
Capitalismo, semiótica e as subjetividades do fim: entrevista com Alessandro Sbordoni
Em julho de 2025, o italiano radicado em Londres Alessandro Sbordoni esteve no Brasil para o lançamento de “Semiótica do Fim – Capitalismo e Apocalipse”, pela editora SobInfluencia. O livro, como já comentamos no texto de apresentação, é uma coletânea de 13 ensaios que investiga como o fim do mundo se tornou apenas mais um signo do “semiocapitalismo”. A tese – se podemos assim chamá-la num texto tão aberto a provocações e leituras distintas – é que o fim do mundo é “apenas mais um signo” do semiocapitalismo: o apocalipse, tal como tradicionalmente concebido, não ocorrerá porque já está em curso permanente. Não há mais diferença entre o fim do mundo e o próprio capitalismo: ambos se reproduzem incessantemente segundo a lógica semiótica do capital, diz Sbordoni. Seu livro, então, se apresenta como um manifesto que nos convida a pensar sobre o que significa “fim” hoje.
Em 17 de julho de 2025, um dia antes do primeiro lançamento do livro [na sede da editora SobInfluencia, na Galeria Metrópole, referência cultural e artística do centro de São Paulo; veja íntegra do evento aqui], conversamos com Alessandro num restaurante amazônico dentro da galeria. Pelo BaixaCultura, Leonardo Foletto e Rafael Bresciani, com participação de Rodrigo Côrrea, editor e designer da SobInfluencia. Entre Cupuaçú amigo (a versão local do drink “Caju Amigo”) e Tacacás (a famosa “sopa” amazônica, com jambu e tucupi), a conversa foi de “Semiótica do Fim” às relação entre cultura alta e baixa, anti-assombrologia, revistas digitais como espaços de encontro intelectual, underground, tecnologia, teoria contemporânea. Abaixo uma versão editada da conversa. Originalmente em inglês, também foi publicada no Institute of Network Cultures (INC) de Amsterdam.
BaixaCultura: Para começar: como surgiu a ideia do livro? Em que contexto foi produzido? Conte um pouco mais sobre sua trajetória na escrita do livro.
Alessandro: Em 2020/2021, li “Fenomenologia do Fim” de Franco Berardi. Ao lê-la, achei a abordagem sobre o capital e o capitalismo muito intrigante, algo que ficou na minha cabeça por um tempo. Eu tinha acabado de escrever outro livro sobre algo completamente diferente, mas sabia que queria fazer algo assim. Alguns meses depois, escrevi um ensaio, que é o primeiro do livro, com um subtítulo diferente, mas o título principal era “Semiótica do Fim”. Eu não sabia o que sairia daquilo; era sobre tédio e o fim do mundo. Publiquei no Blue Labyrinths, a primeira vez que publiquei lá. Alguns meses depois, publiquei outro ensaio, novamente com o mesmo título e um subtítulo diferente, e depois o terceiro ensaio. Assim, pouco a pouco, tudo começou a se encaixar. Obviamente, o título “Semiótica do Fim” é uma referência a “Fenomenologia do Fim”, e pensei que faria algo similar.
Então, o livro surgiu organicamente. Pouco a pouco, comecei a perceber que queria misturar a ideia de semio-capitalismo como uma forma de analisar, criticar e ir além da ideia de realismo capitalista em Mark Fisher, que é o núcleo do livro.
BaixaCultura: Você é filósofo?
Alessandro: Eu não me consideraria… Há uma citação muito engraçada de Guy Debord, que disse: “Não sou filósofo, sou estrategista”. Me vejo assim: não sou filósofo, com certeza. Talvez seja estrategista, mas definitivamente me considero mais um teórico. A filosofia carrega toda essa bagagem cultural ocidental com a qual discordo totalmente em me identificar. Então me vejo como teórico, o que também traz certas questões, como: não estou buscando a verdade no que escrevo. Vejo mais como um empreendimento político ou cultural, se preferir, mas não buscando verdade ou conhecimento. Tudo isso é nonsense.
BaixaCultura: Gostaria de perguntar sobre Blue Labyrinths e Charta Sporca, duas revistas digitais nas quais você está envolvido. Quando começaram?
Alessandro: Com Blue Labyrinths, tudo começou quando li os ensaios anti-assombrologia (anti-hauntology) do fundador do Blue Labyrinths, Matt Bleumink, sobre os quais queria falar, e eles formaram o último capítulo do livro. Depois de publicar alguns outros ensaios no Blue Labyrinths, nos tornamos bons amigos e, pouco a pouco, comecei a desempenhar um papel no conselho editorial do Blue Labyrinths junto com outra pessoa.
