BaixaCultura https://baixacultura.org Cultura livre & (contra) cultura digital Fri, 31 Oct 2025 19:25:41 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.0.11 https://baixacultura.org/wp-content/uploads/2022/09/cropped-adesivo1-32x32.jpeg BaixaCultura https://baixacultura.org 32 32 Informática do Oprimido – conversa com Rodrigo Ochigame, Paola Ricaurte, Rafael Grohmann e Leonardo Foletto https://baixacultura.org/2025/10/15/informatica-do-oprimido-conversa-com-rodrigo-ochigame-paola-ricaurte-rafael-grohmann-e-leonardo-foletto/ https://baixacultura.org/2025/10/15/informatica-do-oprimido-conversa-com-rodrigo-ochigame-paola-ricaurte-rafael-grohmann-e-leonardo-foletto/#respond Wed, 15 Oct 2025 18:31:55 +0000 https://baixacultura.org/?p=15943  

No dia 1 de outubro de 2025 reunimos Rodrigo Ochigame (Universidade de Leiden), autor de “Informática do Oprimido”, junto com Paola Ricaurte (Tecnológico de Monterrey), Rafael Grohmann (Universidade de Toronto) e Leonardo Foletto (Universidade de São Paulo) para discutir o livro, publicado pela Funilaria em parceria com Baixa Cultura neste 2025. O diálogo explorou as experiências históricas de informática na América Latina – desde a biblioteconomia revolucionária cubana até as redes de intercomunicação da teologia da libertação – e suas conexões com as lutas contemporâneas por infraestruturas digitais mais democráticas e justas. Abordamos também questões de memória, documentação, soberania digital e a urgência de imaginar e construir alternativas tecnológicas a partir do Sul Global.

Segue uma transcrição editada do papo, que pode ser visto na íntegra aqui abaixo no Canal do DigiLabour, coordenado por Rafael.

 

Rafael Grohmann: Boa tarde, bom dia a todo mundo que acompanha o canal do DigiLabour. Meu nome é Rafael Grohmann, sou professor da Universidade de Toronto. Estamos aqui hoje em português e espanhol para falar sobre o livro “Informática do Oprimido“, do Rodrigo Ochigame, professor da Universidade de Leiden, publicado pela editora Funilaria em parceria com Baixa Cultura. Estamos aqui para conversar com Rodrigo junto com Leonardo Foletto, professor da Universidade de São Paulo e editor do Baixa Cultura já há 17 anos, e a professora Paola Ricaurte, do Tecnológico de Monterrey. Nós quatro somos também integrantes da rede Tierra Comúm e temos feito um trabalho coletivo muito bom.

O livro “Informática do Oprimido” nasce do ensaio que Rodrigo escreveu para a Logic Magazine em 2021, chamado “Informatics of the Oppressed“, e ganhou uma edição nova, atualizada e ampliada, com toda uma parte nova sobre pensar o futuro. Acho que é um livro que conecta o passado da América Latina, muitas vezes invisibilizado, e conecta com possibilidades de futuro.

Vou passar a palavra pro Léo comentar um pouco sobre essa coleção e sobre o livro, e depois a gente passa pro Rodrigo.

Leonardo Foletto: Boa tarde, boa noite, bom dia, dependendo do lugar onde a gente está. Prazer estar aqui com vocês, muito boa companhia com Rodrigo, Paola e Rafa.

Queria comentar um pouquinho sobre como nasceu a ideia desse livro e da coleção também. “Informática do Oprimido” é o segundo livro da coleção Âncoras do Futuro, da Baixa Cultura, que é um projeto que eu mantenho há 17 anos – ano que vem vai completar a maioridade. Temos um selo editorial e publicado livros ao longo dos últimos 5-6 anos. Propusemos essa coleção junto com a editora Funilaria, que é uma editora aqui de São Paulo, para publicar livros que discutem de alguma forma esse mal-estar que temos com os rumos que a internet tomou nos últimos anos, especialmente a partir da plataformização.

Digo “nós”, ativistas da cultura do conhecimento livre, do software livre, que há muito tempo discutem e trabalham na internet e percebem o quanto a internet se transformou ao longo desses últimos anos. O primeiro livro que publicamos dessa coleção se chama “Extinção na Internet“, do Geert Lovink, professor e pesquisador holandês, diretor do Institute of Network Cultures em Amsterdam. O segundo é esse, “Informática do Oprimido”, do Rodrigo.

Conhecemos o livro a partir do ensaio inicial que foi traduzido pelo DigiLabor, pelo Rafa, e foi publicado no site do DigiLabour. Quando fomos olhar os textos que gostaríamos de publicar para essa coleção, eu e Caio Valiengo (Funilaria), que somos editores da coleção, nos deparamos com esse texto e pensamos: “acho que ele tem tudo a ver com essa discussão”, também com essa ideia de trazer uma perspectiva do Sul Global, latino-americana, sobre os rumos da internet.

Fomos atrás do Rodrigo, conversamos bastante, pegamos o texto inicial, demos uma editada, e Rodrigo escreveu uma segunda parte do livro com propostas mais concretas para a construção de perspectivas mais justas para a internet. Eu e Caio escrevemos a apresentação do livro e acabamos também trazendo alguns outros casos de perspectivas que nos fazem tentar imaginar outras possibilidades da tecnologia, especialmente da América Latina. Trouxemos casos como o Cybersyn no Chile, que é um dos casos discutidos frequentemente por quem trabalha na discussão tecnopolítica.

O livro foi lançado agora em junho aqui no Brasil, primeiramente na Flipei, que é a Feira Literária Pirata das Editoras Independentes organizada aqui em São Paulo, que foi um sucesso de público. Inclusive Rodrigo esteve presente em pelo menos uns três lançamentos aqui em São Paulo, na Flipei, na Tapera Taperá e em outros locais. Aproveitamos a estada dele no Brasil para fazer essa circulação do livro. Queremos agora também aproveitar a presença de todo mundo aqui para fazer um debate sobre algumas das ideias do livro.

Rafael Grohmann: Excelente, obrigado Léo. Agora passo a palavra pro Rodrigo para comentar um pouco sobre o livro e também, se quiser, sobre os debates em São Paulo, como foram, para quem não esteve por lá.

Rodrigo Ochigame: Olá, boa tarde a todo mundo. É um grande prazer estar aqui em conversa com pessoas cujo trabalho me inspira bastante. Vou falar um pouco do livro para o início da conversa.

Como o Léo comentou, o livro tem duas partes principais. Uma delas é um ensaio histórico sobre a história da informática na América Latina. A segunda parte é mais propositiva e contém algumas propostas mais concretas para os dias de hoje, para infraestruturas digitais mais democráticas.

Na parte histórica, o que quis fazer foi recuperar algumas experiências latino-americanas que me pareceram bastante inspiradoras e relevantes para debates que temos nos dias de hoje, por exemplo sobre regimes de visibilidade regulados por algoritmos. Esse ensaio discute como dois movimentos sociais latino-americanos – o socialismo cubano e a teologia da libertação – inspiraram alguns experimentos com informática entre as décadas de 60 e 80.

Após a revolução cubana em 1959, o novo governo nomeou uma bibliotecária chamada Maria Teresa Freire de Andrade para ser a nova diretora da Biblioteca Nacional José Martí em Havana e também para liderar o planejamento do sistema de bibliotecas e da infraestrutura de informações na Nova Cuba. Ela tinha sido uma dissidente política, tinha sido exilada por regimes autoritários anteriormente, e há muito tempo defendia o que ela chamava de uma biblioteconomia popular. Ela queria criar bibliotecas que participassem ativamente de um processo de conscientização política.

No processo revolucionário, nos primeiros anos da revolução, uma das coisas que ela e a equipe dela fizeram, por exemplo, foi criar Bibliobus – que eram ônibus que serviam como bibliotecas móveis – para tentar levar livros a partes de Cuba que nunca tinham tido nenhuma biblioteca antes. Outra preocupação que essa equipe teve foi tentar repensar que tipo de materiais são incluídos e excluídos das coleções das bibliotecas. Por exemplo, fizeram um esforço grande em tentar recuperar, preservar e indexar materiais da imprensa clandestina revolucionária da década de 50.

Todo esse pensamento revolucionário sobre bibliotecas acabou influenciando a forma que tomou o novo campo de ciência da informação em Cuba a partir da década de 60, que foi a década em que esse campo da ciência da informação, ou da informática como era chamado em alguns países, foi institucionalizado. Quando você lê alguns dos trabalhos de ciência da informação publicados em Cuba, principalmente nesse período, você vê que esses trabalhos têm ideias, até mesmo alguns modelos técnicos, que divergem tanto da ciência da informação estadunidense quanto da soviética.

A criação de uma indústria da informática em Cuba foi um projeto muito difícil, em parte por causa do embargo comercial imposto pelos Estados Unidos a partir de 1962. As pessoas em Cuba trabalhando em informática não podiam importar computadores e também não podiam importar vários dos componentes eletrônicos que eram necessários para criar os primeiros computadores.

Uma das histórias que menciono um pouco mais brevemente no livro é que a primeira equipe que tentou criar o primeiro computador em Cuba, e foi bem-sucedida no fim da década de 60, não conseguiu comprar alguns dos componentes eletrônicos necessários na Europa por causa do embargo, mas acabou conseguindo comprar no Japão com ajuda de um militante cubano de ascendência japonesa que trabalhava como comerciante em Tóquio e apoiava a revolução.

O que me chamou muito atenção é que vários dos cientistas da informação em Cuba tentaram incorporar alguns dos seus ideais sociais e políticos até mesmo nos modelos matemáticos que eles usavam para organizar informação em bibliotecas, por exemplo. Muitos dos modelos mais comuns que vinham dos Estados Unidos ou da União Soviética tinham uma lógica de acúmulo exponencial, que eles fizeram analogia com o acúmulo de capital numa sociedade capitalista, em que os materiais que eram mais visíveis ficavam mais visíveis ainda devido à importância que os modelos matemáticos davam. É uma discussão bastante análoga às discussões que temos hoje em dia sobre regimes de visibilidade na internet e regulação algorítmica.

A outra história foi um experimento que foi inspirado pela teologia da libertação. Um movimento muito formativo na história da teologia da libertação na América Latina foi um encontro em Medellín, na Colômbia, em 1968. Foi um dos momentos-chave na formação do movimento de teologia da libertação. Os bispos que participaram desse evento ficaram muito impressionados com o tanto que aprenderam sobre experiências de luta e experiências de sistemas distintos de dominação em várias partes da América Latina e do mundo.

Isso fez com que eles quisessem continuar esse processo de aprender, de criar um diálogo internacional sobre experiências de dominação em partes diferentes do mundo. Mas eles também fizeram uma autocrítica: uma conferência internacional presencial como a que tinham feito era de certa forma excludente e reproduziu uma lógica opressiva de apenas as pessoas com mais condições materiais, as pessoas mais abastadas, poderem participar, porque comprar uma passagem aérea internacional para atender uma conferência é uma barreira muito alta de participação.

A ideia que eles tiveram foi criar o que chamaram de uma rede de intercomunicação. Como isso era antes da disponibilidade da internet, eles organizaram isso pelo correio. Montaram dois centros de difusão: um no Rio de Janeiro, no Brasil, e outro em Paris, onde muitos latino-americanos moravam no exílio.

O que faziam, como uma tentativa de tentar romper com sistemas de informação controlados – essa foi a terminologia que usaram, se referindo às práticas de censura nos regimes autoritários da América Latina na época – foi deixar em aberto para pessoas ao redor do mundo mandarem por correio textos para esses centros de difusão. As pessoas podiam mandar os textos em qualquer língua e tinham que seguir algumas regras. Por exemplo, uma regra era que o texto tinha que ser curto, tinha um tamanho máximo em palavras. Outra regra é que cada relato tinha que ser um relato ou uma análise de um sistema de dominação, mas tinha que ser escrito a partir da sua própria experiência. Você não podia falar em nome da experiência de dominação que outra pessoa sofria, você tinha que falar sobre a sua própria.

Eles faziam algumas regras e qualquer texto que seguisse as regras, eles se comprometiam a traduzir em quatro línguas diferentes e mandar pros participantes ao redor do mundo de forma gratuita. Estavam tentando criar uma rede de comunicação que tinha esse princípio, essa forma horizontal, em diálogo com o trabalho em pedagogia crítica de Paulo Freire, que era um interlocutor dessa rede.

Eles até pensavam que seria uma nova fase da pedagogia freiriana: em vez de você ter uma conscientização com intermediários, essa rede de intercomunicação poderia facilitar uma interconscientização direta entre os oprimidos. Esse projeto foi bastante ativo, recebeu muitos textos.

Um dos motivos pelo qual o livro se chama “Informática do Oprimido” é que o próprio Paulo Freire foi um dos participantes dessa rede. Junto com um grupo de educadores na Guiné-Bissau, contribuiu um texto para a rede de intercomunicação. Mais ou menos ao mesmo tempo, os primeiros trabalhos técnicos sobre o TCP – que formam a base do protocolo TCP/IP que forma a base da internet moderna – usaram frases muito parecidas: “internetwork”, “rede de intercomunicação”, quase a mesma frase.

Pouco tempo depois, esses próprios participantes começaram a refletir sobre a experiência que tiveram e a relação que esse projeto teve com a internet, e também foi parte do que quis escrever.

Um dos motivos de ter escolhido essas histórias especificamente para contar foi que tentei recuperar experiências que me pareceram particularmente relevantes a discussões que temos agora sobre regimes de visibilidade, poder, justiça na internet, principalmente na incorporação de valores sobre o que é e o que não é relevante, o que merece ou não merece ter mais visibilidade em algoritmos. Quis mostrar que existem tradições de pensamento crítico que até engajam com aspectos técnicos de organização e indexação de informações, que já existiam na América Latina desde a década de 60. Essa é mais ou menos a ideia da parte histórica.

Para o livro, também escrevi uma parte nova, completamente original – no sentido de que é um texto novo, não de que as ideias, as propostas contidas nele são necessariamente originais. Muitas delas são inspiradas tanto em experiências históricas quanto em experiências contemporâneas de movimentos sociais. São propostas mais concretas para os dias de hoje, para infraestruturas digitais democráticas.

Uma das propostas, por exemplo, é incentivos fiscais para tecnologias não extrativistas. Acho que dispositivos que têm software proprietário ou aplicativos comerciais baseados em economias de vigilância, que são impossíveis ou muito difíceis de desinstalar, ou que têm obsolescência programada, esse tipo de dispositivo teria que ser desencorajado com estruturas regulatórias e fiscais, por exemplo impostos seletivos como no caso de tabaco e álcool.

A proposta de incentivos fiscais para tecnologias não extrativistas, por exemplo baseadas completamente em software livre ou em padrões abertos, ou com desenhos modulares para facilitar o reparo e a reciclagem, deveriam ser incentivados com medidas até mesmo fiscais.

Também tem propostas sobre centros comunitários de dados, sobre cooperativas autogestionadas de software, sobre governança democrática em plataformas, sobre economia solidária em serviços digitais, sobre alfabetização digital crítica, e sobre algumas possíveis linhas de pesquisa em ciência da computação de interesse público. Tentei articular como pude algumas dessas propostas.

Principalmente depois desses eventos, debates e encontros no Brasil, em São Paulo, até penso que agora conheço várias iniciativas muito inspiradoras que gostaria de ter citado no livro, mas ainda não conhecia quando escrevi. Essa é uma das coisas muito inspiradoras para mim em estar publicando esse texto: tem me colocado em diálogo com muitas pessoas e coletivos que estão fazendo trabalhos que me inspiram bastante, que não conhecia antes. Para mim isso tem sido uma grande alegria.

Rafael Grohmann: Excelente, obrigado Rodrigo. Vou passar a palavra para a Paola começar com as suas provocações, críticas, comentários. Depois eu aviso pro pessoal que está aí no chat: mandem suas perguntas, seus comentários, que a gente vai ler daqui a pouco.

Paola Ricaurte: Bueno, en primer lugar muchísimas gracias por este espacio de conversación. Digo que los libros son un pretexto para iniciar estas conversas. Y bueno, qué privilegio tener el pretexto de este hermoso libro de Rodrigo para conversar. Agradecer siempre la convocatoria de Rafa, siempre abre esta posibilidad de entablar estos diálogos a lo largo de todo el continente y entre continentes. Creo que es un trabajo maravilloso que hace Rafa de conectarnos. Y en particular este ejercicio que quisimos hacer hoy en portugués y español, mostrando que podemos hablar en distintas lenguas pero encontrar la manera de entendernos. Creo que eso también hay que ponerlo allí.

Y bueno, también reconocer el enorme trabajo que está haciendo Leo, dos décadas promoviendo la cultura libre, y promoviendo la cultura libre en particular comprometida con el proyecto latinoamericano de pensamiento y de acción. Creo que a veces se nos olvida que llevamos mucho tiempo en esos modelos de mundo que pensamos que son los que deben ser, los justos.

