Cultura Livre – BaixaCultura https://baixacultura.org Cultura livre & (contra) cultura digital Fri, 07 Mar 2025 21:01:59 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.0.9 https://baixacultura.org/wp-content/uploads/2022/09/cropped-adesivo1-32x32.jpeg Cultura Livre – BaixaCultura https://baixacultura.org 32 32 Conhecimento é direito https://baixacultura.org/2025/03/07/conhecimento-e-direito/ https://baixacultura.org/2025/03/07/conhecimento-e-direito/#respond Fri, 07 Mar 2025 21:01:59 +0000 https://baixacultura.org/?p=15798 A Wikimedia Brasil, Coalizão Direitos na Rede e diversas outras organizações lançaram manifesto por uma reforma da Lei de Direitos Autorais (LDA) no Brasil em defesa da ciência aberta e cultura livre. O documento defende que a legislação nacional acompanhe os desafios e oportunidades da era digital, equilibrando a proteção dos direitos dos criadores com o direito da sociedade ao acesso à cultura, à ciência e à informação.

Promulgada em 1998, a LDA está, como vocês devem imaginar, desatualizada frente à realidade digital e às novas formas de produção e compartilhamento de conhecimento, seja por Inteligência Artificial ou (ainda) pela difusão via Plataformas. O manifesto aponta que o Brasil, ao assinar o Pacto Digital Global da ONU, se comprometeu a adotar políticas públicas mais inclusivas e alinhadas aos chamados bens públicos digitais – como softwares livres e plataformas de conteúdo aberto, dados abertos e inclusive modelos de inteligência artificial abertos que beneficiem a sociedade como um todo, e não apenas poucos grupos.

“A atual LDA, da forma como é aplicada, restringe o acesso ao conhecimento e coloca o Brasil em desvantagem no cenário global. Precisamos de uma legislação que proteja os autores, mas que também garanta à sociedade o direito à informação, fundamental para o desenvolvimento social, econômico e cultural”, disse Chico Venâncio, vice-presidente da Wikimedia Brasil e integrante da Coalizão Direitos na Rede.

O manifesto segue o lançamento da campanha “ConhecimentoÉDireito”, que a Wikimedia Brasil e a CDR lançaram com o objetivo de também estimular o debate sobre a necessidade de atualização da LDA no Brasil e promover um amplo acesso ao conhecimento e à cultura no contexto da era digital. A campanha parte da premissa de que o conhecimento é essencial para o desenvolvimento de qualquer sociedade, deve ser tratado como um direito fundamental, e que é possível utilizar mecanismos em políticas públicas com este objetivo, defendendo uma legislação que proteja os direitos dos autores, mas que também permita que o conhecimento circule livremente, incentivando a criatividade e o desenvolvimento social.

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A crise é cognitiva – a guerra cultural e os fins da internet https://baixacultura.org/2025/02/14/a-crise-e-cognitiva-a-guerra-cultural-e-os-fins-da-internet/ https://baixacultura.org/2025/02/14/a-crise-e-cognitiva-a-guerra-cultural-e-os-fins-da-internet/#respond Fri, 14 Feb 2025 14:09:45 +0000 https://baixacultura.org/?p=15788 Semana passada participei novamente no Balanço & Fúria para falar sobre as transformações da internet, das raízes rebeldes à ascensão da plataforma aliada (e potencializadora) da extrema direita. Falamos um pouco sobre como essa mudança impactou a cognição, o trabalho e a cultura, levando a uma crise de consenso e à ascensão da desinformação, entre outras coisas. No final destacamos a necessidade urgente de repensar a forma como interagimos com a tecnologia e de buscar alternativas que promovam a descentralização, a transparência e o bem comum. A ascensão do DeepSeek, com seu modelo de código aberto, oferece uma faísca de esperança em meio a um cenário de crescente preocupação com o poder das Big Techs e o impacto da desinformação. 

“Quem teve acesso à internet do fim dos anos 90 e começo dos anos 2000 jamais imaginaria que ela se tornaria um dos principais instrumentos para a elaboração do fascismo de nosso tempo, um impulsionador da crise política e estética, seguido da crise cognitiva que determinaria uma nova subjetividade em seus usuários, assim como uma nova definição de capitalismo ultraprecarizado e ultraliberal, que confundiu ainda mais os limites do trabalho, das liberdades e da democracia liberal.

Da guerra cultural à plataformização, passando pela monopolização das Big Techs e a disputa geopolítica baseada nas tecnologias criadas a partir do que resta da internet, Leonardo Foletto caminha sobre uma breve história das redes de compartilhamento, da pirataria, do hackativismo até o apodrecimento algorítmico fascista em que nos encontramos agora.”

Dá pra ouvir/baixar no site e também aqui abaixo.

[Leonardo Foletto]

 

 

 

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Software livre pode derrotar as big techs? https://baixacultura.org/2025/02/07/codigo-aberto-pode-derrotar-as-big-techs/ https://baixacultura.org/2025/02/07/codigo-aberto-pode-derrotar-as-big-techs/#respond Fri, 07 Feb 2025 17:09:28 +0000 https://baixacultura.org/?p=15779 Falei para o programa “Outra Manhã”, do Outras Palavras, na segunda 3/2/25 sobre DeepSeek e a questão do open source, a partir do texto publicado aqui – que foi republicado pelo OP também

Na conversa, de cerca de 1h, busquei enfatizar o potencial dos modelos de código aberto para desafiar o domínio de grandes empresas de tecnologia. Trouxe também questões éticas e práticas sobre o uso de dados, as implicações políticas da IA ​​e possibilidades futuras de desenvolvimento de IAs descentralizadas, locais e de código aberto. A manchete é um pouco sensacionalista, como o jornalismo tem costumado ser (às vezes por questão de sobrevivência).

[Leonardo Foletto]

Na semana seguinte, Antônio Martins e Glauco Faria conversaram com Uirã Porã sobre como o software livre vive no Brasil e como ele pode ser base da autonomia tecnológica, numa conversa que vale a pena escutar:

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A cópia na era de sua proliferação técnica https://baixacultura.org/2024/10/11/a-copia-na-era-de-sua-proliferacao-tecnica/ https://baixacultura.org/2024/10/11/a-copia-na-era-de-sua-proliferacao-tecnica/#respond Fri, 11 Oct 2024 20:16:34 +0000 https://baixacultura.org/?p=15723 Muito já se falou sobre as mudanças que a internet e as tecnologias digitais trouxeram para o compartilhamento de informação: a era da “liberação do polo emissor da informação” propiciou o acesso fácil a maior quantidade de informação disponível na história da humanidade, para o maior número de pessoas já existentes no planeta até aqui. 

É normal que o debate tenha o foco na recepção das informações digitalizadas. As práticas de consumo e circulação de informação dizem respeito a toda a sociedade, enquanto que as práticas criativas dizem respeito a um grupo mais seleto de pessoas que, de forma assumida, afirma que cria – embora saibamos que a criação está em muito mais lugares do que imaginamos. As mesmas tecnologias que nos levam a conversar sobre novos modos de consumir e compartilhar informação colocam, também, em relevo práticas criativas ligadas ao roubo. Identificamos um sampler em menos de 3 s, uma imagem através de uma busca simples de comparação num buscador da web; usamos qualquer obra para criar outras.