Para Charta Sporca, eu realmente queria publicar e fazer algo com eles. Os encontrei quando estava na Itália, fazendo minha graduação, e sempre apreciei a mistura de política, literatura e filosofia, tudo junto, que eles fazem.
BaixaCultura: Sobre Blue Labyrinths: que tipo de contribuições vocês buscam? E como a revista se posiciona dentro do panorama atual de publicações culturais e filosóficas?
Alessandro: Aceitamos qualquer submissão que consideremos interessante para nós. Se você ler a descrição, diz algo muito geral: “Uma revista online focada em filosofia, cultura e uma coleção de ideias interessantes.” E essa parte das “ideias interessantes” é o principal, porque todas as revistas e editoras tendem a admitir que focam em uma coisa, talvez porque seja mais fácil ou porque as pessoas têm entendimento limitado. Mas sempre publicamos coisas que esticam um pouco, e até publicamos algumas coisas com as quais tendemos a discordar em certa medida, até mesmo no nível político. Nada muito louco – nunca publicaria um texto fascista, tenho certeza. Mas houve discordâncias, e isso é interessante. Por exemplo, foi uma política muito boa porque atraímos todos aqueles escritores que não sabem onde mais publicar, porque todas as outras revistas são muito específicas, e se você não se encaixa, dane-se. Então, foi muito interessante. E não foi minha ideia; foi Matt, o fundador, que sempre teve essa mentalidade, e sempre gostei disso. E acho que fui atraído porque também na minha escrita faço isso: trago muitas coisas diferentes todas juntas.
BaixaCultura: E por que revistas? Você gosta de revistas digitais?
Alessandro: Pessoalmente, as vejo como uma espécie de “academia cultural”. É quase como um campo de testes ou, se quiser, um treinamento no sentido militar. É uma forma de treinar uma teoria para, então, expandi-la e desenvolvê-la em outros espaços.
BaixaCultura: Charta Sporca, para mim, parece engajar com teoria e cultura italiana contemporânea, incluindo seu próprio trabalho e figuras como Mark Fisher e Deleuze. Como editar essa revista influenciou seu próprio desenvolvimento teórico? E que papel você vê as revistas intelectuais e digitais desempenhando hoje, especialmente no seu caso? A história intelectual italiana tem uma enorme histórico, com Quaderni Rossi, Classe Operaia e A/Traverso, por exemplo, nos anos 1960 e 1970.
Alessandro: Imagine que a revista fosse um espaço com o qual você interage. Você vai lá frequentemente e vê o que as pessoas estão fazendo. E o que sai disso não é teoria ou ideia. Sim, você lê textos interessantes, e eles podem despertar algo, mas essa não é a coisa principal e mais importante. A coisa mais importante é que você conhece as pessoas e cria relacionamentos, como os que também estamos fazendo agora. Isso é algo que percebi nos últimos anos: a coisa mais interessante sobre escrever não é escrever, é conhecer as pessoas. É fazer parte de uma “comunidade”, por falta de palavra melhor – e não gosto da palavra “comunidade” porque quase exige ser definida. São encontros. Encontros com as pessoas que você conhece informam sua teoria, mas é eventual de certa forma. A teoria é secundária à realidade de encontrar alguém. Essas revistas são uma potencialidade em direção aos encontros.
BaixaCultura: E por que sites de revistas e não, por exemplo, redes sociais?
Alessandro: Bem, porque há uma certa autonomia na revista. E isso volta ao que eu estava dizendo sobre essas “ideias interessantes”. Você simplesmente recebe qualquer uma. Fico feliz em conhecer qualquer um que tenha algo interessante a dizer, especialmente se discordam.
BaixaCultura: Voltando ao livro. Ele abre com a declaração provocativa de que “o fim do mundo é apenas outro signo do semiocapitalismo.” Pode explicar o que o levou a essa conclusão e como desenvolve o conceito de semiocapitalismo como distinto das tradições de crítica do capital, como nos livros do Bifo, por exemplo? Se há diferenças ou não.