Tengo algunos comentarios. Primero contar cómo conocí a Rodrigo. Conocí a Rodrigo cuando él estaba protestando entre las universidades de élite y los fondos corporativos y militares. Había habido unas semanas antes noticias acerca del papel de Kissinger, digamos, interviniendo directamente, y cómo todo este nuevo momento que estamos viviendo alrededor de la inteligencia artificial venía desde allí, desde esos fondos. Cuando yo lo escuché hablar haciendo este recuento histórico, dije: “¿quién es esta persona maravillosa?” Y bueno, desde allí le comencé a seguir los pasos, después coincidimos en otros espacios.

Pienso que Rodrigo hace un trabajo importantísimo, no solamente con este libro sino con todo el trabajo previo que Rodrigo ha hecho para denunciar estos vínculos entre el capital, el poder y la producción de conocimiento. También mostrar el valor de traer las referencias históricas al presente para que entendamos de dónde vienen las cosas que están pasando. Y creo también la otra parte que está de alguna manera explícita en la labor que hace Rodrigo es el trabajo de una academia crítica, una academia que asume la responsabilidad de denunciar estas configuraciones del poder que nos atraviesan desde lo más cotidiano, desde lo más íntimo, hasta obviamente las configuraciones macro geopolíticas.

Comenzando con esa anécdota, yo creo que este libro lo estaba esperando desde hace mucho tiempo. Desde cuando compartía Rodrigo esta idea que estaba escribiendo, luego me tocó de las maneras de la vida, por los casos que escoge, que son cercanos a mi experiencia de vida. He ido a Cuba, he ido los últimos 25 años casi cada año. He visto cómo a pesar de tener todo en contra surgen y existen proyectos. Y eso creo que nos cuestiona a las personas que estamos fuera de esos contextos.

Y luego el caso de la teología de la liberación, porque yo soy también una hija de la teología de la liberación. A mí me tocó hacer la secundaria en una escuela marcada por la pedagogía freiriana. Alfabetizaba en una iniciativa que teníamos allí de educación popular. Entonces el libro me atraviesa de muchas formas.

Pero quiero comenzar la conversación destacando dos puntos fundamentales de pensar. La información como un elemento fundamental para la constitución de poderes. Las infraestructuras de la información, los mecanismos a través de los cuales esa información fluye, quiénes controlan esos flujos y para qué propósitos sirven, siguen siendo absolutamente vigentes como Rodrigo lo muestra en este libro. Y además hoy en particular, pienso, son todavía más visibles cuando vemos regímenes autoritarios, en particular ahora, queriendo controlar estos regímenes de información. Y también asociados con una política de exportar este tech stack para que sea dominante para todo el planeta. Eso siempre ha ocurrido, pero creo que hoy en particular es mucho más visible.

Esto también permite pensar estas necesidades de pensar alternativas, de las que Rodrigo habla en el libro, para que no nos casemos con la idea de que lo que tenemos hoy es inevitable y no hay ninguna posibilidad de transformar la realidad hacia el mundo que queremos ver. Y lo veo ahí en el chat, hay personas que están participando en esas iniciativas. Veo que está Tierra Común, aquí en México, una cooperativa. Veo personas aliadas que están trabajando desde sus distintas trincheras en distintas partes del mundo, apostando por esos otros proyectos alternativos.

Que siempre digo, no es que sean sencillos, no es que sean fáciles de poner en el mundo, de mantener y de sostener. Pero están dando justamente esa pelea frente a los marcos que cada vez se cierran – los marcos financieros, fiscales, narrativos – que se cierran para apoyar esta única narrativa o este único destino manifiesto que tenemos como sociedad y también como modelo de desarrollo tecnológico.

Entonces pensar en volver a traer esa historia, creo que es importante. Poner otra vez en la mesa que ha habido siempre una disputa sobre la información, esta disputa sobre lo alternativo, que Rodrigo nos muestra con estos ejemplos. Que hay formas de articular que no pasen por las infraestructuras dominantes, que hay formas de articularse que no tienen que estar capturadas por esas infraestructuras.

Ahí voy al segundo comentario de estas intranets y vuelvo a estas redes interconectadas sin mediadores, el ejemplo de Rodrigo. Y que a mí me parecen presentes igual en el caso de Cuba, porque cuando uno va a Cuba, ha estado siempre restringida en términos del acceso a internet. Pero algo que a mí me fascinó fue la gente armando intranet, operando, compartiendo contenidos. Y bueno, haciéndolo. No eran contenidos del mundo. No, eran series, música, videos. No, hay un acceso restringido a internet. Pero la gente, a pesar de estas configuraciones en términos de conectividad e infraestructura que eran sumamente limitantes, consiguieron maneras alternativas de organizarse para compartir esos contenidos.

Y creo que ese ejemplo de Cuba del presente no ha sido tan estudiado, pero para mí siempre fue una cosa que siempre me admiró: las capacidades técnicas de la gente, sobre todo de los jóvenes, para mantenerse conectados al margen de lo que ocurriera con las infraestructuras, con internet. Me pareció fascinante.

Después lo hemos visto evolucionar, hemos visto cómo las personas también en Cuba, cuando comenzó a llegar más acceso a internet, comenzaron a instalar sus propias antenas para conectarse directamente, y que esas antenas fueran repetidoras para que personas en un barrio, por ejemplo, tuvieran acceso. Y esas eran iniciativas de personas que armaban sus antenas, o arman sus antenas todavía, de maneras que responden a esta manera de estar en el mundo en Cuba, que es “inventar y resolver”. Los cubanos siempre hablan de “inventar y resolver”.

Y que ahora veo con la crisis energética que también se ha traducido, por ejemplo, en que las personas, las familias, están instalando sus propias fuentes de energía para de alguna manera remediar los cortes de luz que están siendo tan extensos.

Con este ejemplo lo que quiero hacer es volver un poco a la idea de que en los distintos contextos que hemos vivido en América Latina ha habido una búsqueda por la autonomía y la búsqueda por alguna forma de escapar a nuestras condiciones que han sido siempre adversas para la mayoría. Y que también eso ha permitido la emergencia de un cierto sentido y una cierta conciencia sobre las posibilidades que tenemos para pensar estos proyectos alternativos.

Con estos dos ejemplos quisiera regresar con Rodrigo para seguir conversando. Y yo creo que algunas de las cosas que quisiera que recuperaras, Rodrigo, si pudieras seguir hablándonos de estas otras experiencias que a lo mejor no pudiste meter en el libro. Eso que también está presente en el prefacio, que es una frase de Paulo Freire acerca de estos inéditos viables, que contra todo pronóstico, que contra toda adversidad, siguen siendo posibles estos inéditos.

Y pienso en esto porque las personas que trabajamos con personas jóvenes creo que tenemos una responsabilidad de mostrar las posibilidades de estos otros mundos frente a la crisis de la esperanza que existe. Y bueno, Paulo Freire también habló de esta pedagogía de la esperanza. Yo creo que eso también es algo que tenemos nosotros como academia crítica, la responsabilidad de hacer. O como personas que estamos interesadas en ver estos otros proyectos prosperar: que mostremos estos inéditos viables como posibilidades y como esas grietas que se pueden ir abriendo en el sistema para estas otras formas de habitar, estas otras formas de comunicarnos, estas otras formas de producir conocimiento y desarrollar tecnología.

Entonces, Rodrigo, que nos sigas hablando.

Rafael Grohmann: Eu queria aproveitar para fazer um pequeno merchandising deste quadrinho que a gente lançou há pouco tempo. Chegou aqui em inglês para mim, tem português aí em São Paulo, em breve vai ter em espanhol, tem digital, chamado “Outros Mundos Tecnológicos São Possíveis“. Fizemos o primeiro volume com o núcleo de tecnologia do MTST, Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, e a ideia é cada volume ser um projeto diferente da América Latina para mostrar para os meus colegas gringos daqui de Toronto que tem outros mundos tecnológicos para além do norte global, para além do Vale do Silício.

Vou aproveitar para fazer um comentário, talvez o Léo queira fazer depois, e Rodrigo responde tudo. Tem algo que o livro e o ensaio já tinham me feito pensar muito: como a gente conhece ainda muito pouco da nossa própria região. Isso mesmo no caso mais conhecido e repetido entre nós, que é o Cybersyn, às vezes avança pouco para além da página dois. Precisou vir o Morozov para poder ser popularizado mais, esquecendo o próprio trabalho que a Eden Medina tinha feito há mais de 10 anos.

Rodrigo coloca algo que só depois de muito tempo é que Maria Teresa Freire de Andrade em Cuba teve um verbete na Wikipedia. Isso tem me feito pensar nessa questão da memória, no arquivo, na documentação desses projetos que a gente faz. Acho que é uma tarefa coletiva nossa enquanto pesquisadores, enquanto Tierra Común, enquanto educadores, de pensar num arquivo de passado e de presente. Porque vários de nós temos trabalhado com vários coletivos, e Léo está aí, como eu falei, 17, quase 20 anos. Às vezes a gente se sente meio tentando reinventar a roda, mesmo sem querer, porque você começa a tentar recuperar o que outra pessoa já fez e não tem muita sistematização sobre tudo isso.

Agora que o Léo está em emprego novo também, o desafio é pensar em formas de uma documentação coletiva disso que tem sido feito. Como nossos estudantes também conhecem pouco sobre toda essa história.

O segundo comentário é: para mim, a relação entre a primeira e a segunda parte do livro é que não só é uma proposta de políticas públicas, mas uma proposta de engajamento comunitário, coletivo, das pessoas trabalhadoras e cidadãs. Eu vejo como os coletivos hoje eles estão continuando aquela história ou atualizando aquelas histórias mesmo sem saber. O MTST, quando está fazendo esses projetos, eles nem sabiam de Maria Teresa Freire de Andrade às vezes. E como essas conexões entre passado, presente e futuro também são importantes, de fazer essas conexões.

E ao mesmo tempo essa força crítica, criativa, que Paula vem falando há muito tempo com outros colegas – Ignacio Siles, Edgar Gómez Cruz – de algo que não seja romantizar essas experiências, mas de mostrar uma potência que muitas vezes não se vê.

Aqui semana passada eu organizei um evento e veio um representante do MTST. Meus colegas canadenses ficaram espantados e impressionados com uma força de mobilização que, ao menos aqui no Canadá, não tem. Essa coisa mesmo: aqui até o sindicato dos entregadores e motoristas reclama que eles não conseguem mobilizar. A gente costumo dizer que no Brasil mobilizar a gente não é problema. A gente de um dia pro outro reúne 60, 70 pessoas. Os problemas vêm de outras ordens.

Mas eu acho que isso me incomoda muito quando a gente ainda vê editores do norte a dizer que as coisas que vêm dos nossos lugares são coisas específicas, são coisas muito nichadas, como se isso não oferecesse lições globais. Acho que essa é também um aprendizado do livro.

Passo a palavra pro Léo se ele quiser comentar mais algumas coisas.

Leonardo Foletto: Beleza. Bom, dá para pegar essa bola, porque acho que estou envolvido diretamente nesse processo de documentação de experiências “alternativas” de tecnologia há um bom tempo. Via Baixa Cultura, 17 anos, mas via outros coletivos de hackerspaces e tudo mais por aí também.

De fato, muitas vezes a gente se vê reinventando a roda, sabe? Dentro do movimento de software livre, por exemplo, no Brasil, que já foi muito forte – um dos mais fortes do mundo no final dos anos 2000, início dos anos 2010 – onde a gente tinha um dos principais encontros de software livre do mundo realizado no Brasil, em Porto Alegre, o FISL. Onde a gente tinha dentro do governo uma série de iniciativas que alfabetizaram digitalmente uma série de pessoas de todos os lugares do Brasil a partir dos Pontos de Cultura, onde as pessoas tiveram o primeiro acesso com ferramentas livres e não com ferramentas proprietárias.

Isso foi descontinuado a partir de uma série de governos que a gente teve aqui no Brasil. Então sempre comento que é muito singular que, logo depois da saída da Dilma como presidente aqui no Brasil, na primeira semana que Michel Temer assumiu, ele refez um acordo com a Microsoft, que ajudou a enterrar os projetos de software livre. Hoje a gente sabe que Michel Temer é um dos lobistas das big techs

Por isso também acho que nós quatro aqui, dentro da universidade, estamos tentando justamente trabalhar com essa perspectiva crítica. E isso passa pela documentação, pela tornar conhecido projetos de resistência. No Brasil a gente tem vários projetos de resistência. Acho que Rodrigo, quando esteve no Brasil, viu alguns projetos, alguns que ele já conhecia, viu outros também. Acho que a presença dele aqui fomentou uma série de debates de diversos coletivos, desde o próprio Núcleo de Tecnologia do MTST, que é um dos principais mais ativos aqui no Brasil fazendo formações, buscando uma soberania popular digital, até outros ligados ao software livre com menos escala, mas que têm feito sistemas e projetos muito interessantes por aí.

Há muita gente ainda trabalhando em projetos como esses. A rede de produtores culturais colaborativas que está há 15, 20 anos trabalhando com produção cultural em software livre; a rede Mocambos, que é uma rede organizada aqui no interior de São Paulo em vários povos quilombolas e que tem uma rede de data centers comunitários (Baobáxia) há 20 anos (data centers muito precários, mas que de alguma forma conseguem discutir e hospedar arquivos multimídia dentro dessas comunidades). Hoje muito se fala em data centers, “a invasão” dos data centers por conta da demanda de IA… mas podemos olhar para iniciativas que estão ocorrendo há muito tempo no Brasil, ainda que de forma precária, fazendo isso de forma comunitária, gestão coletiva com código aberto, hospedando às vezes o próprio código dentro das suas plataformas.

Acho que um dos nossos desafios é justamente tornar conhecidos esses projetos, entendendo que muitas vezes eles não vão conseguir ter escala – como muitas vezes a gente até torce – porque são projetos que têm a sua singularidade. E que são mais ligados às vezes a uma discussão de autonomia mais do que soberania: não querem e não vão conseguir ser escaláveis. Mas saber que existe um data center comunitário num povo quilombola no interior de São Paulo, saber que existem plataformas, redes federadas de Mastodon, diversos servidores aqui no Brasil, ajuda a nos inspirar – seja pessoas, seja professores, seja acadêmicos, ativistas – a fazer também em nossas comunidades. Acho que esse é um ponto importante. Isso não quer dizer que não deva haver escala; sim, deve, e há tentativas de redes como a de soberania digital de tentar incluir essa pauta dentro do governo federal brasileiro, que muitas vezes fala em soberania, especialmente desse ano, mas na prática continua extremamente dependente de serviços proprietários de big techs sediadas nos Estados Unidos. Existe um descompasso entre o discurso e a prática evidente também.

Acho que são dois caminhos válidos: primeiramente, fazer essa discussão dentro de governos e, ao mesmo tempo, fomentar as discussões autônomas dentro das comunidades onde elas existem. E eu acho que o nosso trabalho muitas vezes, da documentação, de projeto de pesquisa, também é unir esses pontos e fomentar, a partir da união e da documentação disso, outras ideias, outros projetos, e fomentar autonomia de outros grupos. Acho que esse é um ponto fundamental que eu queria comentar também, e que acho que o livro do Rodrigo dialoga muito com isso.

Porque ele mostra para a gente redes como a de intercomunicação da teologia da libertação, que é muito importante e eu (creio que muita gente) desconhecia. É um processo super interessante que trabalhou com uma tecnologia, uma low-tech, uma tecnologia de baixo nível, num processo de comunicação muito interessante. Acho que também tornar conhecidos esses projetos são importantes. O livro do Rodrigo faz isso, também no caso de Cuba, e com isso faz a gente perceber que existem outras formas de catalogar livros em biblioteca que não apenas as dominantes dos Estados Unidos e da Rússia.

Então o primeiro ponto é reforçar a importância dessa documentação como uma estratégia de fomentar a autonomia e também a soberania em escala dentro de diversos lugares do planeta, no momento onde isso é crucial, onde o discurso da soberania (ou autonomia) finalmente se tornou um discurso fundamental para todo mundo.

Um segundo ponto é que nós, enquanto universidade, temos o papel de justamente entende e fazer uma alfabetização digital crítica. Mostrar, enquanto professores, ativistas, que por mais difícil que seja, existem alternativas. Existem universidades que estão utilizando serviços de videoconferência que não são das big techs, como a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que usa um serviço a partir de código aberto construído dentro da própria universidade em apoio com outros coletivos de outros lugares do planeta.

Esse é um ponto: dizer que acessar a internet é além de acessar as big techs. Parece um clichê falar isso, mas isso é cada vez mais necessário em tempos onde a IA está predominando, está entrando em todos os celulares das pessoas ao redor do planeta. Só ano passado, o ChatGPT foi o aplicativo mais baixado do Brasil. Então vocês imaginam as consequências que o ChatGPT, com mais de 50 milhões de downloads no Brasil, 50 milhões de pessoas usando ChatGPT, no mínimo. Imagina as consequências que isso tem por uma alfabetização digital não crítica, o uso equivocado que vê uma IA generativa, como o sistema do ChatGPT, como algo mágico que resolve coisas sem esforço. A gente tem uma demanda muito importante e urgente de tentar alfabetizar criticamente sobre isso.

