Sita canta o blues
Esta cela costuma ser um freio pra muita criatividade. Novos e velhos filmes, músicas e livros são deixados de serem criados e consumidos pelo fato de que muito do que já foi feito estar ali dentro, inacessível e na maioria das vezes esquecido, mofando. Os prisioneiros só costumam ver a luz quando estão de pé se segurando nas barras até que cansam e vão para o fundo escuro e silencioso. O grande problema, além das grades, é o cadeado, cujo poder de liberdade é de quem tem as chaves, e não de quem produziu e deixou o que está aprisionado. Para abrir, só na base da fiança, quando se tem.
Quem quase foi vítima dessa prisão foi Sita, nascida de uma flor de lótus num lago. Ela é personagem da epopéia Ramáiana, poesia clássica da mitologia Hindu, que conta a história dela com Rama, um avatar azul [!] de um dos deuses indianos. Acontece que Sita resolveu cantar uns blues antigos na mais recente adaptação da história. Numa animação lançada há pouco mais de dois anos, as letras das músicas são interpretadas na íntegra pela personagem e se integram mui bien à narrativa original. Mas o “problema” por ela ter quase ficado presa era que as canções que Sita entoava só foram autorizadas para a cantora de jazz Annette Hanshaw. Quem foi ela? Ora, foi uma cantora que teve o auge de sua carreira em 1920, ou seja, quase um século atrás. Tudo que Hanshaw cantou naquela época ainda está atrás das grades do copyright, o que impossilita a reprodução em quaisquer meios audiovisuais públicos, como televisão, cinemas e teatros, sem que se pague os sagrados direitos do autor. Mesmo que esse autor já não exista mais e que haja a possibilidade de relembrá-lo.
E esse foi o empecilho enfrentado pela diretora da animação, Nina Paley, para conseguir distribuir sua arte, o filme Sita Sings The Blues. Paley teve que bolar um complicado esquema de negociação para liberar Sita da jaula. Os detentores dos direitos das músicas pediram 220 mil mangos para regularizar o filme. Paley pechinchou e o preço diminuiu para 50 mil doletas. A diretora teve que apelar então para um empréstimo e conseguir pagar o valor, na condição de que seriam produzidas no máximo 5 mil DVDs de cópias promocionais. Esse tipo de cópia geralmente é entregue a comentaristas, comitês de festivais e jornalistas, mas Paley pegou os arquivos dessas cópias, hospedou on-line e licenciou em Creative Commons 3.0, ou seja, qualquer pessoa pode compartilhar, distribuir, exibir à vontade. Só não pode vender, porque aí tem que pagar o pessoal das gravadoras.
Agora, Nina Paley conta com o retorno da audiência para ajudar a pagar o custo do filme – de 80 mil dólares – e do empréstimo. Através de uma parceria com o ótimo site QuestionCopyright, Paley espera as doações do público – há inclusive um contador da porcentagem que falta para chegar no valor do empréstimo – e tem uma loja de vendas de produtos do filme, como adesivos, bótons, camisetas, pôsters, dvds e cds da trilha sonora. Na imagem de cada produto, é indicado o quanto do valor será revertido para a autora. E segundo o site, as doações tem sido estáveis desde a liberação de Sita:
This is the opposite of the traditional “burst and fade” distribution model that so many works endure, dragged out of circulation prematurely to avoid competing with new releases from the same publisher. Because Nina’s film is audience-distributed, it’s in circulation forever, whenever and wherever people want to see it. And all those audience members are potential customers and donors, as the financial results bear out.
[Isto é o oposto do modelo tradicional de distribuição “estouro e desaparecimento” que suporta tantos trabalhos, deixados fora de circulação prematuramente para evitar competir com os novos lançamentos da mesma editora. Como o filme de Nina é distribuído pela audiência, está em circulação para sempre, quando e onde as pessoas quiserem vê-lo. E todos os membros da audiência são os potenciais clientes e doadores, como confirmam os resultados financeiros.]
A confiança nos usuários era tanta que foi criada uma página Wiki no site do filme. Ali estão disponíveis os links para as versões de vários tamanhos, os locais e datas das exibições pelo mundo afora, mais de 20 legendas diferentes, os audios dos comentários da diretora, além de sugestões, perguntas frequentes, curiosidades e leituras recomendadas. Aliás, o arquivo .srt da legenda em português está aqui, e foi feito por uma brasileira. Todas as versões do longa estão hospedadas no site Archive.org, que indica que o filme já foi baixado mais de 150 mil vezes.
E não é pra menos. O filme faz uma feliz comparação entre as dificuldades de relacionamento dos dois deuses hindus com uma situação amorosa parecida pela qual passou a diretora. O Ramáiana é contado resumidamente por três bonecos de teatro de sombras que vão improvisando o que sabem sobre a lenda, intercalados por outras montagens, clipes musicais com as músicas de Hanshaw e partes que contam a história da separação de Paley. São quatro tipos distintos de animações combinadas numa comédia romântica musical. Uma arte muito bem detalhada, pois em apenas um trecho existem 15 elementos colados, como conta a diretora em um post de seu blog. Advertimos que há uma parte do filme que pode causar estranheza naqueles que não estão acostumados com o cinema indiano. Lá pelo meio dos 80 minutos de filme, descem umas cortinas e surge uma tela com a palavra “Intermission” e uma contagem regressiva de uns três minutos – tipo de cena comum em Bollywood, nome dado à poderosa indústria cinematográfica da Índia, e aqui colocada como homenagem. Durante esse tempo, os personagens aproveitam e vão no banheiro ou compram pipoca, costume dos espectadores locais durante esses intervalos. De resto, o enredo é um tanto normal para a maioria dos mortais espectadores.
Desde o lançamento, em 2008, o longa-metragem já ganhou 28 prêmios em festivais, de acordo com a página da Wikipédia. Outra produção da mesma autora que vem circulando já faz um tempo na rede é o videozinho de um minuto “Copying is not Theft” [Copiar não é Roubar], em que é explicado o conceito de que cópia não exclui, mas sim se soma ao que já existia, praticamente o mesmo conceito de outro video da mesma série chamado “All Creative Work Is Derivative” [Todo o trabalho criativo é derivado”]. E mais dez curtas estão planejados para Paley produzir na mesma linha.
Assim, Nina Paley está divulgando a milenar cultura indiana e os primeiros blues, compostos há 90 anos, obtendo junto reconhecimento, retorno financeiro e mais trabalho, mesmo depois de dois anos do lançamento de sua obra. Nada mal para a dona de um pássaro que por pouco não ficou preso dentro da gaiola.
[Marcelo De Franceschi.]
Luiz Henrique
A analogia com o pássaro e a gaiola foi muito interessante. Creio que a “problemática do Copyright” é um dos nossos calos no sapato da era da multi-informação, das velozes e constantes trocas de informação, do “comunismo” (como socialização) do conhecimento. Embora pouco entendido no assunto, torço fortemente para que encontremos uma posição conciliadora na balança do direito do autor pela obra criada e da liberdade de distribuição e compartilhamento das produções humanas – em suma, da cultura. Abraços, Marcelo.