BaixaCultura

Colonialismo digital em crítica hacker-fanoniana

Segunda-feira passada participamos de um debate/lançamento na ótima Nigra Distro em SP sobre o “Colonialismo Digital: por uma crítica hacker-fanoniana”, de Walter Lippold e Deivison Faustino, livro recém lançado pela Boitempo [veja aqui] que faz uma potente e necessária aproximação entre as discussões de colonialismo e racismo de Frantz Fanon com a cultura hacker para entender como a vida humana, o ócio, a criatividade, a cognição e os processos produtivos passam a ser submetidas às lógicas extrativistas, automatizadas e panópticas do colonialismo digital.

Foi muito bom encontrar presencialmente, pela primeira vez, Walter, professor de história que cada vez mais se debruça sobre a história das tecnologias, sobretudo islâmicas a africanas, com quem já trocamos ideias sobre esse e outros temas desde 2019 (ou antes), especialmente depois que fizemos a BaixaCharla #2 sobre descolonização das tecnologias a partir dos escritos de Fanon. Walter também lançou recentemente “Fanon e a Revolução Argelina“, em que analisa a circulação de ideias fanonianas através dos artigos do jornal “El Moudjahid” durante a Guerra da Argélia (1954-1962) – trabalho originário de sua tese de doutorado em história na UFRGS defendida em 2019.

Deivison, escritor/professor/intelectual especialista na obra de Fanon, passamos a admirar ainda mais depois do papo. Dele, vale ler o “Fanon e as Encruzilhadas“, da Ubu, livro produzido a partir de sua tese de doutorado “Por que Fanon, por que agora?: Frantz Fanon e os fanonismos no Brasil“, defendida no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFSCAR em 2015.

Sobre “Colonialismo Digital”, o livro, palavras de Tarcizio Silva na orelha: “Deivison Faustino e Walter Lippold nos oferecem uma publicação oportuna em um momento de acirramento das disputas por soberanias digitais, em especial em países como o Brasil. Conseguirá a gestão da vida humana pelo big data, núcleo do colonialismo de dados, reagir ao desencantamento geral sobre as benesses das mídias sociais e da globalização digital? Poderão as novas investidas discursivas neocoloniais e aceleracionistas emplacar véus sobre a realidade social através do resgate de direcionamentos libidinais à realidade virtual e metaversos?”

E Karina Menezes, no prefácio (da 1º edição, lançada pela Ciências Revolucionárias): “O que fazer com um sistema legado? Atualizá-lo, substituí-lo ou mantê-lo? É disso que Colonialismo digital trata: nossos legados. O livro interessa a todas as pessoas instigadas por tecnologias. Interessa a você, a quem está a sua volta – tanto no mundo material quanto no virtual –, independentemente do perfil, do status, da história. Sem exceção.”

Há outros livros e diversos trabalhos sendo feito sobre colonialismo digital hoje, dado que o tema é inescapável na discussão tecnopolítica sobre a internet. No norte global, Nick Couldry e Ulisses Mejías (professores na Inglaterra e nos EUA, respectivamente, criadores e articuladores da rede Tierra Común) tem um artigo acadêmico importante sobre o tema chamado “Data Colonialism: Rethinking Big Data’s Relation to the Contemporary Subject“. No Brasil, há “Colonialismo de dados: como opera a trincheira algorítmica na guerra neoliberal“, coletânea organizada por Sérgio Amadeu, Joyce Souza e Rodolfo Avelino lançada em 2021 pela Autonomia Literária [e disponível em PDF aqui]. A diferença do trabalho de Lippold e Faustino para estes é justamente a aproximação às teorias fanonianas, que há mais de meio século escreveu sobre colonialismo, com os debates em torno do capitalismo de vigilância (de dados, ou outro termo que se queira usar), também a partir da perspectiva crítica vista em “A Ideologia Californiana”, ensaio [veja e/ou compre aqui na versão de nosso zine] que é bastante citado no último capítulo do livro, “A Descolonização dos Horizontes Tecnológicos”.