Outro ponto essencial nosso enquanto universidade, academia, é o de tentar fomentar a crítica. Todo mundo que me conhece sabe que eu sempre uso a ideia de de tentar um pouco abrir “as caixas pretas”, desmistificar e desvelar um pouco como são feitos esses sistemas. Mostrar como são feitos é um primeiro passo para a gente tentar fazer diferente. Acho que esses dois movimentos estão sendo feitos em paralelo. Então mostrar como é feito para depois fazer, mostrar as práticas de resistência.

Acho que Rodrigo também – e eu queria, aproveitando, já ouvir dele também – além de ser um historiador da tecnologia, ele também conhece uma série de ferramentas e de sistemas que mostram como é possível fazer isso no dia a dia. Então ele pode falar um pouco do uso dele crítico de sistemas, outros sistemas que provavelmente a maior parte das pessoas que estão nos ouvindo não conhece: sistemas de busca, sistemas de organização de dados.

Rodrigo Ochigame: Bom, muito obrigado a todos vocês – Paola, Rafa e Léo – por essas reflexões riquíssimas. Vou tentar responder a todos mais ou menos ao mesmo tempo, costurando algumas ideias que me vieram.

Eu não sabia que Paola tinha me conhecido nesses eventos de militância e protesto contra o patrocínio militar e comercial nas pesquisas. Foi muito interessante para mim ouvir essa anedota. Eu acho que comecei a minha carreira como estudante pesquisador em ciência da computação, antes de virar historiador e antropólogo, e um processo que foi muito formativo para mim foi notar o quanto as agendas de pesquisa em ciência da computação eram determinadas por esses patrocinadores militares e comerciais. E que até mesmo ideias que pareciam muito fundamentais em vários campos de pesquisa dentro de computação eram baseadas em escolhas que pouco tinham… que não eram completamente determinadas por motivos intelectuais, mas que se alinhavam aos interesses desses patrocinadores de pesquisa.

Acho que os sistemas de busca e recomendação são um bom exemplo disso, em que as prioridades da indústria de anúncios, de propaganda, determinaram muitas das métricas e benchmarks para avaliar e guiar o desenvolvimento desses tipos de sistemas.

Ligando um pouco ao comentário do Rafa, eu acho que não acabei estudando essas histórias latino-americanas porque eu sou latino-americano. Acho que primeiramente eu estava interessado em poder pensar a computação de forma crítica, e algumas dessas experiências latino-americanas simplesmente foram o lugar onde eu encontrei algumas das experiências e reflexões mais sofisticadas e profundas em tentar me ajudar a pensar a computação de forma crítica. O meu interesse não foi primeiramente por um interesse regional específico, mas foi numa tentativa de tentar encontrar ideias que me ajudassem a pensar a computação em termos de problemas mais globais.

E eu acho que isso continua nas interações que tenho agora em aprender com experiências contemporâneas. Nessa visita a São Paulo agora, o Núcleo de Tecnologia do MTST, que acabou de ser citado, foi um espaço riquíssimo de experiências e debates. Na minha opinião tem algumas das teorizações e análises mais sofisticadas sobre a computação que eu já ouvi de qualquer pessoa ou grupo no mundo.

Então acho que isso se alinha com o que vocês comentaram da necessidade de recuperar várias dessas experiências da América Latina e de outras partes do Sul Global, não só como um exercício histórico de recuperação de memória regional, mas também porque essas experiências históricas têm muitas ideias que são necessárias para pensar informação de forma mais crítica nos dias de hoje.

Eu também concordo que nós apenas estamos começando a aprender sobre algumas dessas experiências. Por exemplo, pela pesquisadora Lise Jansen, recentemente eu aprendi sobre alguns casos – ela ainda não publicou, mas está escrevendo agora. Aprendi sobre algumas outras experiências muito importantes da América Latina que eu também não conhecia, coisas como o Modelo Mundial Latino-Americano, que foi desenvolvido em Bariloche, na Argentina, como uma alternativa crítica aos supostos modelos globais que estavam sendo desenvolvidos na década de 70 para tentar simular futuros possíveis para o mundo com base em dados demográficos, econômicos e políticos.

Também alguns dos modelos de experimentação numérica do grupo do matemático Oscar Varsavski, que operou tanto na Argentina quanto na Venezuela mais ou menos no mesmo período. Era uma tentativa de usar alguns dos primeiros computadores da América Latina para pensar caminhos políticos possíveis, em parte influenciadas por análises da teoria da dependência.

Então acho que muitas dessas experiências que fizeram muitas coisas necessárias para pensar o mundo, o futuro do mundo em geral, e caminhos políticos possíveis de forma crítica foram desenvolvidas com muitos obstáculos: obstáculos de regimes autoritários, obstáculos de inimigos geopolíticos tentando sabotar esses projetos. No caso de duas das histórias do livro, tem o embargo comercial dos Estados Unidos, tem o fato de que o Vaticano se opôs ao projeto dos teólogos da libertação. Nesses projetos que acabei de citar, um golpe militar impossibilitou a continuação do trabalho do Modelo Mundial Latino-Americano em Bariloche. Também vários obstáculos políticos dificultaram o trabalho dos modelos de experimentação numérica.

Eu acho que um dos motivos para nós termos que resgatar várias dessas experiências, que estamos apenas começando a aprender, é exatamente o que vocês comentaram: de não ter que reinventar a roda toda vez. Porque muitas das coisas que essas experiências aprenderam são coisas que qualquer tentativa de pensar criticamente sobre esse tipo de modelo vai ter que concluir, e isso leva tempo. Então o fato dessas iniciativas serem historicamente repetidamente interrompidas ou sabotadas, ou enfrentarem obstáculos que interrompem um desenvolvimento mais contínuo, é uma das coisas que esse trabalho de recuperação, de indexação e arquivamento, pode tentar intervir.

Sobre as experiências mais recentes de controle de informação na internet em Cuba, é claro que, ao meu ver, esse regime de acesso restrito à internet não é particularmente inspirador para mim, da mesma forma que algumas dessas histórias mais do início da formação de um campo de ciência da informação em Cuba foram. De forma alguma eu quero romantizar a experiência de informática que Cuba teve. Certamente a organização de internets e de formas informais de circulação de informação sob um regime de acesso restrito são experiências com as quais nós podemos aprender também.

Mas eu acho que Cuba enfrentou um dilema muito complicado: se Cuba tivesse um acesso completamente irrestrito à internet, certamente várias operações de agências de inteligência ou operações militares para tentar avançar um golpe de estado na ilha, principalmente patrocinados pelos Estados Unidos, certamente aconteceriam. E é claro que, como mecanismo de defesa a isso, um regime de censura não é uma solução muito desejável. Mas eu acho que é mais ou menos esse dilema que Cuba teve que enfrentar num período mais recente.

Acho que parte do problema é que sistemas que possam regular os regimes de visibilidade de uma forma que dê menos vantagem para atores engenheirados, que não tenham sido desenhados para as prioridades da indústria de propaganda, de certa forma ainda não estão, ainda não existem de forma a estarem prontos para um uso em grande escala. E eu acho que essa é uma das direções de pesquisa crítica que são muito necessárias.

Para comentar um pouquinho sobre o que o Léo mencionou: um dos meus interesses de pesquisa atual, também inspirados por essas experiências históricas que documentei no livro, é tentar desenvolver sistemas de busca e recomendação que sejam baseados em outros princípios. Eu acho que, apesar desses sistemas ainda não existirem, vários dos ingredientes técnicos para o desenho desse tipo de sistema agora estão disponíveis.

Existem alguns projetos pequenos, por exemplo, para desenhar novos sistemas, sistemas alternativos de busca, que estão começando a ser desenvolvidos. Um deles, por exemplo, é um sistema que se chama Marginalia, que é um buscador que tenta dar mais visibilidade para conteúdos não comerciais na internet. Então um dos indicadores que usa, por exemplo, é a quantidade de propagandas e trackers numa página, e ele usa isso para penalizar a visibilidade de uma página ou de um site. Então tenta dar mais visibilidade às partes da internet que são menos dominadas por propagandas e trackers.

Outro sistema nessa direção chama Stract, que também é um sistema de software livre, código aberto, que tenta permitir uma certa customização do que eles chamam de “optics”, de óticas ou lentes de busca. Como usuário, você pode programar uma ótica ou uma lente. Com isso, você tem alguma autonomia sobre as lógicas de priorização de partes diferentes da web em que você está buscando.

Um dos grandes desafios com sistemas desses é que ainda requer bastante conhecimento técnico em poder escrever o código que configura uma ótica ou lente. Então uma das coisas em que estou trabalhando agora com uma colaboradora minha, Crystal Lee, é tentar desenhar interfaces que permitam usuários que não têm conhecimento técnico para escrever código poderem configurar essas óticas ou lentes em sistemas como o Stract.

Enfim, então acho que essa é uma das múltiplas direções de pesquisa mais crítica, de pesquisa em ciência da computação, que acho que são necessárias para a construção de uma infraestrutura mais crítica, mas que nós ainda não temos.

Rafael Grohmann: Excelente. Vou ler aqui alguns comentários que estão no chat.

Guilherme Cavalcante diz: “A discussão me fez pensar nos diálogos entre a luta por infraestruturas tecnológicas outras no continente e a luta pela comunicação livre e popular no continente, jornalismo popular e comunitário.” Acho que tem aí também uma história muito importante.

Marciel, professor da USP, desejando abraços.

Walter Lippold perguntando a diferença entre letramento digital e alfabetização digital crítica. Acho que tem aí também a tradição latino-americana de educomunicação, muito baseada em Paulo Freire, que vai muito além de digital literacy, media literacy e data literacy. Acho que essa questão também é muito importante.

As políticas públicas no governo Lula – Pontos de Cultura, Casa Brasil – se estão agora dispersos ou inativos.

Elane também fala da rede Mocambos, da Casa de Cultura Tainã de Campinas como pioneiras, e os encontros de conhecimento livre promovidos pela Gesac, Pontos de Cultura, que foram fundamentais.

Danilo fala que a experiência cubana parece que existe imaginação, uma dificuldade de acesso aos materiais, e hoje parece o inverso: acesso aos materiais, mas imaginação enfraquecida.

E Elane também pergunta se tem algum repositório comum para compartilhar essas iniciativas, ações, projetos. Indicaria desde já o site Baixa Cultura, que tem aí uma entrada para isso.

Vamos fazer uma rodada agora para considerações finais. Vocês querem comentar alguma coisa? Querem falar algo? Querem divulgar alguma iniciativa?

Paola?

Paola Ricaurte: Bueno, creo que nos dejan esta idea del repositorio, esta idea de hacer visibles estas iniciativas, estas personas, pensadoras también de la historia de América Latina. Y creo que, como dice Rodrigo, no es que haya buscado específicamente en América Latina, pero es que en realidad yo estoy convencida de que América Latina ha sido un semillero de ideas desde siempre, ha sido un semillero de ideas y de propuestas. Que es cierto, no se conocen en otros lugares, pero a lo mejor lo problemático es que, como comentaba hace un rato, creo que Rafa, no hacemos que esa historia, esa historia de larga duración, se haga presente en las reflexiones y en las iniciativas de los movimientos de hoy.

Creo que a mí me inspiro, al menos en México, digamos, he pasado, soy de Ecuador, que estas largas duraciones realmente son… entienden esa necesidad. O sea, no es una cosa coyuntural. Estamos aquí, bueno, no, nosotros… estos movimientos están resistiendo más de 500 años y son los mismos que están resistiendo hoy, por ejemplo, aquí en México por la defensa del agua, la vida y el territorio.

Entonces creo que esas experiencias de lucha de larga duración también nos tienen que hacer pensar que cuando tenemos contextos adversos como el de ahora, que son cíclicos – como decía Pepe Mujica – que nos hagan pensar que cuando tenemos estos contextos adversos que borran todo, borran el archivo, borran la memoria, borran todas las cosas que habíamos avanzado, nos tenemos que rearticular porque tenemos que volver a reconstruir. Y así es la historia. Pero creo que ver esto en esa larga duración nos ayuda a entender también cuál es nuestro momento actual.

Rafael Grohmann: Rodrigo, Léo?

Leonardo Foletto: Bueno, muchas gracias, obrigado pelo convite, pela conversa que a gente está tendo aqui. Muito legal estar podendo discutir isso dentro da universidade e dentro de uma perspectiva ativista.

Parabéns mais uma vez pro Rodrigo pelo trabalho. Acho que o livro tem circulado muito bem aqui. A gente está em negociações aí para fazer uma edição em inglês também. Esperamos que até o ano que vem a gente consiga fazer essa versão, porque o artigo, o ensaio que Rodrigo escreveu, que é a primeira parte do livro, foi escrito originalmente em inglês. Teria que traduzir a segunda parte e mais alguns outros elementos, como o prefácio e a introdução.

Uma das pessoas que está aqui é uma das autoras de um dos próximos livros da âncoras do Futuro, Paola.  Ela está escrevendo junto com outros dois autores um livro que dialoga e complementa essa discussão de imaginários e alternativas tecnológicas, a partir também, não por acaso, da América Latina. Esse é o que a gente pode antecipar. A gente tem lançado um livro uma vez por ano, que é vendido nas livrarias em vários lugares, mas também é disponibilizado em PDF gratuitamente via licença Creative Commons não comercial.

E bom, queria então dizer que a gente está à disposição para discutir e trabalhar com essas ideias dentro da universidade, fora dela também. Faço parte de uma coalizão chamada Direitos na Rede aqui no Brasil, e dentro dessa coalizão a gente tem um GT que se chama Laboratório de Experimentações Tecnopolíticas, onde a gente tenta colocar a mão na massa de muitas dessas ideias alternativas de construção de novas tecnologias. Acabamos de fazer no último sábado uma oficina de instalação de um data center comunitário num espaço aqui em São Paulo, onde a gente está no mutirão de colocá-lo em pé, de fazê-lo funcionar, e de que as pessoas possam guardar seus arquivos ali. Justamente colocamos um problema para poder desenvolver nos próximos meses.

O nosso GT também vai publicar uma revista chamada Tocaia, uma revista impressa no final desse ano. Fiquem ligados!

Tem também o Baixa Cultura, que é o espaço que eu edito na internet desde 2008, onde discutimos muito desses nossos temas aqui, de uma forma às vezes não tão acadêmica, mas também que trabalha com um pouco dessa divulgação científica das nossas ideias e projetos e propostas.    Assim como o trabalho que o Rafa faz no DigiLabour, na Universidade de Toronto, que também está muito ligado a isso: a construir de forma concreta organizações, cooperativas, que trabalhem com formas mais justas de construção de tecnologias. Ele tem um trabalho muito ligado a isso. E acho que a gente vai seguir nas nossas conexões diversas aí, tentando fazer isso, tentando arrumar espaço nas nossas pesquisas e para conseguir fazer essas nossas ideias soarem e circularem por aí.

Obrigado, gente.

Rodrigo Ochigame: Eu também só queria agradecer a todos vocês por essa conversa, que me encantou bastante. Eu sou um grande admirador do trabalho de todos vocês, e é uma grande honra para mim poder estar em diálogo com o trabalho que fazem a Terra Comum, o DigiLabor e Baixa Cultura.

Eu adoraria… se nós tivéssemos mais tempo para poder responder a cada uma das perguntas. Mas como estamos finalizando, eu só queria fazer um comentário final: acho que nós estamos vivendo um momento extremamente estratégico. Acho que as discussões que estão ocorrendo agora no mundo inteiro sobre a terminologia de soberania digital e temas relacionados é um momento muito importante, estratégico.

É claro que até mesmo esse discurso de soberania já está sendo capturado de várias formas pelos lobistas corporativos das big techs. No Brasil, por exemplo, esses lobistas estão tentando convencer o governo federal de que instalar data centers da Microsoft ou da Amazon em território nacional, inclusive em territórios em disputa ou até mesmo em terras indígenas, é uma forma de soberania.

Eu acho que nós, que temos uma visão mais crítica disso, realmente precisamos combater e tentar fazer o máximo de esforço nesse embate de ideias, nesse momento que estamos vivendo. E realmente tentar dar uma mensagem clara de que não, isso não é soberania digital, e tentar ao máximo refocar o debate nas questões que achamos mais urgentes e na forma de análise que já estamos desenvolvendo há bastante tempo.

Enfim, só queria dizer que acho que estamos vivendo um momento bastante estratégico e de que tem muito potencial para ações de infraestruturas digitais mais justas.

