Documentação – BaixaCultura https://baixacultura.org Cultura livre & (contra) cultura digital Wed, 10 Sep 2025 14:34:06 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.0.10 https://baixacultura.org/wp-content/uploads/2022/09/cropped-adesivo1-32x32.jpeg Documentação – BaixaCultura https://baixacultura.org 32 32 Capitalismo, semiótica e as subjetividades do fim: entrevista com Alessandro Sbordoni https://baixacultura.org/2025/09/10/capitalismo-semiotica-e-as-subjetividades-do-fim-entrevista-com-alessandro-sbordoni/ https://baixacultura.org/2025/09/10/capitalismo-semiotica-e-as-subjetividades-do-fim-entrevista-com-alessandro-sbordoni/#respond Wed, 10 Sep 2025 14:25:14 +0000 https://baixacultura.org/?p=15913 Em julho de 2025, o italiano radicado em Londres Alessandro Sbordoni esteve no Brasil para o lançamento de “Semiótica do Fim – Capitalismo e Apocalipse”, pela editora SobInfluencia. O livro, como já comentamos no texto de apresentação, é uma coletânea de 13 ensaios que investiga como o fim do mundo se tornou apenas mais um signo do “semiocapitalismo”. A tese – se podemos assim chamá-la num texto tão aberto a provocações e leituras distintas – é que o fim do mundo é “apenas mais um signo” do semiocapitalismo: o apocalipse, tal como tradicionalmente concebido, não ocorrerá porque já está em curso permanente. Não há mais diferença entre o fim do mundo e o próprio capitalismo: ambos se reproduzem incessantemente segundo a lógica semiótica do capital, diz Sbordoni. Seu livro, então, se apresenta como um manifesto que nos convida a pensar sobre o que significa “fim” hoje.

Em 17 de julho de 2025, um dia antes do primeiro lançamento do livro [na sede da editora SobInfluencia, na Galeria Metrópole, referência cultural e artística do centro de São Paulo; veja íntegra do evento aqui], conversamos com Alessandro num restaurante amazônico dentro da galeria. Pelo BaixaCultura, Leonardo Foletto e Rafael Bresciani, com participação de Rodrigo Côrrea, editor e designer da SobInfluencia. Entre Cupuaçú amigo (a versão local do drink “Caju Amigo”) e Tacacás (a famosa “sopa” amazônica, com jambu e tucupi), a conversa foi de “Semiótica do Fim” às relação entre cultura alta e baixa, anti-assombrologia, revistas digitais como espaços de encontro intelectual, underground, tecnologia, teoria contemporânea. Abaixo uma versão editada da conversa. Originalmente em inglês, também foi publicada no Institute of Network Cultures (INC) de Amsterdam.

BaixaCultura: Para começar: como surgiu a ideia do livro? Em que contexto foi produzido? Conte um pouco mais sobre sua trajetória na escrita do livro.

Alessandro: Em 2020/2021, li “Fenomenologia do Fim” de Franco Berardi. Ao lê-la, achei a abordagem sobre o capital e o capitalismo muito intrigante, algo que ficou na minha cabeça por um tempo. Eu tinha acabado de escrever outro livro sobre algo completamente diferente, mas sabia que queria fazer algo assim. Alguns meses depois, escrevi um ensaio, que é o primeiro do livro, com um subtítulo diferente, mas o título principal era “Semiótica do Fim”. Eu não sabia o que sairia daquilo; era sobre tédio e o fim do mundo. Publiquei no Blue Labyrinths, a primeira vez que publiquei lá. Alguns meses depois, publiquei outro ensaio, novamente com o mesmo título e um subtítulo diferente, e depois o terceiro ensaio. Assim, pouco a pouco, tudo começou a se encaixar. Obviamente, o título “Semiótica do Fim” é uma referência a “Fenomenologia do Fim”, e pensei que faria algo similar.

Então, o livro surgiu organicamente. Pouco a pouco, comecei a perceber que queria misturar a ideia de semio-capitalismo como uma forma de analisar, criticar e ir além da ideia de realismo capitalista em Mark Fisher, que é o núcleo do livro.

BaixaCultura: Você é filósofo?