As práticas de (re) criação ligadas à abundância de informação potencializada nos últimos 30 anos por objetos técnicos não fazem outra coisa que não coletar, armazenar, processar e difundir dados. Estes objetos, que você reconhece em todos os hábitos cotidianos de uma pessoa do século XXI, tem por essência a cópia. Isso significa dizer que eles só existem porque copiam; não há ação no uso da internet e de objetos digitais que não seja, em essência, uma combinação gigantesca de números copiados. São os 0 e 1 recombinados a exaustão que fazem brotar, às vezes como mágica, imagens, sons, textos, que vão ser captados pelos nossos sentidos e fruídos como arte, jornalismo, entretenimento – ou simplesmente mentira.

A proliferação mundial dos sistemas de inteligências artificiais generativas (ChatGPT, MidJourney, Stable Diffusion, Gemini, etc) em 2023 quebra um paradigma ao tornar a cópia ainda mais base para a criação. Tudo que está na internet e foi raspado – sem consentimento, aliás – por estes sistemas está sendo a base para a criação de inúmeras coisas, de cards de redes sociais a ilustrações de livros, passando por e-mails, artigos, filmes, textos e músicas. Se já no início do século XX a reprodução técnica, especialmente na fotografia e no cinema, tornava a cópia e o “original” não facilmente distinguíveis, o que dirá a partir de 2023, quando as IAs ampliam a reprodução digital e, cada vez mais, a separam de sua materialidade original, que passa a se transformar em mero dado, padrões de números a alimentarem grandes bancos onde não existe mais singularidade, apenas cópia – a hiperconexão do E E E E E em vez do OU OU, já que às máquinas não é facultado a possibilidade de fim, mas sim a reprodução contínua e infinita de presente. 

Diante disso, qual será o papel da cópia na criação artística na era da Inteligência Artificial Generativa? Estamos em uma investigação, desde 2023, para entendermos o papel da cópia ao longo dos últimos séculos na história da arte, o que passa pela questão histórica do desvio: como se sabe – e nós já tratamos um pouco aqui, nos “momentos da história da recombinação” – a arte é marcada pelo plágio, o roubo, o desvio, a cópia e apropriação. Estamos nos encaminhando para o encerramento desse processo, que vai resultar num livro a ser publicado pela SobInfluencia em 2025.

Em paralelo e complementar ao processo de produção do livro, nasceu o projeto Cópia & Desvio. É uma série de conferências experimentais/performances/lives sobre o direito para copiar e reutilizar o conhecimento humano. Organizado em quatro atos, o objetivo é apresentar uma narrativa crítica sobre a cópia e sua relação com a política e a sociedade ao longo do tempo. Em diálogo com o processo de escrita do livro, as quatro sessões vão abordar temas, pessoas, grupos e movimentos históricos onde a cópia ganhou destaque, sempre em diálogo com a história das tecnologias que permitiram transformações na reprodução técnica. 

Vamos examinar momentos como a criação do rádio e da arte sonora do surrealismo e do dadaísmo; o détournement situacionista e o cut-up dos 1960; a arte xerox e a mail art dos anos 1970 e 1980; os samplers e a cultura hip-hop, os remixes e os memes potencializados na internet; até chegar, por fim, a criação na era da IAs generativas.

As conferências/performances se desenvolvem em um formato experimental, ao vivo, como lives, em que a narração irá acompanhar um live coding com elementos visuais e sonoros, além de outras intervenções ao vivo. Serão gravadas e transmitidas, via canal do Youtube do BaixaCultura.

A primeira destas conferências será chamada de “A cópia na era de sua proliferação técnica” e vai ocorrer no 24 de outubro, às 19h (Brasil, UTC-3). Rafael Bresciani e Leonardo Foletto vão criar artefatos sonoros e visuais para compor a narração da conferência, centrada nas práticas e reflexões de cópia no século XX, de Walter Benjamin a Lev Manovich, passando por Marcel Duchamp, Guy Debord, William Burroughs, Hugo Pontes, Paulo Bruczky, Moholy-Nagy, Rosalind Krauss, Yoko Ono, Andy Warhol, Sherrie Levine, Devo, Talking Heads, Neu!, entre outros.

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Ética da pirataria e o tráfico de cultura https://baixacultura.org/2024/09/06/etica-da-pirataria-e-trafico-de-cultura/ https://baixacultura.org/2024/09/06/etica-da-pirataria-e-trafico-de-cultura/#respond Fri, 06 Sep 2024 21:38:00 +0000 https://baixacultura.org/?p=15718 Como era a internet antes do Twitter? Ou melhor, como era a internet antes dos monopólios das redes sociais e das plataformas de streaming?

O que um dia pareceu oferecer um horizonte de descentralização na produção e distribuição de informação e arte definhou e se transformou em uma máquina de especulação, vigilância, roubo de dados e um terreno fértil para a extrema-direita.

Já sabemos que a internet como a conhecemos acabou, e torcemos para que o que ela se transformou também acabe – ou mude radicalmente. Mas, enquanto isso não acontece, conversei com Rodrigo Corrêa, do podcast Balanço e Fúria (e editor da SobInfluencia), sobre pirataria e a internet da subversão. Desvio, expropriação, cópia, roubo: são muitas as formas de qualificar a prática da pirataria, que desde muito tempo desempenha uma função fundamental de descentralizar e redistribuir cultura, algo que nunca deixará de ser necessário, com ou sem copyright.

Dos piratas do século XV às práticas de colagem surrealista ou détournement situacionista; das rádios livres na Itália dos anos 70 às rádios piratas do Brasil dos anos 90; do boom da internet e da popularização das práticas de difusão de conteúdo que burlam o direito à propriedade intelectual ao revés centralizador dos monopólios de streaming:
falamos um pouco disso tudo e mais um pouco. Balanço e Fúria, aliás, é um dos podcasts mais interessantes a falar de música e política, do punk reggae party ao jazz afropindorâmico, passando por cumbia, Sistas grrrl’s riot, hip hop hackers, música experimental e atonal, free jazz, blaxploitation, punk chinês, queercore, entre outros muitos temas. Não perca também o projeto paralelo deles de Memória Gráfica da Contracultura

Dá pra ouvir direto aqui, além das plataformas habituais.

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Cultura livre como liberdade positiva https://baixacultura.org/2024/08/29/cultura-livre-como-liberdade-positiva/ https://baixacultura.org/2024/08/29/cultura-livre-como-liberdade-positiva/#comments Thu, 29 Aug 2024 22:52:29 +0000 https://baixacultura.org/?p=15712 Traduzimos um texto que nos convida a refletir sobre um tema sempre importante por aqui: a cultura livre. Foi publicado em maio de 2024 por Mariana Fossati, socióloga uruguaia e ativista da cultura livre, parte do Ártica Online, parceiro deste espaço já há muitos anos. Ao final, fiz alguns comentários a respeito de pontos do texto, como a insuficiência do acesso à informação e aos bens culturais para garantir que todos os indivíduos e coletivos possam participar livre e igualmente na vida cultural; e a necessidade de uma política do cuidado dentro das comunidades e movimentos da cultura livre.