Rafael Grohmann: Beleza. Obrigado, Rodrigo. A gente se vê em algum momento, em algum lugar deste planeta, em alguma língua disponível que a gente consiga se comunicar. Fica aí a dica para ler “Informática do Oprimido”, ou comprar na editora Funilaria, ou baixar o PDF no site do Baixa Cultura. E em breve então teremos um livro novo no ano que vem também. Fiquei feliz que o livro vai ter uma versão em inglês, que eu preciso fazer meus alunos lerem. Isso é muito importante.

Um abraço a todo mundo que nos acompanhou por hoje. Tchau, gente!

 

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17 anos de BaixaCultura https://baixacultura.org/2025/09/26/17-anos-de-baixacultura/ https://baixacultura.org/2025/09/26/17-anos-de-baixacultura/#comments Fri, 26 Sep 2025 23:22:35 +0000 https://baixacultura.org/?p=15939 Seguindo a tradição, todo 15 de setembro esquecemos de comemorar nosso aniversário. Ano pasado, nos 16, começamos essa tradição de assumir o esquecimento. Em 2023, nos 15 anos, fizemos um texto um mês depois. Os 14, em 2022, foi um raro ano com um texto na data certa – apenas porque lançamos o site novo nesse mesmo período. Em 2021, não fizemos nada. Em 2020, no auge da pandemia, só lembramos de mencionar um breve comentário em uma newsletter semanas depois. 2019 nada, mas 2018 foi um ano inédito: fizemos uma pequena comemoração presencial, quando ainda estávamos em Porto Alegre, chamado “BaixaCultura 10 anos – História Aberta”.

Anterior à tradição de comemorar atrasado nosso aniversário é o de lembrar o primeiro post do site: Cópia Boa, Cópia Má – ou o início. A grande discussão em 2008 era o download livre e suas consequências para o direito autoral, a indústria cultural, o acesso ao conhecimento (e à informação) – daí o nome BaixaCultura. Dizíamos (eu e Reuben da Rocha, co-fundador) que a lógica industrial da cultura dominante ao longo do século 20 foi baseada num esquema feroz de controle autoral (o copyright), e que, naquele momento, a tecnologia digital dificultava esse controle e tornava os lucros cada vez menores nesta indústria, mesmo com os esforços (hoje até engraçados) das campanhas antipirataria promovidas sobretudo pelos estúdios de Holywood e as grandes gravadoras. A pretexto do documentário “Good Copy, Bad Copy”, endossávamos o sampler – “numa sociedade entupida de informação, a utilização de materiais pré-existentes pode ser bem mais subversiva do que produzir a partir dum vago princípio de originalidade” – a cópia livre, o acesso à cultura como elemento central na qualidade de uma democracia, o dub, o rap, o trabalho “criminoso” do Dj Danger Mouse, a contra-indústria do tecnobrega do Pará e a Nollywood nigeriana.

Desnecessário dizer que muita coisa mudou de lá pra cá. Podemos dizer que fomos ingênuos em acreditar no potencial transformador de uma internet livre. Ou talvez não: a transformação ocorreu, mas para pior. 17 anos atrás – como 20, ou 25 anos – parecia uma boa tática liberar informações da forma de propriedade. Mckenzie Wark disse, em 2023, no prefácio à edição brasileira de “Um Manifesto Hacker”, – e nós não poderíamos endossar mais – que “as forças de produção, neste caso as forças de produção de informação, ultrapassaram as relações de produção existentes”. A produção de informação livre surgiu como uma prática a partir da qual se cria uma produção autônoma de conhecimento. O que para nós era uma prática de vanguarda rapidamente, e de forma independente, tornou-se um movimento social: o movimento pela informação livre. À medida que a internet se tornou uma forma de comunicação mais popular, todos começaram a compartilhar. Como diz a tese 126 de “Um Manifesto Hacker”: “a informação quer ser livre, mas está acorrentada em todos os lugares”. (Uma frase que é um desvio de Rousseau e do teórico utópico da internet John Perry Barlow). Parecia que poderíamos abrir a forma-mercadoria da informação em favor de uma espécie de economia de dádiva (gift) abstrata.”

Mas como segue dizendo Wark, “A resposta da classe dominante ao movimento social pela informação livre foi a criação de uma forma de propriedade ainda mais abstrata”. A classe dominante dominante, que ela chama de classe vetorialista, recuperou a energia do movimento popular pela informação livre transformando-a em trabalho não remunerado. Este ciclo foi acelerado em escala ainda maior com a popularização dos sistemas de Inteligência Artificial Generativa, já que, como temos acompanhado, estes sistemas foram treinados no vasto tesouro de informações livres que criamos para nós mesmos, muitas vezes querendo (ou pensando que) estas informações poderiam ser bens comuns (commons). O que a classe vetorialista está tentando fazer agora, segundo Wark, é a substituição da classe hacker por máquinas capazes de fabricar a diferença – e achamos que tem conseguido, não?

Apesar desse cenário menos esperançoso que o de 17 anos atrás, seguimos por aqui. Também acreditando que podemos falar da cultura livre como liberdade positiva; tentando entender os meandros do colonialismo digital e as interferências das IAs nos direitos dos escritores; divulgando iniciativas para infraestruturas autônomas e comunitárias de tecnologias; recontando histórias de uma informática do oprimido latino-americana para soltar nossa imaginação sobre tecnologias alternativas, talvez como uma hiperstição aceleracionista – inventar futuros ficcionais para que eles possam se tornar reais. Seguimos documentando a cultura livre e entendendo as IAS de código aberto – mesmo que tenhamos muitas dúvidas se de fato o software livre possa derrotar as big techs. E buscando entender como a história da cópia e do desvio no século XXI pode dar luz sobre as práticas futuras de criação desviante – a cópia na era de sua proliferação técnica. Por fim, também achamos que para criticar e desconstruir artefatos complexos como os monopólios de IA, devemos fazer o trabalho meticuloso de desfazer – passo a passo, arquivo a arquivo, conjunto de dados a conjunto de dados, metadado a metadado, correlação a correlação, padrão a padrão – o tecido social e econômico que os constitui na origem. E que, para reagir e propor alternativas concretas, precisamos cada vez mais de uma cultura de invenção, concepção e planejamento que se preocupe com as comunidades e o coletivo, sem nunca ceder totalmente a agência e a inteligência à automação.

É por aí que seguiremos adelante.

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Capitalismo, semiótica e as subjetividades do fim: entrevista com Alessandro Sbordoni https://baixacultura.org/2025/09/10/capitalismo-semiotica-e-as-subjetividades-do-fim-entrevista-com-alessandro-sbordoni/ https://baixacultura.org/2025/09/10/capitalismo-semiotica-e-as-subjetividades-do-fim-entrevista-com-alessandro-sbordoni/#respond Wed, 10 Sep 2025 14:25:14 +0000 https://baixacultura.org/?p=15913 Em julho de 2025, o italiano radicado em Londres Alessandro Sbordoni esteve no Brasil para o lançamento de “Semiótica do Fim – Capitalismo e Apocalipse”, pela editora SobInfluencia. O livro, como já comentamos no texto de apresentação, é uma coletânea de 13 ensaios que investiga como o fim do mundo se tornou apenas mais um signo do “semiocapitalismo”. A tese – se podemos assim chamá-la num texto tão aberto a provocações e leituras distintas – é que o fim do mundo é “apenas mais um signo” do semiocapitalismo: o apocalipse, tal como tradicionalmente concebido, não ocorrerá porque já está em curso permanente. Não há mais diferença entre o fim do mundo e o próprio capitalismo: ambos se reproduzem incessantemente segundo a lógica semiótica do capital, diz Sbordoni. Seu livro, então, se apresenta como um manifesto que nos convida a pensar sobre o que significa “fim” hoje.

Em 17 de julho de 2025, um dia antes do primeiro lançamento do livro [na sede da editora SobInfluencia, na Galeria Metrópole, referência cultural e artística do centro de São Paulo; veja íntegra do evento aqui], conversamos com Alessandro num restaurante amazônico dentro da galeria. Pelo BaixaCultura, Leonardo Foletto e Rafael Bresciani, com participação de Rodrigo Côrrea, editor e designer da SobInfluencia. Entre Cupuaçú amigo (a versão local do drink “Caju Amigo”) e Tacacás (a famosa “sopa” amazônica, com jambu e tucupi), a conversa foi de “Semiótica do Fim” às relação entre cultura alta e baixa, anti-assombrologia, revistas digitais como espaços de encontro intelectual, underground, tecnologia, teoria contemporânea. Abaixo uma versão editada da conversa. Originalmente em inglês, também foi publicada no Institute of Network Cultures (INC) de Amsterdam.

BaixaCultura: Para começar: como surgiu a ideia do livro? Em que contexto foi produzido? Conte um pouco mais sobre sua trajetória na escrita do livro.

Alessandro: Em 2020/2021, li “Fenomenologia do Fim” de Franco Berardi. Ao lê-la, achei a abordagem sobre o capital e o capitalismo muito intrigante, algo que ficou na minha cabeça por um tempo. Eu tinha acabado de escrever outro livro sobre algo completamente diferente, mas sabia que queria fazer algo assim. Alguns meses depois, escrevi um ensaio, que é o primeiro do livro, com um subtítulo diferente, mas o título principal era “Semiótica do Fim”. Eu não sabia o que sairia daquilo; era sobre tédio e o fim do mundo. Publiquei no Blue Labyrinths, a primeira vez que publiquei lá. Alguns meses depois, publiquei outro ensaio, novamente com o mesmo título e um subtítulo diferente, e depois o terceiro ensaio. Assim, pouco a pouco, tudo começou a se encaixar. Obviamente, o título “Semiótica do Fim” é uma referência a “Fenomenologia do Fim”, e pensei que faria algo similar.

Então, o livro surgiu organicamente. Pouco a pouco, comecei a perceber que queria misturar a ideia de semio-capitalismo como uma forma de analisar, criticar e ir além da ideia de realismo capitalista em Mark Fisher, que é o núcleo do livro.

BaixaCultura: Você é filósofo?

Alessandro: Eu não me consideraria… Há uma citação muito engraçada de Guy Debord, que disse: “Não sou filósofo, sou estrategista”. Me vejo assim: não sou filósofo, com certeza. Talvez seja estrategista, mas definitivamente me considero mais um teórico. A filosofia carrega toda essa bagagem cultural ocidental com a qual discordo totalmente em me identificar. Então me vejo como teórico, o que também traz certas questões, como: não estou buscando a verdade no que escrevo. Vejo mais como um empreendimento político ou cultural, se preferir, mas não buscando verdade ou conhecimento. Tudo isso é nonsense.

BaixaCultura: Gostaria de perguntar sobre Blue Labyrinths e Charta Sporca, duas revistas digitais nas quais você está envolvido. Quando começaram?

Alessandro: Com Blue Labyrinths, tudo começou quando li os ensaios anti-assombrologia (anti-hauntology) do fundador do Blue Labyrinths, Matt Bleumink, sobre os quais queria falar, e eles formaram o último capítulo do livro. Depois de publicar alguns outros ensaios no Blue Labyrinths, nos tornamos bons amigos e, pouco a pouco, comecei a desempenhar um papel no conselho editorial do Blue Labyrinths junto com outra pessoa.

Para Charta Sporca, eu realmente queria publicar e fazer algo com eles. Os encontrei quando estava na Itália, fazendo minha graduação, e sempre apreciei a mistura de política, literatura e filosofia, tudo junto, que eles fazem.

BaixaCultura: Sobre Blue Labyrinths: que tipo de contribuições vocês buscam? E como a revista se posiciona dentro do panorama atual de publicações culturais e filosóficas?

Alessandro: Aceitamos qualquer submissão que consideremos interessante para nós. Se você ler a descrição, diz algo muito geral: “Uma revista online focada em filosofia, cultura e uma coleção de ideias interessantes.” E essa parte das “ideias interessantes” é o principal, porque todas as revistas e editoras tendem a admitir que focam em uma coisa, talvez porque seja mais fácil ou porque as pessoas têm entendimento limitado. Mas sempre publicamos coisas que esticam um pouco, e até publicamos algumas coisas com as quais tendemos a discordar em certa medida, até mesmo no nível político. Nada muito louco – nunca publicaria um texto fascista, tenho certeza. Mas houve discordâncias, e isso é interessante. Por exemplo, foi uma política muito boa porque atraímos todos aqueles escritores que não sabem onde mais publicar, porque todas as outras revistas são muito específicas, e se você não se encaixa, dane-se. Então, foi muito interessante. E não foi minha ideia; foi Matt, o fundador, que sempre teve essa mentalidade, e sempre gostei disso. E acho que fui atraído porque também na minha escrita faço isso: trago muitas coisas diferentes todas juntas.

BaixaCultura: E por que revistas? Você gosta de revistas digitais?

Alessandro: Pessoalmente, as vejo como uma espécie de “academia cultural”. É quase como um campo de testes ou, se quiser, um treinamento no sentido militar. É uma forma de treinar uma teoria para, então, expandi-la e desenvolvê-la em outros espaços.

BaixaCultura: Charta Sporca, para mim, parece engajar com teoria e cultura italiana contemporânea, incluindo seu próprio trabalho e figuras como Mark Fisher e Deleuze. Como editar essa revista influenciou seu próprio desenvolvimento teórico? E que papel você vê as revistas intelectuais e digitais desempenhando hoje, especialmente no seu caso? A história intelectual italiana tem uma enorme histórico, com Quaderni Rossi, Classe Operaia e A/Traverso, por exemplo, nos anos 1960 e 1970.

Alessandro: Imagine que a revista fosse um espaço com o qual você interage. Você vai lá frequentemente e vê o que as pessoas estão fazendo. E o que sai disso não é teoria ou ideia. Sim, você lê textos interessantes, e eles podem despertar algo, mas essa não é a coisa principal e mais importante. A coisa mais importante é que você conhece as pessoas e cria relacionamentos, como os que também estamos fazendo agora. Isso é algo que percebi nos últimos anos: a coisa mais interessante sobre escrever não é escrever, é conhecer as pessoas. É fazer parte de uma “comunidade”, por falta de palavra melhor – e não gosto da palavra “comunidade” porque quase exige ser definida. São encontros. Encontros com as pessoas que você conhece informam sua teoria, mas é eventual de certa forma. A teoria é secundária à realidade de encontrar alguém. Essas revistas são uma potencialidade em direção aos encontros.

BaixaCultura: E por que sites de revistas e não, por exemplo, redes sociais?

Alessandro: Bem, porque há uma certa autonomia na revista. E isso volta ao que eu estava dizendo sobre essas “ideias interessantes”. Você simplesmente recebe qualquer uma. Fico feliz em conhecer qualquer um que tenha algo interessante a dizer, especialmente se discordam.

BaixaCultura: Voltando ao livro. Ele abre com a declaração provocativa de que “o fim do mundo é apenas outro signo do semiocapitalismo.” Pode explicar o que o levou a essa conclusão e como desenvolve o conceito de semiocapitalismo como distinto das tradições de crítica do capital, como nos livros do Bifo, por exemplo? Se há diferenças ou não.

Alessandro: Definitivamente há diferenças. E sempre tomo todas essas ideias como pontos de partida. E, em certa medida, não estou tentando desenvolver o conceito de semiocapitalismo, mas acho que é um terreno interessante. E, na minha visão, o que aconteceu foi que, em algum momento, a diferença entre materialidade e imaterialidade, entre uma cultura baseada na produção e commodities reais – a dicotomia entre produção e reprodução, nos termos que coloco – foi abolida. E o mundo se tornou mais efêmero e imaterial,  apenas uma estrutura de signos. O interessante é que o capitalismo conseguiu se vincular à reprodução de signos e se reproduzir através de signos, independentemente do que os signos significam. Isso poderia ter sido um problema no passado. Por exemplo, o capitalismo entrando em um discurso radical e obtendo lucro disso, isso poderia ter sido uma contradição no sentido marxista. Acho que agora o discurso foi nivelado e qualquer coisa pode se transformar em capital; qualquer coisa pode ser uma forma de reproduzir capital. E a forma mais extrema disso é o fim do mundo. Porque o capitalismo se alimenta da reprodução até mesmo do seu próprio fim, o que achei que era um ponto de partida interessante por causa da ironia intrínseca. Não acho que haja contradição, mas há uma forte ironia e um forte sentimento de que deveria ser o ponto de partida para algo diferente. E estou tentando encontrar uma forma de abrir para esse novo começo, mas acho que temos que realmente pensar fora da caixa, porque tudo que está dentro da caixa é capital.

BaixaCultura: Você afirma que o apocalipse, como tal, não ocorrerá porque já aconteceu. Isso parece desafiar tanto narrativas religiosas quanto seculares de fim. Como situa essa afirmação em relação às nossas crises ecológicas e sociais que estamos vivenciando? E como podemos pensar sobre outras relações com o fim?

