BaixaCultura https://baixacultura.org Cultura livre & (contra) cultura digital Fri, 26 Sep 2025 23:22:35 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.0.10 https://baixacultura.org/wp-content/uploads/2022/09/cropped-adesivo1-32x32.jpeg BaixaCultura https://baixacultura.org 32 32 17 anos de BaixaCultura https://baixacultura.org/2025/09/26/17-anos-de-baixacultura/ https://baixacultura.org/2025/09/26/17-anos-de-baixacultura/#comments Fri, 26 Sep 2025 23:22:35 +0000 https://baixacultura.org/?p=15939 Seguindo a tradição, todo 15 de setembro esquecemos de comemorar nosso aniversário. Ano pasado, nos 16, começamos essa tradição de assumir o esquecimento. Em 2023, nos 15 anos, fizemos um texto um mês depois. Os 14, em 2022, foi um raro ano com um texto na data certa – apenas porque lançamos o site novo nesse mesmo período. Em 2021, não fizemos nada. Em 2020, no auge da pandemia, só lembramos de mencionar um breve comentário em uma newsletter semanas depois. 2019 nada, mas 2018 foi um ano inédito: fizemos uma pequena comemoração presencial, quando ainda estávamos em Porto Alegre, chamado “BaixaCultura 10 anos – História Aberta”.

Anterior à tradição de comemorar atrasado nosso aniversário é o de lembrar o primeiro post do site: Cópia Boa, Cópia Má – ou o início. A grande discussão em 2008 era o download livre e suas consequências para o direito autoral, a indústria cultural, o acesso ao conhecimento (e à informação) – daí o nome BaixaCultura. Dizíamos (eu e Reuben da Rocha, co-fundador) que a lógica industrial da cultura dominante ao longo do século 20 foi baseada num esquema feroz de controle autoral (o copyright), e que, naquele momento, a tecnologia digital dificultava esse controle e tornava os lucros cada vez menores nesta indústria, mesmo com os esforços (hoje até engraçados) das campanhas antipirataria promovidas sobretudo pelos estúdios de Holywood e as grandes gravadoras. A pretexto do documentário “Good Copy, Bad Copy”, endossávamos o sampler – “numa sociedade entupida de informação, a utilização de materiais pré-existentes pode ser bem mais subversiva do que produzir a partir dum vago princípio de originalidade” – a cópia livre, o acesso à cultura como elemento central na qualidade de uma democracia, o dub, o rap, o trabalho “criminoso” do Dj Danger Mouse, a contra-indústria do tecnobrega do Pará e a Nollywood nigeriana.

Desnecessário dizer que muita coisa mudou de lá pra cá. Podemos dizer que fomos ingênuos em acreditar no potencial transformador de uma internet livre. Ou talvez não: a transformação ocorreu, mas para pior. 17 anos atrás – como 20, ou 25 anos – parecia uma boa tática liberar informações da forma de propriedade. Mckenzie Wark disse, em 2023, no prefácio à edição brasileira de “Um Manifesto Hacker”, – e nós não poderíamos endossar mais – que “as forças de produção, neste caso as forças de produção de informação, ultrapassaram as relações de produção existentes”. A produção de informação livre surgiu como uma prática a partir da qual se cria uma produção autônoma de conhecimento. O que para nós era uma prática de vanguarda rapidamente, e de forma independente, tornou-se um movimento social: o movimento pela informação livre. À medida que a internet se tornou uma forma de comunicação mais popular, todos começaram a compartilhar. Como diz a tese 126 de “Um Manifesto Hacker”: “a informação quer ser livre, mas está acorrentada em todos os lugares”. (Uma frase que é um desvio de Rousseau e do teórico utópico da internet John Perry Barlow). Parecia que poderíamos abrir a forma-mercadoria da informação em favor de uma espécie de economia de dádiva (gift) abstrata.”

Mas como segue dizendo Wark, “A resposta da classe dominante ao movimento social pela informação livre foi a criação de uma forma de propriedade ainda mais abstrata”. A classe dominante dominante, que ela chama de classe vetorialista, recuperou a energia do movimento popular pela informação livre transformando-a em trabalho não remunerado. Este ciclo foi acelerado em escala ainda maior com a popularização dos sistemas de Inteligência Artificial Generativa, já que, como temos acompanhado, estes sistemas foram treinados no vasto tesouro de informações livres que criamos para nós mesmos, muitas vezes querendo (ou pensando que) estas informações poderiam ser bens comuns (commons). O que a classe vetorialista está tentando fazer agora, segundo Wark, é a substituição da classe hacker por máquinas capazes de fabricar a diferença – e achamos que tem conseguido, não?

Apesar desse cenário menos esperançoso que o de 17 anos atrás, seguimos por aqui. Também acreditando que podemos falar da cultura livre como liberdade positiva; tentando entender os meandros do colonialismo digital e as interferências das IAs nos direitos dos escritores; divulgando iniciativas para infraestruturas autônomas e comunitárias de tecnologias; recontando histórias de uma informática do oprimido latino-americana para soltar nossa imaginação sobre tecnologias alternativas, talvez como uma hiperstição aceleracionista – inventar futuros ficcionais para que eles possam se tornar reais. Seguimos documentando a cultura livre e entendendo as IAS de código aberto – mesmo que tenhamos muitas dúvidas se de fato o software livre possa derrotar as big techs. E buscando entender como a história da cópia e do desvio no século XXI pode dar luz sobre as práticas futuras de criação desviante – a cópia na era de sua proliferação técnica. Por fim, também achamos que para criticar e desconstruir artefatos complexos como os monopólios de IA, devemos fazer o trabalho meticuloso de desfazer – passo a passo, arquivo a arquivo, conjunto de dados a conjunto de dados, metadado a metadado, correlação a correlação, padrão a padrão – o tecido social e econômico que os constitui na origem. E que, para reagir e propor alternativas concretas, precisamos cada vez mais de uma cultura de invenção, concepção e planejamento que se preocupe com as comunidades e o coletivo, sem nunca ceder totalmente a agência e a inteligência à automação.

É por aí que seguiremos adelante.

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Capitalismo, semiótica e as subjetividades do fim: entrevista com Alessandro Sbordoni https://baixacultura.org/2025/09/10/capitalismo-semiotica-e-as-subjetividades-do-fim-entrevista-com-alessandro-sbordoni/ https://baixacultura.org/2025/09/10/capitalismo-semiotica-e-as-subjetividades-do-fim-entrevista-com-alessandro-sbordoni/#respond Wed, 10 Sep 2025 14:25:14 +0000 https://baixacultura.org/?p=15913 Em julho de 2025, o italiano radicado em Londres Alessandro Sbordoni esteve no Brasil para o lançamento de “Semiótica do Fim – Capitalismo e Apocalipse”, pela editora SobInfluencia. O livro, como já comentamos no texto de apresentação, é uma coletânea de 13 ensaios que investiga como o fim do mundo se tornou apenas mais um signo do “semiocapitalismo”. A tese – se podemos assim chamá-la num texto tão aberto a provocações e leituras distintas – é que o fim do mundo é “apenas mais um signo” do semiocapitalismo: o apocalipse, tal como tradicionalmente concebido, não ocorrerá porque já está em curso permanente. Não há mais diferença entre o fim do mundo e o próprio capitalismo: ambos se reproduzem incessantemente segundo a lógica semiótica do capital, diz Sbordoni. Seu livro, então, se apresenta como um manifesto que nos convida a pensar sobre o que significa “fim” hoje.

Em 17 de julho de 2025, um dia antes do primeiro lançamento do livro [na sede da editora SobInfluencia, na Galeria Metrópole, referência cultural e artística do centro de São Paulo; veja íntegra do evento aqui], conversamos com Alessandro num restaurante amazônico dentro da galeria. Pelo BaixaCultura, Leonardo Foletto e Rafael Bresciani, com participação de Rodrigo Côrrea, editor e designer da SobInfluencia. Entre Cupuaçú amigo (a versão local do drink “Caju Amigo”) e Tacacás (a famosa “sopa” amazônica, com jambu e tucupi), a conversa foi de “Semiótica do Fim” às relação entre cultura alta e baixa, anti-assombrologia, revistas digitais como espaços de encontro intelectual, underground, tecnologia, teoria contemporânea. Abaixo uma versão editada da conversa. Originalmente em inglês, também foi publicada no Institute of Network Cultures (INC) de Amsterdam.

BaixaCultura: Para começar: como surgiu a ideia do livro? Em que contexto foi produzido? Conte um pouco mais sobre sua trajetória na escrita do livro.

Alessandro: Em 2020/2021, li “Fenomenologia do Fim” de Franco Berardi. Ao lê-la, achei a abordagem sobre o capital e o capitalismo muito intrigante, algo que ficou na minha cabeça por um tempo. Eu tinha acabado de escrever outro livro sobre algo completamente diferente, mas sabia que queria fazer algo assim. Alguns meses depois, escrevi um ensaio, que é o primeiro do livro, com um subtítulo diferente, mas o título principal era “Semiótica do Fim”. Eu não sabia o que sairia daquilo; era sobre tédio e o fim do mundo. Publiquei no Blue Labyrinths, a primeira vez que publiquei lá. Alguns meses depois, publiquei outro ensaio, novamente com o mesmo título e um subtítulo diferente, e depois o terceiro ensaio. Assim, pouco a pouco, tudo começou a se encaixar. Obviamente, o título “Semiótica do Fim” é uma referência a “Fenomenologia do Fim”, e pensei que faria algo similar.

Então, o livro surgiu organicamente. Pouco a pouco, comecei a perceber que queria misturar a ideia de semio-capitalismo como uma forma de analisar, criticar e ir além da ideia de realismo capitalista em Mark Fisher, que é o núcleo do livro.

BaixaCultura: Você é filósofo?

Alessandro: Eu não me consideraria… Há uma citação muito engraçada de Guy Debord, que disse: “Não sou filósofo, sou estrategista”. Me vejo assim: não sou filósofo, com certeza. Talvez seja estrategista, mas definitivamente me considero mais um teórico. A filosofia carrega toda essa bagagem cultural ocidental com a qual discordo totalmente em me identificar. Então me vejo como teórico, o que também traz certas questões, como: não estou buscando a verdade no que escrevo. Vejo mais como um empreendimento político ou cultural, se preferir, mas não buscando verdade ou conhecimento. Tudo isso é nonsense.

BaixaCultura: Gostaria de perguntar sobre Blue Labyrinths e Charta Sporca, duas revistas digitais nas quais você está envolvido. Quando começaram?

Alessandro: Com Blue Labyrinths, tudo começou quando li os ensaios anti-assombrologia (anti-hauntology) do fundador do Blue Labyrinths, Matt Bleumink, sobre os quais queria falar, e eles formaram o último capítulo do livro. Depois de publicar alguns outros ensaios no Blue Labyrinths, nos tornamos bons amigos e, pouco a pouco, comecei a desempenhar um papel no conselho editorial do Blue Labyrinths junto com outra pessoa.

Para Charta Sporca, eu realmente queria publicar e fazer algo com eles. Os encontrei quando estava na Itália, fazendo minha graduação, e sempre apreciei a mistura de política, literatura e filosofia, tudo junto, que eles fazem.

