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Revalorizar o plágio na criação (2)

Dando sequência ao post anterior, publicamos aqui a segunda e última parte de nossa espécie de ensaio sobre o plágio na criação, texto livremente plagiado de “Plágio, hipertextualidade e produção cultural eletrônica”, capítulo quatro de “Distúrbio Eletrônico” do Critical Art Ensemble (publicado no Brasil pela coleção Baderna da Editora Conrad, em 2001), com trechos recombinados de outros textos, alguns dos quais indicados ao final, na seção homenagem.

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Revalorizar o plágio na criação (2)

As ideias se aperfeiçoam. O significado das palavras participa do aperfeiçoamento. O plágio é necessário. O progresso implica nisso. Ele aproveita uma frase de um autor, faz uso de sua expressão, apaga uma falsa ideia e a subsitui pela ideia certa.

Marcel Duchamp (foto acima), um dos primeiros do século XX a descobrir o potencial da recombinação, apresentou uma forma precoce dessa nova estética com sua série de readymades, sendo que a mais famosa é o conhecido urinol, “realizado” em 1917 quando do envio do objeto ao Salão de Associação de Artistas Independentes sob o pseudônimo R. Mutt. Duchamp pegou objetos em relação aos quais ele era “visualmente indiferente” e os recontextualizou de modo a deslocar seus significados. Ao tirar o urinol do banheiro, assiná-lo e colocá-lo sobre um pedestal em uma galeria de arte, o significado se afastava da interpretação funcional anterior do objeto e se justapunha a uma outra possibilidade – o significado como obra de arte.

Aqui, se percebe mais uma vez a falha do essencialismo romântico, que colocava a obra de arte como produto de uma natureza divina, que privilegia o trabalho criativo individual como de um “gênio” que tira somente de si mesmo a criação, em raros momentos de inspiração. Um tipo de falha que se, hoje, parece escandalosa, antes da tecnologia digital era até mesmo compreensível, pois as perspectivas culturais da época se desenvolviam de modo que tornavam os textos mais fáceis de serem percebidos como obras individuais. As obras culturais apresentavam a si mesmos como unidades distintas; a influência de cada uma avançava de forma lenta o suficiente para permitir a evolução ordenada de um argumento ou de uma estética.

Em outras palavras: era mais fácil manter fronteiras rígidas entre áreas do conhecimento e escolas de pensamento, o que facilitava o controle do conhecimento e, por sua vez, dificultava a percepção de que a arte (e a ciência e a filosofia) não eram construções finitas, mas oriundas da recombinação infinita do conhecimento.

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Marcel Duchamp (1887-1968) e sua inesgotável máquina de plagiar

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No final do século XIX essa ordem tradicional começou a entrar em colapso. Novas tecnologias como o rádio, o cinema, a fotografia e a televisão começaram a aumentar a velocidade do desenvolvimento cultural, o que levou um número crescente de pessoas a questionarem mais a origem e a validade daquilo que até então acreditavam quase que cegamente. Eram, também, os primeiros indicadores sólidos de que a velocidade estava se tornando uma questão crucial; o conhecimento estava se afastando da certeza e se transformando em informação.

A velocidade cultural e da informação continuaram a crescer a uma taxa geométrica desde então, resultando atualmente no que alguns chamam de pânico informativo. A revolução social decorrente da nanotecnologia, que originou a internet, o computador pessoal e mais uma infinidade de sub-produtos decorrentes desses, diminuiu o lapso de tempo entre a produção e distribuição. A internet tratou de deslocar num raio de segundos qualquer tipo de informação, diminuindo a quase zero o tempo entre a produção de informação e sua distribuição.

Na medida em que a informação flui à alta velocidade pelas redes eletrônicas, sistemas de significado dos mais distintos possíveis passam a poder se cruzar, com conseqüências ao mesmo tempo esclarecedoras e inventivas. Numa sociedade dominada por uma explosão de conhecimentos como a atual, torna-se mais conveniente explorar as possibilidades de significação e ressignificação daquilo que já existe do que acrescentar informações redundantes, mesmo quando estas são produzidas por meio da metodologia e da metafísica do “original”.

