não servir pra mais nada, que sirva pelo menos pra fazer com que nas próximas compras tu te lembre que as coisas trazem todas uma história oculta, uma história em cujo fim haverá sempre mais lixo do que podemos reciclar.

*

Em tempo: um dos enormíssimos clássicos da película brazuca, Ilha das Flores (primeiro filme do Jorge Furtado) acompanha a trajetória de um inocente tomate, do plantio à mesa do consumidor e desta ao lixão onde alguém o catará numas de fazer uma refeição.

Vale MESMO a pena dar uma sacada, por documentar os mecanismos do capitalismo dum ponto de vista mais próximo de todos nós [embora o que se diz sobre a sociedade norte-americana em A História das Coisas tenha se tornado absurdamente aplicável a qualquer lugar desse vasto mundo], mas principalmente por ser uma porrada, ponto. Linguagem maluca de vídeo, texto inteligentíssimo, ágil, e o que é melhor: dá pra baixar aqui.

[Reuben da Cunha Rocha.]

Comments:

  • Rogério Tomaz Jr.

    Projeto bacana e texto muito rico, que me faz lembrar de várias referências… só duas pequenas discordâncias: o capitalismo também funciona em ciclos, no caso, de expansão, retração e estagnação… (nenhum vínculo ou “consideração” com a natureza, óbvio).
    E o estímulo ao consumo (criando as próprias “necessidades” de consumo através dos fetiches) é mais o “sangue que corre nas suas veias” do que profilaxia para as crises…

  • Leonardo

    Dae tche,

    belo post. Interessante essa discussão, que me passa um tanto distante por uma espécie de preconceito que os radicais dessa “crítica à sociedade de consumo” me causam. Mas creio que em breve esse preconceito passa…

    Pô, eu olhava Ilha das Flores no colégio, quase em todas as séries do 1º grau. Sempre tinha alguma disciplina que usava o filme como pretexto pra discutir alguma coisa. Quando vim pra Santa Maria, me surpreendi em saber que o filme, além de bom, era cult e raro – pouquíssima gente o tinha visto.

    Leonardo

    ps: essa semana sai post meu por aqui!

  • Tadeu Sarmento

    Grande texto. Ótima notícia saber que o senhor voltou à ativa. E muito bem acompanhado. Abraço.

  • Tássia

    tb dá pra assistir ao Ilha das Flores no Porta Curtas
    http://www.portacurtas.com.br/Filme.asp?Cod=647

    🙂

  • rksanchez

    esse ilha das flores assisti há um bom tempo na tve, nem sabia que ele é um clássico, assisti de bobeira, por causa da ótima edição e da narrativa

  • Melina Savi

    Segui o link que você mandou para o email da PGI. Gostei muito de ler o seu texto e da forma que você escreve.
    Assisti ao vídeo hoje pela manhã e a msg dele continua martelando no meu cérebro…
    Ah, e ontem assisti a um documentário chamado “The Last Standing Hippie” e vejo uma conexão entre os dois docs., já que este fala sobre/critica a cultura de consumismo dos anos 70 nos EUA e o A História das Coisas fala (além de outras coisas) do resultado dessa tendência para o mundo. Recomendo.
    Abs
    Melina

  • alinê

    yeah, baby. esse vídeo é massa bagarai. assisti faz uns meses já e, como na Mel, ficou martelando no meu cérebro. um martelo e tanto. legal cê ter escrito (muito bem, por sinal) sobre ele e sobre o assunto.
    beijo!

  • alinê

    ah!
    quanto ao Ilha das Flores, também assisti no colégio. foi um “martelaço” também. sexta feira passada tava falando sobre esse vídeo. é super antigo e (infelizmente) atual.

  • JACKELINE

    Olá, postei parte do seu texto sobre o vídeo A História das Coisas no meu blog de Sociologia.

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