 

CULTURA LIVRE COMO LIBERDADE POSITIVA

 

Por Mariana Fossati, em Ártica Cultural
Tradução e adaptação: Leonardo Foletto

 

Como definimos liberdade quando falamos de cultura livre? Há algum tempo, escrevi que a cultura livre não é apenas uma filosofia, expressa em práticas concretas através das quais tornamos as nossas obras livres quando as compartilhamos. A cultura livre se expressa não só na ética de “compartilhar é bom”, mas também, de modo concreto, nas licenças que utilizamos, onde e como compartilhamos – e também no apoio a reformas progressivas dos direitos de autor. Gostaria agora de voltar à dimensão filosófica da liberdade na cultura livre, com a intenção de clarificar para que é que fazemos cultura livre e porque é que a defendemos.

Muitas vezes, ao longo da minha militância neste tema, senti que falo de uma coisa quando falo de cultura livre, enquanto os críticos falam de outra. Sobretudo os críticos “de esquerda” acusam aqueles que defendem a cultura livre de serem liberais, ou associam “cultura livre” a “mercado livre”. Durante muito tempo ri destas associações grosseiras, mas sinto que hoje, mais do que nunca, e sobretudo no conceito de cultura livre, a noção de liberdade deve ser reapropriada pelos movimentos de defesa dos direitos, para nos diferenciarmos claramente dos movimentos de direita autodenominados “libertários”.

Num artigo crítico aos libertários em seu blog, Rolando Astarita, [conhecido professor de economia argentino, estudioso do marxismo] fala da diferença entre liberdade negativa e liberdade positiva, no sentido proposto por Isaiah Berlin. A liberdade negativa é a possibilidade do indivíduo atuar sem interferência ou coerção, e é limitada pela liberdade dos outros e pela lei. A liberdade positiva é a capacidade real de exercer a autonomia e de se auto-realizar, o que depende não só de cada pessoa, mas também de condicionantes sociais. É por isso que Astarita entende que a tradição marxista enfatiza sobretudo a liberdade positiva. 

O artigo de Astaria me serve como inspiração para este post, porque a cultura livre pode ser entendida desde qualquer uma destas noções de liberdade. Creio, porém, que é necessário esclarecer onde colocamos nossa ênfase.

Se entendermos a cultura livre em termos de liberdade negativa, nos resta apenas a ideia de acesso sem interferência a qualquer recurso cultural ou de informação de que um indivíduo possa necessitar. Desde que esse acesso seja legal e que não afete os direitos de propriedade de terceiros. Daí a importância da licença (que é um contrato privado) e a ênfase no fato de cada indivíduo ser livre de conceder autorizações de acesso e utilização da sua obra (sua propriedade privada). As licenças livres funcionam com base numa renúncia a uma parte dos direitos de propriedade intelectual. É minha liberdade, enquanto proprietário, de renunciar a uma parte desses direitos. Já o acesso aberto é a liberdade de acessar e utilizar toda a propriedade intelectual que outras pessoas disponibilizaram de forma aberta, dentro dos limites da licença que escolheram. É um sistema aparentemente equilibrado que reafirma a tese de que a propriedade, a liberdade e um mínimo de regulação estatal que as garanta são suficientes.

Mas se a nossa compreensão termina aqui, estamos perdendo algo fundamental. O efeito prático deste tipo particular de renúncia de cada indivíduo a uma parte da sua propriedade intelectual produz uma contribuição para o bem comum intelectual. Este bem comum, no seu conjunto, constitui uma reserva de conhecimentos que já não é uma questão individual ou contratual entre particulares, mas que nos remete para uma dimensão social e coletiva. É a partir daqui que a noção de liberdade negativa fica aquém, ao passo que a liberdade positiva permite alargar o horizonte e nos conduzir a uma noção de cultura livre que acompanha a proteção e o reforço dos bens comuns, juntamente com uma expansão dos direitos sociais.

A cultura livre, em termos de liberdade positiva, é a ideia de que deve haver recursos culturais abundantes, acessíveis e plurais, para que todos os indivíduos e coletivos possam participar livre e igualmente na vida cultural. O ativismo da cultura livre não é apenas a defesa da propriedade e da liberdade individual, mas a procura ativa do alargamento do direito de acesso, utilização e participação na cultura a toda a sociedade. Isto inclui a democratização radical da criatividade, do pensamento crítico, do conhecimento prático, do prazer estético, do entretenimento, da identidade e do patrimônio cultural.

Se persistem condições sociais que excluem muitas pessoas de usufruir efetivamente dos bens culturais, mesmo que formalmente não exista qualquer impedimento, então não podemos falar de liberdade. A falta de recursos econômicos, de acesso a infraestruturas culturais, de conetividade significativa, de educação pública de qualidade, de diversidade de propostas culturais, ou de obras acessíveis, reutilizáveis e partilháveis, limitam a liberdade positiva das pessoas. Pode não haver censura ou controle estatal autoritário sobre os conteúdos que circulam – e, no entanto, ainda pode não haver liberdade cultural.

Por isso, a nossa militância pela cultura livre não se resume à afirmação da soberania individual de dar e receber recursos culturais, num cenário de propriedade intelectual garantida pelo Estado. A nossa militância é o alargamento da fruição e da participação na cultura a nível coletivo através da defesa dos bens culturais comuns. As licenças livres são, neste quadro, uma estratégia coletiva e não apenas uma opção individual, porque entendemos que, num contexto de crescente privatização da cultura, elas ajudam a construir, proteger e reforçar os bens culturais comuns para que cheguem a toda a comunidade. Queremos construir uma cultura livre para uma sociedade livre. Mas uma sociedade livre não é uma sociedade de proprietários livres, mas uma sociedade emancipada das estruturas de poder econômico e de privilégio social que obstruem este potencial coletivo.

 

BREVE COMENTÁRIOS À CULTURA LIVRE COMO LIBERDADE POSITIVA

Leonardo Foletto

Alguns comentários para dialogar e apontar discussões futuras para uma pensmento filosófico sobre a cultura livre. O argumento principal do curto e importante texto de Mariana é detalhado pela própria nos comentários ao post no blog. Para ela, as quatro liberdades da cultura e do software livre não podem ser vistas somente na perspectiva de liberdades negativas, a partir da diferenciação entre liberdade positiva e negativa trabalhada no texto. Isso ocorre por duas razões principais: a primeira é porque, na prática, ao libertar a cultura do direito autoral, geramos um bem comum e, normalmente, uma comunidade à sua volta, passando então para o nível do coletivo. A segunda é porque entendemos que “compartilhar é bom” não só para os indivíduos, mas para a comunidade, já que o acesso ao conhecimento é um direito básico para se poder exercer qualquer liberdade criativa – e há necessidades humanas, de ligação e de cultivo da uma cultura comum que são de ordem coletiva, e que são condicionantes para a autorrealização das pessoas. É uma visão que reitera a necessidade do progresso técnico e científico não ser exclusivo para poucos, mas sim generalizado.

Faço a ressalva que um tema crucial hoje na discussão sobre cultura livre não é trabalhado com ênfase no texto de Mariana: as assimetrias de poder envolvidas na questão do acesso à informação e aos bens comuns digitais. Não foi abordado porque não era intenção inicial, e também porque certamente renderia um texto muito mais longo – ou vários. O argumento central aqui, que discutimos também a partir do prefácio de Mckenzie Wark ao seu “Um Manifesto Hacker”, é de que a liberdade de acesso não tem se mostrado suficiente para garantir que todos os indivíduos e coletivos possam participar livre e igualmente na vida cultural, como defende Mariana no texto.