Sob estas condições atuais, o plágio preenche os requisitos de uma economia de representação, sem sufocar a invenção. Se a criação ocorre quando uma nova percepção ou idéia é apresentada – pela interseção de dois ou mais sistemas formalmente díspares, ou na idéia de permutação realizada sobre um repertório já existente, como fala Levi-Strauss – então metodologias recombinantes são desejáveis. É aqui que o plágio progride além do niilismo. Ele não injeta somente ceticismo para ajudar a destruir sistemas totalitários que paralisam a invenção: ele participa da invenção, e dessa forma também é produtivo.

Assumido como um método saudável de criação, o plágio pode dar a sua contribuição também à necessidade atual de repensar a noção de criação, redefinindo-a de uma maneira, digamos, criativa. Hoje, trabalha-se com um conceito, por um lado, velho como o cristianismo (criação bíblica), e, por outro lado, com o do romantismo, a criação como emanação de uma sensibilidade sui generis do indivíduo privilegiado. Esses dois modos de criação não dão mais conta, sozinhos, do que se está processando hoje.

Mudaram radicalmente as condições de criação e distribuição. Mozart (mais acima, em versão Bart Simpson), Beethoven, Leonardo da Vinci e outros “gênios” não vão aparecer mais. Mas isso não quer dizer que artistas como esses não podem aparecer de novo; podem, se é que não existam milhares deles por aí. O que muda são as condições sociais que fizeram com que um Mozart fosse o que fosse: um ambiente de extrema restrição cultural como a da Áustria do século XVII, um tipo de formação cultural calcada na transmissão de informação e um número restrito de informações a serem transmitidas. O desenvolvimento cultural de hoje não permite mais isso porque temos acesso à quase tudo, algo que nunca tivemos em toda a história da humanidade, o que nos faz perceber a influência e a cópia que em outros tempos não se notava.

É nesse contexto recente que a criação deve ser redefinida “criativamente”. Talvez ela esteja ficando cada vez mais parecida com a criação científica, que sempre foi um trabalho em rede em que se trabalha em cima do trabalho dos outros – e normalmente se assume isso. Ou talvez ela, a criação, esteja indo para um caminho que ninguém sabe onde vai dar.

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Para finalizar, há de se fazer uma ressalva: ainda que hoje o plágio seja produtivo – e quiçá necessário – há de salientar que não precisamos descartar totalmente o modelo romântico de produção cultural, que privilegia o trabalho criativo como de um “gênio”. Ainda há situações específicas onde tal pensamento é útil, e não se pode dizer quando ele poderia se tornar apropriado novamente.

O que se pede é o fim de sua tirania e de seu fanatismo intelectualizado, que nada mais é do que um pedido para que se abra a base de dados cultural a fim de que todos – e não apenas aqueles seres “geniais” ou com condições financeiras abastadas – possam usar o potencial máximo da tecnologia para a produção artística.

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HOMENAGENS

1) O terceiro parágrafo da primeira parte do texto é todo de “A forma mais sincera de elogio“, de Luli Radfahrer, apenas com a troca da palavra “cópia” por “plágio”, uma tipo de prática as vezes idenfiticada como detournement
2) O texto sobre Marcel Duchamp, que abre esta segunda parte, tem traços de “O Urinol de Duchamp e a Arte Contemporânea“, de Almandrade.
3) Os parágrafos entre as imagens de Bart Simpson’Mozart e The Coca Cola Series de Latuff, que versa sobre a ideia de repensar a criação, tem vestígios de plágio da entrevista de Eduardo Viveiros de Castro (p.94 em diante) presente no livro Cultura Digital, organizado por Sérgio Cohn e Rodrigo Savazoni.
4) Outros trechos podem trazer semelhanças com diversos textos, mas é mais provável que sejam parecidos ao texto base para este ensaio-plágio.

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