BaixaCultura: Sobre Blue Labyrinths: que tipo de contribuições vocês buscam? E como a revista se posiciona dentro do panorama atual de publicações culturais e filosóficas?

Alessandro: Aceitamos qualquer submissão que consideremos interessante para nós. Se você ler a descrição, diz algo muito geral: “Uma revista online focada em filosofia, cultura e uma coleção de ideias interessantes.” E essa parte das “ideias interessantes” é o principal, porque todas as revistas e editoras tendem a admitir que focam em uma coisa, talvez porque seja mais fácil ou porque as pessoas têm entendimento limitado. Mas sempre publicamos coisas que esticam um pouco, e até publicamos algumas coisas com as quais tendemos a discordar em certa medida, até mesmo no nível político. Nada muito louco – nunca publicaria um texto fascista, tenho certeza. Mas houve discordâncias, e isso é interessante. Por exemplo, foi uma política muito boa porque atraímos todos aqueles escritores que não sabem onde mais publicar, porque todas as outras revistas são muito específicas, e se você não se encaixa, dane-se. Então, foi muito interessante. E não foi minha ideia; foi Matt, o fundador, que sempre teve essa mentalidade, e sempre gostei disso. E acho que fui atraído porque também na minha escrita faço isso: trago muitas coisas diferentes todas juntas.

BaixaCultura: E por que revistas? Você gosta de revistas digitais?

Alessandro: Pessoalmente, as vejo como uma espécie de “academia cultural”. É quase como um campo de testes ou, se quiser, um treinamento no sentido militar. É uma forma de treinar uma teoria para, então, expandi-la e desenvolvê-la em outros espaços.

BaixaCultura: Charta Sporca, para mim, parece engajar com teoria e cultura italiana contemporânea, incluindo seu próprio trabalho e figuras como Mark Fisher e Deleuze. Como editar essa revista influenciou seu próprio desenvolvimento teórico? E que papel você vê as revistas intelectuais e digitais desempenhando hoje, especialmente no seu caso? A história intelectual italiana tem uma enorme histórico, com Quaderni Rossi, Classe Operaia e A/Traverso, por exemplo, nos anos 1960 e 1970.

Alessandro: Imagine que a revista fosse um espaço com o qual você interage. Você vai lá frequentemente e vê o que as pessoas estão fazendo. E o que sai disso não é teoria ou ideia. Sim, você lê textos interessantes, e eles podem despertar algo, mas essa não é a coisa principal e mais importante. A coisa mais importante é que você conhece as pessoas e cria relacionamentos, como os que também estamos fazendo agora. Isso é algo que percebi nos últimos anos: a coisa mais interessante sobre escrever não é escrever, é conhecer as pessoas. É fazer parte de uma “comunidade”, por falta de palavra melhor – e não gosto da palavra “comunidade” porque quase exige ser definida. São encontros. Encontros com as pessoas que você conhece informam sua teoria, mas é eventual de certa forma. A teoria é secundária à realidade de encontrar alguém. Essas revistas são uma potencialidade em direção aos encontros.

BaixaCultura: E por que sites de revistas e não, por exemplo, redes sociais?

Alessandro: Bem, porque há uma certa autonomia na revista. E isso volta ao que eu estava dizendo sobre essas “ideias interessantes”. Você simplesmente recebe qualquer uma. Fico feliz em conhecer qualquer um que tenha algo interessante a dizer, especialmente se discordam.

BaixaCultura: Voltando ao livro. Ele abre com a declaração provocativa de que “o fim do mundo é apenas outro signo do semiocapitalismo.” Pode explicar o que o levou a essa conclusão e como desenvolve o conceito de semiocapitalismo como distinto das tradições de crítica do capital, como nos livros do Bifo, por exemplo? Se há diferenças ou não.

Alessandro: Definitivamente há diferenças. E sempre tomo todas essas ideias como pontos de partida. E, em certa medida, não estou tentando desenvolver o conceito de semiocapitalismo, mas acho que é um terreno interessante. E, na minha visão, o que aconteceu foi que, em algum momento, a diferença entre materialidade e imaterialidade, entre uma cultura baseada na produção e commodities reais – a dicotomia entre produção e reprodução, nos termos que coloco – foi abolida. E o mundo se tornou mais efêmero e imaterial,  apenas uma estrutura de signos. O interessante é que o capitalismo conseguiu se vincular à reprodução de signos e se reproduzir através de signos, independentemente do que os signos significam. Isso poderia ter sido um problema no passado. Por exemplo, o capitalismo entrando em um discurso radical e obtendo lucro disso, isso poderia ter sido uma contradição no sentido marxista. Acho que agora o discurso foi nivelado e qualquer coisa pode se transformar em capital; qualquer coisa pode ser uma forma de reproduzir capital. E a forma mais extrema disso é o fim do mundo. Porque o capitalismo se alimenta da reprodução até mesmo do seu próprio fim, o que achei que era um ponto de partida interessante por causa da ironia intrínseca. Não acho que haja contradição, mas há uma forte ironia e um forte sentimento de que deveria ser o ponto de partida para algo diferente. E estou tentando encontrar uma forma de abrir para esse novo começo, mas acho que temos que realmente pensar fora da caixa, porque tudo que está dentro da caixa é capital.

BaixaCultura: Você afirma que o apocalipse, como tal, não ocorrerá porque já aconteceu. Isso parece desafiar tanto narrativas religiosas quanto seculares de fim. Como situa essa afirmação em relação às nossas crises ecológicas e sociais que estamos vivenciando? E como podemos pensar sobre outras relações com o fim?

Alessandro: Há, novamente, uma piada triste sobre a catástrofe climática e o “fim sem fim” do capitalismo. Conforme a catástrofe continua, reproduz mais e mais capital, e porque reproduz mais e mais capital, continuará mais e mais rápido. E, paradoxalmente, as poucas imagens que agora temos – por exemplo, os incêndios florestais acontecendo ao redor do mundo – vão aumentar porque o capital vai aumentar, e o capital são essas imagens. E então, conforme o capital aumenta, o fim do mundo se aproxima. Não vejo, seguindo essa linha de raciocínio, um fim para o capital. Mas conforme começamos a nos relacionar com a cultura de forma diferente e começamos a ver que essas imagens não são nada além de capital, que a reprodução é o problema do que representam, essa será uma forma antiga de pensar. O problema é que, se o fim do mundo está se aproximando, ainda estamos produzindo conteúdo e ainda estamos produzindo de forma capitalista. Então, por um lado, uma solução poderia ser encontrar novas formas de produção, mas entramos em um novo paradigma, que chamo de re-produção. Muitos dos diferentes modos de produção-reprodução foram neutralizados.

Então, a única coisa que resta fazer é repensar onde estamos agora. E isso é algo a que Geert Lovink se refere em “Extinção da Internet“: temos que olhar para o abismo para superá-lo. E para mim, também é olhar para como isso nos faz sentir. E, paradoxalmente, falo sobre isso em termos de tédio em vez de ansiedade, porque estamos fartos disso. São 50, 60 anos de predições apocalípticas que não se concretizaram, porque o capital, como disse antes, continua se reproduzindo. Mas se redirecionarmos o conceito de fim e começo de uma forma metafísica – e é por isso que também estamos falando sobre filosofia. Podemos repensar o que significa estar no fim do mundo e o que significa o fim e o começo sempre coexistirem. Uma vez que entendemos isso, abrimos novos caminhos – e, em uma palavra simples, uma nova imaginação.

BaixaCultura: Seguindo essa ideia de fim e começo: geralmente pensamos sobre o progresso humano como marcos de sucesso. Quando as coisas acontecem positivamente, as marcamos. E um desses exemplos é quando, em nível pessoal, nos apresentamos como profissionais, usamos um Curriculum Vitae, que significa as coisas que fizemos na vida, os bons marcos de nossas vidas. Mas uma vez ouvi um psicólogo que defendia a ideia de um Curriculum Mortis, que é a ideia de que, quando reconhecemos os marcos do fracasso, somos capazes de superar esses fracassos. Então, essa visão é algo em que podemos confiar neste momento do Antropoceno e do capitalismo tardio? Usar um Curriculum Mortis da história humana como forma de abordar esse momento.

Alessandro: Há um artigo publicado recentemente em uma revista italiana por Christian Damato que fala sobre como o fracasso foi reintegrado no discurso do sucesso dentro de uma ideologia corporativa. E acho que é uma declaração muito sombria, mas acredito que meramente inverter o problema não o resolve, porque na minha forma de pensar, é uma questão de estruturas. Apenas reverter a estrutura não está criando uma nova estrutura, mas pode ser um meio para uma nova estrutura. Então, até mesmo enfatizar o fracasso poderia potencialmente ser um caminho para algo, mas não é suficiente.

Eu diria que o progresso só existe de acordo com um certo conjunto de critérios estabelecidos por uma cultura. E, de fato, a ideia de progresso no Ocidente foi muito criticada (por exemplo, por Jacques Derrida). Você sempre encontra um progresso constante se apenas decidir sobre os parâmetros certos para avaliá-lo. E acho, portanto, que a solução para esse problema é mudar as regras da questão. Não há como responder à pergunta “melhor ou pior” se é avaliada de acordo com os critérios do problema. Você precisa descobrir quais são as suposições metafísicas que precisam mudar. Talvez nos tornemos cínicos sobre isso. Mas acredito em algo que Tiqqun diz no primeiro ensaio de sua primeira edição: que política é metafísica, e uma nova política demanda uma nova metafísica; não deveríamos ter vergonha de falar em metafísica só porque as ideias de algum metafísico nazista se tornaram muito influentes.

BaixaCultura: Em diálogo com essa questão, você às vezes posiciona seu trabalho em contraste com o realismo capitalista de Mark Fisher. Propõe, em seu livro, um manifesto para a imaginação de outra relação com o fim. Como seu conceito de anti-assombrologia difere do dele? E como essa outra relação se parece na prática?

Alessandro: A ideia original de anti-assombrologia foi desenvolvida por Matt Bluemink antes de eu conhecê-lo. Depois, continuei o que ele fez tomando como seu texto como ponto de partida e depois construindo minha própria direção. E temos algumas discordâncias sobre como os conceitos poderiam ser aplicados. Sobre a diferença entre assombrologia e antiassombrologia, isso foi discutido no debate entre Matt Bluemink e Matt Colquhoun, que Matt Bluemink publicou seu primeiro ensaio. Matt Colquhoun respondeu, e então houve um vai e vem que aconteceu em 2021. Matt Colquhoun criticou a ideia de fazer essa distinção entre assombrologia e anti-assombrologia porque ela mesma é “assombrológica”. E acho que essa é uma crítica, digamos, injusta.

