BaixaCultura

Inteligência artificial generativa e direitos culturais

Publicado originalmente em Artica por Jorge Gemetto e Mariana Fossati em duas partes: 1º em 28/5/2023 e 2º em 5 de junho de 2023. Traduzido e adaptado do espanhol por Leonardo Foletto.

 

PARTE 1: Alguém quer pensar nas pessoas usuárias?

A partir da disponibilidade de ferramentas como DALL-E, Stable Diffusion ou Midjourney para geração de imagens, e do ChatGPT, Bard, Open Assistant ou as centenas de bots de conversação baseados em LLaMA, milhões de pessoas começaram a fazer experimentos com a criação de textos e imagens assistidos por IA generativa. As motivações para o uso das ferramentas são variadas: vão desde a geração de ilustrações e pôsteres amadores para ilustrar postagens (como esta) até a experimentação de novas possibilidades na arte digital, a alimentação de ideias para escritas criativas e a exploração lúdica das respostas paradoxais que surgem quando se pergunta ao software sobre seus sentimentos ou intenções.

Também houve debates sobre supostos “riscos existenciais” e supostas violações de direitos autorais. Esses debates foram, em parte, alimentados pelas próprias empresas que desenvolvem essas ferramentas, cuja estratégia retórica tem sido inflar tanto as virtudes quanto os riscos dos modelos que desenvolvem – duas formas complementares de exagerar seu poder. Menos visíveis, na maioria das vezes, são os vieses, as falhas e as limitações significativas que permanecem nessas ferramentas, muitas vezes lançadas às pressas.

 

A ameaça para a humanidade

Começamos mencionando brevemente o discurso da “ameaça à humanidade“. O risco real desse discurso é que ele funciona para a mistificação e o sigilo em torno de uma tecnologia cujo conhecimento e desenvolvimento deveriam, ao contrário, ser democratizados o máximo possível. Projetos de código aberto, como o ChaosGPT, um bot de conversação que recebeu ordens para “conquistar o mundo” e “destruir a humanidade”, destacam de forma criativa o ridículo das afirmações mais exageradas sobre IA.

Por outro lado, há uma pressa em censurar solicitações e conteúdos “inadequados” ou “violentos”, que geralmente são definidos de acordo com uma moral rígida e ideologia de ordem. No entanto, as pesquisas sobre os verdadeiros vieses e falhas desses programas costumam ser menos divulgadas. É por meio da pesquisa participativa que podem ser criados modelos e conjuntos de dados que representem melhor a diversidade real do mundo. Para isso, é fundamental que os conjuntos de dados sejam abertos e os modelos sejam software livre. Quanto mais pessoas puderem aprender como essas tecnologias são feitas, pesquisar com elas, testá-las e desenvolvê-las, mais olhos e mãos haverá para criar ferramentas melhores, que ajudarão em tarefas mais úteis e promoverão a criatividade em vez de reproduzir preconceitos. Um exemplo na América Latina é o EDIA, um conjunto de ferramentas desenvolvido pela Fundación Vía Libre para identificar estereótipos e discriminação em modelos de linguagem.


Plágio massivo

Na discussão sobre direitos autorais, felizmente já parece estabelecido que os trabalhos resultantes da IA generativa são de domínio público, especialmente desde o recente parecer do escritório de direitos autorais dos EUA. Essa é uma boa notícia, pois, caso contrário, as empresas que desenvolvem os modelos poderiam ter imenso poder sobre o conteúdo gerado a partir da interação entre usuários, ferramentas de IA e o conjunto comum de dados e conteúdo cultural.

Entretanto, o que gera mais debate atualmente é se a coleta de conteúdo para criar os conjuntos de dados, bem como o processamento computadorizado desses dados por modelos de inteligência artificial, são usos justos (fair use) ou, ao contrário, infringem os direitos autorais.