Alessandro: Definitivamente há diferenças. E sempre tomo todas essas ideias como pontos de partida. E, em certa medida, não estou tentando desenvolver o conceito de semiocapitalismo, mas acho que é um terreno interessante. E, na minha visão, o que aconteceu foi que, em algum momento, a diferença entre materialidade e imaterialidade, entre uma cultura baseada na produção e commodities reais – a dicotomia entre produção e reprodução, nos termos que coloco – foi abolida. E o mundo se tornou mais efêmero e imaterial, apenas uma estrutura de signos. O interessante é que o capitalismo conseguiu se vincular à reprodução de signos e se reproduzir através de signos, independentemente do que os signos significam. Isso poderia ter sido um problema no passado. Por exemplo, o capitalismo entrando em um discurso radical e obtendo lucro disso, isso poderia ter sido uma contradição no sentido marxista. Acho que agora o discurso foi nivelado e qualquer coisa pode se transformar em capital; qualquer coisa pode ser uma forma de reproduzir capital. E a forma mais extrema disso é o fim do mundo. Porque o capitalismo se alimenta da reprodução até mesmo do seu próprio fim, o que achei que era um ponto de partida interessante por causa da ironia intrínseca. Não acho que haja contradição, mas há uma forte ironia e um forte sentimento de que deveria ser o ponto de partida para algo diferente. E estou tentando encontrar uma forma de abrir para esse novo começo, mas acho que temos que realmente pensar fora da caixa, porque tudo que está dentro da caixa é capital.
BaixaCultura: Você afirma que o apocalipse, como tal, não ocorrerá porque já aconteceu. Isso parece desafiar tanto narrativas religiosas quanto seculares de fim. Como situa essa afirmação em relação às nossas crises ecológicas e sociais que estamos vivenciando? E como podemos pensar sobre outras relações com o fim?
Alessandro: Há, novamente, uma piada triste sobre a catástrofe climática e o “fim sem fim” do capitalismo. Conforme a catástrofe continua, reproduz mais e mais capital, e porque reproduz mais e mais capital, continuará mais e mais rápido. E, paradoxalmente, as poucas imagens que agora temos – por exemplo, os incêndios florestais acontecendo ao redor do mundo – vão aumentar porque o capital vai aumentar, e o capital são essas imagens. E então, conforme o capital aumenta, o fim do mundo se aproxima. Não vejo, seguindo essa linha de raciocínio, um fim para o capital. Mas conforme começamos a nos relacionar com a cultura de forma diferente e começamos a ver que essas imagens não são nada além de capital, que a reprodução é o problema do que representam, essa será uma forma antiga de pensar. O problema é que, se o fim do mundo está se aproximando, ainda estamos produzindo conteúdo e ainda estamos produzindo de forma capitalista. Então, por um lado, uma solução poderia ser encontrar novas formas de produção, mas entramos em um novo paradigma, que chamo de re-produção. Muitos dos diferentes modos de produção-reprodução foram neutralizados.
Então, a única coisa que resta fazer é repensar onde estamos agora. E isso é algo a que Geert Lovink se refere em “Extinção da Internet“: temos que olhar para o abismo para superá-lo. E para mim, também é olhar para como isso nos faz sentir. E, paradoxalmente, falo sobre isso em termos de tédio em vez de ansiedade, porque estamos fartos disso. São 50, 60 anos de predições apocalípticas que não se concretizaram, porque o capital, como disse antes, continua se reproduzindo. Mas se redirecionarmos o conceito de fim e começo de uma forma metafísica – e é por isso que também estamos falando sobre filosofia. Podemos repensar o que significa estar no fim do mundo e o que significa o fim e o começo sempre coexistirem. Uma vez que entendemos isso, abrimos novos caminhos – e, em uma palavra simples, uma nova imaginação.
BaixaCultura: Seguindo essa ideia de fim e começo: geralmente pensamos sobre o progresso humano como marcos de sucesso. Quando as coisas acontecem positivamente, as marcamos. E um desses exemplos é quando, em nível pessoal, nos apresentamos como profissionais, usamos um Curriculum Vitae, que significa as coisas que fizemos na vida, os bons marcos de nossas vidas. Mas uma vez ouvi um psicólogo que defendia a ideia de um Curriculum Mortis, que é a ideia de que, quando reconhecemos os marcos do fracasso, somos capazes de superar esses fracassos. Então, essa visão é algo em que podemos confiar neste momento do Antropoceno e do capitalismo tardio? Usar um Curriculum Mortis da história humana como forma de abordar esse momento.