[Nota da edição: “Assombrologia” – nos termos de Mark Fisher desenvolvido sobretudo em “Fantasmas da Minha Vida” (2014, no Brasil publicado em 2022) – seria o estudo da persistência de elementos do passado que “assombram” o presente, não numa visão nostálgica, mas sim como a manifestação de futuros perdidos ou potenciais não realizados, especialmente no contexto do capitalismo tardio . A anti-assombrologia proposta por Bluemink e Sbordoni seria uma ideia de pensar para além dos fantasmas que assombram o presente. Como Bluemink escreveu em 2021, “Se a assombrologia é a lógica do desespero, então a antiassombrologia pode ser vista como a lógica da esperança”.]

Essa crítica segue uma lógica pós-estruturalista típica: toda oposição não pode ser claramente estabelecida como oposição, porque todo conceito contém dentro de si sua negação e assim por diante. Mas esse é precisamente o tipo de problema que tentei superar. Por isso, decidi simplesmente impor a distinção entre assombrologia e antiassombrologia, mesmo que isso signifique fazer uma certa violência teórica ao abandonar a filosofia em favor da teoria. Às vezes você precisa defender uma posição sabendo que ela não pode ser “provada” no sentido filosófico clássico – o importante é que existe uma potencialidade real para o novo, e meu trabalho é tentar tornar essa potencialidade concreta na realidade.

Na prática, o que a antiassombrologia faz- e isso é algo que Matt Colquhoun diz – é usar a cultura para recuperar a esperança de que o novo ainda pode acontecer. Mais do que isso: o novo já está acontecendo através do nosso próprio trabalho teórico e cultural. Essa mudança pode se espalhar para qualquer área da experiência humana – você só precisa estabelecer as bases metafísicas adequadas.No primeiro capítulo do livro, escrevo que “hoje, nada é possível porque nada é impossível” – ou seja, vivemos numa paralisia onde tudo parece ao mesmo tempo bloqueado e em aberto. Mas essa frase também pode ser invertida: se nada é impossível, então tudo volta a ser possível. Não se trata de inventar soluções mágicas do nada, mas de transformar a forma como as pessoas percebem e se relacionam com o mundo. É uma mudança de subjetividade que pode emergir aparentemente “do nada”, mas que tem efeitos muito concretos.

A aplicação prática da antiassombrologia funciona similar à arte, que tem esse paradoxo interessante: ela transforma nossa visão de mundo sem alterar diretamente as condições materiais do mundo. Quando você vê uma obra de arte poderosa, sua visão de mundo muda e novas possibilidades se abrem – mas aparentemente “nada” mudou no mundo físico. Ao mesmo tempo, “tudo” mudou, porque sua subjetividade foi transformada.

Esse é o ponto central: o problema não é fundamentalmente material, é subjetivo. Quando pensamos que enfrentamos apenas problemas materiais na verdade estamos lidando com uma crise mais profunda de subjetividade. É nossa forma coletiva de perceber e se relacionar com o mundo que determina como interpretamos esses problemas “materiais”. Os problemas concretos podem ser resolvidos, mas primeiro precisamos recuperar, como coletivo, nossa capacidade de controlar e dar sentido à realidade.

BaixaCultura: Guattari, em 1993, em seu livro “Caosmose“, fala de estética como forma de ressignificar a subjetividade diante de questões sociopolíticas. Citando-o: “Não se pode conceber uma disciplina internacional neste domínio sem trazer uma solução aos problemas da fome mundial e hiperinflação no terceiro mundo”. “A única finalidade aceitável das atividades humanas é a produção de uma subjetividade que enriqueça o modo de continuidade e suas relações com o mundo”. Então, ele está tentando dizer que a estética cria influência nessa visão de mundo comum que se torna material.

Você acha que a contaminação da internet e das tecnologias digitais em nossa noção de estética, e a relação entre isso e o tecido sociopolítico, é uma forma de recriar e ressignificar esse canal, essa visão de mundo do contemporâneo? A arte é uma forma de alcançar essas mudanças?

Alessandro: Sempre penso que a subjetividade, em certa medida, pode ser vista como um fim em si mesma. A questão não é: “Que tipo de mundo queremos?” ou “Que tipo de futuro queremos?”. Na verdade, deveríamos pensar na subjetividade como o meio para chegar a um fim. Mas ainda não sabemos qual é esse fim, porque ainda não chegamos ao verdadeiro começo. E isso é algo, a propósito, que Baudrillard faz e é criticado por isso, porque nunca apresentou uma visão de como poderíamos superar o capital, nunca oferecia soluções concretas. Mas a solução é exatamente a subjetividade. Não no sentido de que uma nova subjetividade surge e o mundo se transforma imediatamente, mas porque o problema é fundamentalmente uma questão de potencialidade. Uma vez que essa potencialidade está disponível, tudo pode se desdobrar – ou não.

Mas também acho que a filosofia, especialmente, tem uma certa arrogância ao tentar moldar o mundo diretamente, e isso faz parte do problema. Porque é exatamente isso que a ciência faz, que o Estado faz, e não quero me envolver com essa lógica. Por isso, pode parecer que permaneço no abstrato, mas na verdade penso no sentido mais material possível: a partir da subjetividade.

Então concordo com tudo que você disse. Talvez a crítica seja que o que estou propondo é muito simples. Se você observar a arte, ela não muda as coisas diretamente, mas faz as pessoas olharem para o mundo de forma diferente. A arte reformula o problema, e reformular o problema já é parte da solução.

BaixaCultura: Sim, Guattari falou isso em 93, você disse antes, certo? Faz 40 anos que estamos discutindo isso e não está terminando. Há uma saída?

Alessandro: Acho que a coisa mais importante que mudou é como podemos ativar novas subjetividades mais rapidamente, em uma escala muito mais ampla e global. Sempre penso no que faço nesses termos: quantas pessoas posso alcançar de uma só vez e como elas podem ser imediatamente transformadas.E também como isso é perigoso para o sistema, podendo tanto facilitar mudanças quanto impedi-las mais facilmente. Isso é o que mudou nos últimos trinta anos – pelo menos uma das coisas mais importantes que mudaram.

BaixaCultura: Você fala sobre cultura, música, arte. Sua análise vai de Britney Spears ao K-pop e a internet. Como você conecta objetos culturais tão diversos e, na sua opinião, o que eles revelam sobre nosso momento contemporâneo?

Alessandro: Estou muito interessado na conexão entre o que no mundo anglófono chamamos de “cultura erudita” (alta cultura) e “cultura popular” (baixa cultura). E em como, especialmente no mundo anglófono, essa conexão é frequentemente cortada, criando uma divisão entre elas. Existe uma separação entre Heidegger e Britney Spears. Mas me interesso por Britney Spears e frequentemente penso sobre ela de forma talvez “hiperintelectual”.  Porém, não acho que as duas coisas sejam realmente distintas por causa da estrutura do semiocapital. Tudo está no mercado ao mesmo tempo, e essas distinções antiquadas entre cultura alta e baixa estão sendo abolidas. E creio que estão sendo abolidas pelo que chamo de “cultura trash”.

Se nos séculos 19 e 20, o kitsch tentou fazer a ponte entre a cultura da classe trabalhadora e a cultura da classe média, agora temos cultura trash. A internet, em particular, tem sido a tecnologia do trash. E trash, por definição, é aquilo que destrói a distinção entre o alto e o baixo, o bom e o ruim, e assim por diante…

Pessoalmente, acho que restabelecer essa conexão – que ainda está bastante aberta a várias “assemblages” – é um terreno fértil para novas formas de imaginação. Aqui, imaginação é algo que defino especificamente como a reconstrução de conexões entre subjetividades e cultura. Então, ao fazer uma piada conectando Kanye West e Hegel, digamos, você pode encontrar novas formas de refazer a assemblagem que constitui a cultura e descobrir novas expressões de subjetividades. Estou sendo muito otimista sobre isso, mas acho que ainda é algo que permanece aberto para teorização e politização.

Alessandro tomando um Tacacá

BaixaCultura: Queríamos perguntar sobre as diferentes perspectivas da geração de Mark Fisher e sua geração, nascida no final dos 1990 e início dos 2000. A percepção do fim ou da simulação do apocalipse, por exemplo: é diferente para nós? É interessante ou uma simulação?

Alessandro: Há uma citação de Grafton Tanner – que talvez faça parte de uma geração mais jovem de escritores – que fala que nos anos 2010, Mark Fisher e Simon Reynolds pensavam que havia uma crise para imaginar o passado e o futuro. Isso estava acontecendo nos anos 2010, mas agora a crise é para imaginar o presente. Então, acho que se tornou abrangente, e a crise da imaginação, que de alguma forma ainda era parcial na época de Mark Fisher, se generalizou, e muitas de suas afirmações se tornaram ainda mais fortes.

Mas o que mudou é que as pessoas não podem mais ignorar isso. E ainda é muito relevante que Mark Fisher continuse sendo o filósofo mais conhecido dos últimos 20 anos. Mas, ao mesmo tempo, também acho que a nova geração – e sim, talvez me inclua nesse grupo – está começando a entender que as regras foram mudadas pelo próprio problema. Pessoalmente, penso que a questão é sobre reinventar a imaginação, o que parece algo muito ambicioso. Mas também vejo que no uso da tecnologia se cria novas relações entre si mesmas e a cultura e, portanto, criando novos imaginários. O que não significa novas realidades, novos futuros, novas visões de mundo, mas novas práticas. E a velocidade com que isso está acontecendo está aumentando.

E acho que, após a morte de Mark Fisher em 2007, isso começou a acelerar além do controle do que poderia ter sido o capitalismo tardio antiquado. Agora vivemos no capitalismo tardio demais. Isso também significa que a temporalidade está encolhendo, e a imediatez está cada vez mais assumindo a liderança na relação com o capital. E isso é de certa forma benéfico.  Então, mesmo se você pensar sobre para que a inteligência artificial é realmente usada, é para fazer transações mais rápidas. Esta é a aplicação principal: encontrar formas de fazer a economia funcionar ainda mais rapidamente do que já funciona. Mas isso também está afetando nossa relação com a tecnologia, e está se afastando do controle biopolítico antiquado, acho, em certa medida, porque o número de relações, nós e circuitos está apenas aumentando agora. E as potencialidades também estão aumentando. Em geral, diria que sou mais otimista, e não vejo muito desse otimismo por aí, mas prevejo que continuará aumentando.

BaixaCultura: Você tem alguma relação com o aceleracionismo, em especial, Nick Land? Há um artigo sobre ele em Blue Labyrinths.

Alessandro: Nick Land é um caso estranho. Estou interessado nele tanto quanto alguém pode estar interessado no diabo. O que quero dizer é que o Diabo realmente foi um argumento cultural importante no que poderia ter sido o ideal na Idade Média, e Nick Land é o Diabo no capitalismo. Há algo muito interessante para mim na mudança que aconteceu no pensamento entre os escritos da primeira fase de Nick Land e a segunda fase, na qual ele se inclinou cada vez mais para a direita e novas direções, novos movimentos reacionários, e assim por diante. E estudando isso, estou começando a perceber que o que tenho definido como subjetividade também traz consigo uma certa ética – ética, que é uma palavra que você nunca encontra em Semiótica do Fim. Mas Nick Land é definitivamente alguém que não pensa em termos de ética ou moral, porque pensa no capital como uma agência inorgânica anônima. Pelo contrário, vê o ser humano como uma “ficção” ética e biológica produzida pelo capital.