Recentemente, houve uma proliferação de artigos e manifestos pedindo maiores controles e restrições à IA generativa para proteger a propriedade intelectual. Um exemplo de tais manifestos no mundo de língua espanhola é o chamado “Arte es Ética”. Esse manifesto afirma, entre outras coisas, que o que as tecnologias de IA generativa geram são “derivados não consensuais e parasitários”, “plágio maciço” e “automatizado”, “pilhagem” e “roubo”; pede a implementação de ferramentas de filtragem de conteúdo; a proibição de prompts que incluam nomes de pessoas e até mesmo nomes de movimentos estéticos inteiros; pede marca d’água obrigatória e identificação compulsória de usuários que inserem prompts; e aponta contra a criação de novas exceções de direitos autorais para mineração de dados – mesmo que tais exceções hoje sejam fundamentais para o progresso de muitos campos científicos. As demandas mencionadas acima estão misturadas de forma desordenada com outras que são dignas de atenção genuína, como a criação de fundos para a promoção da cultura ou a proteção de trabalhadores contra demissões em massa injustificadas. Mas o impulso geral das demandas não é direcionado a reivindicações trabalhistas ou à promoção da arte, mas sim a uma expansão direta da propriedade intelectual. Isso é visto, por exemplo, no apoio a ações judiciais como a do banco de imagens Getty contra a Stability AI; na caracterização negativa e grosseira da IA como uma tecnologia somente de pilhagem; e, em geral, no fato de que o principal alvo dos ataques são os projetos de código aberto, ou seja, aqueles com maior probabilidade de democratizar o uso da tecnologia.

Lamentavelmente, abordagens semelhantes surgiram de pessoas que, há alguns anos, participaram do movimento de cultura livre. Marta Peirano , jornalista e escritora, publicou recentemente um artigo no El País que identifica modelos de inteligência artificial como “máquina automática de plágio em massa”, que serve para “roubar (…) o conteúdo de outras pessoas”. Peirano também faz eco à ação judicial da Getty contra a Stability AI e a apresenta como parte da reação supostamente legítima a esse roubo em grande escala, tomando partido da empresa de conteúdo (Getty) contra a empresa de tecnologia (Stability AI). O artigo parece negar a militância anterior da autora em favor do acesso ao conhecimento; os argumentos de Peirano nesse período de militância teriam sido usados por empresas de tecnologia para roubar propriedade intelectual.

Há um ponto real no que Peirano diz: na sociedade atual, as empresas capitalistas sempre serão as que melhor podem explorar o conhecimento livre em seu benefício. Isso não é novidade; há muitos outros exemplos análogos, como a educação pública e a infraestrutura de transporte. Na sociedade capitalista, as enormes somas de dinheiro gastas em educação pública treinam trabalhadores que, inevitavelmente, passam a ocupar cargos assalariados em empresas capitalistas. O fato de as empresas capitalistas se apropriarem dos lucros da educação pública não deve ser um argumento contra a educação pública, que é um direito do povo. Pelo contrário: deve nos fazer refletir sobre que outra sociedade precisamos para que a educação pública esteja a serviço de uma produção não capitalista exploradora.

O mesmo ocorre com o conhecimento livre. É preciso ressaltar sempre que a ampla disponibilidade de cultura e conhecimento é um avanço para os direitos culturais das pessoas, possibilitado pelo desenvolvimento das forças produtivas. O conhecimento humano é um patrimônio construído coletivamente que deve servir à toda sociedade. Qualquer retrocesso nesse sentido é reacionário. É claro que, em nossa sociedade, as empresas de tecnologia têm uma enorme vantagem quando se trata de aproveitar o conhecimento livre. Esse fato deve nos levar a aprofundar a crítica iniciada com o questionamento da propriedade do conhecimento para transformá-la em uma crítica do sistema social como um todo. Para Peirano parece impossível dar esse passo, o que a leva a optar por uma espécie de mea culpa e recuar para a típica defesa da propriedade intelectual. Talvez não seja irônico que o artigo de Peirano esteja protegido por um paywall.