É uma situação parecida com a discussão em torno da inclusão digital: qual inclusão queremos? a das plataformas das big techs, baseada em sugar nossa atenção para extrair lucro a partir da produção contínua de dados? Aqui vale se perguntar também: qual acesso queremos? o acesso a lixo informacional e cultural, que entope e cansam nossas mentes e dificultam nossa percepção de uma realidade e ação comum? Se não é esse tipo, qual é? Existe alguma forma de se trabalhar os limites de ações de acesso sem tocar em questões mais complexas como a do tempo gasto e a da organização coletiva? Como me lembrou o Alexandre Abdo, quando falamos dos Pontos de Cultura e do programa Cultura Viva no Brasil, seu sucesso enquanto política pública e ação transformadora de pessoas e locais se deu mais com a capacidade de criar condições mínimas – financeiras, sociais e humanas – para as pessoas terem tempo e organização de usar, aperfeiçoar e cuidar do que foi produzido, do que somente a questão de se ter acesso a computadores com software livre instalados. Quando se desestruturou as condições mínimas citadas, o acesso aos computadores com software livre e a cultura livre criada em torno disso se tornou uma questão gradativamente menor, a ponto de ser abandonada por muitos pontos depois.

Mais acesso à informação, à tecnologias digitais ou a bens culturais não necessariamente significa consciência crítica, como escrevi em A Cultura é Livre. Lembro da crítica que César Rendueles [em Sociofobia] fez ao copyleft: romper as barreiras de livre circulação da informação e do acesso aos bens culturais não é suficiente para uma melhoria geral das condições de vida global sem tocar nas condições sociais de produção desses bens culturais e da informação. A enorme importância hoje do tema do trabalho digital, dada à proliferação do trabalho precário a partir da plataformização, confirma isso.

Um passo aqui, talvez, seja mais em direção a uma política do cuidado do que do acesso: como criar e pôr em prática protocolos de cuidado dentro das comunidades de bens comuns livres para que estes bens não sejam apropriados sem critérios, desrespeitando as indicações das licenças (livres) e usados para o enriquecimento de ainda menos pessoas, como no caso do uso de dados sem consentimento para treinamento e sistemas de Inteligência Artificial Generativa de empresas como Meta e Open IA? Como estabelecer condições sociais dignas de produção e fruição desses bens culturais e informativos alocados dentro da perspectiva da cultura livre?

Não há resposta clara aqui, mas talvez se fazer esta pergunta nos leve a repensar a cultura livre mais em termos de cuidado do que de acesso. Organização da abundância (de informação e bens culturais) que não seja baseada em restrição econômica e técnica como a promovida pela propriedade intelectual. O que nos leva a um outro ponto de reflexão não novo, mas cada vez mais pertinente: a reinvenção do sistema de direito autoral, agora baseado na idade de uma liberdade positiva, como Mariana aponta no texto, mas que não deixa de garantir a proteção e o cuidado com os abusos e as condições sociais de produção desses bens culturais. A cultura livre, enquanto movimento, representou de alguma forma uma “reforma cidadã” do direito autoral, com as licenças produzindo um espaço de “lei alternativa” que levou a descentralizar o controle e potencializar a inteligência e experiência humana. Será ainda possível pensar numa reforma de direito autoral que potencialize esses aspectos, sem descuidar da proteção e das assimetrias de poder típicas do capitalismo? Ou é mais provável que, com a popularização das IAs generativas, vejamos uma reforma imposta pelo capital que vá na linha de permitir a livre concentração, materializada nos modelos gigantes das big techs, a fim de cada vez mais potencializar uma (pseudo) inteligência artificial desregulada sob controle dessas grandes empresas e destinada a gerar renda (cada vez mais) para esse capital?

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ViraCasacas: BaixemCultura https://baixacultura.org/2024/07/06/viracasacas-baixemcultura/ https://baixacultura.org/2024/07/06/viracasacas-baixemcultura/#comments Sat, 06 Jul 2024 23:10:24 +0000 https://baixacultura.org/?p=15679 Participei nesta semana de um dos podcasts mais conhecidos numa certa “bolha” progressista da internet brasileira: Viracasacas. O papo foi de Extinção da Internet à cultura hacker, passando por Mark Fisher, comuns, decrescimento, Napster e principalmente pela cultura livre e as implicações do download, do torrent e da pirataria na circulação da cultura no meio digital. Uma charla algo saudosista sobre como a internet era muito mais divertida, autônoma e livre antes da plataformização pode nos fazer lembrar de como ela ainda pode ser diferente. Segue abaixo o texto de divulgação do Viracasacas

“Saudações piratas! (“Abordar…navios mercantes…invadir, pilhar, roubar o que é nosso…”). Ou não, porque não há nada de errado – e tudo de muito certo – em liberar a cultura de amarras. Sobre as novas formas de trato com as guerras em função de uma cultura vista como propriedade material estática, e sobre como a internet virou uma vilã difusa nesse processo, trazemos Leonardo Foletto da Baixa Cultura, laboratório online que trabalha com documentação, pesquisa, formação e experimentação em cultura livre. O papo ficou fortíssimo, e com muita indicação de coisas para você conseguir grátis – como todas as outras coisas, aliás ;)”.

Dá pra escutar direto aqui abaixo e também nas principais plataformas de streaming.

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Um Manifesto Hacker – 20 anos depois https://baixacultura.org/2024/02/20/um-manifesto-hacker-20-anos-depois/ https://baixacultura.org/2024/02/20/um-manifesto-hacker-20-anos-depois/#comments Tue, 20 Feb 2024 23:03:56 +0000 https://baixacultura.org/?p=15573 Não é fácil a tarefa de apresentar Um Manifesto Hacker, de McKenzie Wark, ao público brasileiro hoje. A natureza ensaística, provocativa e irônica da obra nos põe um desafio: como falar de um presente sem estragar a surpresa? Outra questão é o tempo: o livro foi lançado pela primeira vez há vinte anos. Como contextualizar a obra? O papel da informação e das tecnologias na sociedade contemporânea está ainda mais visível do que há vinte anos, o que faz com que a obra continue atual – como a própria autora afirma em sua introdução à edição brasileira. Se, por um lado, não vamos estragar as surpresas – elas são deliciosas – por outro, não espere uma apresentação tradicional. Ela seria o exato oposto do que o próprio livro tentou ser.

O que podemos contextualizar é que, embora a tradução apenas saia agora, sua recepção em território brasileiro aconteceu mesmo há quase vinte anos. De forma um tanto errática, quase underground, o livro foi lido e discutido em meios acadêmicos e ativistas, sobretudo onde havia pessoas interessadas em torno da grande área que se convencionou chamar cibercultura – nome que hoje, com a onipresença do digital em nossas vidas, parece ter sido abandonado.