Mas ele não pensa, nem por um momento, que isso poderia ser parte de uma “ideologia”, porque “ideologia” não é o termo certo a usar – uma palavra mais correta aqui seria paradigma. De qualquer forma, ele vê o capital como metafísica, mas metafísica é um paradigma, mesmo na conotação científica do termo. Então, é uma mudança de paradigma; é uma revolução metafísica no mundo. Quando o Sol não está mais no centro do universo, o mundo é completamente diferente, mas nada realmente mudou; quando o capital não está mais no centro de nossas relações, tudo é igual, mas tudo é diferente. Então, Nick Land nunca considera a possibilidade – e o critico por não levar o nível semiótico a sério, o que significa que o nível semiótico é manipulável, mas pode ser construído diferentemente. Então, estou interessado nisso, mas acho que seu ponto de vista é limitado.

BaixaCultura: Então você não é satanista? Se ele é o diabo…

Alessandro: Sou como um teórico do satanismo haha

BaixaCultura: Outro autor, Andrea Colamedici, o autor por trás de “Hipocracia”, identificado como de Jianwei Xun [veja esse texto para entender a polêmica].  Ele parece acreditar que estamos em um momento de fragmentação de nossa presença online em tantas camadas de presença online e offline e tudo mais… E ele meio que aponta na direção de que devemos aprender a coexistir em todas essas camadas, como uma presença viva aqui, mas também uma presença viva na rede social ou no grupo do WhatsApp ou no avatar, e em todas essas esferas de relações.

Então, como você conceitua a fragmentação como uma forma de prosperar neste momento de incerteza? No livro, ele tenta vender a ideia de que devemos saber que estamos em todos os lugares ao mesmo tempo. Por exemplo, quando fala sobre isso, ele traz a ideia de simulação real. Hoje, é tudo simulado e tudo é real ao mesmo tempo: isso é real e seu avatar é real e seu Instagram é real – tudo é real e, ainda assim, é uma simulação ao mesmo tempo. Mas não podemos nos perder.

Alessandro: Entendo. Acho fascinante, mas a escala na qual essas suposições são feitas é uma escala que, politicamente, não é muito operacional. Existem diferentes escalas. Então, em escala microscópica, na escala mineral – tomemos um computador como exemplo. Um computador tem várias escalas. Então, na escala microscópica, há luz passando pelos cabos, e na escala da partícula, não há política. Há muito pouco que você poderia fazer além de teorias sobre o que é luz e física quântica, e assim por diante; é muito difícil fazer uma mudança significativa nesse nível. Em um nível mais alto, há mais ou menos o que você está falando: um nível do habitus social que você assume na interação com o computador; esta é a escala social. E acho que, embora seja uma escala muito real, não é muito operacional. Agora, entre a luz na fibra óptica e o habitus social, há uma relação. O que media essa relação é o capital, porque é o capital que está pagando pelos cabos que conectam as luzes; por meio dele, você pode se ver no computador e tentar aprender com ele. Aqui, estou interessado no que chamo de medium, segundo minha própria interpretação: trata-se do que está acontecendo no meio. Certamente, o que está acontecendo no meio é muito real, mas também é o que reproduz a simulação.

Então, talvez aqui eu inverta as regras: em suas circunstâncias imediatas, você pode reconceituar sua relação e interagir com o computador de forma diferente, e até mesmo mudar o tipo de fibras ópticas que usa, afetando a relação agindo do nível mais alto para o mais baixo, e vice-versa. Em Semiótica do Fim, frequentemente faço esse tipo de salto das alturas. No capítulo sobre teoria da informação do livro – “Overdrive e significado” – um dos capítulos centrais do livro, escrevo sobre a estrutura da informação, que é uma teoria muito abstrata, mas como elemento político. Mas não há nada intrinsecamente político nos bits de informação. Há algo político apenas na relação. Mas se você foca apenas em um nível…

Para resumir, poderíamos dizer que o elemento interescalar é muito político, e tento atuar sobre ele. Mas se você pensa apenas em uma escala, pode ser complexo. Para acrescentar outra coisa, há uma tendência nas teorias da mídias que é interessante discutir: a pura materialidade dos recursos sendo usados. Por exemplo, Atlas da IA, de Kate Crawford, fala sobre os recursos, a materialidade do mapeamento do mundo e assim por diante. Mas ela conceitua isso como algo intraescalar. O que acho interessante é o elemento interescalar, onde ela também escreve sobre o que o software está fazendo; ela tenta conectar tudo, mas falando de apenas um nível. E há uma série de ações que podem ser muito locais, enquanto o global acontece entre as escalas. Isso poderia ser algo que percebi depois de escrever o livro – você também não encontrará a palavra “escala” nele, mas isso é o que acontece com os livros: você retrospectivamente chega a boas ideias que não escreveu.

BaixaCultura: Então, você meio que pensa que essa visão é “enganar a máquina”?

Alessandro: A solução deve estar na relação. Mas se você pensa sobre a pura materialidade, parece que o social é uma materialidade, como gestos e práticas, e essas coisas podem ser mudadas, mas não em um nível muito individual e mínimo local. Então, não é a melhor forma de abordar, acho.

Queria falar mais sobre o contexto de Charta Sporca. Vivendo na Itália e vindo do exterior, faz cerca de onze anos que estou aqui [Londres]. Tenho a impressão de que a cultura italiana cria uma materialidade diferente para a cultura underground. Não tenho certeza se essa é a palavra certa. Deixe-me seguir o que escrevi. Viver na Itália me dá a impressão de que muito do que é criado em diferentes realidades nas diferentes cidades italianas permanece, porque há uma espécie de resistência ao sistema e à sistematização. É como se o underground resistisse a se tornar mainstream por muito tempo. Se você vai a Bolonha, vê lojas que vendem quadrinhos há quarenta anos e não querem crescer. Então, você tem uma cultura de cenas espalhadas por todo o país, e as pessoas ainda as fazem e não querem publicá-las.

BaixaCultura: Como italiano que vive no exterior, você vê isso da mesma forma? E se sim, como a Charta se envolve com essa dimensão de conhecimento não institucionalizado que continua emergindo por toda a Itália? Ela se envolve ou não?

Alessandro: Sim. E mais em geral sobre a Itália, acho que a questão é sobre a economia dos corpos. A economia capitalista não é um padrão da economia: pense, por exemplo, em uma cidade antiga na Itália, como Trieste ou Bolonha. Mas conforme você se aproxima da metrópole, até Milão, e conforme vai subindo e vai para Paris, então a economia dos corpos e a economia real começam a se fundir uma na outra. Há um certo grau de hipnose acontecendo ali.

E acho que as pessoas só conseguem resistir quando não nascem dentro disso. É muito difícil recuar da metrópole se essa é a única realidade que você viu. Da mesma forma que vamos a uma floresta e, se não nascemos na floresta, não olhamos para a floresta de uma forma “natural”. Nossa visão é moldada pelo ambiente artificial da cidade, e por isso perdemos a capacidade de ver a natureza como ela realmente é – diferentemente de quem cresceu em contato direto com ela. O mesmo acontece com quem nasce e vive sempre na metrópole: essa pessoa desenvolve uma percepção distorcida do tempo e dos relacionamentos humanos. Para ela, as formas mais naturais de viver – aquelas que existem fora do ambiente metropolitano – parecem estranhas ou até impossíveis.

O coletivo francês Tiqqun tem uma distinção muito interessante e radical sobre a vida fora da metrópole: eles dizem que a metrópole é irrecuperável. Não há mais nada para salvar da metrópole. Você deveria apenas convencer as pessoas na metrópole a se afastarem dela e nunca voltarem. Não há como mudar o capital e o capitalista, mas você pode permitir que as pessoas vejam que há uma saída, se quiserem.

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Justiça ambiental e infraestruturas autônomas e comunitárias https://baixacultura.org/2025/09/05/justica-ambiental-e-infraestruturas-autonomas-e-comunitarias/ https://baixacultura.org/2025/09/05/justica-ambiental-e-infraestruturas-autonomas-e-comunitarias/#respond Fri, 05 Sep 2025 13:41:57 +0000 https://baixacultura.org/?p=15910 Faz alguns meses que saiu uma pesquisa do Sursiendo e May First Movement Technology chamada “Accioes por la Justicia Ambiental: Desde infraestructuras tecnológicas autónomas y comunitarias“. A investigação utilizou uma metodologia participativa para documentar práticas sustentáveis ​​já implementadas, principais obstáculos, projeções futuras e ideias especulativas de provedores independentes e comunitários de vários lugares do mundo. Os principais desafios apontados incluem narrativas dominantes sobre “recursos ilimitados”, tempo limitado para experimentação, infraestruturas centralizadas e escassez de hardware reparável. O relatório também destaca a importância da ação colaborativa e da imaginação radical para criar tecnologias mais comprometidas com a proteção da vida. Fala, por exemplo, em como “integrar a sustentabilidade ambiental em projetos autônomos de infraestrutura de comunicações por internet, documentando práticas de provedores comunitários que priorizam sustentabilidade e autonomia tecnológica”.

Algumas práticas já implementadas citadas que vale a pena recuperar aqui:

_ Não coleta de dados; o principal benefício indireto é o menor consumo energético devido à ausência de coleta massiva de dados;
_ Ciclo de vida do hardware: priorizar estender ao máximo a vida útil dos equipamentos de TI, reduzindo o lixo eletrônico, como no caso da coletiva brasileira MariaLab (que incorpora equipamentos doados e de segunda mão), ou da Koumbit, que usa servidores que têm até 15 anos!;
_ Energias renováveis: GreenNet, Riseup e Koumbit utilizam energias renováveis, especialmente hidrelétrica e eólica em regiões como Quebec e Seattle.
_ Apoio a organizações ecológicas: muitos grupos apoiam organizações ambientalistas, fornecendo hospedagem segura e ferramentas digitais;
_ Software livre: Além da questão política e de autonomia, o uso de software livre é visto também como um compromisso com a sustentabilidade, evitando a necessidade de “escrever tudo do zero” e facilitando a colaboração e a construção de comunidade, como no caso do Riseup, May First e Maddix.
_ Sites leves e estáticos: Sutty se concentra na criação de sites estáticos e leves, que “consomem menos energia, menos hardware e, em geral, utilizam menos largura de banda”.

_ Acesso offline: Sutty também explora projetos para acesso offline a sites através de telefones celulares, beneficiando comunidades remotas sem conectividade constante (p. 50-51).

_ Virtualização: GreenNet, Archipiélago Uno, Access Now e MariaLab usam servidores virtuais para “fazer um uso eficiente do hardware, executando múltiplos serviços de forma segura em menos máquinas”.
_ Data Centers autônomos: Colnodo e Código Sur mantêm data centers autônomos, com Colnodo usando energia solar para 30% de seu consumo. Código Sur recicla equipamentos e otimiza a largura de banda.

_ Visão de longo prazo: muitos grupos priorizam o desenvolvimento de tecnologias com uma visão de longo prazo, em vez de soluções pontuais

_ Não uso de IA: Esta é uma opção também, por que não? “Não usar IA” é uma política fundamental para muitos, promovendo o uso “intencional, cuidadoso e não consumindo dados indiscriminadamente” da tecnologia.