Alessandro: Há, novamente, uma piada triste sobre a catástrofe climática e o “fim sem fim” do capitalismo. Conforme a catástrofe continua, reproduz mais e mais capital, e porque reproduz mais e mais capital, continuará mais e mais rápido. E, paradoxalmente, as poucas imagens que agora temos – por exemplo, os incêndios florestais acontecendo ao redor do mundo – vão aumentar porque o capital vai aumentar, e o capital são essas imagens. E então, conforme o capital aumenta, o fim do mundo se aproxima. Não vejo, seguindo essa linha de raciocínio, um fim para o capital. Mas conforme começamos a nos relacionar com a cultura de forma diferente e começamos a ver que essas imagens não são nada além de capital, que a reprodução é o problema do que representam, essa será uma forma antiga de pensar. O problema é que, se o fim do mundo está se aproximando, ainda estamos produzindo conteúdo e ainda estamos produzindo de forma capitalista. Então, por um lado, uma solução poderia ser encontrar novas formas de produção, mas entramos em um novo paradigma, que chamo de re-produção. Muitos dos diferentes modos de produção-reprodução foram neutralizados.

Então, a única coisa que resta fazer é repensar onde estamos agora. E isso é algo a que Geert Lovink se refere em “Extinção da Internet“: temos que olhar para o abismo para superá-lo. E para mim, também é olhar para como isso nos faz sentir. E, paradoxalmente, falo sobre isso em termos de tédio em vez de ansiedade, porque estamos fartos disso. São 50, 60 anos de predições apocalípticas que não se concretizaram, porque o capital, como disse antes, continua se reproduzindo. Mas se redirecionarmos o conceito de fim e começo de uma forma metafísica – e é por isso que também estamos falando sobre filosofia. Podemos repensar o que significa estar no fim do mundo e o que significa o fim e o começo sempre coexistirem. Uma vez que entendemos isso, abrimos novos caminhos – e, em uma palavra simples, uma nova imaginação.

BaixaCultura: Seguindo essa ideia de fim e começo: geralmente pensamos sobre o progresso humano como marcos de sucesso. Quando as coisas acontecem positivamente, as marcamos. E um desses exemplos é quando, em nível pessoal, nos apresentamos como profissionais, usamos um Curriculum Vitae, que significa as coisas que fizemos na vida, os bons marcos de nossas vidas. Mas uma vez ouvi um psicólogo que defendia a ideia de um Curriculum Mortis, que é a ideia de que, quando reconhecemos os marcos do fracasso, somos capazes de superar esses fracassos. Então, essa visão é algo em que podemos confiar neste momento do Antropoceno e do capitalismo tardio? Usar um Curriculum Mortis da história humana como forma de abordar esse momento.

Alessandro: Há um artigo publicado recentemente em uma revista italiana por Christian Damato que fala sobre como o fracasso foi reintegrado no discurso do sucesso dentro de uma ideologia corporativa. E acho que é uma declaração muito sombria, mas acredito que meramente inverter o problema não o resolve, porque na minha forma de pensar, é uma questão de estruturas. Apenas reverter a estrutura não está criando uma nova estrutura, mas pode ser um meio para uma nova estrutura. Então, até mesmo enfatizar o fracasso poderia potencialmente ser um caminho para algo, mas não é suficiente.

Eu diria que o progresso só existe de acordo com um certo conjunto de critérios estabelecidos por uma cultura. E, de fato, a ideia de progresso no Ocidente foi muito criticada (por exemplo, por Jacques Derrida). Você sempre encontra um progresso constante se apenas decidir sobre os parâmetros certos para avaliá-lo. E acho, portanto, que a solução para esse problema é mudar as regras da questão. Não há como responder à pergunta “melhor ou pior” se é avaliada de acordo com os critérios do problema. Você precisa descobrir quais são as suposições metafísicas que precisam mudar. Talvez nos tornemos cínicos sobre isso. Mas acredito em algo que Tiqqun diz no primeiro ensaio de sua primeira edição: que política é metafísica, e uma nova política demanda uma nova metafísica; não deveríamos ter vergonha de falar em metafísica só porque as ideias de algum metafísico nazista se tornaram muito influentes.

BaixaCultura: Em diálogo com essa questão, você às vezes posiciona seu trabalho em contraste com o realismo capitalista de Mark Fisher. Propõe, em seu livro, um manifesto para a imaginação de outra relação com o fim. Como seu conceito de anti-assombrologia difere do dele? E como essa outra relação se parece na prática?

Alessandro: A ideia original de anti-assombrologia foi desenvolvida por Matt Bluemink antes de eu conhecê-lo. Depois, continuei o que ele fez tomando como seu texto como ponto de partida e depois construindo minha própria direção. E temos algumas discordâncias sobre como os conceitos poderiam ser aplicados. Sobre a diferença entre assombrologia e antiassombrologia, isso foi discutido no debate entre Matt Bluemink e Matt Colquhoun, que Matt Bluemink publicou seu primeiro ensaio. Matt Colquhoun respondeu, e então houve um vai e vem que aconteceu em 2021. Matt Colquhoun criticou a ideia de fazer essa distinção entre assombrologia e anti-assombrologia porque ela mesma é “assombrológica”. E acho que essa é uma crítica, digamos, injusta.

[Nota da edição: “Assombrologia” – nos termos de Mark Fisher desenvolvido sobretudo em “Fantasmas da Minha Vida” (2014, no Brasil publicado em 2022) – seria o estudo da persistência de elementos do passado que “assombram” o presente, não numa visão nostálgica, mas sim como a manifestação de futuros perdidos ou potenciais não realizados, especialmente no contexto do capitalismo tardio . A anti-assombrologia proposta por Bluemink e Sbordoni seria uma ideia de pensar para além dos fantasmas que assombram o presente. Como Bluemink escreveu em 2021, “Se a assombrologia é a lógica do desespero, então a antiassombrologia pode ser vista como a lógica da esperança”.]

Essa crítica segue uma lógica pós-estruturalista típica: toda oposição não pode ser claramente estabelecida como oposição, porque todo conceito contém dentro de si sua negação e assim por diante. Mas esse é precisamente o tipo de problema que tentei superar. Por isso, decidi simplesmente impor a distinção entre assombrologia e antiassombrologia, mesmo que isso signifique fazer uma certa violência teórica ao abandonar a filosofia em favor da teoria. Às vezes você precisa defender uma posição sabendo que ela não pode ser “provada” no sentido filosófico clássico – o importante é que existe uma potencialidade real para o novo, e meu trabalho é tentar tornar essa potencialidade concreta na realidade.

Na prática, o que a antiassombrologia faz- e isso é algo que Matt Colquhoun diz – é usar a cultura para recuperar a esperança de que o novo ainda pode acontecer. Mais do que isso: o novo já está acontecendo através do nosso próprio trabalho teórico e cultural. Essa mudança pode se espalhar para qualquer área da experiência humana – você só precisa estabelecer as bases metafísicas adequadas.No primeiro capítulo do livro, escrevo que “hoje, nada é possível porque nada é impossível” – ou seja, vivemos numa paralisia onde tudo parece ao mesmo tempo bloqueado e em aberto. Mas essa frase também pode ser invertida: se nada é impossível, então tudo volta a ser possível. Não se trata de inventar soluções mágicas do nada, mas de transformar a forma como as pessoas percebem e se relacionam com o mundo. É uma mudança de subjetividade que pode emergir aparentemente “do nada”, mas que tem efeitos muito concretos.

A aplicação prática da antiassombrologia funciona similar à arte, que tem esse paradoxo interessante: ela transforma nossa visão de mundo sem alterar diretamente as condições materiais do mundo. Quando você vê uma obra de arte poderosa, sua visão de mundo muda e novas possibilidades se abrem – mas aparentemente “nada” mudou no mundo físico. Ao mesmo tempo, “tudo” mudou, porque sua subjetividade foi transformada.

Esse é o ponto central: o problema não é fundamentalmente material, é subjetivo. Quando pensamos que enfrentamos apenas problemas materiais na verdade estamos lidando com uma crise mais profunda de subjetividade. É nossa forma coletiva de perceber e se relacionar com o mundo que determina como interpretamos esses problemas “materiais”. Os problemas concretos podem ser resolvidos, mas primeiro precisamos recuperar, como coletivo, nossa capacidade de controlar e dar sentido à realidade.

BaixaCultura: Guattari, em 1993, em seu livro “Caosmose“, fala de estética como forma de ressignificar a subjetividade diante de questões sociopolíticas. Citando-o: “Não se pode conceber uma disciplina internacional neste domínio sem trazer uma solução aos problemas da fome mundial e hiperinflação no terceiro mundo”. “A única finalidade aceitável das atividades humanas é a produção de uma subjetividade que enriqueça o modo de continuidade e suas relações com o mundo”. Então, ele está tentando dizer que a estética cria influência nessa visão de mundo comum que se torna material.

Você acha que a contaminação da internet e das tecnologias digitais em nossa noção de estética, e a relação entre isso e o tecido sociopolítico, é uma forma de recriar e ressignificar esse canal, essa visão de mundo do contemporâneo? A arte é uma forma de alcançar essas mudanças?

Alessandro: Sempre penso que a subjetividade, em certa medida, pode ser vista como um fim em si mesma. A questão não é: “Que tipo de mundo queremos?” ou “Que tipo de futuro queremos?”. Na verdade, deveríamos pensar na subjetividade como o meio para chegar a um fim. Mas ainda não sabemos qual é esse fim, porque ainda não chegamos ao verdadeiro começo. E isso é algo, a propósito, que Baudrillard faz e é criticado por isso, porque nunca apresentou uma visão de como poderíamos superar o capital, nunca oferecia soluções concretas. Mas a solução é exatamente a subjetividade. Não no sentido de que uma nova subjetividade surge e o mundo se transforma imediatamente, mas porque o problema é fundamentalmente uma questão de potencialidade. Uma vez que essa potencialidade está disponível, tudo pode se desdobrar – ou não.

Mas também acho que a filosofia, especialmente, tem uma certa arrogância ao tentar moldar o mundo diretamente, e isso faz parte do problema. Porque é exatamente isso que a ciência faz, que o Estado faz, e não quero me envolver com essa lógica. Por isso, pode parecer que permaneço no abstrato, mas na verdade penso no sentido mais material possível: a partir da subjetividade.

Então concordo com tudo que você disse. Talvez a crítica seja que o que estou propondo é muito simples. Se você observar a arte, ela não muda as coisas diretamente, mas faz as pessoas olharem para o mundo de forma diferente. A arte reformula o problema, e reformular o problema já é parte da solução.

BaixaCultura: Sim, Guattari falou isso em 93, você disse antes, certo? Faz 40 anos que estamos discutindo isso e não está terminando. Há uma saída?

Alessandro: Acho que a coisa mais importante que mudou é como podemos ativar novas subjetividades mais rapidamente, em uma escala muito mais ampla e global. Sempre penso no que faço nesses termos: quantas pessoas posso alcançar de uma só vez e como elas podem ser imediatamente transformadas.E também como isso é perigoso para o sistema, podendo tanto facilitar mudanças quanto impedi-las mais facilmente. Isso é o que mudou nos últimos trinta anos – pelo menos uma das coisas mais importantes que mudaram.

BaixaCultura: Você fala sobre cultura, música, arte. Sua análise vai de Britney Spears ao K-pop e a internet. Como você conecta objetos culturais tão diversos e, na sua opinião, o que eles revelam sobre nosso momento contemporâneo?

Alessandro: Estou muito interessado na conexão entre o que no mundo anglófono chamamos de “cultura erudita” (alta cultura) e “cultura popular” (baixa cultura). E em como, especialmente no mundo anglófono, essa conexão é frequentemente cortada, criando uma divisão entre elas. Existe uma separação entre Heidegger e Britney Spears. Mas me interesso por Britney Spears e frequentemente penso sobre ela de forma talvez “hiperintelectual”.  Porém, não acho que as duas coisas sejam realmente distintas por causa da estrutura do semiocapital. Tudo está no mercado ao mesmo tempo, e essas distinções antiquadas entre cultura alta e baixa estão sendo abolidas. E creio que estão sendo abolidas pelo que chamo de “cultura trash”.

Se nos séculos 19 e 20, o kitsch tentou fazer a ponte entre a cultura da classe trabalhadora e a cultura da classe média, agora temos cultura trash. A internet, em particular, tem sido a tecnologia do trash. E trash, por definição, é aquilo que destrói a distinção entre o alto e o baixo, o bom e o ruim, e assim por diante…

Pessoalmente, acho que restabelecer essa conexão – que ainda está bastante aberta a várias “assemblages” – é um terreno fértil para novas formas de imaginação. Aqui, imaginação é algo que defino especificamente como a reconstrução de conexões entre subjetividades e cultura. Então, ao fazer uma piada conectando Kanye West e Hegel, digamos, você pode encontrar novas formas de refazer a assemblagem que constitui a cultura e descobrir novas expressões de subjetividades. Estou sendo muito otimista sobre isso, mas acho que ainda é algo que permanece aberto para teorização e politização.

Alessandro tomando um Tacacá

BaixaCultura: Queríamos perguntar sobre as diferentes perspectivas da geração de Mark Fisher e sua geração, nascida no final dos 1990 e início dos 2000. A percepção do fim ou da simulação do apocalipse, por exemplo: é diferente para nós? É interessante ou uma simulação?

Alessandro: Há uma citação de Grafton Tanner – que talvez faça parte de uma geração mais jovem de escritores – que fala que nos anos 2010, Mark Fisher e Simon Reynolds pensavam que havia uma crise para imaginar o passado e o futuro. Isso estava acontecendo nos anos 2010, mas agora a crise é para imaginar o presente. Então, acho que se tornou abrangente, e a crise da imaginação, que de alguma forma ainda era parcial na época de Mark Fisher, se generalizou, e muitas de suas afirmações se tornaram ainda mais fortes.

Mas o que mudou é que as pessoas não podem mais ignorar isso. E ainda é muito relevante que Mark Fisher continuse sendo o filósofo mais conhecido dos últimos 20 anos. Mas, ao mesmo tempo, também acho que a nova geração – e sim, talvez me inclua nesse grupo – está começando a entender que as regras foram mudadas pelo próprio problema. Pessoalmente, penso que a questão é sobre reinventar a imaginação, o que parece algo muito ambicioso. Mas também vejo que no uso da tecnologia se cria novas relações entre si mesmas e a cultura e, portanto, criando novos imaginários. O que não significa novas realidades, novos futuros, novas visões de mundo, mas novas práticas. E a velocidade com que isso está acontecendo está aumentando.

E acho que, após a morte de Mark Fisher em 2007, isso começou a acelerar além do controle do que poderia ter sido o capitalismo tardio antiquado. Agora vivemos no capitalismo tardio demais. Isso também significa que a temporalidade está encolhendo, e a imediatez está cada vez mais assumindo a liderança na relação com o capital. E isso é de certa forma benéfico.  Então, mesmo se você pensar sobre para que a inteligência artificial é realmente usada, é para fazer transações mais rápidas. Esta é a aplicação principal: encontrar formas de fazer a economia funcionar ainda mais rapidamente do que já funciona. Mas isso também está afetando nossa relação com a tecnologia, e está se afastando do controle biopolítico antiquado, acho, em certa medida, porque o número de relações, nós e circuitos está apenas aumentando agora. E as potencialidades também estão aumentando. Em geral, diria que sou mais otimista, e não vejo muito desse otimismo por aí, mas prevejo que continuará aumentando.

BaixaCultura: Você tem alguma relação com o aceleracionismo, em especial, Nick Land? Há um artigo sobre ele em Blue Labyrinths.

Alessandro: Nick Land é um caso estranho. Estou interessado nele tanto quanto alguém pode estar interessado no diabo. O que quero dizer é que o Diabo realmente foi um argumento cultural importante no que poderia ter sido o ideal na Idade Média, e Nick Land é o Diabo no capitalismo. Há algo muito interessante para mim na mudança que aconteceu no pensamento entre os escritos da primeira fase de Nick Land e a segunda fase, na qual ele se inclinou cada vez mais para a direita e novas direções, novos movimentos reacionários, e assim por diante. E estudando isso, estou começando a perceber que o que tenho definido como subjetividade também traz consigo uma certa ética – ética, que é uma palavra que você nunca encontra em Semiótica do Fim. Mas Nick Land é definitivamente alguém que não pensa em termos de ética ou moral, porque pensa no capital como uma agência inorgânica anônima. Pelo contrário, vê o ser humano como uma “ficção” ética e biológica produzida pelo capital.

Mas ele não pensa, nem por um momento, que isso poderia ser parte de uma “ideologia”, porque “ideologia” não é o termo certo a usar – uma palavra mais correta aqui seria paradigma. De qualquer forma, ele vê o capital como metafísica, mas metafísica é um paradigma, mesmo na conotação científica do termo. Então, é uma mudança de paradigma; é uma revolução metafísica no mundo. Quando o Sol não está mais no centro do universo, o mundo é completamente diferente, mas nada realmente mudou; quando o capital não está mais no centro de nossas relações, tudo é igual, mas tudo é diferente. Então, Nick Land nunca considera a possibilidade – e o critico por não levar o nível semiótico a sério, o que significa que o nível semiótico é manipulável, mas pode ser construído diferentemente. Então, estou interessado nisso, mas acho que seu ponto de vista é limitado.