Alessandro: Há um artigo publicado recentemente em uma revista italiana por Christian Damato que fala sobre como o fracasso foi reintegrado no discurso do sucesso dentro de uma ideologia corporativa. E acho que é uma declaração muito sombria, mas acredito que meramente inverter o problema não o resolve, porque na minha forma de pensar, é uma questão de estruturas. Apenas reverter a estrutura não está criando uma nova estrutura, mas pode ser um meio para uma nova estrutura. Então, até mesmo enfatizar o fracasso poderia potencialmente ser um caminho para algo, mas não é suficiente.
Eu diria que o progresso só existe de acordo com um certo conjunto de critérios estabelecidos por uma cultura. E, de fato, a ideia de progresso no Ocidente foi muito criticada (por exemplo, por Jacques Derrida). Você sempre encontra um progresso constante se apenas decidir sobre os parâmetros certos para avaliá-lo. E acho, portanto, que a solução para esse problema é mudar as regras da questão. Não há como responder à pergunta “melhor ou pior” se é avaliada de acordo com os critérios do problema. Você precisa descobrir quais são as suposições metafísicas que precisam mudar. Talvez nos tornemos cínicos sobre isso. Mas acredito em algo que Tiqqun diz no primeiro ensaio de sua primeira edição: que política é metafísica, e uma nova política demanda uma nova metafísica; não deveríamos ter vergonha de falar em metafísica só porque as ideias de algum metafísico nazista se tornaram muito influentes.
BaixaCultura: Em diálogo com essa questão, você às vezes posiciona seu trabalho em contraste com o realismo capitalista de Mark Fisher. Propõe, em seu livro, um manifesto para a imaginação de outra relação com o fim. Como seu conceito de anti-assombrologia difere do dele? E como essa outra relação se parece na prática?
Alessandro: A ideia original de anti-assombrologia foi desenvolvida por Matt Bluemink antes de eu conhecê-lo. Depois, continuei o que ele fez tomando como seu texto como ponto de partida e depois construindo minha própria direção. E temos algumas discordâncias sobre como os conceitos poderiam ser aplicados. Sobre a diferença entre assombrologia e antiassombrologia, isso foi discutido no debate entre Matt Bluemink e Matt Colquhoun, que Matt Bluemink publicou seu primeiro ensaio. Matt Colquhoun respondeu, e então houve um vai e vem que aconteceu em 2021. Matt Colquhoun criticou a ideia de fazer essa distinção entre assombrologia e anti-assombrologia porque ela mesma é “assombrológica”. E acho que essa é uma crítica, digamos, injusta.
[Nota da edição: “Assombrologia” – nos termos de Mark Fisher desenvolvido sobretudo em “Fantasmas da Minha Vida” (2014, no Brasil publicado em 2022) – seria o estudo da persistência de elementos do passado que “assombram” o presente, não numa visão nostálgica, mas sim como a manifestação de futuros perdidos ou potenciais não realizados, especialmente no contexto do capitalismo tardio . A anti-assombrologia proposta por Bluemink e Sbordoni seria uma ideia de pensar para além dos fantasmas que assombram o presente. Como Bluemink escreveu em 2021, “Se a assombrologia é a lógica do desespero, então a antiassombrologia pode ser vista como a lógica da esperança”.]
Essa crítica segue uma lógica pós-estruturalista típica: toda oposição não pode ser claramente estabelecida como oposição, porque todo conceito contém dentro de si sua negação e assim por diante. Mas esse é precisamente o tipo de problema que tentei superar. Por isso, decidi simplesmente impor a distinção entre assombrologia e antiassombrologia, mesmo que isso signifique fazer uma certa violência teórica ao abandonar a filosofia em favor da teoria. Às vezes você precisa defender uma posição sabendo que ela não pode ser “provada” no sentido filosófico clássico – o importante é que existe uma potencialidade real para o novo, e meu trabalho é tentar tornar essa potencialidade concreta na realidade.
Na prática, o que a antiassombrologia faz- e isso é algo que Matt Colquhoun diz – é usar a cultura para recuperar a esperança de que o novo ainda pode acontecer. Mais do que isso: o novo já está acontecendo através do nosso próprio trabalho teórico e cultural. Essa mudança pode se espalhar para qualquer área da experiência humana – você só precisa estabelecer as bases metafísicas adequadas.No primeiro capítulo do livro, escrevo que “hoje, nada é possível porque nada é impossível” – ou seja, vivemos numa paralisia onde tudo parece ao mesmo tempo bloqueado e em aberto. Mas essa frase também pode ser invertida: se nada é impossível, então tudo volta a ser possível. Não se trata de inventar soluções mágicas do nada, mas de transformar a forma como as pessoas percebem e se relacionam com o mundo. É uma mudança de subjetividade que pode emergir aparentemente “do nada”, mas que tem efeitos muito concretos.