 

Vale a leitura completa (PDF, espanhol).

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Informática do Oprimido na Tapera Taperá https://baixacultura.org/2025/08/11/informatica-do-oprimido-na-tapera-tapera/ https://baixacultura.org/2025/08/11/informatica-do-oprimido-na-tapera-tapera/#respond Mon, 11 Aug 2025 14:06:28 +0000 https://baixacultura.org/?p=15895 Na próxima quinta-feira, 14/8, 19h, Rodrigo Ochigame, autor de “Informática do Oprimido” conversa com Gabriela Nardy, do Comitê de Redes Comunitárias, e comigo, Leonardo Foletto.

Rodrigo (site pessoal) é um historiador e antropólogo que estuda computação e inteligência artificial sob uma perspectiva crítica, professor na Universidade de Leiden (Holanda) e doutor pelo MIT (EUA). Alguns dos textos publicados por Rodrigo são ” A longa história da justiça algorítmica” (2022) e “Filtrar la Disidencia: Redes sociales y luchas por la tierra en Brasil” (2016). Atualmente ele está estudando epistemologia do aprendizado de máquina, tema que vai desenvolver nos próximos meses pesquisando no CERN, aquele mesmo laboratório do Grande Colisor de Hédrons (LHC) e da invenção da WWW pela turma de Tim Berners-Lee.

O livro tem ilustrações de Léo Daruma, prefácio do Instituto Paulo Freire e texto de apresentação de Leonardo Foletto e Caio Valiengo, também editores da coleção e está disponível para compra, com 20% de desconto até 22/8, no site da Funilaria (cupom BAIXACULTURA).

🗓 14/8, às 19h
📕 Tapera Taperá – Galeria Metrópole
📍Av. São Luís, 187 – 2º andar, loja 29 – República – São Paulo

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O ruído das rachaduras https://baixacultura.org/2025/08/11/o-ruido-das-rachaduras/ https://baixacultura.org/2025/08/11/o-ruido-das-rachaduras/#respond Mon, 11 Aug 2025 13:42:20 +0000 https://baixacultura.org/?p=15887 Brincar com a tecnologia é uma forma de nos defendermos dela. E com a internet, não é diferente. Uma tecnologia cada vez mais sob a influência do capital, mas que pode ser ainda usada como via de fuga de sua estrutura controladora. Esse é o ponto de partida para uma discussão que [she[l]d] — performance de live coding de lixt (aka Rafael Bresciani) — traz como provocação para uma conversa-experimento com Leonardo Foletto (BaixaCultura) na editora Sob Influência, na próxima quinta-feira, 14 de Agosto, às 18 horas. Uma investigação ao vivo sobre as possibilidades de uma semiose que escapa da lógica algorítmica dominante e que tenta perfurar os métodos estabelecidos de produção de sentido.

Após a performance-debate, às 19h haverá o lançamento de “Informática do Oprimido”, de Rodrigo Ochigame, na Tapera Taperá, no mesmo andar da Galeria Metrópole. Vamos publicar um relato aqui sobre ambos os eventos.

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Bibliotecas, redes e revoluções: o legado tecnológico dos oprimidos https://baixacultura.org/2025/08/01/bibliotecas-redes-e-revolucoes-o-legado-tecnologico-dos-oprimidos/ https://baixacultura.org/2025/08/01/bibliotecas-redes-e-revolucoes-o-legado-tecnologico-dos-oprimidos/#respond Fri, 01 Aug 2025 22:56:53 +0000 https://baixacultura.org/?p=15881  

Informática do Oprimido, de Rodrigo Ochigame, é o segundo livro da coleção <âncoras do futuro>, criada pela Funilaria em parceria com o BaixaCultura, que busca tentar politizar o mal-estar que nos acomete hoje sobre os rumos da internet e das tecnologias. Neste texto, publicado originalmente em 2021, Rodrigo explora algumas narrativas alternativas à visão dominante da tecnologia e que desafiam a pretensa universalidade dos modelos técnicos ocidentais. Como seria, por exemplo, nossas bibliotecas digitais, plataformas de busca e sistemas de catalogação se o “modelo cubano” descrito por Setién Quesada neste livro tivesse se tornado o paradigma dominante da ciência da informação? E se, em vez de redes sociais centralizadas em servidores corporativos, tivéssemos desenvolvido plataformas inspiradas nessas práticas de intercomunicação dos oprimidos, onde a topologia da rede refletisse as relações éticas e políticas que desejamos construir?

A segunda parte do livro, Propostas para infraestruturas digitais democráticas, avança para a proposição ao trazer sua experiência com movimentos sociais e redes de pesquisadores no Sul Global para apresentar sete propostas concretas para infraestruturas digitais orientadas ao interesse público e sob controle democrático.

Da recuperação histórica de alternativas tecnológicas do passado à imaginação de possibilidades concretas para o futuro, este livro nos lembra sempre que a tecnologia não é – nem nunca foi, nem nunca será – neutra.  Seus códigos, algoritmos e interfaces são campos de batalha onde valores, visões de mundo e projetos de sociedade disputam hegemonia. E é precisamente no reconhecimento dessa não-neutralidade que reside nossa capacidade de resistir e recriar.

Rodrigo Ochigame é um historiador e antropólogo que estuda computação e inteligência artificial sob uma perspectiva crítica, professor na Universidade de Leiden (Holanda) e doutor pelo MIT (EUA). O livro tem ilustrações de Léo Daruma, prefácio do Instituto Paulo Freire e texto de apresentação de Leonardo Foletto (editor deste espaço) e Caio Valiengo, também editores da coleção. Publicamos aqui abaixo o texto de apresentação na íntegra.

Bibliotecas, redes e revoluções: O legado tecnológico dos oprimidos

Leonardo Foletto e Caio Valiengo

A ascensão do poder das plataformas digitais na vida de bilhões de pessoas do planeta nos fez acostumar a ouvir (e repetir) um mantra: a tecnologia não é neutra. Felizmente, para uma grande parcela da população mundial não é (como nunca foi) novidade entender que um sistema de gerenciamento de bibliotecas digitais, ou um intrincado algoritmo que faz funcionar os feeds de uma rede social, carrega muitos dos valores e das visões de mundo de quem o programa. A forma de organizar a informação, ou com que se prioriza um conteúdo em vez de outro, reflete escolhas políticas, econômicas e culturais que frequentemente permanecem invisíveis para o usuário comum – e às vezes até para alguns dos programadores que arquitetam algoritmos, que não raro se perguntam “mas como que o algoritmo é político? Isso é matemática, multiplicação de matrizes, lógica pura”.

Langdon Winner, no clássico livro de 1986 intitulado The Whale and the Reactor [A baleia e o reator], utiliza um exemplo distante dos algoritmos atuais, mas que explicitam a mesma dinâmica:  o processo de mecanização de uma fábrica de máquinas agrícolas em Chicago nos anos 1880. Comumente lido como parte “natural” da história dos desenvolvimentos industriais do período, motivados principalmente pela eficiência econômica gerada pela mecanização, o contexto específico dessa inovação técnica nos conta outra história. Trabalhadores qualificados da fábrica haviam organizado um sindicato para conquistar melhores condições de trabalho. Como reação, os proprietários da fábrica fomentaram a mecanização do processo que permitia o manejo das máquinas por trabalhadores não qualificados. A mudança produtiva e tecnológica nem sequer gerava resultados mais eficientes, visto que apresentava produtos com qualidade inferior e custos mais altos. As novas máquinas foram abandonadas depois de três anos de uso, mas cumpriram a função de destruir o sindicato.

Esta inconsciência técnica não é acidental. A formação dos profissionais de tecnologia nos centros hegemônicos, aqui tanto no Norte como no Sul Global, tende a separar deliberadamente o “como fazer” do “por que fazer” e “para quem fazer”, criando gerações de programadores que, mesmo brilhantes em suas habilidades técnicas, raramente compreendem o impacto social e político das ferramentas que desenvolvem. Assim como o operário na linha de montagem que não apenas desconhece o produto final de seu trabalho, mas é alienado da compreensão de seu papel como classe produtora de valor na engrenagem capitalista, muitos cientistas da era digital produzem fragmentos de código sem consciência do sistema econômico, político e social que ajudam a construir e perpetuar. Este trabalhador digital, frequentemente seduzido pela narrativa meritocrática do setor tecnológico e pelo fetiche da inovação, raramente percebe como sua atividade intelectual, aparentemente neutra e puramente técnica, está inscrita em relações de poder que transformam conhecimento em commodity, dados em capital e usuários em produtos.

O que raramente se questiona nestes ambientes, porém, é como seriam essas tecnologias se tivessem sido desenvolvidas sob outras premissas, em outros contextos históricos e geopolíticos, por pessoas que experimentaram realidades diferentes daquelas dos centros de poder do Vale do Silício. Enquanto a narrativa hegemônica nos apresenta uma linha evolutiva aparentemente natural e inevitável dos sistemas técnicos — da ARPANET financiada pelo Departamento de Defesa americano à Internet comercial dominada por gigantes como Google e Facebook; dos mainframes da IBM aos computadores pessoais da Apple e Microsoft; dos sistemas proprietários e fechados às plataformas de “economia compartilhada” que, ironicamente, concentram riqueza como nunca —, há, nas brechas do mundo capitalista, experiências tecnológicas alternativas que ainda permanecem obscurecidas, relegadas às notas de rodapé da história oficial da computação.

“Informática do Oprimido” explora justamente algumas dessas narrativas alternativas à visão dominante da tecnologia e que desafiam a pretensa universalidade dos modelos técnicos ocidentais. Como seria, por exemplo, nossas bibliotecas digitais, plataformas de busca e sistemas de catalogação se o “modelo cubano” descrito por Setién Quesada neste livro tivesse se tornado o paradigma dominante da ciência da informação? Em vez de algoritmos otimizados para maximizar cliques e tempo de permanência, teríamos sistemas que medem e valorizam uma efetiva “comunicação social autor-leitor” – aquela relação dialógica onde o leitor não é mero consumidor passivo de conteúdo, mas participante ativo num processo de construção coletiva de sentido através do acervo bibliográfico? O modelo cubano reconhecia esta dimensão social da leitura, mensurando não apenas quantas pessoas acessam determinado material, mas como esse acesso se traduz em apropriação crítica e transformadora do conhecimento. Sob esse modelo, nossas plataformas digitais não reduziriam o conhecimento a mercadorias distribuídas por métricas de engajamento e economia de atenção, mas reconheceriam a complexidade das interações humanas com a informação? A avaliação do sucesso de um sistema não seria baseada apenas em quantos usuários acessam determinado conteúdo, mas na qualidade e profundidade dessas interações, permitindo comparações contextualizadas entre diferentes comunidades e períodos históricos? Teríamos, enfim, uma internet que não apenas conecta pessoas a conteúdos, mas que compreende e nutre as relações sociais que dão significado ao conhecimento compartilhado?

