
No ensaio sobre a reprodutibilidade técnica há uma passagem em que W. Benjamin destaca certa transição, um processo de refuncionalização da arte [é sob este ponto de vista que o ensaio trata a questão da tecnologia, em seu papel na refuncionalização da arte e na transformação do sensorium social. Não vá esquecer disso e começar a pensar que W.B. é um pensador da web 2.0!], bem, eu dizia que Benjamin demarca a passagem em que a arte perde sua função ritual (mágica, religiosa) para adquirir autonomia enquanto campo (e se estabelecer como mercado). Uma segunda transição nasceria com a reprodutibilidade técnica da obra de arte, notadamente com a fotografia e monstruosamente com o cinema, por uma série de razões que não vêm ao caso. O que vem ao caso é a maneira como Benjamin observa toda a lenga-lenga da discussão seria o cinema uma forma de arte?. — “O esforço para conferir ao cinema a dignidade da ‘arte’ obriga (…) a introduzir na obra elementos vinculados ao culto”, Waltão aponta, com certeiro dedo.

Penso, repenso, martela em minha cabeça um “argumento” em defesa da manutenção da indústria fonográfica em seus padrões, digamos, clássicos, que ouvi recorrentemente nos debates lá no Música & Movimento: “quem é bom se estabelece!”. Quer dizer: não há nada de errado com o modelo de indústria se o gênio artístico supera a desumanidade da máquina e se estabelece, audível e visível em sua integridade. É aí que me vem certeira à mente a expressão de Benjamin, “introduzir elementos vinculados ao culto” — mistificadores, ideológicos.
O autor, enquanto fundo ideológico da indústria cultural, é um gigantesco saco sem fundo. É o elemento de culto por trás do argumento de que “quem é bom se estabelece”. Aliás, é curioso que o pensamento de Benjamin seja indissociável do surrealismo, que nos anos dourados seguiu o questionamento da ideia de autoria e identidade aberto por Lautréamont no século 19 — o que me impede de descontextualizar completamente sua expressão!
Não precisa me dizer que o gênio existe e que a criatividade existe etc. Eu tô sabendo. Só que para salvá-lo de ser um lustroso brasão no paletó da máfia indústria cultural, às vezes só é possível desinteressar-se dele. Muitas vezes, cultuar o gênio é sentar-se nos duros bancos da igreja do Capital.
[Reuben da Cunha Rocha.]
Em tempo. Caso tu tenha clicado no link pro ensaio de Benjamin, há uma imprecisão no arquivo. A primeira versão do texto (que é a disponibilizada) é de 1936, e não de 1955. Eu sei, eu sei, mas isso é importante sim!