Dentro dessa área, hackers afeitos também aos estudos filosóficos de inspiração deleuziana sobre a técnica receberam com entusiasmo estes escritos de McKenzie Wark; outros, especialmente teóricos da comunicação e da sociologia, leram com atenção as teses do livro e notaram as semelhanças com “A Sociedade do Espetáculo”, de Guy Debord, e “Manifesto Comunista”, de Karl Marx e Friedrich Engels, evidentes na forma aforística do texto mas nem tão clara no conteúdo – embora você verá muito de ambos autores nas páginas do livro.

Um Manifesto propõe a visão de que existem três classes dominantes e suas respectivas classes dominadas. Cada uma dessas classes dominantes deriva seu poder da propriedade privada de uma categoria de meios de produção. São elas a classe pastoralista, que detém terras; a classe capitalista, que possui capital; e a classe vetorialista, proprietária da informação. E suas decorrentes classes dominadas, respectivamente a classe camponesa, a classe trabalhadora e a classe hacker. Apesar de haver uma sequência histórica na emergência de cada uma delas (primeiro veio a pastoralista, depois a capitalista, e agora a vetorialista), a autora afirma que as três classes coexistem no presente.
Este é um trechinho do prefácio (íntegra) que eu, Victor Barcellos (também tradutor da obra) e Rafael Grohmann fizemos para a “Um Manifesto Hacker”, segundo livro publicado no Brasil de McKenzie Wark, ambos pela dupla de editoras SobInfluencia e Funilaria – fizemos uma breve resenha do primeiro, “O Capital Está Morto”, em fevereiro de 2023. “Um Manifesto Hacker” está à venda no site das duas editoras (Funilaria / SobInfluencia) e também nas melhores livrarias do país. Republicamos logo abaixo o prefácio à edição brasileira do livro, escrito por Mckenzie, que atualiza com muita clareza e honestidade a questão da liberação da informação da forma de propriedade na internet. O livro na íntegra também está disponível em PDF, mas não espalha.

[Leonardo Foletto]

“O que para nós era uma prática de vanguarda rapidamente, e de forma independente, tornou-se um movimento social: o movimento pela informação livre. À medida que a internet se tornou uma forma de comunicação mais popular, todos começaram a compartilhar. Como diz a tese 126 do livro: “a informação quer ser livre, mas está acorrentada em todos os lugares” (…) Parecia que poderíamos abrir a forma-mercadoria da informação em favor de uma espécie de economia de dádiva abstrata. (…) Não era pra ser. Os marxistas autonomistas italianos sustentam que toda “inovação” na forma-mercadoria é impulsionada de baixo para cima, na medida em que tenta resolver um antagonismo de classe subordinada contra a forma-mercadoria por meio de sua recaptura por meio de uma mutação dessa forma. Foi mais ou menos isso que aconteceu. A classe dominante dominante, que chamo de classe vetorialista, recuperou a energia do movimento popular pela informação livre transformando-a em trabalho não remunerado“.

 

CONSIDERAÇÕES SOBRE UM MANIFESTO HACKER

Mckenzie Wark*

Lendo Um Manifesto Hacker novamente depois de muito tempo, agora parece um livro que outra pessoa escreveu e, ao mesmo tempo, um livro que contém não apenas a semente de todo o meu trabalho, mas o padrão da minha vida desde então.

O livro faz pelo menos duas coisas ao mesmo tempo. Em parte é um diagnóstico de um ponto de viragem histórico, entendido a nível conceptual. Isso não é mais capitalismo; é algo pior. Essa mutação no modo de produção é global, mas distribuída de forma desigual. Os modos de produção são sempre plurais. Durante muito tempo, o modo dominante poderia ser descrito como capitalismo. Embora o capitalismo certamente ainda exista, não é mais o modo de produção dominante.

Não estou sozinha nesse diagnóstico, mas a maioria das outras tentativas de pensar essa ruptura não entenderam que ela também é uma ruptura de linguagem. Assim, temos tentativas muito insatisfatórias de pensá-lo como pós-capitalismo ou neofeudalismo. Em outras palavras, isso significaria pensar o surgimento de uma nova época apenas em relação à língua antiga. Cada nova era tenta pensar sua novidade na linguagem da antiga. Essa é uma falha linguística a ser superada,e considero isso uma das percepções mais importantes de Marx.

Em vez disso, tentei pensar a época em uma linguagem contemporânea a ela. Escrevi Um Manifesto Hacker em uma linguagem inexistente que chamo de “europeia”. Essa linguagem imaginária é composta de partes iguais de latim religioso, marxismo, filosofia francesa e inglês comercial. Essas são as linguagens transnacionais da modernidade que me fizeram. A edição em inglês não é a original – também é uma “tradução” que eu mesmo fiz dessa língua inexistente. Eu queria começar pelo menos com os recursos linguísticos que vários modos de produção sucessivos e sobrepostos infligiram ao mundo por meio da guerra e da colonização. Pensar nessa linguagem e contra ela.

O método de escrita é o que os situacionistas chamavam de desvio (détournement). Uma cópia e uma correção da linguagem encontrada. Assim, a primeira linha: “Um duplo assusta o mundo”, e toda a tese 001 que se segue, copiei e modifiquei da famosa abertura de O Manifesto Comunista. Toda a linguagem é um bem comum (commons), e pode-se fazer o possível para recusar a forma de propriedade e os nomes próprios de seus proprietários como uma prática de escrita. Sempre me diverte que existam livros que se dizem “radicais” em conteúdos que obedecem às convenções literárias mais conservadoras.

Partindo de um desvio das linguagens transnacionais, Um Manifesto Hacker oferece dois tipos de proposições: algumas se referem à situação estratégica das classes subalternas como eu a via 25 anos atrás. Alguns deles precisam de revisão à luz das lutas desde então. O outro tipo de proposição está menos ligado a circunstâncias imediatas. Eles são um pouco mais inoportunos. Vou oferecer algumas reflexões tardias sobre ambos.

Resumidamente, as coisas tomaram um rumo que eu não previ, e que exige uma alternância não só da prática política, mas também da teoria. Georg Lukács disse em seu ensaio sobre o método marxista que mesmo que todas as suas descobertas particulares se mostrassem incorretas na prática, a teoria marxista ortodoxa permaneceria correta. Eu tenho exatamente a visão oposta: apenas aquelas descobertas que se comprovam na prática podem ser consideradas parte do “marxismo”. Ele não tem nenhuma teoria essencial, ortodoxa ou não.

Vinte e cinco anos atrás, parecia uma boa tática liberar informações da forma de propriedade. As forças de produção, neste caso as forças de produção de informação, ultrapassaram as relações de produção existentes. A produção de informação livre surgiu como uma prática a partir da qual se cria uma produção autônoma de conhecimento. De diferentes maneiras, Adorno e Pasolini se refugiaram da pressão progressiva da mercantilização (commodification) em formas culturais e midiáticas residuais, eu fazia parte de um movimento que buscava um espaço de liberdade não-mercantilizada em mídias emergentes e formas técnicas.

Embora tenha escrito grande parte de Um Manifesto Hacker isoladamente, no norte do estado de Nova Iorque, eu não estava sozinha. Fiz parte de uma vanguarda que se reuniu em espaços online para desenvolver teoria e prática dentro dessas formas emergentes de produção de informação. Tentamos fazer uma teoria, uma arte, uma cultura e uma política neste espaço relativamente livre de uma só vez. Isso foi um tempo antes de a internet se tornar um grande negócio. Sua infraestrutura era mantida principalmente por universidades. Descobrimos que era uma maneira relativamente barata e rápida de se organizar transnacionalmente, de conduzir experimentos, de encontrar afinidades.