A aplicação prática da antiassombrologia funciona similar à arte, que tem esse paradoxo interessante: ela transforma nossa visão de mundo sem alterar diretamente as condições materiais do mundo. Quando você vê uma obra de arte poderosa, sua visão de mundo muda e novas possibilidades se abrem – mas aparentemente “nada” mudou no mundo físico. Ao mesmo tempo, “tudo” mudou, porque sua subjetividade foi transformada.
Esse é o ponto central: o problema não é fundamentalmente material, é subjetivo. Quando pensamos que enfrentamos apenas problemas materiais na verdade estamos lidando com uma crise mais profunda de subjetividade. É nossa forma coletiva de perceber e se relacionar com o mundo que determina como interpretamos esses problemas “materiais”. Os problemas concretos podem ser resolvidos, mas primeiro precisamos recuperar, como coletivo, nossa capacidade de controlar e dar sentido à realidade.
BaixaCultura: Guattari, em 1993, em seu livro “Caosmose“, fala de estética como forma de ressignificar a subjetividade diante de questões sociopolíticas. Citando-o: “Não se pode conceber uma disciplina internacional neste domínio sem trazer uma solução aos problemas da fome mundial e hiperinflação no terceiro mundo”. “A única finalidade aceitável das atividades humanas é a produção de uma subjetividade que enriqueça o modo de continuidade e suas relações com o mundo”. Então, ele está tentando dizer que a estética cria influência nessa visão de mundo comum que se torna material.
Você acha que a contaminação da internet e das tecnologias digitais em nossa noção de estética, e a relação entre isso e o tecido sociopolítico, é uma forma de recriar e ressignificar esse canal, essa visão de mundo do contemporâneo? A arte é uma forma de alcançar essas mudanças?
Alessandro: Sempre penso que a subjetividade, em certa medida, pode ser vista como um fim em si mesma. A questão não é: “Que tipo de mundo queremos?” ou “Que tipo de futuro queremos?”. Na verdade, deveríamos pensar na subjetividade como o meio para chegar a um fim. Mas ainda não sabemos qual é esse fim, porque ainda não chegamos ao verdadeiro começo. E isso é algo, a propósito, que Baudrillard faz e é criticado por isso, porque nunca apresentou uma visão de como poderíamos superar o capital, nunca oferecia soluções concretas. Mas a solução é exatamente a subjetividade. Não no sentido de que uma nova subjetividade surge e o mundo se transforma imediatamente, mas porque o problema é fundamentalmente uma questão de potencialidade. Uma vez que essa potencialidade está disponível, tudo pode se desdobrar – ou não.
Mas também acho que a filosofia, especialmente, tem uma certa arrogância ao tentar moldar o mundo diretamente, e isso faz parte do problema. Porque é exatamente isso que a ciência faz, que o Estado faz, e não quero me envolver com essa lógica. Por isso, pode parecer que permaneço no abstrato, mas na verdade penso no sentido mais material possível: a partir da subjetividade.
Então concordo com tudo que você disse. Talvez a crítica seja que o que estou propondo é muito simples. Se você observar a arte, ela não muda as coisas diretamente, mas faz as pessoas olharem para o mundo de forma diferente. A arte reformula o problema, e reformular o problema já é parte da solução.
BaixaCultura: Sim, Guattari falou isso em 93, você disse antes, certo? Faz 40 anos que estamos discutindo isso e não está terminando. Há uma saída?
Alessandro: Acho que a coisa mais importante que mudou é como podemos ativar novas subjetividades mais rapidamente, em uma escala muito mais ampla e global. Sempre penso no que faço nesses termos: quantas pessoas posso alcançar de uma só vez e como elas podem ser imediatamente transformadas.E também como isso é perigoso para o sistema, podendo tanto facilitar mudanças quanto impedi-las mais facilmente. Isso é o que mudou nos últimos trinta anos – pelo menos uma das coisas mais importantes que mudaram.
BaixaCultura: Você fala sobre cultura, música, arte. Sua análise vai de Britney Spears ao K-pop e a internet. Como você conecta objetos culturais tão diversos e, na sua opinião, o que eles revelam sobre nosso momento contemporâneo?