Uma necessária mudança de enfoque

Visto em perspectiva, os discursos inflamados contra a IA generativa parecem um renascimento das campanhas contrárias à Internet no final dos anos 90 e início dos anos 2000, com prognósticos apocalípticos parecidos sobre a morte da arte, o empobrecimento da vida cultural e o declínio cognitivo das novas gerações expostas a essas tecnologias imediatistas. Mais atrás, discursos da mesma natureza podem ser encontrados no nascimento da música gravada, da fotografia e até mesmo da imprensa.

De um lado, estariam os detentores de direitos autorais supostamente saqueados, que incluem artistas, editoras e empresas de conteúdo de todos os tipos. Por outro lado, as corporações de tecnologia. A oposição, como se vê, não seria entre os artistas que trabalham e seus empregadores nas empresas de conteúdo, mas entre dois setores industriais: o criativo e o tecnológico. Portanto, não seria uma reivindicação baseada em classe, mas intersetorial.

Contra essa visão que enquadra o problema como uma disputa entre dois setores industriais, vale a pena complexificar o cenário apontando a existência de outros atores sociais. Um deles é a comunidade educacional, científica e acadêmica que pesquisa usando técnicas de inteligência artificial. Sobre a importância das exceções de direitos autorais para a mineração de textos e dados para fins de pesquisa, vale ler o relatório “Políticas de Inteligência Artificial e Direitos Autorais na América Latina“, publicado pela Aliança Latino-Americana para o Acesso Justo ao Conhecimento.

Outro ator esquecido são as pessoas que usam ferramentas de IA generativas. Muitas pessoas começaram a usar essas ferramentas como uma forma de expressão: artistas digitais que usam prompts para gerar imagens, escritores ou amadores que usam chatbots para obter ideias de textos, pessoas comuns que simplesmente querem se divertir ou se expressar com essas IAs e interagir com os resultados. Talvez seja hora de o direito das pessoas de participar da vida cultural ser também considerado na discussão.

O direito de participar da vida cultural tem certos requisitos. De acordo com Lea Shaver, esses requisitos incluem:

_ A liberdade de acesso a materiais culturais, ou seja, obras, ideias, idiomas e mídias existentes.

_ A liberdade de acesso a ferramentas e tecnologias indispensáveis para desfrutar e usar esses materiais e obras, bem como para criar novos materiais.

_ A liberdade de usar esses materiais e obras, transformá-los, fazê-los circular e colocá-los em diferentes contextos.

Seguindo essa ideia, a possibilidade de usar ferramentas de IA generativas sem censura pode ser entendida como parte do direito de acessar ferramentas e tecnologias para se expressar de forma criativa. Assim como o acesso a instrumentos musicais é fundamental para a criação de música, ou os computadores e outros dispositivos digitais são importantes para a fotografia, o vídeo e outras formas de expressão visual, as ferramentas generativas de IA podem ser uma ferramenta essencial para a expressão criativa e estética. Esse princípio não envolve apenas artistas e seus procedimentos, ferramentas e materiais profissionais, mas todos os usuários dessas tecnologias, que, por meio da arte e de outros conteúdos gerados por IA, acessam e participam de uma experiência estética peculiar e pessoal.

Mas os direitos dos usuários são ameaçados de diferentes maneiras. Por um lado, as empresas que prestam serviços de IA generativa criam expectativas enganosas sobre as ferramentas que oferecem; manipulam arbitrariamente os resultados e censuram o conteúdo; violam a privacidade de seus usuários; impõem barreiras econômicas abusivas; e investem pouco para lidar com os vieses das ferramentas.

Por outro lado, os setores de conteúdo e os detentores de direitos autorais, alegando que essas ferramentas facilitam a violação de direitos autorais por aqueles que as utilizam, promovem regulamentações draconianas que incluem controle e filtragem de conteúdo; estigmatizam o uso de IA generativa como antiético ou até mesmo criminoso; e, por meio de seu ataque a projetos de código aberto, contribuem para a concentração de poder das grandes corporações de tecnologia. As restrições e os controles que esses setores exigem para a IA generativa não podem ser implementados sem limitar severamente a capacidade das pessoas usuárias de fazer uso expressivo legítimo das ferramentas.