BaixaCultura: Então você não é satanista? Se ele é o diabo…

Alessandro: Sou como um teórico do satanismo haha

BaixaCultura: Outro autor, Andrea Colamedici, o autor por trás de “Hipocracia”, identificado como de Jianwei Xun [veja esse texto para entender a polêmica].  Ele parece acreditar que estamos em um momento de fragmentação de nossa presença online em tantas camadas de presença online e offline e tudo mais… E ele meio que aponta na direção de que devemos aprender a coexistir em todas essas camadas, como uma presença viva aqui, mas também uma presença viva na rede social ou no grupo do WhatsApp ou no avatar, e em todas essas esferas de relações.

Então, como você conceitua a fragmentação como uma forma de prosperar neste momento de incerteza? No livro, ele tenta vender a ideia de que devemos saber que estamos em todos os lugares ao mesmo tempo. Por exemplo, quando fala sobre isso, ele traz a ideia de simulação real. Hoje, é tudo simulado e tudo é real ao mesmo tempo: isso é real e seu avatar é real e seu Instagram é real – tudo é real e, ainda assim, é uma simulação ao mesmo tempo. Mas não podemos nos perder.

Alessandro: Entendo. Acho fascinante, mas a escala na qual essas suposições são feitas é uma escala que, politicamente, não é muito operacional. Existem diferentes escalas. Então, em escala microscópica, na escala mineral – tomemos um computador como exemplo. Um computador tem várias escalas. Então, na escala microscópica, há luz passando pelos cabos, e na escala da partícula, não há política. Há muito pouco que você poderia fazer além de teorias sobre o que é luz e física quântica, e assim por diante; é muito difícil fazer uma mudança significativa nesse nível. Em um nível mais alto, há mais ou menos o que você está falando: um nível do habitus social que você assume na interação com o computador; esta é a escala social. E acho que, embora seja uma escala muito real, não é muito operacional. Agora, entre a luz na fibra óptica e o habitus social, há uma relação. O que media essa relação é o capital, porque é o capital que está pagando pelos cabos que conectam as luzes; por meio dele, você pode se ver no computador e tentar aprender com ele. Aqui, estou interessado no que chamo de medium, segundo minha própria interpretação: trata-se do que está acontecendo no meio. Certamente, o que está acontecendo no meio é muito real, mas também é o que reproduz a simulação.

Então, talvez aqui eu inverta as regras: em suas circunstâncias imediatas, você pode reconceituar sua relação e interagir com o computador de forma diferente, e até mesmo mudar o tipo de fibras ópticas que usa, afetando a relação agindo do nível mais alto para o mais baixo, e vice-versa. Em Semiótica do Fim, frequentemente faço esse tipo de salto das alturas. No capítulo sobre teoria da informação do livro – “Overdrive e significado” – um dos capítulos centrais do livro, escrevo sobre a estrutura da informação, que é uma teoria muito abstrata, mas como elemento político. Mas não há nada intrinsecamente político nos bits de informação. Há algo político apenas na relação. Mas se você foca apenas em um nível…

Para resumir, poderíamos dizer que o elemento interescalar é muito político, e tento atuar sobre ele. Mas se você pensa apenas em uma escala, pode ser complexo. Para acrescentar outra coisa, há uma tendência nas teorias da mídias que é interessante discutir: a pura materialidade dos recursos sendo usados. Por exemplo, Atlas da IA, de Kate Crawford, fala sobre os recursos, a materialidade do mapeamento do mundo e assim por diante. Mas ela conceitua isso como algo intraescalar. O que acho interessante é o elemento interescalar, onde ela também escreve sobre o que o software está fazendo; ela tenta conectar tudo, mas falando de apenas um nível. E há uma série de ações que podem ser muito locais, enquanto o global acontece entre as escalas. Isso poderia ser algo que percebi depois de escrever o livro – você também não encontrará a palavra “escala” nele, mas isso é o que acontece com os livros: você retrospectivamente chega a boas ideias que não escreveu.

BaixaCultura: Então, você meio que pensa que essa visão é “enganar a máquina”?

Alessandro: A solução deve estar na relação. Mas se você pensa sobre a pura materialidade, parece que o social é uma materialidade, como gestos e práticas, e essas coisas podem ser mudadas, mas não em um nível muito individual e mínimo local. Então, não é a melhor forma de abordar, acho.

Queria falar mais sobre o contexto de Charta Sporca. Vivendo na Itália e vindo do exterior, faz cerca de onze anos que estou aqui [Londres]. Tenho a impressão de que a cultura italiana cria uma materialidade diferente para a cultura underground. Não tenho certeza se essa é a palavra certa. Deixe-me seguir o que escrevi. Viver na Itália me dá a impressão de que muito do que é criado em diferentes realidades nas diferentes cidades italianas permanece, porque há uma espécie de resistência ao sistema e à sistematização. É como se o underground resistisse a se tornar mainstream por muito tempo. Se você vai a Bolonha, vê lojas que vendem quadrinhos há quarenta anos e não querem crescer. Então, você tem uma cultura de cenas espalhadas por todo o país, e as pessoas ainda as fazem e não querem publicá-las.

BaixaCultura: Como italiano que vive no exterior, você vê isso da mesma forma? E se sim, como a Charta se envolve com essa dimensão de conhecimento não institucionalizado que continua emergindo por toda a Itália? Ela se envolve ou não?

Alessandro: Sim. E mais em geral sobre a Itália, acho que a questão é sobre a economia dos corpos. A economia capitalista não é um padrão da economia: pense, por exemplo, em uma cidade antiga na Itália, como Trieste ou Bolonha. Mas conforme você se aproxima da metrópole, até Milão, e conforme vai subindo e vai para Paris, então a economia dos corpos e a economia real começam a se fundir uma na outra. Há um certo grau de hipnose acontecendo ali.

E acho que as pessoas só conseguem resistir quando não nascem dentro disso. É muito difícil recuar da metrópole se essa é a única realidade que você viu. Da mesma forma que vamos a uma floresta e, se não nascemos na floresta, não olhamos para a floresta de uma forma “natural”. Nossa visão é moldada pelo ambiente artificial da cidade, e por isso perdemos a capacidade de ver a natureza como ela realmente é – diferentemente de quem cresceu em contato direto com ela. O mesmo acontece com quem nasce e vive sempre na metrópole: essa pessoa desenvolve uma percepção distorcida do tempo e dos relacionamentos humanos. Para ela, as formas mais naturais de viver – aquelas que existem fora do ambiente metropolitano – parecem estranhas ou até impossíveis.

O coletivo francês Tiqqun tem uma distinção muito interessante e radical sobre a vida fora da metrópole: eles dizem que a metrópole é irrecuperável. Não há mais nada para salvar da metrópole. Você deveria apenas convencer as pessoas na metrópole a se afastarem dela e nunca voltarem. Não há como mudar o capital e o capitalista, mas você pode permitir que as pessoas vejam que há uma saída, se quiserem.

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Justiça ambiental e infraestruturas autônomas e comunitárias https://baixacultura.org/2025/09/05/justica-ambiental-e-infraestruturas-autonomas-e-comunitarias/ https://baixacultura.org/2025/09/05/justica-ambiental-e-infraestruturas-autonomas-e-comunitarias/#respond Fri, 05 Sep 2025 13:41:57 +0000 https://baixacultura.org/?p=15910 Faz alguns meses que saiu uma pesquisa do Sursiendo e May First Movement Technology chamada “Accioes por la Justicia Ambiental: Desde infraestructuras tecnológicas autónomas y comunitarias“. A investigação utilizou uma metodologia participativa para documentar práticas sustentáveis ​​já implementadas, principais obstáculos, projeções futuras e ideias especulativas de provedores independentes e comunitários de vários lugares do mundo. Os principais desafios apontados incluem narrativas dominantes sobre “recursos ilimitados”, tempo limitado para experimentação, infraestruturas centralizadas e escassez de hardware reparável. O relatório também destaca a importância da ação colaborativa e da imaginação radical para criar tecnologias mais comprometidas com a proteção da vida. Fala, por exemplo, em como “integrar a sustentabilidade ambiental em projetos autônomos de infraestrutura de comunicações por internet, documentando práticas de provedores comunitários que priorizam sustentabilidade e autonomia tecnológica”.

Algumas práticas já implementadas citadas que vale a pena recuperar aqui:

_ Não coleta de dados; o principal benefício indireto é o menor consumo energético devido à ausência de coleta massiva de dados;
_ Ciclo de vida do hardware: priorizar estender ao máximo a vida útil dos equipamentos de TI, reduzindo o lixo eletrônico, como no caso da coletiva brasileira MariaLab (que incorpora equipamentos doados e de segunda mão), ou da Koumbit, que usa servidores que têm até 15 anos!;
_ Energias renováveis: GreenNet, Riseup e Koumbit utilizam energias renováveis, especialmente hidrelétrica e eólica em regiões como Quebec e Seattle.
_ Apoio a organizações ecológicas: muitos grupos apoiam organizações ambientalistas, fornecendo hospedagem segura e ferramentas digitais;
_ Software livre: Além da questão política e de autonomia, o uso de software livre é visto também como um compromisso com a sustentabilidade, evitando a necessidade de “escrever tudo do zero” e facilitando a colaboração e a construção de comunidade, como no caso do Riseup, May First e Maddix.
_ Sites leves e estáticos: Sutty se concentra na criação de sites estáticos e leves, que “consomem menos energia, menos hardware e, em geral, utilizam menos largura de banda”.

_ Acesso offline: Sutty também explora projetos para acesso offline a sites através de telefones celulares, beneficiando comunidades remotas sem conectividade constante (p. 50-51).

_ Virtualização: GreenNet, Archipiélago Uno, Access Now e MariaLab usam servidores virtuais para “fazer um uso eficiente do hardware, executando múltiplos serviços de forma segura em menos máquinas”.
_ Data Centers autônomos: Colnodo e Código Sur mantêm data centers autônomos, com Colnodo usando energia solar para 30% de seu consumo. Código Sur recicla equipamentos e otimiza a largura de banda.

_ Visão de longo prazo: muitos grupos priorizam o desenvolvimento de tecnologias com uma visão de longo prazo, em vez de soluções pontuais

_ Não uso de IA: Esta é uma opção também, por que não? “Não usar IA” é uma política fundamental para muitos, promovendo o uso “intencional, cuidadoso e não consumindo dados indiscriminadamente” da tecnologia.

 

Vale a leitura completa (PDF, espanhol).

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Informática do Oprimido na Tapera Taperá https://baixacultura.org/2025/08/11/informatica-do-oprimido-na-tapera-tapera/ https://baixacultura.org/2025/08/11/informatica-do-oprimido-na-tapera-tapera/#respond Mon, 11 Aug 2025 14:06:28 +0000 https://baixacultura.org/?p=15895 Na próxima quinta-feira, 14/8, 19h, Rodrigo Ochigame, autor de “Informática do Oprimido” conversa com Gabriela Nardy, do Comitê de Redes Comunitárias, e comigo, Leonardo Foletto.

Rodrigo (site pessoal) é um historiador e antropólogo que estuda computação e inteligência artificial sob uma perspectiva crítica, professor na Universidade de Leiden (Holanda) e doutor pelo MIT (EUA). Alguns dos textos publicados por Rodrigo são ” A longa história da justiça algorítmica” (2022) e “Filtrar la Disidencia: Redes sociales y luchas por la tierra en Brasil” (2016). Atualmente ele está estudando epistemologia do aprendizado de máquina, tema que vai desenvolver nos próximos meses pesquisando no CERN, aquele mesmo laboratório do Grande Colisor de Hédrons (LHC) e da invenção da WWW pela turma de Tim Berners-Lee.

O livro tem ilustrações de Léo Daruma, prefácio do Instituto Paulo Freire e texto de apresentação de Leonardo Foletto e Caio Valiengo, também editores da coleção e está disponível para compra, com 20% de desconto até 22/8, no site da Funilaria (cupom BAIXACULTURA).

🗓 14/8, às 19h
📕 Tapera Taperá – Galeria Metrópole
📍Av. São Luís, 187 – 2º andar, loja 29 – República – São Paulo

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O ruído das rachaduras https://baixacultura.org/2025/08/11/o-ruido-das-rachaduras/ https://baixacultura.org/2025/08/11/o-ruido-das-rachaduras/#respond Mon, 11 Aug 2025 13:42:20 +0000 https://baixacultura.org/?p=15887 Brincar com a tecnologia é uma forma de nos defendermos dela. E com a internet, não é diferente. Uma tecnologia cada vez mais sob a influência do capital, mas que pode ser ainda usada como via de fuga de sua estrutura controladora. Esse é o ponto de partida para uma discussão que [she[l]d] — performance de live coding de lixt (aka Rafael Bresciani) — traz como provocação para uma conversa-experimento com Leonardo Foletto (BaixaCultura) na editora Sob Influência, na próxima quinta-feira, 14 de Agosto, às 18 horas. Uma investigação ao vivo sobre as possibilidades de uma semiose que escapa da lógica algorítmica dominante e que tenta perfurar os métodos estabelecidos de produção de sentido.

Após a performance-debate, às 19h haverá o lançamento de “Informática do Oprimido”, de Rodrigo Ochigame, na Tapera Taperá, no mesmo andar da Galeria Metrópole. Vamos publicar um relato aqui sobre ambos os eventos.

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Bibliotecas, redes e revoluções: o legado tecnológico dos oprimidos https://baixacultura.org/2025/08/01/bibliotecas-redes-e-revolucoes-o-legado-tecnologico-dos-oprimidos/ https://baixacultura.org/2025/08/01/bibliotecas-redes-e-revolucoes-o-legado-tecnologico-dos-oprimidos/#respond Fri, 01 Aug 2025 22:56:53 +0000 https://baixacultura.org/?p=15881  

Informática do Oprimido, de Rodrigo Ochigame, é o segundo livro da coleção <âncoras do futuro>, criada pela Funilaria em parceria com o BaixaCultura, que busca tentar politizar o mal-estar que nos acomete hoje sobre os rumos da internet e das tecnologias. Neste texto, publicado originalmente em 2021, Rodrigo explora algumas narrativas alternativas à visão dominante da tecnologia e que desafiam a pretensa universalidade dos modelos técnicos ocidentais. Como seria, por exemplo, nossas bibliotecas digitais, plataformas de busca e sistemas de catalogação se o “modelo cubano” descrito por Setién Quesada neste livro tivesse se tornado o paradigma dominante da ciência da informação? E se, em vez de redes sociais centralizadas em servidores corporativos, tivéssemos desenvolvido plataformas inspiradas nessas práticas de intercomunicação dos oprimidos, onde a topologia da rede refletisse as relações éticas e políticas que desejamos construir?

A segunda parte do livro, Propostas para infraestruturas digitais democráticas, avança para a proposição ao trazer sua experiência com movimentos sociais e redes de pesquisadores no Sul Global para apresentar sete propostas concretas para infraestruturas digitais orientadas ao interesse público e sob controle democrático.

Da recuperação histórica de alternativas tecnológicas do passado à imaginação de possibilidades concretas para o futuro, este livro nos lembra sempre que a tecnologia não é – nem nunca foi, nem nunca será – neutra.  Seus códigos, algoritmos e interfaces são campos de batalha onde valores, visões de mundo e projetos de sociedade disputam hegemonia. E é precisamente no reconhecimento dessa não-neutralidade que reside nossa capacidade de resistir e recriar.

Rodrigo Ochigame é um historiador e antropólogo que estuda computação e inteligência artificial sob uma perspectiva crítica, professor na Universidade de Leiden (Holanda) e doutor pelo MIT (EUA). O livro tem ilustrações de Léo Daruma, prefácio do Instituto Paulo Freire e texto de apresentação de Leonardo Foletto (editor deste espaço) e Caio Valiengo, também editores da coleção. Publicamos aqui abaixo o texto de apresentação na íntegra.

Bibliotecas, redes e revoluções: O legado tecnológico dos oprimidos

Leonardo Foletto e Caio Valiengo

A ascensão do poder das plataformas digitais na vida de bilhões de pessoas do planeta nos fez acostumar a ouvir (e repetir) um mantra: a tecnologia não é neutra. Felizmente, para uma grande parcela da população mundial não é (como nunca foi) novidade entender que um sistema de gerenciamento de bibliotecas digitais, ou um intrincado algoritmo que faz funcionar os feeds de uma rede social, carrega muitos dos valores e das visões de mundo de quem o programa. A forma de organizar a informação, ou com que se prioriza um conteúdo em vez de outro, reflete escolhas políticas, econômicas e culturais que frequentemente permanecem invisíveis para o usuário comum – e às vezes até para alguns dos programadores que arquitetam algoritmos, que não raro se perguntam “mas como que o algoritmo é político? Isso é matemática, multiplicação de matrizes, lógica pura”.