Alessandro: Estou muito interessado na conexão entre o que no mundo anglófono chamamos de “cultura erudita” (alta cultura) e “cultura popular” (baixa cultura). E em como, especialmente no mundo anglófono, essa conexão é frequentemente cortada, criando uma divisão entre elas. Existe uma separação entre Heidegger e Britney Spears. Mas me interesso por Britney Spears e frequentemente penso sobre ela de forma talvez “hiperintelectual”. Porém, não acho que as duas coisas sejam realmente distintas por causa da estrutura do semiocapital. Tudo está no mercado ao mesmo tempo, e essas distinções antiquadas entre cultura alta e baixa estão sendo abolidas. E creio que estão sendo abolidas pelo que chamo de “cultura trash”.
Se nos séculos 19 e 20, o kitsch tentou fazer a ponte entre a cultura da classe trabalhadora e a cultura da classe média, agora temos cultura trash. A internet, em particular, tem sido a tecnologia do trash. E trash, por definição, é aquilo que destrói a distinção entre o alto e o baixo, o bom e o ruim, e assim por diante…
Pessoalmente, acho que restabelecer essa conexão – que ainda está bastante aberta a várias “assemblages” – é um terreno fértil para novas formas de imaginação. Aqui, imaginação é algo que defino especificamente como a reconstrução de conexões entre subjetividades e cultura. Então, ao fazer uma piada conectando Kanye West e Hegel, digamos, você pode encontrar novas formas de refazer a assemblagem que constitui a cultura e descobrir novas expressões de subjetividades. Estou sendo muito otimista sobre isso, mas acho que ainda é algo que permanece aberto para teorização e politização.

Alessandro tomando um Tacacá
BaixaCultura: Queríamos perguntar sobre as diferentes perspectivas da geração de Mark Fisher e sua geração, nascida no final dos 1990 e início dos 2000. A percepção do fim ou da simulação do apocalipse, por exemplo: é diferente para nós? É interessante ou uma simulação?
Alessandro: Há uma citação de Grafton Tanner – que talvez faça parte de uma geração mais jovem de escritores – que fala que nos anos 2010, Mark Fisher e Simon Reynolds pensavam que havia uma crise para imaginar o passado e o futuro. Isso estava acontecendo nos anos 2010, mas agora a crise é para imaginar o presente. Então, acho que se tornou abrangente, e a crise da imaginação, que de alguma forma ainda era parcial na época de Mark Fisher, se generalizou, e muitas de suas afirmações se tornaram ainda mais fortes.
Mas o que mudou é que as pessoas não podem mais ignorar isso. E ainda é muito relevante que Mark Fisher continuse sendo o filósofo mais conhecido dos últimos 20 anos. Mas, ao mesmo tempo, também acho que a nova geração – e sim, talvez me inclua nesse grupo – está começando a entender que as regras foram mudadas pelo próprio problema. Pessoalmente, penso que a questão é sobre reinventar a imaginação, o que parece algo muito ambicioso. Mas também vejo que no uso da tecnologia se cria novas relações entre si mesmas e a cultura e, portanto, criando novos imaginários. O que não significa novas realidades, novos futuros, novas visões de mundo, mas novas práticas. E a velocidade com que isso está acontecendo está aumentando.
E acho que, após a morte de Mark Fisher em 2007, isso começou a acelerar além do controle do que poderia ter sido o capitalismo tardio antiquado. Agora vivemos no capitalismo tardio demais. Isso também significa que a temporalidade está encolhendo, e a imediatez está cada vez mais assumindo a liderança na relação com o capital. E isso é de certa forma benéfico. Então, mesmo se você pensar sobre para que a inteligência artificial é realmente usada, é para fazer transações mais rápidas. Esta é a aplicação principal: encontrar formas de fazer a economia funcionar ainda mais rapidamente do que já funciona. Mas isso também está afetando nossa relação com a tecnologia, e está se afastando do controle biopolítico antiquado, acho, em certa medida, porque o número de relações, nós e circuitos está apenas aumentando agora. E as potencialidades também estão aumentando. Em geral, diria que sou mais otimista, e não vejo muito desse otimismo por aí, mas prevejo que continuará aumentando.
BaixaCultura: Você tem alguma relação com o aceleracionismo, em especial, Nick Land? Há um artigo sobre ele em Blue Labyrinths.