Uma coisa podemos ter certeza: não haverá saída progressiva para esse debate se os direitos das pessoas que usam inteligência artificial generativa não começarem a ser levados em conta. E ninguém levará esses direitos em consideração se os próprios usuários não se manifestarem.

 

PARTE 2: Quatro mitos e algumas reflexões sobre a liberdade artística

 

Gerado no Stable Diffusion com o prompt inspirado no do post de Artica: Uma dadaísta digital imaginando mundo possiveis ao estilo dadaísta europeu dos anos 1920

Nas conversas atuais sobre arte e inteligência artificial generativa, é comum que esses dois termos sejam colocados como opostos polares. Mas essa polaridade é limitante, por isso aqui vamos tornar a conversa mais complexa. Se em nosso post anterior apontamos que restringir a IA generativa de acordo com os desejos de determinados setores de conteúdo pode afetar gravemente os direitos dos usuários, nesta parte falaremos sobre como essas restrições acabariam afetando práticas artísticas emergentes que não são prejudiciais. Mas, pelo contrário, representam novas explorações criativas que não devem ser censuradas.

A ideia de que o uso de ferramentas de IA generativas precisa ser restringido para proteger os direitos dos artistas talvez seja produto de uma leitura equivocada dos “riscos” que essas ferramentas representam para o trabalho artístico. Como dissemos na primeira postagem desta série, não é nosso objetivo falar sobre os “riscos” da IA em geral, nem sobre sua aplicação em campos em que ela pode ser particularmente problemática (como na segurança pública e na justiça). No campo da arte e da criatividade, vemos mais aspectos interessantes do que perigosos, mas há maneiras sensacionalistas de falar sobre esse debate que incentivam a falsa dicotomia “Artista X IA” e que gostaríamos de ajudar a desmistificar.

MITO 1: A IA VAI TORNAR OBSOLETA A CRIATIVIDADE HUMANA

Um primeiro mito é o da capacidade da IA geradora de potencialmente “alcançar” a criatividade humana e torná-la obsoleta. Ele engloba a ideia simplista e enganosa de que a IA e o artista são entidades comparáveis e que a IA é, portanto, uma séria concorrente dos artistas. Em primeiro lugar, entendemos a IA generativa como uma ferramenta que não “faz arte”, mas que a arte pode ser feita com ela. Ela não é uma entidade com capacidade criativa própria e, portanto, seus resultados não devem ser cobertos por direitos autorais.

Apesar das manchetes da mídia que dizem “uma inteligência artificial cria uma obra exibida em um grande museu”, “uma inteligência artificial vence uma competição de arte” etc., não há de fato nenhuma atividade autoral da inteligência artificial, porque não há criação como conhecemos em seus produtos estéticos. Eventualmente, quando os artistas desenvolvem seu próprio trabalho usando essas ferramentas, são eles que criam coisas com a inteligência artificial.

Nas palavras do escritor de ficção científica Bruce Sterling na conferência “AI for All, From the Dark Side to the Light”, essas IAs “não têm senso comum… Elas não têm imagens. Elas não têm imagens. Elas têm uma relação estatística entre texto e grupos de pixels. E há uma beleza nisso. Não é uma beleza humana. É uma imagem incrível com a qual nenhum ser humano jamais poderia ter sonhado. Ela realmente tem presença, é surreal!”.

Essa posição cética e fascinada nos permite escapar de noções estereotipadas e dicotomias enganosas. Nos leva também a perguntar quais coisas concretas os artistas estão fazendo com as inteligências artificiais generativa. Como eles estão trabalhando com essa “relação estatística entre textos e grupos de pixels” que abre as portas para a exploração criativa de um imaginário não humano e surreal. Quais processos e procedimentos artísticos estão surgindo dessa exploração.

Os artistas sempre usaram novas tecnologias. Tanto de forma “correta”, aprendendo a técnica e seguindo o cânone, quanto de forma subversiva, desafiando a tendência dominante e invadindo as formas comuns de fazer. Isso não é diferente com a inteligência artificial generativa. Para pensar em práticas artísticas com IA, é preciso analisar suas potencialidades e limitações, entendendo que os artistas trabalham em ambos os campos: no reino do possível e de suas limitações. E que eles não apenas tomam os desenvolvimentos da tecnologia como dados, mas também modificam esses termos – o que é possível, quais são os limites, quais estratégias artísticas podem resistir e desafiar a ordem tecnosocial.