Todas as vanguardas são, em certo sentido, vanguardas midiáticas, desde o dadaísmo e o surrealismo até o fluxus, a tropicália ou os situacionistas. Eles usaram a mídia de seu tempo, da impressão offset ao cinema, gravação de som, até mesmo o sistema postal, para criar matrizes transnacionais de invenção formal que eram ao mesmo tempo estéticas, políticas e culturais. Vimo-nos continuando essa prática, mas não meramente repetindo-a. Um Manifesto Hacker é uma teoria dessa prática. Como todas as vanguardas, teve suas facções e dissensões. Meu espaço de afinidade dentro dele girava em torno do grupo nettime.org.

O que para nós era uma prática de vanguarda rapidamente, e de forma independente, tornou-se um movimento social: o movimento pela informação livre. À medida que a internet se tornou uma forma de comunicação mais popular, todos começaram a compartilhar. Como diz a tese 126 do livro: “a informação quer ser livre, mas está acorrentada em todos os lugares”. (Uma frase que é um desvio de Rousseau e do teórico utópico da internet John Perry Barlow). Parecia que poderíamos abrir a forma-mercadoria da informação em favor de uma espécie de economia de dádiva (gift) abstrata.

Não era pra ser. Os marxistas autonomistas italianos sustentam que toda “inovação” na forma-mercadoria é impulsionada de baixo para cima, na medida em que tenta resolver um antagonismo de classe subordinada contra a forma-mercadoria por meio de sua recaptura por meio de uma mutação dessa forma. Foi mais ou menos isso que aconteceu. A classe dominante dominante (dominant rulling class), que chamo de classe vetorialista (vectorialist), recuperou a energia do movimento popular pela informação livre transformando-a em trabalho não remunerado.

Na verdade, é ainda pior do que isso. O capitalismo explora nosso trabalho; o vetorialismo explora nosso comunismo. Ele explora nossa necessidade de dar um presente de nossa sociabilidade uns aos outros. A resposta da classe dominante ao movimento social pela informação livre foi a criação de uma forma de propriedade ainda mais abstrata. As relações de produção alcançaram as forças de produção. Este ciclo agora tem uma extensão adicional, pois a chamada “inteligência artificial” é treinada no vasto tesouro de informações livres que criamos para nós mesmos para desenvolver uma técnica que possa substituir a própria classe hacker.

Sob o capitalismo, as forças de produção se desenvolveram reduzindo o trabalho à repetição e mesmice, e então substituindo o trabalhador por uma máquina que reproduzia de forma mecânica essa repetição. O que estava além dessa substituição era o hack, a produção da diferença, a atividade distintiva da classe hacker nas artes e nas ciências. O que a classe vetorialista está tentando agora é a substituição da classe hacker por máquinas capazes de fabricar a diferença. Máquinas que fazem isso mal, mas que do ponto de vista da classe dominante são preferíveis porque não podem entrar em greve.

Em suma, a situação é muito pior do que há um quarto de século. Vencemos algumas batalhas, mas perdemos a guerra. O livro que escrevi logo após Um Manifesto Hacker, “Gamer Theory”, já era uma intuição disso. Trata-se do enclausuramento do hack, ali figurado como jogo, em um espaço de jogo global, totalizante. Onde todas as nossas energias coletivas e criativas são direcionadas para formas que podem ser quantificadas, classificadas e ranqueadas. Lamento dizer, esse foi profético.

Revisei ainda mais a perspectiva política de Um Manifesto Hacker em meu livro posterior, “O Capital Está Morto”. Em meu livro “Raving”, ofereci pelo menos uma teoria e prática de onde podemos nos esconder, podemos encontrar uma relação com a técnica onde podemos pelo menos minimizar a captura de nossas energias hacker e obter algum prazer em formas de trabalho inútil.

Ao contrário de alguns teóricos que eu poderia mencionar, não estou no negócio de oferecer “esperança”. A perspectiva é ruim. Os movimentos populares viveram uma longa série de derrotas históricas. Estamos em retiro na maioria dos lugares. O benefício de estar em retirada é que há menos oportunistas por perto. Em vez disso, os oportunistas se rebatizaram como os “intelectuais” da reação.

As proposições táticas de Um Manifesto Hacker são de seu tempo. Até que ponto as proposições teóricas precisam ser abandonadas ou modificadas não cabe a mim dizer. Ainda acho o livro infinitamente produtivo, pelo menos para meu próprio trabalho e até para minha vida. Olhando para trás, encontro as sementes de todos os meus livros subsequentes. A série de livros que relê e recupera certas práticas marxistas e de vanguarda que se cruzam, por exemplo: “The Beach Beneath the Street”, “The Spectacle of Disintegration” e “Molecular Red”. Ou a série de livros que lêem outras teorias contemporâneas de forma camarada: “General Intellects” e “Sensoria”.

Até encontro uma conexão com os livros que escrevi no processo de me assumir como transexual: “Philosophy for Spiders”, “Reverse Cowgirl”, and “Love and Money, Sex and Death”. Há um conceito de natureza como diferença, natureza como hackeável, que prefigura o hackeamento do meu próprio corpo, a produção da diferença na e como minha própria carne.

Certamente existem conceitos que ainda considero úteis em Um Manifesto Hacker, sendo a natureza como diferença apenas um exemplo. A sua contraposição da expressão à representação, a sua alergia às identidades e aos invólucros. Isso me parece uma crítica antecipada ao ressurgimento do sentimento fascista. Ou a intuição de que a sobrevivência planetária no Antropoceno pode exigir uma superação da subordinação da produção à reprodução da mesmice da forma de propriedade. Que pode de fato haver uma técnica potencial que é mais abstrata do que, e não recuperável dentro da própria propriedade.

O que prezo mais do que a teoria neste livro é a prática, que mais tarde vim a chamar de baixa teoria (low theory). A prática da baixa teoria é a prática de fazer teoria em e com um movimento social, uma vanguarda ou um projeto comunitário de resistência minorizada. A baixa teoria pode recorrer aos recursos da alta teoria, que às vezes se autodenomina filosofia, mas que na maioria das vezes é erudição sobre filosofia. A universidade tem sido um lugar onde poderíamos conseguir empregos, mas os prêmios brilhantes de reconhecimento acadêmico não são o objetivo da baixa teoria. A baixa teoria acontece em uma temporalidade diferente, a das tendências históricas, conjunturas políticas, situações culturais, não a do sistema semestral.

Talvez o melhor sinal de que o livro ainda tem sua utilidade é que eu o considero plagiado com tanta frequência – o que acho divertido quando assume a forma de um desvio (détournement) engenhoso. De qualquer forma, fico feliz em ver que ainda fala a muitos tipos diferentes de leitores, em muitas partes diferentes do mundo. Perdi a conta do número de idiomas em que você pode encontrá-lo. É um livro que foi feito para ser hackeado.