Estes são exercícios de especulação, claro, que trazemos aqui porque fizemos enquanto líamos este texto pela primeira vez – e fica o convite para vocês fazerem também. Ao trazer à luz experiências do Sul Global, especialmente da América Latina, “Informática do Oprimido” nos convida a questionar a história única da tecnologia e a perceber que outros futuros tecnológicos não apenas foram imaginados, mas efetivamente construídos, mesmo que por breves períodos ou em circunstâncias adversas. As redes de solidariedade e comunicação popular desenvolvidas pelos movimentos de base ligados à Teologia da Libertação, também descritas neste livro, nos oferecem outro vislumbre dessas possibilidades: comunidades eclesiais que criaram sistemas de comunicação horizontal e participativa, muito antes da internet, antecipando aspectos fundamentais da teoria de redes distribuídas. As tecnologias sociais que emergiram dessas experiências – onde meios analógicos como rádios comunitárias, boletins mimeografados e redes de mensageiros se entrelaçavam para formar uma infraestrutura de comunicação resiliente à repressão – nos mostram como uma tecnologia verdadeiramente libertadora não está necessariamente atrelada à última inovação de software ou hardware, mas também à forma como suas arquiteturas de rede incorporam e amplificam valores de reciprocidade, proteção mútua e construção coletiva de saberes. E se, em vez de redes sociais centralizadas em servidores corporativos, tivéssemos desenvolvido plataformas inspiradas nessas práticas de intercomunicação dos oprimidos, onde a topologia da rede refletisse as relações éticas e políticas que desejamos construir?

Oprimidos no Chile 

Ainda que não citadas no livro, as experiências de Cuba e da intercomunicação nos anos 1970 e 1980 dialogam com outras duas experiências, no Chile de Salvador Allende (1970-1974), que ecoam um imaginário do que poderia ser uma espécie de modernidade tecnológica latino-americana em que a tecnologia não está afastada das necessidades sociais. O Cybersyn, concebido pelo ciberneticista britânico Stafford Beer em parceria com engenheiros chilenos liderados por Fernando Flores, representou uma visão radicalmente democrática da computação aplicada à economia. Utilizando tecnologia computacional modesta para a época – uma rede de apenas 500 teletipos e um computador mainframe IBM – o sistema criava um fluxo de informações em tempo quase real entre fábricas, centros de distribuição e órgãos governamentais*. Ao contrário dos sistemas cibernéticos soviéticos centralizados, o Cybersyn foi desenhado como uma rede de autonomia viável, onde as decisões fluíam tanto de baixo para cima quanto de cima para baixo, com trabalhadores das fábricas tendo papel ativo no monitoramento e ajuste da produção. A icônica “Sala de Operações” com suas cadeiras futuristas e telas de visualização de dados encarnava uma estética alternativa de tecnologia e também uma ideia de que sistemas técnicos poderiam amplificar, em vez de substituir, a inteligência coletiva dos trabalhadores**.

Paralelamente, a Editora Nacional Quimantú (que em mapuche significa “Sol do Saber”) representou uma revolução na democratização do acesso ao conhecimento. Nacionalizada a partir da antiga Editora Zig-Zag, a Quimantú transformou radicalmente tanto os processos de produção editorial quanto os modelos de distribuição editorial ao produzir livros com tiragens de até 50 mil exemplares vendidos a preços acessíveis*** em bancas de jornal, estações de trem e sindicatos. A editora estatal criou coleções como “Minilibros”, “Cuadernos de Educación Popular” e “Nosotros nos chilenos”, que levaram literatura, história, teoria política e a tentativa de construção de uma identidade nacional socialista, a setores historicamente excluídos do mercado editorial – além de ter experimentado com formas participativas de definição de seu catálogo, incluindo consultas a organizações de base sobre suas necessidades de formação****. Essa foi uma experiência do governo da Unidade Popular que buscava a criação de novos meios e indústrias de comunicação, como a criação da Chile Films, da Televisão Nacional e a estação de rádio Magallanes, onde Allende fez seu último discurso em meio a bombardeios e rajadas de metralhadoras.

Tanto Cybersyn quanto Quimantú foram brutalmente interrompidos pelo golpe militar de Augusto Pinochet em 11 de setembro de 1973. A perseguição a estes projetos foi estratégica: representavam perigosas alternativas ao modelo tecnocientífico e cultural que o neoliberalismo chileno precisava implantar. O Chile, como se sabe, foi o laboratório experimental das políticas que mais tarde seriam globalizadas, e o Golpe Militar que tirou Allende do poder (e o matou) é reconhecido pelo filósofo inglês Mark Fisher como o evento fundador do realismo capitalista – o reconhecimento fatalista de que não há alternativa ao capitalismo*****. Para Eden Medina*******, pesquisadora chilena, professora do MIT (EUA) e uma das pioneiras na sistematização da experiência tecnológica da Unidade Popular, a história do Cybersyn mostra também que não se trata apenas de sonhos utópicos, mas sim uma iniciativa construída coletivamente que fazia parte de um projeto político que tinha aspirações reais e tentava transformar a sociedade.

Estas experiências chilenas, assim como as bibliotecas cubanas e as redes de comunicação popular descritas em “Informática do Oprimido”, compartilham não apenas visões alternativas de tecnologia, mas também destinos marcados por interrupções violentas ou por pressões sistemáticas para sua descaracterização. Se os projetos chilenos foram abruptamente destruídos pelo golpe de Pinochet, as bibliotecas cubanas enfrentaram décadas de embargo econômico que limitaram severamente sua capacidade de modernização tecnológica, enquanto as redes de intercomunicação popular ligadas à Teologia da Libertação foram perseguidas e desmanteladas pelos regimes militares que se espalharam pela América Latina. Estes movimentos revelam um padrão: alternativas tecnológicas que desafiam a lógica dominante raramente são permitidas a amadurecer ou escalar, pois são cortadas ainda em germinação. Ou, quando sobrevivem, são relegadas a nichos marginais, impossibilitadas de competir em condições justas com os modelos hegemônicos.

Aprender com o passado, resistir ao futuro

As experiências chilenas e as descritas em “Informática do Oprimido” são apresentadas aqui não como meras curiosidades históricas ou utopias fracassadas, mas como sementes de possíveis futuros tecnológicos alternativos que persistem na memória e nas práticas de comunidades resistentes. Em um momento onde o colapso climático se aproxima, exacerbado pela crescente demanda por energia e água para os data centers dos serviços de Inteligência Artificial Generativa, retomar estas experiências e criar novos imaginários tecnológicos torna-se cada vez mais necessário para quem resiste às tecnologias hegemônicas das Big Techs do Vale do Silício.

É nesse contexto que se insere a segunda parte do livro, “Propostas para infraestruturas digitais democráticas”, escrita por Rodrigo Ochigame quatro anos depois da publicação que dá nome a este livro na Logic Magazine. Professor de Antropologia na Universidade de Leiden e doutor pelo MIT, Ochigame não se limita à análise histórica, mas avança para a proposição ao trazer sua experiência com movimentos sociais e redes de pesquisadores no Sul Global para apresentar sete propostas concretas para infraestruturas digitais orientadas ao interesse público e sob controle democrático. Essas propostas – que vão desde novos modelos de financiamento até arquiteturas técnicas descentralizadas – formam um programa para gestores e comunidades comprometidas com uma tecnologia inclusiva e democrática. O livro, assim, fecha seu ciclo: da recuperação histórica de alternativas tecnológicas do passado à imaginação de possibilidades concretas para o futuro, lembrando-nos sempre que a tecnologia não é – nem nunca foi, nem nunca será – neutra. Seus códigos, algoritmos e interfaces são campos de batalha onde valores, visões de mundo e projetos de sociedade disputam hegemonia. E é precisamente no reconhecimento dessa não-neutralidade que reside nossa capacidade de resistir e recriar.

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* Essa história é extensamente relatada por Eden Medina no livro “Cybernetic Revolutionaries: Technology and Politics in Allende’s Chile”, publicado em 2014 pela MIT Press.
** Vale conferir o podcast “The Santiago Boys”, escrito e apresentado pelo bielorusso Eugeny Morozov, que conta essa história em detalhes.
*** Vendido nos tradicionais quioscos, uma espécie de banca de jornais e livros no Chile, a editora tinha o lema de que o preço de um livro deveria ser equivalente a um maço de cigarros.
**** Para saber mais sobre essa experiência, ver “Quimantú y la colección Nosostros los Chilenos”, da editora independente chilena Tiempo Robado e, em breve, pela Funilaria.
***** Ver “Comunismo Lisérgico”, texto introdutório de um livro que, infelizmente, Mark Fisher nunca publicou.
******* “Aprendendo com Cybersyn, 50 anos depois: entrevista com Eden Medina”, entrevista para o Digilabour.

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Semiótica do fim – apresentação https://baixacultura.org/2025/06/17/semiotica-do-fim-apresentacao/ https://baixacultura.org/2025/06/17/semiotica-do-fim-apresentacao/#respond Tue, 17 Jun 2025 20:07:37 +0000 https://baixacultura.org/?p=15837 Mais ou menos um ano atrás, estive em Amsterdam, na Holanda, para participar do Mozilla Festival, um dos principais (e únicos) festivais internacionais que trata de ativismo, cultura e arte digital de modo conectado. Encontrei pessoalmente Geert Lovink, diretor do Institute of Network Cultures (INC), que há algum tempo conhecia de leituras e trocas de e-mails, e entreguei pra ele a cópia em português que fizemos, com a Funilaria, de “Extinção da Internet“, livro que ele havia escrito dois anos antes, em plena pandemia, para uma aula na Universidade de Amsterdam. Saí do INC – um oásis gráfico/pesquisa interdisciplinar que ocupa quase um andar inteiro de um prédio da Universidade de Ciências Aplicadas da capital holandesa – com a sacola cheia de alguns dos livros que eles produzem. Um deles se chamava “Semiotics of the End: On Capitalism and the Apocalypse”, de 2023, que inaugurou uma nova coleção do Instituto, “Network Notion”. Li todo no vôo de volta e, logo que cheguei no Brasil, comentei pra Rodrigo Côrrea, designer e editor da SobInfluencia: “li um livro excelente que tem a cara do que vocês têm publicado”. Mandei o PDF – livre em inglês aqui, como todos do INC –  e alguns meses, vários e-mails trocados da editora com Sbordoni e uma tradução competente de Victor Hermann depois – o livro está feito, bonitaço,  em pré-venda, disponível fisicamente a partir de meados de julho de 2025, quando o autor também estará no Brasil. Escrevi a apresentação, que publico aqui abaixo como um convite à leitura dessa curta e provocativa série de ensaios sobre o fim.