Para entender melhor isso, vale trazer o exemplo da prática de uma artista, Kira Xonorica, que trabalha com base na geração de imagens que desafiam as noções binárias de gênero e os limites entre natureza, humanidade e tecnologia, para criar visões feministas futuristas e utópicas.

Obra digital de Kira Xonorica realizada com processos generativos

Em uma entrevista para o site expanded.art, Kira diz que o potencial da IA generativa está justamente na capacidade de visualizar e explorar perspectivas do mundo por meio de dados de uma forma que talvez não fosse possível sem essas ferramentas computacionais, já que a IA generativa se baseia na análise de milhões de imagens, descrições e rótulos. Mas também há limitações para as imagens visuais que essas tecnologias nos permitem explorar, devido aos vieses introduzidos nos modelos e nos dados de treinamento. Kira acredita que “a tendência inerente aos conjuntos de dados não é surpreendente. Ao fim e ao cabo, o banco de imagens no qual eles se baseiam se baseia em séculos de história da arte e em outras disciplinas que produzem e moldam nossa imaginação visual coletiva”.

As visões alarmistas e proibicionistas, que ignoram esses processos de exploração de limites e possibilidades, são perigosas porque censuram e inibem as buscas criativas. Os vieses e outros problemas sérios com essas ferramentas não devem nos levar ao pânico, mas a uma análise crítica que leve em conta os contextos de criação e uso de imagens geradas por IA, incluindo os conjuntos de dados de treinamento nos quais as várias ferramentas se baseiam, bem como as maneiras pelas quais essas ferramentas são projetadas e desenvolvidas. A análise também deve incorporar os custos ambientais e as condições de trabalho nas empresas de IA, sobre os quais não vamos discorrer nesta postagem.

 

MITO 2: CRIAR IMAGENS DE PESSOAS REAIS É INERENTEMENTE PERIGOSO

A geração de imagens com pessoas reais reconhecíveis é uma prática considerada uma das mais arriscadas, pois pode ser usada para ataques à honra e à dignidade dessas pessoas. Entretanto, essa prática também pode ser uma maneira de explorar histórias alternativas de forma imaginativa, sem ser confundida com uma imagem da realidade ou necessariamente causar danos a qualquer pessoa. Esse é o caso, por exemplo, de @arteficialismo, que fez uma série que nos faz imaginar como seriam as pessoas famosas se, depois de perderem tudo, fossem morar em uma favela brasileira.

 

MITO 3: AS OBRAS GERADAS POR IA SÃO SEMPRE IMITAÇÕES

E o que dizer do uso de obras artísticas já existentes para criar novas obras com inteligência artificial? Esse talvez seja um dos maiores debates atuais. A questão é dividida em duas dimensões.

A primeira é se uma nova criação de IA generativa, baseada em obras ou estilos preexistentes, pode infringir o direito dos criadores dessas obras ou dos artistas de referência desses estilos. Embora estas infrações de fato possam ocorrer, elas não podem ser dadas a priori; tudo depende do caso específico. O que deve ficar claro é que os estilos artísticos em si não são protegidos por direitos autorais e que a grande maioria das obras geradas em um determinado estilo ou com determinados criadores de referência não são necessariamente obras derivadas. Elas podem ou não ser – assim como muitas obras não geradas com inteligência artificial também podem ser. Acreditamos que, em grande parte, nossa análise de vários anos atrás sobre a cultura remix e a necessidade de distinguir, em cada caso, o conceito de plágio, trabalho derivado e usos transformadores pode enquadrar muito bem essa discussão.