Langdon Winner, no clássico livro de 1986 intitulado The Whale and the Reactor [A baleia e o reator], utiliza um exemplo distante dos algoritmos atuais, mas que explicitam a mesma dinâmica:  o processo de mecanização de uma fábrica de máquinas agrícolas em Chicago nos anos 1880. Comumente lido como parte “natural” da história dos desenvolvimentos industriais do período, motivados principalmente pela eficiência econômica gerada pela mecanização, o contexto específico dessa inovação técnica nos conta outra história. Trabalhadores qualificados da fábrica haviam organizado um sindicato para conquistar melhores condições de trabalho. Como reação, os proprietários da fábrica fomentaram a mecanização do processo que permitia o manejo das máquinas por trabalhadores não qualificados. A mudança produtiva e tecnológica nem sequer gerava resultados mais eficientes, visto que apresentava produtos com qualidade inferior e custos mais altos. As novas máquinas foram abandonadas depois de três anos de uso, mas cumpriram a função de destruir o sindicato.

Esta inconsciência técnica não é acidental. A formação dos profissionais de tecnologia nos centros hegemônicos, aqui tanto no Norte como no Sul Global, tende a separar deliberadamente o “como fazer” do “por que fazer” e “para quem fazer”, criando gerações de programadores que, mesmo brilhantes em suas habilidades técnicas, raramente compreendem o impacto social e político das ferramentas que desenvolvem. Assim como o operário na linha de montagem que não apenas desconhece o produto final de seu trabalho, mas é alienado da compreensão de seu papel como classe produtora de valor na engrenagem capitalista, muitos cientistas da era digital produzem fragmentos de código sem consciência do sistema econômico, político e social que ajudam a construir e perpetuar. Este trabalhador digital, frequentemente seduzido pela narrativa meritocrática do setor tecnológico e pelo fetiche da inovação, raramente percebe como sua atividade intelectual, aparentemente neutra e puramente técnica, está inscrita em relações de poder que transformam conhecimento em commodity, dados em capital e usuários em produtos.

O que raramente se questiona nestes ambientes, porém, é como seriam essas tecnologias se tivessem sido desenvolvidas sob outras premissas, em outros contextos históricos e geopolíticos, por pessoas que experimentaram realidades diferentes daquelas dos centros de poder do Vale do Silício. Enquanto a narrativa hegemônica nos apresenta uma linha evolutiva aparentemente natural e inevitável dos sistemas técnicos — da ARPANET financiada pelo Departamento de Defesa americano à Internet comercial dominada por gigantes como Google e Facebook; dos mainframes da IBM aos computadores pessoais da Apple e Microsoft; dos sistemas proprietários e fechados às plataformas de “economia compartilhada” que, ironicamente, concentram riqueza como nunca —, há, nas brechas do mundo capitalista, experiências tecnológicas alternativas que ainda permanecem obscurecidas, relegadas às notas de rodapé da história oficial da computação.

“Informática do Oprimido” explora justamente algumas dessas narrativas alternativas à visão dominante da tecnologia e que desafiam a pretensa universalidade dos modelos técnicos ocidentais. Como seria, por exemplo, nossas bibliotecas digitais, plataformas de busca e sistemas de catalogação se o “modelo cubano” descrito por Setién Quesada neste livro tivesse se tornado o paradigma dominante da ciência da informação? Em vez de algoritmos otimizados para maximizar cliques e tempo de permanência, teríamos sistemas que medem e valorizam uma efetiva “comunicação social autor-leitor” – aquela relação dialógica onde o leitor não é mero consumidor passivo de conteúdo, mas participante ativo num processo de construção coletiva de sentido através do acervo bibliográfico? O modelo cubano reconhecia esta dimensão social da leitura, mensurando não apenas quantas pessoas acessam determinado material, mas como esse acesso se traduz em apropriação crítica e transformadora do conhecimento. Sob esse modelo, nossas plataformas digitais não reduziriam o conhecimento a mercadorias distribuídas por métricas de engajamento e economia de atenção, mas reconheceriam a complexidade das interações humanas com a informação? A avaliação do sucesso de um sistema não seria baseada apenas em quantos usuários acessam determinado conteúdo, mas na qualidade e profundidade dessas interações, permitindo comparações contextualizadas entre diferentes comunidades e períodos históricos? Teríamos, enfim, uma internet que não apenas conecta pessoas a conteúdos, mas que compreende e nutre as relações sociais que dão significado ao conhecimento compartilhado?

Estes são exercícios de especulação, claro, que trazemos aqui porque fizemos enquanto líamos este texto pela primeira vez – e fica o convite para vocês fazerem também. Ao trazer à luz experiências do Sul Global, especialmente da América Latina, “Informática do Oprimido” nos convida a questionar a história única da tecnologia e a perceber que outros futuros tecnológicos não apenas foram imaginados, mas efetivamente construídos, mesmo que por breves períodos ou em circunstâncias adversas. As redes de solidariedade e comunicação popular desenvolvidas pelos movimentos de base ligados à Teologia da Libertação, também descritas neste livro, nos oferecem outro vislumbre dessas possibilidades: comunidades eclesiais que criaram sistemas de comunicação horizontal e participativa, muito antes da internet, antecipando aspectos fundamentais da teoria de redes distribuídas. As tecnologias sociais que emergiram dessas experiências – onde meios analógicos como rádios comunitárias, boletins mimeografados e redes de mensageiros se entrelaçavam para formar uma infraestrutura de comunicação resiliente à repressão – nos mostram como uma tecnologia verdadeiramente libertadora não está necessariamente atrelada à última inovação de software ou hardware, mas também à forma como suas arquiteturas de rede incorporam e amplificam valores de reciprocidade, proteção mútua e construção coletiva de saberes. E se, em vez de redes sociais centralizadas em servidores corporativos, tivéssemos desenvolvido plataformas inspiradas nessas práticas de intercomunicação dos oprimidos, onde a topologia da rede refletisse as relações éticas e políticas que desejamos construir?

Oprimidos no Chile 

Ainda que não citadas no livro, as experiências de Cuba e da intercomunicação nos anos 1970 e 1980 dialogam com outras duas experiências, no Chile de Salvador Allende (1970-1974), que ecoam um imaginário do que poderia ser uma espécie de modernidade tecnológica latino-americana em que a tecnologia não está afastada das necessidades sociais. O Cybersyn, concebido pelo ciberneticista britânico Stafford Beer em parceria com engenheiros chilenos liderados por Fernando Flores, representou uma visão radicalmente democrática da computação aplicada à economia. Utilizando tecnologia computacional modesta para a época – uma rede de apenas 500 teletipos e um computador mainframe IBM – o sistema criava um fluxo de informações em tempo quase real entre fábricas, centros de distribuição e órgãos governamentais*. Ao contrário dos sistemas cibernéticos soviéticos centralizados, o Cybersyn foi desenhado como uma rede de autonomia viável, onde as decisões fluíam tanto de baixo para cima quanto de cima para baixo, com trabalhadores das fábricas tendo papel ativo no monitoramento e ajuste da produção. A icônica “Sala de Operações” com suas cadeiras futuristas e telas de visualização de dados encarnava uma estética alternativa de tecnologia e também uma ideia de que sistemas técnicos poderiam amplificar, em vez de substituir, a inteligência coletiva dos trabalhadores**.

Paralelamente, a Editora Nacional Quimantú (que em mapuche significa “Sol do Saber”) representou uma revolução na democratização do acesso ao conhecimento. Nacionalizada a partir da antiga Editora Zig-Zag, a Quimantú transformou radicalmente tanto os processos de produção editorial quanto os modelos de distribuição editorial ao produzir livros com tiragens de até 50 mil exemplares vendidos a preços acessíveis*** em bancas de jornal, estações de trem e sindicatos. A editora estatal criou coleções como “Minilibros”, “Cuadernos de Educación Popular” e “Nosotros nos chilenos”, que levaram literatura, história, teoria política e a tentativa de construção de uma identidade nacional socialista, a setores historicamente excluídos do mercado editorial – além de ter experimentado com formas participativas de definição de seu catálogo, incluindo consultas a organizações de base sobre suas necessidades de formação****. Essa foi uma experiência do governo da Unidade Popular que buscava a criação de novos meios e indústrias de comunicação, como a criação da Chile Films, da Televisão Nacional e a estação de rádio Magallanes, onde Allende fez seu último discurso em meio a bombardeios e rajadas de metralhadoras.

Tanto Cybersyn quanto Quimantú foram brutalmente interrompidos pelo golpe militar de Augusto Pinochet em 11 de setembro de 1973. A perseguição a estes projetos foi estratégica: representavam perigosas alternativas ao modelo tecnocientífico e cultural que o neoliberalismo chileno precisava implantar. O Chile, como se sabe, foi o laboratório experimental das políticas que mais tarde seriam globalizadas, e o Golpe Militar que tirou Allende do poder (e o matou) é reconhecido pelo filósofo inglês Mark Fisher como o evento fundador do realismo capitalista – o reconhecimento fatalista de que não há alternativa ao capitalismo*****. Para Eden Medina*******, pesquisadora chilena, professora do MIT (EUA) e uma das pioneiras na sistematização da experiência tecnológica da Unidade Popular, a história do Cybersyn mostra também que não se trata apenas de sonhos utópicos, mas sim uma iniciativa construída coletivamente que fazia parte de um projeto político que tinha aspirações reais e tentava transformar a sociedade.

Estas experiências chilenas, assim como as bibliotecas cubanas e as redes de comunicação popular descritas em “Informática do Oprimido”, compartilham não apenas visões alternativas de tecnologia, mas também destinos marcados por interrupções violentas ou por pressões sistemáticas para sua descaracterização. Se os projetos chilenos foram abruptamente destruídos pelo golpe de Pinochet, as bibliotecas cubanas enfrentaram décadas de embargo econômico que limitaram severamente sua capacidade de modernização tecnológica, enquanto as redes de intercomunicação popular ligadas à Teologia da Libertação foram perseguidas e desmanteladas pelos regimes militares que se espalharam pela América Latina. Estes movimentos revelam um padrão: alternativas tecnológicas que desafiam a lógica dominante raramente são permitidas a amadurecer ou escalar, pois são cortadas ainda em germinação. Ou, quando sobrevivem, são relegadas a nichos marginais, impossibilitadas de competir em condições justas com os modelos hegemônicos.

Aprender com o passado, resistir ao futuro

As experiências chilenas e as descritas em “Informática do Oprimido” são apresentadas aqui não como meras curiosidades históricas ou utopias fracassadas, mas como sementes de possíveis futuros tecnológicos alternativos que persistem na memória e nas práticas de comunidades resistentes. Em um momento onde o colapso climático se aproxima, exacerbado pela crescente demanda por energia e água para os data centers dos serviços de Inteligência Artificial Generativa, retomar estas experiências e criar novos imaginários tecnológicos torna-se cada vez mais necessário para quem resiste às tecnologias hegemônicas das Big Techs do Vale do Silício.

É nesse contexto que se insere a segunda parte do livro, “Propostas para infraestruturas digitais democráticas”, escrita por Rodrigo Ochigame quatro anos depois da publicação que dá nome a este livro na Logic Magazine. Professor de Antropologia na Universidade de Leiden e doutor pelo MIT, Ochigame não se limita à análise histórica, mas avança para a proposição ao trazer sua experiência com movimentos sociais e redes de pesquisadores no Sul Global para apresentar sete propostas concretas para infraestruturas digitais orientadas ao interesse público e sob controle democrático. Essas propostas – que vão desde novos modelos de financiamento até arquiteturas técnicas descentralizadas – formam um programa para gestores e comunidades comprometidas com uma tecnologia inclusiva e democrática. O livro, assim, fecha seu ciclo: da recuperação histórica de alternativas tecnológicas do passado à imaginação de possibilidades concretas para o futuro, lembrando-nos sempre que a tecnologia não é – nem nunca foi, nem nunca será – neutra. Seus códigos, algoritmos e interfaces são campos de batalha onde valores, visões de mundo e projetos de sociedade disputam hegemonia. E é precisamente no reconhecimento dessa não-neutralidade que reside nossa capacidade de resistir e recriar.

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* Essa história é extensamente relatada por Eden Medina no livro “Cybernetic Revolutionaries: Technology and Politics in Allende’s Chile”, publicado em 2014 pela MIT Press.
** Vale conferir o podcast “The Santiago Boys”, escrito e apresentado pelo bielorusso Eugeny Morozov, que conta essa história em detalhes.
*** Vendido nos tradicionais quioscos, uma espécie de banca de jornais e livros no Chile, a editora tinha o lema de que o preço de um livro deveria ser equivalente a um maço de cigarros.
**** Para saber mais sobre essa experiência, ver “Quimantú y la colección Nosostros los Chilenos”, da editora independente chilena Tiempo Robado e, em breve, pela Funilaria.
***** Ver “Comunismo Lisérgico”, texto introdutório de um livro que, infelizmente, Mark Fisher nunca publicou.
******* “Aprendendo com Cybersyn, 50 anos depois: entrevista com Eden Medina”, entrevista para o Digilabour.

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Semiótica do fim – apresentação https://baixacultura.org/2025/06/17/semiotica-do-fim-apresentacao/ https://baixacultura.org/2025/06/17/semiotica-do-fim-apresentacao/#respond Tue, 17 Jun 2025 20:07:37 +0000 https://baixacultura.org/?p=15837 Mais ou menos um ano atrás, estive em Amsterdam, na Holanda, para participar do Mozilla Festival, um dos principais (e únicos) festivais internacionais que trata de ativismo, cultura e arte digital de modo conectado. Encontrei pessoalmente Geert Lovink, diretor do Institute of Network Cultures (INC), que há algum tempo conhecia de leituras e trocas de e-mails, e entreguei pra ele a cópia em português que fizemos, com a Funilaria, de “Extinção da Internet“, livro que ele havia escrito dois anos antes, em plena pandemia, para uma aula na Universidade de Amsterdam. Saí do INC – um oásis gráfico/pesquisa interdisciplinar que ocupa quase um andar inteiro de um prédio da Universidade de Ciências Aplicadas da capital holandesa – com a sacola cheia de alguns dos livros que eles produzem. Um deles se chamava “Semiotics of the End: On Capitalism and the Apocalypse”, de 2023, que inaugurou uma nova coleção do Instituto, “Network Notion”. Li todo no vôo de volta e, logo que cheguei no Brasil, comentei pra Rodrigo Côrrea, designer e editor da SobInfluencia: “li um livro excelente que tem a cara do que vocês têm publicado”. Mandei o PDF – livre em inglês aqui, como todos do INC –  e alguns meses, vários e-mails trocados da editora com Sbordoni e uma tradução competente de Victor Hermann depois – o livro está feito, bonitaço,  em pré-venda, disponível fisicamente a partir de meados de julho de 2025, quando o autor também estará no Brasil. Escrevi a apresentação, que publico aqui abaixo como um convite à leitura dessa curta e provocativa série de ensaios sobre o fim.

[Leonardo Foletto]

 

O livro que você tem em mãos é uma coletânea de 13 ensaios que investiga como o fim do mundo se tornou apenas mais um signo do que Alessandro Sbordoni, ecoando principalmente Franco “Bifo” Berardi, chama de “semiocapitalismo”. Trata-se de uma fase específica e avançada do capitalismo onde a produção de valor tem se deslocado da fabricação de bens materiais para a produção e circulação de signos, informações, afetos e relações sociais. Como diz Bifo, em um trecho citado nesse livro, “o semiocapitalismo coloca as energias neuropsíquicas para trabalhar, submetendo-as à velocidade mecanicista e forçando a atividade cognitiva a seguir o ritmo da produtividade em rede

A tese – se podemos assim chamá-la num texto tão aberto a provocações e leituras distintas – é que o fim do mundo é “apenas mais um signo” do semiocapitalismo: o apocalipse, tal como tradicionalmente concebido, não ocorrerá porque já está em curso permanente. Em sua visão, não há mais diferença entre o fim do mundo e o próprio capitalismo: ambos se reproduzem incessantemente segundo a lógica semiótica do capital. Este livro, então, se apresenta como um manifesto que nos convida a pensar sobre o que significa “fim” hoje.

Nos 13 ensaios permeia um diálogo com a famosa formulação atribuída a Frederic Jameson, mas popularizada por Mark Fisher em seu livro “Realismo Capitalista”: “é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”. Fisher argumentou que o capitalismo se apresentou após 1989 como o sistema político-econômico “padrão” com o qual nenhuma outra forma política estrangeira pode disputar, criando uma condição psicológica coletiva que torna muito difícil pensar em qualquer alternativa. A intuição de Fisher também é compartilhada pelo próprio Bifo em “Depois do Futuro” (lançado no Brasil em 2019 pela Editora Ubu): o “lento cancelamento do futuro”, diz Bifo, torna cada vez mais difícil imaginar futuros por decorrência também do afogamento coletivo pela superoferta de informação libertada na internet.