[Leonardo Foletto]

 

O livro que você tem em mãos é uma coletânea de 13 ensaios que investiga como o fim do mundo se tornou apenas mais um signo do que Alessandro Sbordoni, ecoando principalmente Franco “Bifo” Berardi, chama de “semiocapitalismo”. Trata-se de uma fase específica e avançada do capitalismo onde a produção de valor tem se deslocado da fabricação de bens materiais para a produção e circulação de signos, informações, afetos e relações sociais. Como diz Bifo, em um trecho citado nesse livro, “o semiocapitalismo coloca as energias neuropsíquicas para trabalhar, submetendo-as à velocidade mecanicista e forçando a atividade cognitiva a seguir o ritmo da produtividade em rede

A tese – se podemos assim chamá-la num texto tão aberto a provocações e leituras distintas – é que o fim do mundo é “apenas mais um signo” do semiocapitalismo: o apocalipse, tal como tradicionalmente concebido, não ocorrerá porque já está em curso permanente. Em sua visão, não há mais diferença entre o fim do mundo e o próprio capitalismo: ambos se reproduzem incessantemente segundo a lógica semiótica do capital. Este livro, então, se apresenta como um manifesto que nos convida a pensar sobre o que significa “fim” hoje.

Nos 13 ensaios permeia um diálogo com a famosa formulação atribuída a Frederic Jameson, mas popularizada por Mark Fisher em seu livro “Realismo Capitalista”: “é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”. Fisher argumentou que o capitalismo se apresentou após 1989 como o sistema político-econômico “padrão” com o qual nenhuma outra forma política estrangeira pode disputar, criando uma condição psicológica coletiva que torna muito difícil pensar em qualquer alternativa. A intuição de Fisher também é compartilhada pelo próprio Bifo em “Depois do Futuro” (lançado no Brasil em 2019 pela Editora Ubu): o “lento cancelamento do futuro”, diz Bifo, torna cada vez mais difícil imaginar futuros por decorrência também do afogamento coletivo pela superoferta de informação libertada na internet.

Sbordoni, entretanto, propõe ir além desse diagnóstico ao sugerir que ainda não imaginamos suficientemente estes “fins” – e que “o fim é apenas o começo”. Faz isso oferecendo um diálogo direto com alguns dos mais influentes nomes da crítica cultural e da filosofia dos últimos 40 anos, de Jean Baudrillard a Bernard Stiegler, Byung-Chul Han, Jacques Derrida, Giorgio Agamben, Nick Land, Slavoj Žizek, Tiqqun, Susan Sontag, além do jás citados Bifo Berardi, Mark Fisher e outros tantos. Este cardápio apresentado compõe uma espécie de banquete filosófico que nos alimenta de diversos , que cobrem diferentes aspectos de nossa vida acelerada pelas tecnologias do início do século 21, e que por conta disso necessitam paradas estratégicas para digerir e assentar as ideias – também para buscar relacionar as ideias apreendidas com as nossas experiências e reflexões cotidianas.

Esse assentamento de ideias e a conexão com referências próximas a nós é facilitado pela profusão de referências à cultura pop, já que a análise do livro, embora parte de filósofos de uma “alta teoria”, digamos, também quer entender algo que é prosaico e comum: como o apocalipse está presente nos produtos culturais que nos cercam neste século 21.

Aqui, vemos desde a música pop de Britney Spears (“Till the World Ends”), que na visão de Sbordoni se insere numa narrativa do fim como consumismo sem finalidade, numa “catástrofe do sentido” esvaziada de realidade pela repetição, até como “Vingadores: Ultimato”. No filme, que teve uma das maiores bilheterias da história do Cinema, os mortos retornam à imagem no desfecho do filme para anunciar um próximo filme do Universo Marvel – o que, na visão do autor, exemplifica a ideia de o fim, em si, é um signo de mais reprodução, mais simulação e repetição do mesmo.

Há ainda um cardápio enorme de músicas, filmes, ações e objetos estéticos citados e analisados sob a perspectiva crítica de Sbordoni, que incluem o glitch, por exemplo, e os backrooms– um estranho fenômeno na internet, originário do 4chan, misto de lenda urbana e espaço físico (inventado?), um lugar de transição que poderia figurar num hipotético (e hipnótico) clipe de “Road to Nowhere” dos Talking Heads remixada por algum DJ de trap nascido nos anos 2000.

Você ficará surpreso (ou não) em saber que o autor deste livro é um linguista e filósofo italiano nascido em Cagliari, maior cidade da ilha da Sardenha, na Itália, no mesmo ano em que a internet comercial estreou no planeta – 1995. Atualmente vivendo em Londres, onde trabalha para a editora de acesso aberto Frontiers, Sbordoni é também autor de “The Shadow of Being: Symbolic/Diabolic” (2023) e editor da revista britânica Blue Labyrinths, junto com o autor do posfácio deste livro Matt Bluemink, e da italiana Charta Sporca, ambas provocativas publicações digitais que tratam de filosofia, literatura, música e cultura digital. “Semiótica do Fim” foi publicado originalmente em inglês em 2023 pelo Institute of Network Cultures, de Amsterdam, dirigido por Geert Lovink, um dos principais e mais longevos teóricos e críticos da cultura digital – que, não por acaso, compartilha de muitas das referências citadas por Sbordoni, além da abordagem alta teoria e cultura pop da internet, como você pode ver em, por exemplo, “Extinção da Internet”, publicado em 2023 no Brasil pela Editora Funilaria em parceria com o BaixaCultura.

Este livro pode oferecer ferramentas conceituais relevantes para nós, brasileiros, também porque aqui parece haver um terreno fértil para o desenvolvimento da “anti-assombrologia” – o conceito que Sbordoni e Bluemink desenvolvem para pensar além dos fantasmas que assombram o presente. Se Mark Fisher escreveu sobre a assombrologia, em “Fantasmas da Minha Vida” (lançado no Brasil em 2022 pela Autonomia Literária), que “o futuro é sempre experienciado como uma assombração”, no Brasil experimentamos algo distinto.

Nossos fantasmas também vêm de futuros não realizados que, mesmo assim, insistem em irromper no presente através da urgência, da escassez e de nossa habilidade, aqui tornada indispensável, de festejar – e tudo que está implicado na festa, sobretudo a corporeidade da diversão manifestada na dança. Nossa produção cultural – do funk carioca ao tecnobrega, dos memes novelescos aos passinhos – não apenas processa ansiedades sobre o fim, mas remixa constantemente novos começos a partir do que parecia destruído (ou esquecido). A crítica de Sbordoni ao semiocapitalismo ressoa aqui, para além de um diagnóstico melancólico, também como um reconhecimento de uma capacidade brasileira de criar outros circuitos, outras relações com o tempo que desafiam a lógica linear do apocalipse capitalista. Se o autor propõe que “o fim é apenas o começo”, no contexto brasileiro isso não é metáfora, mas uma necessidade: somos especialistas em transformar precariedade em potência, nem que seja para fazer do fim do mundo mais uma oportunidade de recomeçar – e dançar. Todo apocalipse, no fundo, também é véspera de festa.

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Tecnopolíticas de retomada: bifurcar para resistir https://baixacultura.org/2025/05/09/tecnopoliticas-de-retomada-bifurcar-para-resistir/ https://baixacultura.org/2025/05/09/tecnopoliticas-de-retomada-bifurcar-para-resistir/#comments Fri, 09 May 2025 19:48:26 +0000 https://baixacultura.org/?p=15809 Republicamos aqui o ensaio-manifesto criado a partir do GT Experimentações Tecnopolíticas, da Coalizão Direitos na Rede. O texto, produzido no âmbito das atuações do GT (que ocorrem desde 2023 e podem ser vistas aqui), foi escrito por Alana Moraes, Henrique Parra, Leonardo Foletto e Pedro Ekman. Ele sintetiza alguns dos debates e seminários realizados nas discussões do grupo e de encontros como o Laboratório de Experimentações Tecnopolítica, em dezembro de 2023, o “Tecnopolíticas de Retomada“, na CryptoRave de 2024, e o práticas de imaginar & fazer mundos, em novembro de 2024. O GT segue em atividade e neste 2025/1 terá uma mesa na CrypoRave, 10h do dia 17/5, com o mesmo nome deste texto e a propsota de discutir e levantar ações e ideias provocadas também a partir desse ensaio-manifesto.

 

a máquina está em nós

Nosso laboratório de experimentação tecnopolítica parte de um diagnóstico aterrador ao mesmo tempo que procura encontrar caminhos contra a atual paralisia: reconhecer os bloqueios e capturas que governam nosso tempo e imaginação sem nos render, mapear os inimigos sem abrir mão daquilo que nos torna capazes de agir e do que nos vincula. E o que nos vincula? Quais as formas de vida estamos dispostos a criar e defender? Mckenzie Wark chama de “baixa teoria” (low theory) a prática de fazer teoria junto de um movimento, um coletivo, um estudo compartilhado, uma pequena conspiração. É a baixa teoria que nos move aqui.

Há 25 anos atrás, os debates sobre tecnologias digitais (ao menos aqueles que a maioria de nós estavamos engajados) pareciam apontar, enfim, para uma possibilidade de liberação da vida dos circuitos de produção e circulação de valor do capital; liberação do conhecimento e das tecnologias em relação aos regimes proprietários; liberação da ação política para além das fronteiras nacionais e das instituições de representação.

Hoje, a situação dificilmente escapa de uma análise catrastrofista. Não só nosso sonho de liberação foi abatido, mas a reorganização dos regimes de poder e do capital se alimentaram da nossa vitalidade, transformando as noções de “liberdade”, “conhecimento aberto”, “livre circulação da informação”, “democratização da comunicação”, “inteligência coletiva”, “participação política” em ativos para a expansão e o fortalecimento dos sistemas de dominação.

O pior: o êxito do tecnoautoritarismo e do capitalismo tecnoinformacional nos faz suspeitar de nós mesmos. Fomos ingênuos demais? Entregamos mais do que deveríamos na aposta de uma internet como território livre? Subestimamos os inimigos e suas armas de captura? Diante disso, como retomar um horizonte de transformação radical agora que a expansão da digitalização da vida e das tecnologias informacionais se impõem como mediação ubíqua entre nossas práticas e discursos, nossas relações e nossos pensamentos, nosso desejo, sensibilidade e imaginação, nossa memória e a produção de futuros? E qual é a memória ou a experiência compartilhada que nos vincula quando a vida é convertida em excesso informacional?

Um dos aforismos de “Um Manifesto Hacker”, de Mckenzie Wark, dizia: “os hackers usam seu conhecimento e sua perspicácia para manter sua autonomia”. Essa ainda nos parece uma formulação provocadora. Ao invés de nos mover na direção de uma “soberania digital” pensada nos termos da geopolitica dos estados-nação e seus projetos de poder e controle, preferimos nos perguntar: quais os arranjos sociotécnicos que podem sustentar autonomias ? Aliás: o que é autonomia? Entre outras coisas, pensamos em formas de vida que emergem nos intertícios dos circuitos de valor e espoliação do tecnocapital, territórios de interdependência multiespécie cujas formas técnicas estão voltadas à vida, à diversidade, ao tempo do cultivo lento, à reciprocidade e aos modos ativos de dispersar o poder e às formas de controle. Um território não precisa ser um espaço fisíco com fronteiras bem delimitadas, ele pode ser instituído a partir de relações que vinculam práticas e pertencimentos, cumplicidades e dissidências. 