A segunda dimensão é se a criação de ferramentas de IA generativas infringe os copyrights de obras de direitos reservados que são parte de coleções de dados de treinamento. Para responder a essa pergunta, é importante saber que o treinamento de modelos de IA generativa não envolve a cópia dos aspectos expressivos das obras, mas sim a análise e a sistematização de dados sobre essas obras, com base em um grande número de parâmetros que vão novas imagens, textos ou outros conteúdos. O modelo nem sequer mantém cópias das imagens de treinamento, como explica o analista de políticas de propriedade intelectual Matthew Lane: “Depois que cada imagem é incorporada ao modelo, ela é basicamente lixo. Ela não é armazenada no modelo, apenas os conceitos [são armazenados]. E, idealmente, esses conceitos não devem ser vinculados a uma única imagem”. Em outras palavras: a expressão autoral das obras não é armazenada, copiada, redistribuída ou comunicada, mas analisada em grandes quantidades para estabelecer conceitos a partir dos quais gerar imagens.

É por isso que não se pode presumir a priori que os modelos serão usados apenas para gerar imitações, mas que cada caso deverá ser avaliado a posteriori e de modo concreto. Nem aqueles que desenvolvem a ferramenta nem aqueles que a utilizam devem, em nenhum caso, ser impedidos de se basear em referências culturais e artísticas anteriores. Caso contrário, o patrimônio cultural e estético seria privatizado de uma forma sem precedentes, prejudicando a liberdade criativa atual e futura. E, já que estamos falando disso, não devemos nos esquecer de que, muitas vezes, são os próprios artistas que trabalham com ferramentas de IA, treinando modelos com coleções de dados específicas ou até mesmo participando do desenvolvimento e da adaptação de ferramentas de IA a partir de ferramentas de IA de código aberto.

 

MITO 4: NÃO SE PODE CRIAR GENUINAMENTE USANDO IA

Por fim, se estivermos falando de liberdade criativa, podemos perguntar até que ponto os artistas estão realmente criando algo novo com a IA generativa. Dissemos anteriormente que a IA não tem agência nem capacidade criativa própria, mas onde fica o processo criativo das pessoas que usam essas ferramentas? Até que ponto podemos ir além da geração automática de imagens para desenvolver algo que possa ser chamado de “obra” e o criador de “artista”? A resposta, mais uma vez, depende do uso e do contexto da criação, e de como cada pessoa que cria com IA generativa define sua atividade.

Em outro trabalho compartilhado por @arteficialismo no Instagram, no qual retratos famosos da história da arte são representados como pessoas de carne e osso, alguém pergunta: “como você pode se considerar um artista? Ao que @arteficialismo responde: “Nunca me considerei… durante toda a minha vida fiz desenhos, photoshop, etc… e as pessoas sempre tentaram me rotular como artista e eu sempre rejeitei esse ‘título’. Agora eu só faço essas imagens de IA e as pessoas tentam dizer que eu não sou um artista, como se isso significasse alguma coisa para mim ou me fizesse parar de fazer as imagens por algum motivo.”

 

Por sua vez, Kira Xonorica, na entrevista citada acima, disse: “O que eu adoro na IA é que ela envolve um processo de contar histórias. Quando você cria, é como assistir a um filme ou escrever seu próprio romance. Você nunca sabe aonde isso vai levá-lo, você só tem ideias generativas e as sobrepõe umas às outras, essa é a beleza do jogo”.

Em última análise, a criação por meio de métodos generativos abrange uma variedade de processos que não podemos determinar a priori como artísticos ou não artísticos. Muitas vezes, esses processos envolvem longas horas de aprendizado e experimentos com e a partir de resultados gerados por IA. Mas não são nem as horas nem o esforço que dão significado artístico a esses trabalhos; muito menos uma IA. Argumentamos, por fim, que a arte pode ser feita com IA generativa e que isso ainda depende, como sempre, do contexto da criação pessoal e da recepção cultural. A análise diante da massificação da IA generativa deve ser crítica, matizada e situada, não moldada nem pelas empresas que vendem essas tecnologias e nem guiada por mensagens de pânico que apenas impedirão os artistas de participar do debate sobre seu desenvolvimento e de se apropriar criativamente dessas ferramentas.

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.

Back to top
Disque:

info@baixacultura.org
@baixacultura

Tradução