Brooklyn, Nova Iorque, julho de 2023

*McKenzie Wark (New Castle, Austrália) é professora de Mídia e Estudos Culturais na New School for Social Research e Eugene Lang College em Nova York. Seus escritos e projetos políticos se voltam para a análise do neoliberalismo tecnológico, além de escrever sobre os diversos movimentos Situacionistas, mídia tática e movimento anti-globalização. Publicou no Brasil pela Funilaria e sobinfluencia “O capital está morto” e “Um manifesto hacker”. Também é autora de livros como “Molecular Red: Theory for the Anthropocene”, “Reverse Cowgirl”, “50 Years of Recuperation of the Situationist International”, “The Spectacle pf Disintegration” e outros, McKenzie é também DJ e amplamente vivída na cultura da música techno e seus movimentos.

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Cultura Digital: começo, meio, começo https://baixacultura.org/2024/01/23/cultura-digital-comeco-meio-comeco/ https://baixacultura.org/2024/01/23/cultura-digital-comeco-meio-comeco/#comments Wed, 24 Jan 2024 01:56:01 +0000 https://baixacultura.org/?p=15553  

No final de 2023, após quase um ano de volta do Ministério da Cultura, uma articulação de pessoas, organizações e coletivos com um histórico na Cultura Digital no saudoso período de Gilberto Gil e Juca Ferreira à frente do ministério (entre 2003 e 2010) voltou a agitar a área. Depois de quatro anos sem MinC, e mais pelo menos outros quatro com uma discussão bastante enfraquecida (apesar das tentativas de Juca no MinC de Dilma entre 2015 e 2016), agora finalmente foi possível retomar o debate sobre cultura digital.

Depois de tanto tempo, muitos desafios novos existem, a começar pelo termo: o que é cultura digital hoje? Acesso, inclusão, participação, ativismo, arte, política, comunicação, documentação, acervos, tudo isso misturado? Construção de plataformas livres para produção, circulação e preservação da cultura brasileira, ou para participação cidadã nas instâncias públicas nacionais, ou mesmo para streaming (público?) de nossas obras culturais? Criação de políticas públicas verdadeiramente coletivas e colaborativas de valorização e preservação da nossa rica diversidade cultural, com respeito e destacando nossa ancestralidade negra e indígena? Criação de planos de inclusão digital que sejam guiados por uma Soberania Digital que não ache que inclusão é dar acesso a poucas plataformas privadas de redes sociais ou submetidas à satélites de acesso produzidos por uma empresa de um magnata lunático?  Se faz ainda sentido falar em cultura digital, como defini-la hoje, e por quê? O que de fato queremos dizer hoje, e pro futuro, com cultura digital, para além dessa retomada do histórico brasileiro e da filiação dela ao MinC?

Não é preciso se estender muito em lembrar que a década de 2010 foi o período de ascensão das Big Techs como as grandes organizadoras do debate público mundial. São muitas consequências dessa mudança, especialmente para o que se chama (va) cultura digital (ou cibercultura, no meio acadêmico). Entre elas: o enfraquecimento do movimento (e da opção) do software livre como uma alternativa mais justa e segura às plataformas privadas guiadas pelo lucro com a venda dos dados;  a potencialização da desinformação no universo digital como problema central na política (e talvez na sociedade) contemporânea; a vigilância generalizada tirando cada vez a já pouca privacidade de todo o mundo; a dependência dos artistas das grandes plataformas para produzirem, circularem e guardarem suas obras; apenas para citar quatro e não usar todo este espaço para listar as transformações na internet nesta última década.

O primeiro grande encontro para discutir os novos rumos da cultura digital brasileira hoje é a 1ª Conferência Temática da Cultura Digital, realizada de forma online nos dias 24, 25 e 26 de janeiro no site Plantaformas.org com transmissão pela TV Tainã (tv.taina.net.br). O encontro é parte das atividades preparatórias da 4ª Conferência  Nacional de Cultura e tem como objetivo prático sistematizar um debate acerca da Cultura Digital para compor o Caderno da 4ª Conferência Nacional de Cultura, a ser realizada ainda neste 2024, e eleger três propostas para serem apresentadas na plenária da conferência nacional. As propostas mais votadas nesta plenária integrarão o Plano Nacional de Cultura. 

O objetivo simbólico, intelectual e astral, se podemos dizer assim, já está dito: retomada. A construção da programação foi toda colaborativa a partir de propostas e votações mediadas pela Plantaformas, criada pela Casa Preta Amazônia em software livre a partir do Decidim, usada para participação cidadã em diversos lugares do mundo. O tempo de construção das propostas, escasso – entre final de dezembro de 2023 e meados de janeiro de 2024  -, foi criticado por muitas pessoas e coletivos. A justificativa tem relação com o tempo da(s) política(s): ele só foi feito rápido assim devido a necessidade (e o desejo) de participar da Conferência Nacional de Cultura em 2024 e a dificuldade de rearticulação, entre sociedade civil e Governo, que levou boa parte de 2023. O evento foi puxado pelo que se está chamando de Rede da Cultura Digital Brasileira – este grupo de pessoas, coletivos e organizações que têm voltado a debater o tema desde 2023, como comentei no início, com a coordenação do Laboratório de Cultura Digital da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e apoio de diversas organizações e coletivos (que podem ser vistos aqui).

O tema central da conferência, proposto pela Rede de Produtoras Colaborativas, é PermaCultura Digital: Começo, meio e começo, tema apresentado na Plantaformas pela Rede de Produtoras Colaborativas e que será o da mesa de abertura, com a participação de mestres e mestras do Conselho Ancestral e representantes do Comitẽ de Governança Colaborativa da Rede da Cultura Digital. “A PermaCultura é a sistematização de saberes ancestrais para a permanência de todas as formas de vida na Terra. Entendemos que esse conhecimento, como proposta ética e metafórica para essa nova onda da Cultura Digital tem uma grande potência”, explica Fabs Balvedi, integrante da Rede. Já o “começo, meio e começo”, aspas do mestre quilombola Nego Bispo, chega para somar ao movimento a ênfase contracolonial e a ancestral que rege a Cultura Digital, nessa confluência entre tradições e transgressões que as tecnologias digitais podem promover.

“Tecnologia é mato, o importante são as pessoas”, anunciou Daniel Pádua na abertura dos caminhos da Cultura Digital brasileira na década de 2000. Tecendo por esse mesmo fio, vinte anos depois, se agora “Tecnologia é Mata, é Floresta, o que importa?”.

A programação completa (que pode ser vista aqui) tem diversas mesas com temas que vão da Institucionalização, Marcos Legais e Sistema Nacional de Cultura ao  Democratização do acesso à cultura e Participação Social, passando por Identidade, patrimônio e memória; Diversidade Cultural e Transversalidades de Gênero, Raça e Acessibilidade na Política Cultural; Economia Criativa, Trabalho, Renda e Sustentabilidade, entre outros. 

Debate sobre Permacultura Digital realizado no III Encontro SUL da Rede de Produtoras Culturais Colaborativas, realizada em Porto Alegre, com o BaixaCultura como um dos organizadores, em outubro de 2017

Publico aqui abaixo o Manifesto pensado para a Conferência, puxado por Lívia Ascava (HackLab/LabHacker) e diversos integrantes e coletivos participantes da Rede da Cultura Digital Brasileira.