Capa: Del Nunes

Um exemplo dessa aproximação hacker-fanoniana está nesta parte final, onde os autores recuperam o ótimo termo “fardo do nerd branco“, “uma mission civilizatrisse vista como a benevolência das big techs (p.173)”. A noção foi popularizada – se é que podemos falar assim de um termo menos conhecido do que achamos que deveria – por Julian Assange na crítica à Eric Schmidt e Jared Eric Cohen (ambos do Google) no livro “A Nova Era Digital“, em que o criador do Wikileaks aponta às contradições bizarras de um texto “cheio de figuras de pele escura convenientes e hipotéticas obedientemente convocados para demonstrar as propriedades progressistas dos telefones do Google”. Fanon nos lembra que o racismo não se expressa apenas nas ofensas abertamente violentas ou estereotipadas, mas sobretudo na suposta universalização dos referenciais particulares europeus. “Uma espécie de identitarismo branco permite ao pensamento crítico se supor radical sem, contundo, enfrentar as dimensões raciais da exploração de classe” (p.173).

Aqui, Lippold e Faustino também chamam atenção ao verdadeiro e irônico dilema (sociorracial) das redes aproximando referenciais sobre capitalismo de vigilância (como a própria Shoshana Zuboff) com estudiosos do racismo como Achille Mbembe, além de Fanon, e também Bifo, o próprio Marx (a partir do conceito de intelecto geral do clássico “Fragmento sobre as máquinas” do Grundrisse) e o trabalho de organizações e coletivos ciberativistas no Brasil para ao fim se perguntar: “Como superar a ideologia californiana e organizar esse cognitariado e o precariado no contexto mais amplo da luta contra a Exploração 4.0 ou 5.0? O que Fanon ensinou sobre descolonização da tecnologia em plena Revolução Argelina? Seria possível aprender com Fanon, guardadas às diferenças de contexto histórico dos anos 1950 para o século XXI?“.

Na continuidade do livro há a tentativa de respostas: hackers, software livre, gambiarra, perifalabs (hackerspaces na periferia), soberania digital, mas deixamos para vocês lerem e se inspirarem por si só.

[BAIXE AQUI] – [e/ou compre aqui] E aqui abaixo outros livros de Fanon ou sobre/em diálogo com ele, liberados pelo Coletivo Fanon.

DUSSEL, Enrique. 1492 – O encobrimento do outro (A origem do “mito da modernidade”). Vozes; Petrópolis, 1993.

FANON, Frantz. Sociologia de una revolución. Ediciones Era; México, 1968. Obra publicada em 1959. Nela Fanon analisa de modo intenso a Revolução Argelina. A questão da mulher argelina e o véu e a análise do papel do rádio e da mídia na revolucão são destaques.

FANON, Frantz. Pele Negra, Máscaras Brancas. Editora da UFBA; Salvador, 2008. Originalmente era o trabalho final de Fanon na medicina psiquiátrica, mas foi reprovado pela banca. Em 1952 ele publica a obra.

FANON, Frantz. Em Defesa da Revolução Africana. Livraria Sá da Costa Editora, 1980. São textos de Fanon, organizados cronologicamente, a maioria retirada do jornal argelino El Moudjahid. (Disponível pra download lá no grupo do telegram do Coletivo Fanon).

FANON, Frantz. Alienation and Freedom. Bloomberg; London, 2018. Escritos de Fanon sobre alienação e libertação. Um obra impactante para os Estudos Fanonianos. Artigos, discursos, cartas e outros textos de Fanon, muitos que nunca tinham sido publicados.

LANDER, Edgar (org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais Perspectivas latino-americanas. Colección Sur Sur, CLACSO, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina. setembro 2005.

MBEMBE, Achille. Necropolítica. Revista Arte $ Ensaios, PPGAV, UFRJ, nº 32, dez 2016.

QUEIROZ, Ivo Pereira de. Fanon, o reconhecimento do negro e o novo humanismo: horizontes descoloniais da tecnologia. 2013. 221 f. Tese (Doutorado em Tecnologia) – Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Curitiba, 2013.

VALENCIA, Sayak. Capitalismo Gore. Melusina; España, 2010.

WALLERSTEIN, Immanuel. Ler Fanon no século XXI. Revista Crítica de Ciências Sociais, 82, Setembro 2008: 3-12.

 

 

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.

Back to top
Disque:

info@baixacultura.org
@baixacultura

Tradução