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As histórias pertencem a todos

Este post inaugura mais uma trincheira na discussão sobre cultura livre. A partir deste mês, sem periodicidade definida mas sem intervalo no afinco, passaremos a publicar traduções de textos que contribuam para o debate, e que ainda não tenham encontrado voz em nossa cultura. Na estréia, retomamos o assunto deste post, a curiosa ação do coletivo italiano de escritores Wu Ming.

O que se segue é a tradução de uma conferência (um trecho dela, na verdade) proferida por Wu Ming 1 numa mesa sobre Inteligência Coletiva em Berlim, 2001. A tradução foi feita do inglês, não do italiano, da versão disponibilizada aqui. O foco da fala do escritor é a necessidade de inserção do autor no eixo dos debates autorais, e a maneira como isso só é possível a partir da conscientização de que o conhecimento, inclusive o literário, possui uma origem social, não individual. É um ponto de vista ousado considerando o peso que a idéia de originalidade possui no establishment literário, e isso talvez basta para assegurar sua relevância.

Agradeço a Bruno Azevêdo pela colaboração, ele traduziu o conteúdo da patente no segundo parágrafo. E os links não constam no original.

[Reuben da Cunha Rocha.]

As histórias pertencem a todos: Narradores, Multidões e a Recusa à Propriedade Intelectual

Trecho de uma conferência realizada por Wu Ming 1 em Berlim, 2001

Tradução: Reuben da Cunha Rocha 

[…] Quase duas décadas se passaram desde que “plágio” deixou de ser sinônimo de “roubo” e deu os primeiros passos como nome representativo de um movimento cultural. Certamente alguns de vocês se lembram do Festival of Plagiarism [Festival do Plágio] ocorrido em Londres e Glasgow (1988 e 1989). Desde então se tornou trivial o fato de que toda legislação de propriedade intelectual é obsoleta e inadequada, e que cultura e criação são sempre produtos e processos de coletividade. A cada minuto incontáveis exemplos surgem diante de nossos olhos, estando entre os mais promissores a economia da dádiva e o senso de comunidade sugeridos no avanço dos sistemas abertos e dos softwares livres.

Ainda assim, as leis de copyright nunca se mostraram tão agressivas, repressivas e tolas. Patentes são criadas para virtualmente tudo, desde gestos banais como usar um archote para brincar com o seu gato (patente #5443036 nos EUA: “um método para induzir exercício em gatos consiste em apontar um raio de luz invisível produzido por um laser de mão no chão, parede ou outra superfície opaca que esteja perto do gato, daí mover o laser de modo a fazer com que o padrão de luz se mova de maneira irregular, fascinando o gato ou qualquer animal com instinto de caça.”) até espécies vivas que habitam este planeta há muitas eras. Isto não é menos que guerra, capitalismo vs. inteligência coletiva, império vs. multidão, nós o terceiro planeta a partir do sol vs. os parasitas devastando a vida do meio ambiente.

Eu acredito que qualquer intelectual deveria desafiar o atual estado das coisas no campo da lei autoral, a começar do seu próprio trabalho. Estou falando do ponto de vista de um contador de histórias, eu e outras pessoas trabalhamos com palavras, imagens, cores e sons colhidos da vida comum, da história e da paisagem midiática, e com elas escrevemos ficção. Toda uma comunidade escreve conosco, ainda que inconscientemente. Isso vale para cada autor e artefato cultural, em qualquer era. Os épicos de Homero foram co-escritos por membros anônimos de antigas sociedades mediterrâneas. O teatro elizabetano é inteiramente baseado em releituras, variações, improvisação coletiva e intervenção do público. Os folhetins dos séculos 18 e 19 eram constantemente reelaborados pelos leitores dos jornais.

Hoje, a série Star Trek e todo o seu universo cultural nos fornecem o melhor exemplo de cooperação social direcionada para o ato de contar histórias: os fãs (os chamados “trekkies”) vivem adicionando novos elementos a um mundo cheio de aparelhos, romances, sites, convenções anuais, dicionários Klingon etc. Fãs-clubes até revisam os roteiros dos episódios e votam pela aprovação de mudanças na série.

Contadores de histórias (romancistas, dramaturgos, roteiristas, diretores etc.) reelaboram mitos, peças de referencial simbólico que certas comunidades reconhecem, aceitam ou discutem. As comunidades necessitam de suas histórias. Todos narram, é assim que chegamos a conhecer nossa história e nos relacionamos com outras pessoas. Nisso há qualidade de vida. No entanto, um narrador transforma isso em atividade profissional, uma “especialização” totalmente complementar ao faça-você-mesmo. Qualquer um põe pregos num pedaço de madeira, mas nem todos são carpinteiros.

Ao invés de posar de grandes artistas ou se enterrar em empregos cretinos, ao invés de escrever lixo auto-referencial ou triviais porcarias mercadológicas, ao invés de se fazerem de bobos como convidados de talk shows ou gastar suas vidas escrevendo falas para apresentadores de talk shows, narradores deveriam desempenhar um papel tão importante na sociedade quanto os griots (historiadores orais) nas vilas africanas, os bardos na cultura céltica ou os poetas no antigo mundo grego.

É claro que contar histórias é um trabalho peculiar, com benefícios e vantagens para quem o desempenha, no entanto ainda é um trabalho, não menos integrado na vida comunitária que apagar incêndios, arar a terra ou ajudar os necessitados. Em outras palavras, contar histórias deveria pertencer a “artes & ofícios”, não a Arte. Deveria ser algo social, não algo completamente narcisista, e eu não estou falando de conteúdo, estou falando de mentalidade. Narradores devem conhecer os lugares, pessoas e processos de onde deriva sua “arte”. Não importa quão “radical”, experimental” ou mesmo “incompreensível” seja o seu trabalho: quando perceberem que muitas outras pessoas são co-autoras das obras que escreveram, os narradores deixarão de solipsismo e se tornarão úteis para os demais, aptos então a ajudar outros intelectuais a desafiar a as leis autorais […]

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