Alessandro: Nick Land é um caso estranho. Estou interessado nele tanto quanto alguém pode estar interessado no diabo. O que quero dizer é que o Diabo realmente foi um argumento cultural importante no que poderia ter sido o ideal na Idade Média, e Nick Land é o Diabo no capitalismo. Há algo muito interessante para mim na mudança que aconteceu no pensamento entre os escritos da primeira fase de Nick Land e a segunda fase, na qual ele se inclinou cada vez mais para a direita e novas direções, novos movimentos reacionários, e assim por diante. E estudando isso, estou começando a perceber que o que tenho definido como subjetividade também traz consigo uma certa ética – ética, que é uma palavra que você nunca encontra em Semiótica do Fim. Mas Nick Land é definitivamente alguém que não pensa em termos de ética ou moral, porque pensa no capital como uma agência inorgânica anônima. Pelo contrário, vê o ser humano como uma “ficção” ética e biológica produzida pelo capital.
Mas ele não pensa, nem por um momento, que isso poderia ser parte de uma “ideologia”, porque “ideologia” não é o termo certo a usar – uma palavra mais correta aqui seria paradigma. De qualquer forma, ele vê o capital como metafísica, mas metafísica é um paradigma, mesmo na conotação científica do termo. Então, é uma mudança de paradigma; é uma revolução metafísica no mundo. Quando o Sol não está mais no centro do universo, o mundo é completamente diferente, mas nada realmente mudou; quando o capital não está mais no centro de nossas relações, tudo é igual, mas tudo é diferente. Então, Nick Land nunca considera a possibilidade – e o critico por não levar o nível semiótico a sério, o que significa que o nível semiótico é manipulável, mas pode ser construído diferentemente. Então, estou interessado nisso, mas acho que seu ponto de vista é limitado.
BaixaCultura: Então você não é satanista? Se ele é o diabo…
Alessandro: Sou como um teórico do satanismo haha
BaixaCultura: Outro autor, Andrea Colamedici, o autor por trás de “Hipocracia”, identificado como de Jianwei Xun [veja esse texto para entender a polêmica]. Ele parece acreditar que estamos em um momento de fragmentação de nossa presença online em tantas camadas de presença online e offline e tudo mais… E ele meio que aponta na direção de que devemos aprender a coexistir em todas essas camadas, como uma presença viva aqui, mas também uma presença viva na rede social ou no grupo do WhatsApp ou no avatar, e em todas essas esferas de relações.
Então, como você conceitua a fragmentação como uma forma de prosperar neste momento de incerteza? No livro, ele tenta vender a ideia de que devemos saber que estamos em todos os lugares ao mesmo tempo. Por exemplo, quando fala sobre isso, ele traz a ideia de simulação real. Hoje, é tudo simulado e tudo é real ao mesmo tempo: isso é real e seu avatar é real e seu Instagram é real – tudo é real e, ainda assim, é uma simulação ao mesmo tempo. Mas não podemos nos perder.
Alessandro: Entendo. Acho fascinante, mas a escala na qual essas suposições são feitas é uma escala que, politicamente, não é muito operacional. Existem diferentes escalas. Então, em escala microscópica, na escala mineral – tomemos um computador como exemplo. Um computador tem várias escalas. Então, na escala microscópica, há luz passando pelos cabos, e na escala da partícula, não há política. Há muito pouco que você poderia fazer além de teorias sobre o que é luz e física quântica, e assim por diante; é muito difícil fazer uma mudança significativa nesse nível. Em um nível mais alto, há mais ou menos o que você está falando: um nível do habitus social que você assume na interação com o computador; esta é a escala social. E acho que, embora seja uma escala muito real, não é muito operacional. Agora, entre a luz na fibra óptica e o habitus social, há uma relação. O que media essa relação é o capital, porque é o capital que está pagando pelos cabos que conectam as luzes; por meio dele, você pode se ver no computador e tentar aprender com ele. Aqui, estou interessado no que chamo de medium, segundo minha própria interpretação: trata-se do que está acontecendo no meio. Certamente, o que está acontecendo no meio é muito real, mas também é o que reproduz a simulação.
