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Insensato, um zine-dissertação


Lembro do Jamer Mello (@badalhoca) desde os saudosos tempos de Santa Maria, quando ele era um dos poucos interlocutores locais que, provavelmente, conheceria (bem) todas as bandas e artistas do rock indie 80’s e 90’s que tu lembraria de citar, tipos nomes semi-desconhecidos como Spiritualized. Fora isso, Jamer agitava a cidade com seus zines nos raros espaços underground da cidade – em especial, lembro do Badalhoca #1, uma gratíssima surpresa acessada primeiramente em algum porão local, provavelmente do DCE (quem é ou esteve por Santa Maria sabe da inigualável contribuição que a boate literalmente underground do DCE da UFSM teve para a produção cultural santa-mariense ).

Passou-se alguns anos, e o que era um prazer (fazer zine) passou a ser também trabalho: Jamer hoje dá palestras e oficinas sobre fanzine e mantém o melhor blog sobre o assunto no país, o Zinescópio, que disponibiliza digitalmente zines de sua imensa coleção pessoal (e de outros que queiram contribuir pro blog), além de notícias relacionados ao tema. Desde que surgiu, em janeiro de 2011, o Zinescópio tem se tornado referência obrigatória pra quem curte ou estuda os zines; chamou atenção de uma porção de blogs e sites legais e foi destaque de uma matéria de capa do Segundo Caderno de O Globo. E, dizem as más línguas, prepara reformas para 2012.

Mais além de ter virado trabalho, o zine também motivou uma pesquisa acadêmica de Jamer. Mr. Badalhoca, que se formou em química na UFSM, pesquisou no Mestrado em Educação da UFRGS métodos científicos para uso nas Ciências Humanas, investigação que o fez mexer no vespeiro das divisões entre arte e ciência. Mas o trabalho seria mais uma (boa) dissertação sobre o tema se não fosse a ousada abordagem de Jamer, que resolveu usar o cut-up de Burroughs (que fizemos uma homenagem recentemente, motivados pela leitura do trabalho) e a estética dos fanzines como afirmação dos conceitos de Gilles Deleuze de potências do falso e do simulacro.

Para a pesquisa, Jamer usou e abusou de referências do cinema – em espcial  Orson Welles (em F For Fake, belo filme que um dia ganhará um comentário a parte aqui no Baixa), Rogério Sganzerla e Jean-Luc Godard – porque a montagem cinematográfica, assim como o Cut-Up, “podem operar como mecanismo articulador fundamental que justapõe imagens e textos para priorizar os efeitos de choque visual, de fragmentação, de imagens sujas e borradas que são comuns aos fanzines e a uma certa produção cinematográfica“, como ele escreve no resumo do trabalho.

A ousadia não foi só no tema e na abordagem do estudo, mas também (e principalmente) na execução da pesquisa. Jamer literalmente produziu uma dissertação cut-up: não há apenas textos, parágrafos justificados e em espaçamento 1,5, mas colagens, trechos de citação escritas a mão ou datilografados, fotos, colagens fotos-textos, tal qual um zine. Fazer isso diante de uma estrutura rígida como a Academia já é, por si só, digno de nota. E se casa com um conteúdo interessante então, é digno de… publicação na Biblioteca do Baixa!

Brincadeiras a parte, aqui abaixo está o texto de apresentação que Jamer escreveu sobre a sua dissertação – de nome “Insensato: um experimento em arte, ciência e educação“, que você pode baixá-la na íntegra.

[Leonardo.Foletto]


Insensato surgiu de uma pequena necessidade. De problematizar a ciência, o fazer científico, e mais especificamente uma problematização entre a arte e a ciência.
Mas apenas surgiu dessa necessidade.
Teve início como texto dissertativo, como ensaio filosófico, com um tom irônico acerca da pesquisa científica, e logo deixou de ser necessário.
Se esvaiu, se decompôs, e se tornou uma necessidade outra.
Uma demanda. E uma demanda do corpo, que exige criação, processo.
Uma carga de memória.
Outro processo. De produção, de escrita, de montagem, de colagem, de plasticidade. Um processo fragmentado, frágil, inconsistente e inconstante, resultando num texto visual, e um tanto indeterminado, pensado também como um espaço, como uma incursão.
Um campo de forças.
Um espaço de situações em constante mudança. Situações óticas e imprecisas. A construção de um estado que vem a ser um envio, e também um deslize.
O suporte é volátil. O suporte é efêmero.
Na esteira de Didi-Huberman, um espaço onde ver é perder-se, e onde o objeto da perda é um lugar inquietante. Lugar onde o que vemos aponta tanto para o prazer quanto para a estranheza. Inquietante estranheza.
A concepção deste trabalho não se trata de crítica, ou inconformidade à razão, à ciência ou à verdade, mas de uma mudança de sentido. Uma força latente de tensão ou de posição. Não uma possibilidade, mas um feixe de possibilidades.
Matar ou correr. Produzir ou se proteger.
Um traço, um risco.
Um desequilíbrio que se legitima na criação de um possível e de um não-possível. Nuances do ser e do não-ser, desmoronamento do percebido e do não-percebido.
Intempestivo e contingente.
Frívolo e volúvel.
Superfície, desvio e desarticulação.
Envoltura, pele, fronteira: uma interioridade que transborda em contato com o exterior.
Um desajuste.
Uma disjunção.
O terror da inconsistência.
Trata-se de contentamento. Ou não-contentamento.
Não se contentar com a disposição de um único olhar.
Eu é um outro. Outro olhar. Outros olhares.
E claro, enfrentar o risco de me perder de vista, à deriva.
A obra de outro em mim. A minha obra em outro.
Cut-up, potências do falso.
Sem juízo.
Sem razão.
Sem medida.
Insensato.

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