Sbordoni, entretanto, propõe ir além desse diagnóstico ao sugerir que ainda não imaginamos suficientemente estes “fins” – e que “o fim é apenas o começo”. Faz isso oferecendo um diálogo direto com alguns dos mais influentes nomes da crítica cultural e da filosofia dos últimos 40 anos, de Jean Baudrillard a Bernard Stiegler, Byung-Chul Han, Jacques Derrida, Giorgio Agamben, Nick Land, Slavoj Žizek, Tiqqun, Susan Sontag, além do jás citados Bifo Berardi, Mark Fisher e outros tantos. Este cardápio apresentado compõe uma espécie de banquete filosófico que nos alimenta de diversos , que cobrem diferentes aspectos de nossa vida acelerada pelas tecnologias do início do século 21, e que por conta disso necessitam paradas estratégicas para digerir e assentar as ideias – também para buscar relacionar as ideias apreendidas com as nossas experiências e reflexões cotidianas.

Esse assentamento de ideias e a conexão com referências próximas a nós é facilitado pela profusão de referências à cultura pop, já que a análise do livro, embora parte de filósofos de uma “alta teoria”, digamos, também quer entender algo que é prosaico e comum: como o apocalipse está presente nos produtos culturais que nos cercam neste século 21.

Aqui, vemos desde a música pop de Britney Spears (“Till the World Ends”), que na visão de Sbordoni se insere numa narrativa do fim como consumismo sem finalidade, numa “catástrofe do sentido” esvaziada de realidade pela repetição, até como “Vingadores: Ultimato”. No filme, que teve uma das maiores bilheterias da história do Cinema, os mortos retornam à imagem no desfecho do filme para anunciar um próximo filme do Universo Marvel – o que, na visão do autor, exemplifica a ideia de o fim, em si, é um signo de mais reprodução, mais simulação e repetição do mesmo.

Há ainda um cardápio enorme de músicas, filmes, ações e objetos estéticos citados e analisados sob a perspectiva crítica de Sbordoni, que incluem o glitch, por exemplo, e os backrooms– um estranho fenômeno na internet, originário do 4chan, misto de lenda urbana e espaço físico (inventado?), um lugar de transição que poderia figurar num hipotético (e hipnótico) clipe de “Road to Nowhere” dos Talking Heads remixada por algum DJ de trap nascido nos anos 2000.

Você ficará surpreso (ou não) em saber que o autor deste livro é um linguista e filósofo italiano nascido em Cagliari, maior cidade da ilha da Sardenha, na Itália, no mesmo ano em que a internet comercial estreou no planeta – 1995. Atualmente vivendo em Londres, onde trabalha para a editora de acesso aberto Frontiers, Sbordoni é também autor de “The Shadow of Being: Symbolic/Diabolic” (2023) e editor da revista britânica Blue Labyrinths, junto com o autor do posfácio deste livro Matt Bluemink, e da italiana Charta Sporca, ambas provocativas publicações digitais que tratam de filosofia, literatura, música e cultura digital. “Semiótica do Fim” foi publicado originalmente em inglês em 2023 pelo Institute of Network Cultures, de Amsterdam, dirigido por Geert Lovink, um dos principais e mais longevos teóricos e críticos da cultura digital – que, não por acaso, compartilha de muitas das referências citadas por Sbordoni, além da abordagem alta teoria e cultura pop da internet, como você pode ver em, por exemplo, “Extinção da Internet”, publicado em 2023 no Brasil pela Editora Funilaria em parceria com o BaixaCultura.

Este livro pode oferecer ferramentas conceituais relevantes para nós, brasileiros, também porque aqui parece haver um terreno fértil para o desenvolvimento da “anti-assombrologia” – o conceito que Sbordoni e Bluemink desenvolvem para pensar além dos fantasmas que assombram o presente. Se Mark Fisher escreveu sobre a assombrologia, em “Fantasmas da Minha Vida” (lançado no Brasil em 2022 pela Autonomia Literária), que “o futuro é sempre experienciado como uma assombração”, no Brasil experimentamos algo distinto.

Nossos fantasmas também vêm de futuros não realizados que, mesmo assim, insistem em irromper no presente através da urgência, da escassez e de nossa habilidade, aqui tornada indispensável, de festejar – e tudo que está implicado na festa, sobretudo a corporeidade da diversão manifestada na dança. Nossa produção cultural – do funk carioca ao tecnobrega, dos memes novelescos aos passinhos – não apenas processa ansiedades sobre o fim, mas remixa constantemente novos começos a partir do que parecia destruído (ou esquecido). A crítica de Sbordoni ao semiocapitalismo ressoa aqui, para além de um diagnóstico melancólico, também como um reconhecimento de uma capacidade brasileira de criar outros circuitos, outras relações com o tempo que desafiam a lógica linear do apocalipse capitalista. Se o autor propõe que “o fim é apenas o começo”, no contexto brasileiro isso não é metáfora, mas uma necessidade: somos especialistas em transformar precariedade em potência, nem que seja para fazer do fim do mundo mais uma oportunidade de recomeçar – e dançar. Todo apocalipse, no fundo, também é véspera de festa.

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Tecnopolíticas de retomada: bifurcar para resistir https://baixacultura.org/2025/05/09/tecnopoliticas-de-retomada-bifurcar-para-resistir/ https://baixacultura.org/2025/05/09/tecnopoliticas-de-retomada-bifurcar-para-resistir/#comments Fri, 09 May 2025 19:48:26 +0000 https://baixacultura.org/?p=15809 Republicamos aqui o ensaio-manifesto criado a partir do GT Experimentações Tecnopolíticas, da Coalizão Direitos na Rede. O texto, produzido no âmbito das atuações do GT (que ocorrem desde 2023 e podem ser vistas aqui), foi escrito por Alana Moraes, Henrique Parra, Leonardo Foletto e Pedro Ekman. Ele sintetiza alguns dos debates e seminários realizados nas discussões do grupo e de encontros como o Laboratório de Experimentações Tecnopolítica, em dezembro de 2023, o “Tecnopolíticas de Retomada“, na CryptoRave de 2024, e o práticas de imaginar & fazer mundos, em novembro de 2024. O GT segue em atividade e neste 2025/1 terá uma mesa na CrypoRave, 10h do dia 17/5, com o mesmo nome deste texto e a propsota de discutir e levantar ações e ideias provocadas também a partir desse ensaio-manifesto.

 

a máquina está em nós

Nosso laboratório de experimentação tecnopolítica parte de um diagnóstico aterrador ao mesmo tempo que procura encontrar caminhos contra a atual paralisia: reconhecer os bloqueios e capturas que governam nosso tempo e imaginação sem nos render, mapear os inimigos sem abrir mão daquilo que nos torna capazes de agir e do que nos vincula. E o que nos vincula? Quais as formas de vida estamos dispostos a criar e defender? Mckenzie Wark chama de “baixa teoria” (low theory) a prática de fazer teoria junto de um movimento, um coletivo, um estudo compartilhado, uma pequena conspiração. É a baixa teoria que nos move aqui.

Há 25 anos atrás, os debates sobre tecnologias digitais (ao menos aqueles que a maioria de nós estavamos engajados) pareciam apontar, enfim, para uma possibilidade de liberação da vida dos circuitos de produção e circulação de valor do capital; liberação do conhecimento e das tecnologias em relação aos regimes proprietários; liberação da ação política para além das fronteiras nacionais e das instituições de representação.

Hoje, a situação dificilmente escapa de uma análise catrastrofista. Não só nosso sonho de liberação foi abatido, mas a reorganização dos regimes de poder e do capital se alimentaram da nossa vitalidade, transformando as noções de “liberdade”, “conhecimento aberto”, “livre circulação da informação”, “democratização da comunicação”, “inteligência coletiva”, “participação política” em ativos para a expansão e o fortalecimento dos sistemas de dominação.

O pior: o êxito do tecnoautoritarismo e do capitalismo tecnoinformacional nos faz suspeitar de nós mesmos. Fomos ingênuos demais? Entregamos mais do que deveríamos na aposta de uma internet como território livre? Subestimamos os inimigos e suas armas de captura? Diante disso, como retomar um horizonte de transformação radical agora que a expansão da digitalização da vida e das tecnologias informacionais se impõem como mediação ubíqua entre nossas práticas e discursos, nossas relações e nossos pensamentos, nosso desejo, sensibilidade e imaginação, nossa memória e a produção de futuros? E qual é a memória ou a experiência compartilhada que nos vincula quando a vida é convertida em excesso informacional?

Um dos aforismos de “Um Manifesto Hacker”, de Mckenzie Wark, dizia: “os hackers usam seu conhecimento e sua perspicácia para manter sua autonomia”. Essa ainda nos parece uma formulação provocadora. Ao invés de nos mover na direção de uma “soberania digital” pensada nos termos da geopolitica dos estados-nação e seus projetos de poder e controle, preferimos nos perguntar: quais os arranjos sociotécnicos que podem sustentar autonomias ? Aliás: o que é autonomia? Entre outras coisas, pensamos em formas de vida que emergem nos intertícios dos circuitos de valor e espoliação do tecnocapital, territórios de interdependência multiespécie cujas formas técnicas estão voltadas à vida, à diversidade, ao tempo do cultivo lento, à reciprocidade e aos modos ativos de dispersar o poder e às formas de controle. Um território não precisa ser um espaço fisíco com fronteiras bem delimitadas, ele pode ser instituído a partir de relações que vinculam práticas e pertencimentos, cumplicidades e dissidências. 

A gramática do extrativismo constitui a economia tecnopolítica civilizatória no presente global e faz convergir modos permanentes de espoliação e gestão autoritária para converter e administrar territórios vivos em zonas passíveis de serem sacrificadas. As ditas inovações  tecnocientíficas recentes, ligadas  à  expansão  das  tecnologias  digitais  como os modelos de inteligência  artificial, por exemplo, apresentam  um  novo  ciclo  de  demanda  crescente  por energia elétrica e extração dos chamados metais raros. Ainda que possamos defender tecnologia de “baixo impacto”, nos parece importante voltar às perguntas mais fundamentais como, por exemplo, que tipo de produção de conhecimento nos interessa? O que entendemos por eficiência? O que é o Comum que estamos dispostos a cultivar e defender? Nos parece que em nome da “transição energética” ou dos novos conflitos militaristas se renova o espírito da ideologia tecnopolítica da Guerra Fria na qual a ideia de “avanço tecnológico”, escalabilidade, automação e eficiência passam a dar as cartas, de forma mais decisiva, na geopolítica global e na legitimidade das formas políticas coloniais de domínio.

Diante deste cenário, os esforços de regulação do capitalismo tecnoinformacional parecem mais pavimentar o caminho por onde circula a espoliação e o controle civilizatório do que produzir formas de resistência e garantia de direitos. 

Por um lado, a exponencial capacidade de vigilância, encarceramento e extermínio permitiu aos Estados e suas estruturas militares incrementarem  genocídios ao mesmo tempo que os convertem em eventos cotidianos narrados em nossas barras de rolagem.  Por outro lado, a digitalização da nossa vida e as dinâmicas de vigilância e controle se espalham no tecido social em uma epidemia praticada não só pelo Estado, mas nas famílias, amigos-seguidores, vizinhos ou empresas. 

Como nossas imaginações e práticas coletivas de transformação podem retomar os vínculos com o desejo insurgente? Se o que constitui uma máquina é, sobretudo, suas ações de concatenação – talvez nossa potência não esteja na adoção de uma forma técnica supostamente libertadora ou mais justa, mas na força que conecta nosso desejo de liberação com nossas capacidades de experimentar, já no presente, outras formas de vida.

Escapemos do regime de visibilidade e da economia política narcísica; recusemos o espaço dos monopólios coorporativos como sendo a nova esfera pública, desertemos da máquina de captura e extração para criar e alimentar uma economia própria de suporte mútuo e de defesa do Comum. Criar e sustentar mundos sob outras racionalidades, normatividades e cosmovisões, ao mesmo tempo que se sabota as engrenagens do rolo compressor colonial para reduzir a eficiência do sistema dominante, desinvestindo e fragilizando suas infraestruturas técnicas, econômicas e jurídicas. Romper com os critérios da eficiência técnica capitalista e viver sob os critérios de suficiência Terrana. A luta coletiva no campo tecnopolítico digital pode ser aqui e agora uma luta cosmopolítica, anticapitalista e contra-colonial.

Alana Moraes, Henrique Parra, Leonardo Foletto, Pedro Ekman

 

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Conectados e cansados https://baixacultura.org/2025/03/23/conectados-e-cansados/ https://baixacultura.org/2025/03/23/conectados-e-cansados/#respond Sun, 23 Mar 2025 21:45:37 +0000 https://baixacultura.org/?p=15803  

A internet dos anos 2000 prometeu liberdade e colaboração e entregou Big Techs, plataformização da vida e a precarização do trabalho criativo. O que levou a essa transformação? No dia 13 de março, Sílvio Lorusso, autor do livro “Emprecariado” (Clube do Livro de Design, 2023) e eu debatemos os impactos desse cenário e o futuro do trabalho digital. Foi na Risotropical (Galeria Metrópole), centro de São Paulo, das 19h às 21h30, evento organizado pela Ubunttu, Clube do Livro do Design (especialmente Tereza Bettinardi, editora e designer por trás da iniciativa) e que fez parte da DW! Semana de Design.

Gravei em áudio a maior parte da conversa e recupero aqui alguns trechos destacados:

_ Um conceito central discutido é a plataformização, que se refere ao crescente domínio das estruturas de plataformas em diversos aspectos da vida, desde mobilidade e redes sociais até trabalho, saúde, alimentação e serviços públicos – veja aqui o artigo já clássico que analisa o conceito em suas principais dimensões.  Falamos da (óbvia) constatação de que cada vez mais se acessa a internet via plataformas (em seus “jardins murados”), locais onde infraestruturas econômicas e políticas, com seus mecanismos próprios de governança, operam. A plataformização coincide com uma mudança na percepção das possibilidades utópicas da internet, da “ressaca da internet”, com o reconhecimento de que foram as plataformas que acabaram com as possibilidades transformadoras de descentralização e autonomia da internet;

_ A crítica ao tecnolucionismo, a ideia de que a solução para diversos problemas reside em mais tecnologias, mais aplicativos, mais plataformas, quando na verdade essa abordagem muitas vezes só serve à monetização de dados e alimenta um ciclo de desigualdade, para não falar do aumento da concentração de poder político e da perda da capacidade de imaginar outros modelos de gestão e organização da infraestrutura da comunicação. A ascensão das IAs generativas tem acelerado ainda mais esse processo;

_  A discussão sobre empreendedorismo, tema do “Emprecariado” (livro de Lorusso), foi, claro, ponto central da conversa. A ideologia de ser empreendedor é vista por Lorusso como o outro lado da precariedade. Há, em comum, o fato de ambas ideias estarem ligados à ideia de risco,  mas com o empreendedor abraçando a incerteza como oportunidade, enquanto o trabalhador precário vivencia o ser empreendedor como uma imposição. As plataformas, como se sabe, exacerbam essa relação, como discutido no livro, que analisa diversas plataformas para além das tradicionais “Gafam” (Google, Amazon, Facebook, Apple, Microsoft): o LinkedIn, o makretplace de freelas Fiverrg; e o GoFundMe, plataforma de crowdfunding que, segundo Lorusso, exemplifica como a lógica da criatividade e do financiamento coletivo pode se estender a necessidades sociais e, com isso, expor uma certa “criatividade trágica” generalizada.

_ Falamos também das alternativas às plataformas centralizadas, como as plataformas federadas (no Fediverso), que operam com uma lógica descentralizada, onde cada instância têm suas próprias regras. Comentei também que essas plataformas, que têm ganhado um certo boom neste 2025 com a migração de pessoas cansadas das redes sociais alinhadas à Trump, também enfrentam desafios relacionados à moderação de conteúdo em larga escala, além da necessidade de organização e trabalho para manter esses espaços saudáveis.

_ Além de provar o chimarrão gaúcho, Lorusso comentou sobre como, na sua breve vivência em território brasileiro (que incluiu o Carnaval), teve um certo assombro em perceber a implementação generalizada – e normalizada –  das tecnologias de reconhecimento facial nas grandes cidades brasileiras. A precariedade inerente ao contexto brasileiro parece fazer com que experimentos tecnológicos sejam mais facilmente implementados aqui (e no restante do Sul Global) do que em lugares como a Europa (Portugal em especial, onde ele vive; mas também na Itália, sua terra de origem). 

_ Por fim, comentamos até sobre a proliferação das apostas online (bets), motivados por uma pergunta da platéia. É um fenômeno inescapável no país e que demanda um novo vocabulário para entender a dinâmica de plataforma e precarização, agora desvinculada da ideia de produção ou do trabalho tradicional, e que tem impactos sociais significativos, especialmente entre a população de baixa renda.

As fotos do evento abaixo são da Helena Wolfenson.

 

 

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