Então, talvez aqui eu inverta as regras: em suas circunstâncias imediatas, você pode reconceituar sua relação e interagir com o computador de forma diferente, e até mesmo mudar o tipo de fibras ópticas que usa, afetando a relação agindo do nível mais alto para o mais baixo, e vice-versa. Em Semiótica do Fim, frequentemente faço esse tipo de salto das alturas. No capítulo sobre teoria da informação do livro – “Overdrive e significado” – um dos capítulos centrais do livro, escrevo sobre a estrutura da informação, que é uma teoria muito abstrata, mas como elemento político. Mas não há nada intrinsecamente político nos bits de informação. Há algo político apenas na relação. Mas se você foca apenas em um nível…
Para resumir, poderíamos dizer que o elemento interescalar é muito político, e tento atuar sobre ele. Mas se você pensa apenas em uma escala, pode ser complexo. Para acrescentar outra coisa, há uma tendência nas teorias da mídias que é interessante discutir: a pura materialidade dos recursos sendo usados. Por exemplo, Atlas da IA, de Kate Crawford, fala sobre os recursos, a materialidade do mapeamento do mundo e assim por diante. Mas ela conceitua isso como algo intraescalar. O que acho interessante é o elemento interescalar, onde ela também escreve sobre o que o software está fazendo; ela tenta conectar tudo, mas falando de apenas um nível. E há uma série de ações que podem ser muito locais, enquanto o global acontece entre as escalas. Isso poderia ser algo que percebi depois de escrever o livro – você também não encontrará a palavra “escala” nele, mas isso é o que acontece com os livros: você retrospectivamente chega a boas ideias que não escreveu.
BaixaCultura: Então, você meio que pensa que essa visão é “enganar a máquina”?
Alessandro: A solução deve estar na relação. Mas se você pensa sobre a pura materialidade, parece que o social é uma materialidade, como gestos e práticas, e essas coisas podem ser mudadas, mas não em um nível muito individual e mínimo local. Então, não é a melhor forma de abordar, acho.
Queria falar mais sobre o contexto de Charta Sporca. Vivendo na Itália e vindo do exterior, faz cerca de onze anos que estou aqui [Londres]. Tenho a impressão de que a cultura italiana cria uma materialidade diferente para a cultura underground. Não tenho certeza se essa é a palavra certa. Deixe-me seguir o que escrevi. Viver na Itália me dá a impressão de que muito do que é criado em diferentes realidades nas diferentes cidades italianas permanece, porque há uma espécie de resistência ao sistema e à sistematização. É como se o underground resistisse a se tornar mainstream por muito tempo. Se você vai a Bolonha, vê lojas que vendem quadrinhos há quarenta anos e não querem crescer. Então, você tem uma cultura de cenas espalhadas por todo o país, e as pessoas ainda as fazem e não querem publicá-las.
BaixaCultura: Como italiano que vive no exterior, você vê isso da mesma forma? E se sim, como a Charta se envolve com essa dimensão de conhecimento não institucionalizado que continua emergindo por toda a Itália? Ela se envolve ou não?
Alessandro: Sim. E mais em geral sobre a Itália, acho que a questão é sobre a economia dos corpos. A economia capitalista não é um padrão da economia: pense, por exemplo, em uma cidade antiga na Itália, como Trieste ou Bolonha. Mas conforme você se aproxima da metrópole, até Milão, e conforme vai subindo e vai para Paris, então a economia dos corpos e a economia real começam a se fundir uma na outra. Há um certo grau de hipnose acontecendo ali.
E acho que as pessoas só conseguem resistir quando não nascem dentro disso. É muito difícil recuar da metrópole se essa é a única realidade que você viu. Da mesma forma que vamos a uma floresta e, se não nascemos na floresta, não olhamos para a floresta de uma forma “natural”. Nossa visão é moldada pelo ambiente artificial da cidade, e por isso perdemos a capacidade de ver a natureza como ela realmente é – diferentemente de quem cresceu em contato direto com ela. O mesmo acontece com quem nasce e vive sempre na metrópole: essa pessoa desenvolve uma percepção distorcida do tempo e dos relacionamentos humanos. Para ela, as formas mais naturais de viver – aquelas que existem fora do ambiente metropolitano – parecem estranhas ou até impossíveis.
O coletivo francês Tiqqun tem uma distinção muito interessante e radical sobre a vida fora da metrópole: eles dizem que a metrópole é irrecuperável. Não há mais nada para salvar da metrópole. Você deveria apenas convencer as pessoas na metrópole a se afastarem dela e nunca voltarem. Não há como mudar o capital e o capitalista, mas você pode permitir que as pessoas vejam que há uma saída, se quiserem.
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