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O mundo velho como um vovô com alzheimer

Hernán Casciari é um escritor argentino radicado em Barcelona desde 2000. Ganhador do prêmio Juan Rulfo de 1998 com o livro “Subir de espaldas la vida“, Casciari se tornou conhecido por remixar um gênero conhecido – o folhetim – para os blogs, no que se convencionou chamar de “blogonovela”.

Nesse (novo ?) “gênero”, o escritor encarna um personagem e passa a soltar pílulas rotineiras em um blog como se fosse o diário da personagem – interage com os leitores através de comentários, inclusive, sempre sem revelar sua “verdadeira identidade”. Sua primeira “blogonovela”, “Mais Respeito que Sou Tua Mãe“, foi vencedor do Best of Blogs da Deustche Welle em 2008, virou livro e até peça montada até no Brasil.

Casciari se fez conhecido com o gênero e escreveu mais três blogonovelas: “El diario de Leticia Ortiz“, “Juan Dámaso, Vidente” e “Yo y mi garrote, historia de Xavi L” – esta, publicada em um blog no El País espanhol.

Mas essa breve introdução sobre Casciari (foto acima) não é pra falar de suas blogonovelas e do trabalho literário do argentino, que, ademais, tem 6 livros publicados. É para falar da revista que criou e é editor, a Orsai, de onde vem a maioria das imagens desse post.

É uma revista de literatura, entrevistas, historietas, contos e outras cousas más que Casciari explica no vídeo logo abaixo. Criada em janeiro de 2011, tem periodicidade bimestral, não conta com publicidade e tem todas as suas edições disponíveis para download grátis. A assinatura da revista impressa é (bem) paga: no Brasil, onde há um único ponto de distribuição, localizado no Rio de Janeiro, custa U$ 138 (U$ 21 por edição, mais U$2 por “ganância do distribuidor”, segundo a revista).

[youtube=http://www.youtube.com/watch?v=_VEYn3bXz34]

A partir da experiência da Orsai, Casciari escreveu um texto sobre os novos modelos de negócio na rede que circulou bastante aqui no Brasil na semana passada. O argentino usa o caso Lucía Etxbarría, escritora espanhola que deixou de publicar porque estavam baixando mais do que comprando seus livros (?), para fazer um sincero depoimento de que, sim, uma revista (literária) pode sobreviver na era digital colocando seus PDFs para baixa de graça.

Mais do que isso, o texto faz uma criativa descrição do “velho mundo” que tanto falamos por aqui: aquele mundo das gravadoras, estúdios de cinema, Anas de Hollanda e ECADs da vida que acha que o mundo cultural deve ser baseado “em controle, contrato, exclusividade, confidencialidade, trava, representação e dividendo“.

A estes velho mundo, Casciari dá a receita: “não temos de lutar contra o velho mundo, nem sequer temos que debater com ele. Temos que deixá-lo morrer em paz, sem incomodá-lo. Não temos que enxergar o mundo velho como aquele pai castrador que foi nos seus bons tempos, mas sim como um vovô com alzheimer“.

A tradução do texto para  português saiu no site da Revista Fórum, mas infelizmente não conseguimos achá-lo mais para linkar aqui. A versão em espanhol tá aqui, escrita no final de 2011; a em português tá aqui abaixo.

Piratas e Tubarões

Não temos que enxergar o mundo velho como aquele pai castrador que foi nos seus bons tempos, mas sim como um vovô com alzheimer.

Por Hernán Casciari

O contador de assinaturas anuais da nova revista Orsai acaba de chegar a mil. Em nove dias, e sem notícias sobre o conteúdo ou a quantidade de páginas, mil leitores já compraram as seis revistas do próximo ano. E isso que todos sabem que sairá uma versão em pdf, gratuita, no mesmo dia em que a revista chegue às casas deles. Repito: acabamos de vender seis mil revistas. Seiscentas e sessenta e cinco por dia. Vinte e oito por hora.

Ao mesmo tempo, uma escritora espanhola acaba de anunciar que deixará de publicar. “Visto que foram feitos mais downloads ilegais do meu romance do que foram comprados exemplares, anuncio que não publicarei mais livros”, disse ontem Lucía Etxebarría. A impressa tradicional fez eco a essas palavras e a indústria editorial complementou: “Pobrezinha, olhem o que a internet está fazendo com os autores”.

Acontece o mesmo com a gente. Durante 2011 editamos quatro revistas Orsai. Vendemos uma média de sete mil exemplares de cada uma, e com esse dinheiro pagamos (extremamente bem) todos os autores. Os pdf’s gratuitos dessas quatro edições alcançaram seiscentos mil downloads ou visualizações na internet.

Vendemos sete mil, baixaram seiscentos mil.

Se os casos de Lucía Etxebarría e da Orsai são idênticos, e ocorrem no mesmo mercado cultural, por que nos causam alegria e a ela só causam desânimo?

A resposta talvez esteja em que se trata do mesmo mercado mas não do mesmo mundo.

Existe cada vez mais um mundo efervescente em que o número de downloads e o número de vendas físicas se complementam; seus autores dizem: “que bom, quanta gente me lê”. Mas ainda existe um mundo velho onde um número se subtrai ao outro; seus autores dizem: “que espantoso, quanta gente não me compra”.