A gramática do extrativismo constitui a economia tecnopolítica civilizatória no presente global e faz convergir modos permanentes de espoliação e gestão autoritária para converter e administrar territórios vivos em zonas passíveis de serem sacrificadas. As ditas inovações  tecnocientíficas recentes, ligadas  à  expansão  das  tecnologias  digitais  como os modelos de inteligência  artificial, por exemplo, apresentam  um  novo  ciclo  de  demanda  crescente  por energia elétrica e extração dos chamados metais raros. Ainda que possamos defender tecnologia de “baixo impacto”, nos parece importante voltar às perguntas mais fundamentais como, por exemplo, que tipo de produção de conhecimento nos interessa? O que entendemos por eficiência? O que é o Comum que estamos dispostos a cultivar e defender? Nos parece que em nome da “transição energética” ou dos novos conflitos militaristas se renova o espírito da ideologia tecnopolítica da Guerra Fria na qual a ideia de “avanço tecnológico”, escalabilidade, automação e eficiência passam a dar as cartas, de forma mais decisiva, na geopolítica global e na legitimidade das formas políticas coloniais de domínio.

Diante deste cenário, os esforços de regulação do capitalismo tecnoinformacional parecem mais pavimentar o caminho por onde circula a espoliação e o controle civilizatório do que produzir formas de resistência e garantia de direitos. 

Por um lado, a exponencial capacidade de vigilância, encarceramento e extermínio permitiu aos Estados e suas estruturas militares incrementarem  genocídios ao mesmo tempo que os convertem em eventos cotidianos narrados em nossas barras de rolagem.  Por outro lado, a digitalização da nossa vida e as dinâmicas de vigilância e controle se espalham no tecido social em uma epidemia praticada não só pelo Estado, mas nas famílias, amigos-seguidores, vizinhos ou empresas. 

Como nossas imaginações e práticas coletivas de transformação podem retomar os vínculos com o desejo insurgente? Se o que constitui uma máquina é, sobretudo, suas ações de concatenação – talvez nossa potência não esteja na adoção de uma forma técnica supostamente libertadora ou mais justa, mas na força que conecta nosso desejo de liberação com nossas capacidades de experimentar, já no presente, outras formas de vida.

Escapemos do regime de visibilidade e da economia política narcísica; recusemos o espaço dos monopólios coorporativos como sendo a nova esfera pública, desertemos da máquina de captura e extração para criar e alimentar uma economia própria de suporte mútuo e de defesa do Comum. Criar e sustentar mundos sob outras racionalidades, normatividades e cosmovisões, ao mesmo tempo que se sabota as engrenagens do rolo compressor colonial para reduzir a eficiência do sistema dominante, desinvestindo e fragilizando suas infraestruturas técnicas, econômicas e jurídicas. Romper com os critérios da eficiência técnica capitalista e viver sob os critérios de suficiência Terrana. A luta coletiva no campo tecnopolítico digital pode ser aqui e agora uma luta cosmopolítica, anticapitalista e contra-colonial.

Alana Moraes, Henrique Parra, Leonardo Foletto, Pedro Ekman

 

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Conectados e cansados https://baixacultura.org/2025/03/23/conectados-e-cansados/ https://baixacultura.org/2025/03/23/conectados-e-cansados/#respond Sun, 23 Mar 2025 21:45:37 +0000 https://baixacultura.org/?p=15803  

A internet dos anos 2000 prometeu liberdade e colaboração e entregou Big Techs, plataformização da vida e a precarização do trabalho criativo. O que levou a essa transformação? No dia 13 de março, Sílvio Lorusso, autor do livro “Emprecariado” (Clube do Livro de Design, 2023) e eu debatemos os impactos desse cenário e o futuro do trabalho digital. Foi na Risotropical (Galeria Metrópole), centro de São Paulo, das 19h às 21h30, evento organizado pela Ubunttu, Clube do Livro do Design (especialmente Tereza Bettinardi, editora e designer por trás da iniciativa) e que fez parte da DW! Semana de Design.

Gravei em áudio a maior parte da conversa e recupero aqui alguns trechos destacados:

_ Um conceito central discutido é a plataformização, que se refere ao crescente domínio das estruturas de plataformas em diversos aspectos da vida, desde mobilidade e redes sociais até trabalho, saúde, alimentação e serviços públicos – veja aqui o artigo já clássico que analisa o conceito em suas principais dimensões.  Falamos da (óbvia) constatação de que cada vez mais se acessa a internet via plataformas (em seus “jardins murados”), locais onde infraestruturas econômicas e políticas, com seus mecanismos próprios de governança, operam. A plataformização coincide com uma mudança na percepção das possibilidades utópicas da internet, da “ressaca da internet”, com o reconhecimento de que foram as plataformas que acabaram com as possibilidades transformadoras de descentralização e autonomia da internet;

_ A crítica ao tecnolucionismo, a ideia de que a solução para diversos problemas reside em mais tecnologias, mais aplicativos, mais plataformas, quando na verdade essa abordagem muitas vezes só serve à monetização de dados e alimenta um ciclo de desigualdade, para não falar do aumento da concentração de poder político e da perda da capacidade de imaginar outros modelos de gestão e organização da infraestrutura da comunicação. A ascensão das IAs generativas tem acelerado ainda mais esse processo;

_  A discussão sobre empreendedorismo, tema do “Emprecariado” (livro de Lorusso), foi, claro, ponto central da conversa. A ideologia de ser empreendedor é vista por Lorusso como o outro lado da precariedade. Há, em comum, o fato de ambas ideias estarem ligados à ideia de risco,  mas com o empreendedor abraçando a incerteza como oportunidade, enquanto o trabalhador precário vivencia o ser empreendedor como uma imposição. As plataformas, como se sabe, exacerbam essa relação, como discutido no livro, que analisa diversas plataformas para além das tradicionais “Gafam” (Google, Amazon, Facebook, Apple, Microsoft): o LinkedIn, o makretplace de freelas Fiverrg; e o GoFundMe, plataforma de crowdfunding que, segundo Lorusso, exemplifica como a lógica da criatividade e do financiamento coletivo pode se estender a necessidades sociais e, com isso, expor uma certa “criatividade trágica” generalizada.

_ Falamos também das alternativas às plataformas centralizadas, como as plataformas federadas (no Fediverso), que operam com uma lógica descentralizada, onde cada instância têm suas próprias regras. Comentei também que essas plataformas, que têm ganhado um certo boom neste 2025 com a migração de pessoas cansadas das redes sociais alinhadas à Trump, também enfrentam desafios relacionados à moderação de conteúdo em larga escala, além da necessidade de organização e trabalho para manter esses espaços saudáveis.

_ Além de provar o chimarrão gaúcho, Lorusso comentou sobre como, na sua breve vivência em território brasileiro (que incluiu o Carnaval), teve um certo assombro em perceber a implementação generalizada – e normalizada –  das tecnologias de reconhecimento facial nas grandes cidades brasileiras. A precariedade inerente ao contexto brasileiro parece fazer com que experimentos tecnológicos sejam mais facilmente implementados aqui (e no restante do Sul Global) do que em lugares como a Europa (Portugal em especial, onde ele vive; mas também na Itália, sua terra de origem). 

_ Por fim, comentamos até sobre a proliferação das apostas online (bets), motivados por uma pergunta da platéia. É um fenômeno inescapável no país e que demanda um novo vocabulário para entender a dinâmica de plataforma e precarização, agora desvinculada da ideia de produção ou do trabalho tradicional, e que tem impactos sociais significativos, especialmente entre a população de baixa renda.

As fotos do evento abaixo são da Helena Wolfenson.

 

 

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Vale a pena ver de novo – Tudo Vigiado por máquinas de adorável graça (2012) https://baixacultura.org/2025/03/07/vale-a-pena-ver-de-novo-tudo-vigiado-por-maquinas-de-adoravel-graca-2012/ https://baixacultura.org/2025/03/07/vale-a-pena-ver-de-novo-tudo-vigiado-por-maquinas-de-adoravel-graca-2012/#respond Sat, 08 Mar 2025 01:23:04 +0000 https://baixacultura.org/?p=15805 Quase 13 anos atrás, fizemos um texto no BaixaCultura falando do “Tudo Vigiado por Máquinas de Adorável Graça”, de Adam Curtis, grande documentarista inglês conhecido por seu estilo único e denso de contar histórias políticas e interessantes do século XX. O post reproduziu uma resenha de uma amiga do BaixaCultura de tempos, Aracele Torres, doutora e mestre em história social pela USP, autora da bela tese “A internet livre e aberta como ideologia: o debate da neutralidade da rede no Brasil e nos Estados Unidos” e do livro essencial “A Tecnoutopia do Software Livre”, baseado em sua dissertação e em seu trabalho de militante do software livre de muitos anos.

O belo e misterioso nome do documentário, “All Watched Over By Machines of Loving Grace” (no original), faz referência a um poema publicado em 1967 sob o mesmo nome, cujo o autor, Richard Brautigan, falava de uma sociedade onde os homens estavam livres de trabalho e a natureza tinha alcançado seu estado de equilíbrio, tudo graças ao avanço da cibernética.

All Watched Over By Machines Of Loving Grace
I like to think (and
the sooner the better!)
of a cybernetic meadow
where mammals and computers
live together in mutually
programming harmony
like pure water
touching clear sky.

I like to think
(right now, please!)
of a cybernetic forest
filled with pines and electronics
where deer stroll peacefully
past computers
as if they were flowers
with spinning blossoms.

I like to think
(it has to be!)
of a cybernetic ecology
where we are free of our labors
and joined back to nature,
returned to our mammal
brothers and sisters,
and all watched over
by machines of loving grace.

 

O documentário é uma crítica contundente à tradição tecno-utópica originada nos Estados Unidos, da ideologia californiana ao tecnosolucionismo. Você deve imaginar, por conta disso tudo, o quanto o filme está cada vez mais atual na Era Musk-Trump, por isso nossa recomendação de hoje.

Está dividido em 3 partes: “Amor e Poder“ mostra como o casamento entre a teoria de Ayn Rand e a crença no poder das máquinas produziu a ilusão de uma sociedade que prescinde, entre outras coisas, de políticos e que se autogovernava e se autoregulava com a ajuda dos computadores. ”O uso e abuso dos conceitos vegetais” apresenta o entrelaçamento entre a teoria da cibernética e a teoria do ecossistemas naturais, que produziu a crença de que a natureza era um sistema autorregulado e estável. Por fim, “O macaco dentro da máquina e a máquina dentro dos macacos“, encerra com a discussão em torno da teoria sobre o comportamento humano moldado por códigos matemáticos genéticos – o ser humano como uma máquina controlada por seus genes. Cada uma com cerca de uma hora de duração, todos disponíveis no Vimeo do BaixaCultura para assistir, legendados e de grátis, e aqui abaixo:

 

 

 

Há este e outros vídeos na nossa BaixaTV, canal com uma seleção de documentários, curtas, longas, programas de TV e vídeos variados sobre cultura livre, (contra) cultura digital e diversos temas ao redor disso, tanto produzidos por nós quando por outros e rearrajandos por nós. Acreditamos que organizar a informação de modo a facilitar o acesso permitirá que ela siga circulando.

 

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