MANIFESTO DA REDE DA CULTURA DIGITAL PARA A CONFERÊNCIA TEMÁTICA DA CULTURA DIGITAL 

A retomada do MinC, com a força dos movimentos que apontam suas echas para o “resgate do que é nosso”, embala também uma possível e potente nova onda da Cultura Digital. As chamadas novas tecnologias de informação e comunicação, que há 30 anos foram gestadas e paridas no Brasil inicialmente pela Comunicação e pela Ciência, Tecnologia e Inovação, quando foram apadrinhadas por Gil, no Ministério da Cultura, receberam uma outra potência. 

Naquele momento, as Big Techs ainda eram uma hydra imaginária e apostávamos que era possível enfrentar a captura que hoje assistimos, se fossemos ágeis em tecer redes distribuídas, descentralizadas e autônomas de ação, inspiradas na infraestrutura democrática da Internet, tendo como chão uma outra cultura de produção e reprodução da vida, em resistência, tesão e tensão: colaborativa, generosa, transgressora, democrática, criativa, com pés rmes em suas ancestralidades territoriais e caminhos abertos para as rupturas necessárias. Pontos e pontões de cultura foram recebidos como hardwares poderosos que somados às redes de telecentros, às casas de cultura digital, casas coletivas, redes colaborativas, aos ônibus e clubes hackers apresentariam um estilo de vida, um software contracultural, capaz de pulverizar e absorver desejos de transformação de corpos cansados da imposição neoliberal à vida. Hackatons, festivais de cultura digital, listas de email, ocupações de rua, redes de desenvolvimento de software livre, somavam-se às metodologias de contra-captura tão pulsantes quanto as aparelhagens, festas populares e o carnaval. 

O impacto que a indústria cultural, sobretudo da música e do audiovisual, sofreu com a tomada de assalto dos sistemas de distribuição peer to peer ou em redes de seus conteúdos proprietários, como o The Pirate Bay, transbordou para a comunicação que já não teria como sobreviver nem no impresso, tampouco no modelo “um para muitos”. De forma análoga, a democracia já não via como deixar de incorporar essa Cultura e técnica digital em seus processos de participação social, assim como de absorver as novas subjetividades já impressas em corpos políticos moldados nesse contexto. A velocidade com a qual as Big Techs, as máquinas de desinformação, os sistemas de Vigilância, a pandemia do covid e a ascensão da extrema direita no mundo e, especialmente no Brasil, colonizaram a Internet e complexificaram os desafios já postos, dificultaram o jogo e capturaram as atenções para essa necropolítica instaurada. 

Se, por um lado, essa conjuntura provocou um violento aborto coletivo de embriões espalhados entre coletivos, movimentos sociais e organizações de diversas natureza. Por outro, uma série de coletivos, movimentos e organizações nasceram ou mantiveram suas lutas e resistências ao longo desse tempo, garantindo uma retomada que seja fomentada e impulsionada pelo Ministério da Cultura sem uma grande dependência da máquina institucional.

Além disso, a disputa acirrada das narrativas que envolvem a cultura digital, somada a uma minoria representativa de corpos pretos, indígenas, mulheres e periféricos nas lideranças de processos, na constituição destes modos e compreensão de mundo, enfraquece a terra preta digital para um projeto cultural revolucionário. É vital que essa próxima onda seja estabelecida a partir do ponto de vista e prática de quem decide o próprio destino.

A retomada do MinC oferta para a Cultura Digital a possibilidade de uma rearticulação dessa rede, garantindo brechas para que estes movimentos, redes, coletivos e organizações se re-conheçam em encontros intergeracionais para uma consequente (re)elaboração do que é a Cultura Digital na atualidade. Quais imaginários foram plantados e colhidos ao longo destes anos? Quais estão sendo plantados hoje? Quais ervas daninhas precisam ser retiradas do terreno? Quais tradições de cultivo devem ser preservadas? Quais transgressões são desejáveis para evitar uma tendência à monocultura? Quais metodologias e tecnologias precisam ser criadas, ocupadas e disseminadas para ações de resistência na micro e macropolítica?

Nessa toada, a próxima onda da Cultura Digital, deve sim promover dentro do próprio Ministério uma retomada de programas e políticas para a Cultura Digital, que tratavam de temas como tecnologias de participação social, mapeamento e gestão da cultura, produção de indicadores, direitos autorais, pontos e pontões de cultura, redes de streaming nacionais, entre outros, mas também – e sobretudo – incluir uma capacidade de escutar, dialogar, incluir e desenhar as novas agendas para que a Cultura Digital exista no presente.

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Criação e cultura livre na era da inteligência artificial generativa https://baixacultura.org/2023/12/29/criacao-e-cultura-livre-na-era-da-inteligencia-artificial-generativa/ https://baixacultura.org/2023/12/29/criacao-e-cultura-livre-na-era-da-inteligencia-artificial-generativa/#respond Fri, 29 Dec 2023 14:57:05 +0000 https://baixacultura.org/?p=15609  

No final do 2023, publiquei um artigo chamado “Criação e cultura livre na era da inteligência artificial generativa” na revista acadêmica Aurora, da PUC-SP, no Dossiê “Inteligência Artificial: questões éticas e estéticas”[ parte 1; parte 2]. É um primeiro texto mais filosófico, em que faço uma revisão de bibliografia (acadêmica, mas também jornalística) sobre implicações estéticas e filosóficas na criação e na cultura a partir da popularização de sistemas de Inteligência Artificial (IA) generativa em 2023 como o ChatGPT. Parte do debate em torno do conhecimento e  da  cultura  livre  e  do  status  remix  da  criação  com  a  ascensão  das  tecnologias  digitais e da internet nos anos 2000 para, então, problematizar consequências do uso massivo dos sistemas de IA generativas para a criação artística hoje.

Por fim, em tempos de disputa acirrada sobre direitos autorais nas IAs generativas, busco pontuar que a exploração privada do conhecimento não necessariamente precisa ser um motivo para restringir seu amplo acesso, mas disputá-lo enquanto um comum. Aponto também para a construção de uma agenda para discutir a criação em tempos híbridos, que busque afirmar as tecnologias a partir de sua característica protética, termo usado pelo Yuk Hui num texto lançado ano passado (a imagem acima vem da versão em mandarim desse texto), já que desde os primórdios da humanidade o acesso à verdade sempre dependeu da invenção e do uso de instrumentos. Qual o tipo de criatividade que emana de um paradigma de abundância de informação, e não escassez? E qual seria um modelo jurídico que daria conta de substituir o paradigma da propriedade intelectual, baseado na escassez e na propriedade privada, por um mais baseado no amplo acesso? Nesse sentido, valeria entender a centralidade da cópia no processo de aprendizado humano para, então, compreender de que forma o ChatGPT e outras IAs generativas estão a potencializar o modo remix de criação. Se, de fato, geram pastiches a-históricos que apenas repaginam o “velho” e potencializam um “modo nostalgia” que só consegue atentar ao presente e ao passado e não ao futuro. Ou se observamos isto porque não estamos acostumados a olhar a criação sem o humano no centro e no comando do processo, o que remete novamente à necessidade de buscar respostas para a pergunta de Simondon: qual o papel que o humano pode desempenhar quando ele deixa de ser o organizador da informação?

Embora publicado numa revista acadêmica, busquei fugir do academiquês na hora da escrita. Acesso livre.

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