O velho mundo se baseia em controle, contrato, exclusividade, confidencialidade, trava, representação e dividendo. Tudo o que acontecer fora de seus padrões é cultura ilegal.

O novo mundo se baseia em confiança, liberdade de ação, criatividade, paixão e entrega. Tudo o que acontecer dentro e fora de seus parâmetros é bom, contanto que as pessoas aproveitem a cultura, pagando ou sem pagar.

Dizendo de outra maneira: Lucía ser pobre não é culpa dos leitores que não pagam, e sim do modo como seus editores repartem os lucros vindos dos leitores que pagam. Mundo velho, mundo novo. Há algumas semanas vivi um caso que deixa muito claro o que ocorre quando esses dois mundos se cruzam. Vou contar para a Lucía e para vocês porque é divertido: Uma editora da Alfaguara (Grupo Santillana, Madri) me liga e me diz que estão preparando uma Antologia da Crônica Latinoamericana Atual. E que querem um conto meu que aparece no meu último livro, “um conto que se chama tal e tal, de que a gente gosta muito”.

Respondo que lógico, que pegue o conto que quiser. Ela me responde que me enviará um e-mail para solicitar autorização formal. Digo que tudo bem.

“Caro Hernán, lhe explico o que adiantei por telefone: a Alfaguara editará em breve uma antologia de bla bla bla cuja seleção e prólogo ficou a cargo de Fulaninho de Tal. Ele deseja incluir o teu conto Xis. Se você está de acordo com o contrato que anexei, envie duas cópias com todas as páginas assinadas ao seguinte endereço” (e inclui o endereço de Prisa Ediciones, Alfaguara).

Abro o arquivo em anexo, leio o contrato. Me fascina a leitura de contratos do mundo velho. Não se preocupam nem um pouco em disfarçar suas gravatas.

Me pedem um conto que chamam de “La Aportación”. A cláusula 4 diz que “o editor poderá efetuar quantas edições julgue convenientes até um máximo de cem mil (100.000)”. A cláusula 5 diz: “Como remuneração pela cessão de direitos de “La Aportación”, o editor pagará ao autor cem euros (100?) brutos, valor sobre o qual incidirão os impostos e se praticarão as deduções cabíveis”.

Pensei nos outros autores que compõem a antologia, nos que com certeza assinam contratos assim. Cem euros menos impostos e deduções são sessenta e três euros, e disso ainda se retiram os quinze por cento do agente ou representante (todos têm um), ou seja, o autor fica com cinquenta e três euros na mão. Não importa se a editora vende dois mil livros ou cem mil livros. O autor sempre leva cinquenta e três euros. Será que Lucía Etxebarría assina contratos assim?

Nessa mesma tarde respondi o e-mail à editora da Alfaguara:

“Oi Laura, o conto que vocês querem aparece no meu último livro, que é distribuído sob licença Creative Commons Reconhecimento 3.0 Unported, que é a mais generosa. Isso significa que vocês podem compartilhar, copiar, distribuir, executar, realizar obras derivadas e inclusive fazer uso comercial de qualquer um dos contos, desde que vocês digam quem é o autor. Te dou o texto de presente para você fazer com ele o que quiser, e que este e-mail sirva de comprovante. Mas eu não posso assinar essa porcaria legal assombrosa. Um beijo.”

A resposta chegou alguns dias depois; já não era ela que escrevia, senão outra pessoa:

“Hernán: entendemos isso, mas o departamento legal precisa que você assine o contrato para não termos problemas no futuro. Saudações!”

E aí eu não respondi mais. Para que continuar a corrente de e-mails?

A historinha é essa, não é grande coisa. Mas eu quero dizer, ao contá-la, que não temos de lutar contra o velho mundo, nem sequer temos que debater com ele. Temos que deixá-lo morrer em paz, sem incomodá-lo. Não temos que enxergar o mundo velho como aquele pai castrador que foi nos seus bons tempos, mas sim como um vovô com alzheimer.

– Me dá isso? – diz o vovô.
– Sim, vovô, toma.

– Não, assim não. Assina pra mim esse papel onde você diz que me dá isso e em troca eu cuspo em você.

– Não precisa disso, vovô, eu te dou. É de graça.

– Eu preciso que você assine esse papel, não posso aceitar de graça!

– Mas por quê, vovô?

– Porque se eu não te ferro de alguma maneira, eu não sou feliz.

– Bom, vovô, outro dia a gente se fala… Te amo muito.

E amamos muitos esse vovô de verdade. Há vinte, trinta anos, esse homem que agora está gagá nos ensinou a ler, pôs livros formidáveis nas nossas mãos.

Não temos que discutir com ele, porque gastaríamos energia no lugar errado. Temos que usar essa energia para fazer livros e revistas de outra maneira; temos que voltar a nos apaixonar por ler e escrever, temos que defender até a morte a cultura para que ela não esteja nas mãos de avôs gagás. Mas não temos que perder tempo lutando contra o avô. Temos que falar exclusivamente com nossos leitores.

Lucía: você tem um monte de leitores. Você é uma escritora de sorte. O demônio não são seus leitores; nem os que compram seus romances os que baixam as suas histórias na internet.

Não há demônios, na verdade. O que há são dois mundos. Duas maneiras diferente de fazer as coisas.

Está em você, em nós, em cada autor, continuar assinando


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