Alessandro: Eu não me consideraria… Há uma citação muito engraçada de Guy Debord, que disse: “Não sou filósofo, sou estrategista”. Me vejo assim: não sou filósofo, com certeza. Talvez seja estrategista, mas definitivamente me considero mais um teórico. A filosofia carrega toda essa bagagem cultural ocidental com a qual discordo totalmente em me identificar. Então me vejo como teórico, o que também traz certas questões, como: não estou buscando a verdade no que escrevo. Vejo mais como um empreendimento político ou cultural, se preferir, mas não buscando verdade ou conhecimento. Tudo isso é nonsense.

BaixaCultura: Gostaria de perguntar sobre Blue Labyrinths e Charta Sporca, duas revistas digitais nas quais você está envolvido. Quando começaram?

Alessandro: Com Blue Labyrinths, tudo começou quando li os ensaios anti-assombrologia (anti-hauntology) do fundador do Blue Labyrinths, Matt Bleumink, sobre os quais queria falar, e eles formaram o último capítulo do livro. Depois de publicar alguns outros ensaios no Blue Labyrinths, nos tornamos bons amigos e, pouco a pouco, comecei a desempenhar um papel no conselho editorial do Blue Labyrinths junto com outra pessoa.

Para Charta Sporca, eu realmente queria publicar e fazer algo com eles. Os encontrei quando estava na Itália, fazendo minha graduação, e sempre apreciei a mistura de política, literatura e filosofia, tudo junto, que eles fazem.

BaixaCultura: Sobre Blue Labyrinths: que tipo de contribuições vocês buscam? E como a revista se posiciona dentro do panorama atual de publicações culturais e filosóficas?

Alessandro: Aceitamos qualquer submissão que consideremos interessante para nós. Se você ler a descrição, diz algo muito geral: “Uma revista online focada em filosofia, cultura e uma coleção de ideias interessantes.” E essa parte das “ideias interessantes” é o principal, porque todas as revistas e editoras tendem a admitir que focam em uma coisa, talvez porque seja mais fácil ou porque as pessoas têm entendimento limitado. Mas sempre publicamos coisas que esticam um pouco, e até publicamos algumas coisas com as quais tendemos a discordar em certa medida, até mesmo no nível político. Nada muito louco – nunca publicaria um texto fascista, tenho certeza. Mas houve discordâncias, e isso é interessante. Por exemplo, foi uma política muito boa porque atraímos todos aqueles escritores que não sabem onde mais publicar, porque todas as outras revistas são muito específicas, e se você não se encaixa, dane-se. Então, foi muito interessante. E não foi minha ideia; foi Matt, o fundador, que sempre teve essa mentalidade, e sempre gostei disso. E acho que fui atraído porque também na minha escrita faço isso: trago muitas coisas diferentes todas juntas.

BaixaCultura: E por que revistas? Você gosta de revistas digitais?

Alessandro: Pessoalmente, as vejo como uma espécie de “academia cultural”. É quase como um campo de testes ou, se quiser, um treinamento no sentido militar. É uma forma de treinar uma teoria para, então, expandi-la e desenvolvê-la em outros espaços.

BaixaCultura: Charta Sporca, para mim, parece engajar com teoria e cultura italiana contemporânea, incluindo seu próprio trabalho e figuras como Mark Fisher e Deleuze. Como editar essa revista influenciou seu próprio desenvolvimento teórico? E que papel você vê as revistas intelectuais e digitais desempenhando hoje, especialmente no seu caso? A história intelectual italiana tem uma enorme histórico, com Quaderni Rossi, Classe Operaia e A/Traverso, por exemplo, nos anos 1960 e 1970.

Alessandro: Imagine que a revista fosse um espaço com o qual você interage. Você vai lá frequentemente e vê o que as pessoas estão fazendo. E o que sai disso não é teoria ou ideia. Sim, você lê textos interessantes, e eles podem despertar algo, mas essa não é a coisa principal e mais importante. A coisa mais importante é que você conhece as pessoas e cria relacionamentos, como os que também estamos fazendo agora. Isso é algo que percebi nos últimos anos: a coisa mais interessante sobre escrever não é escrever, é conhecer as pessoas. É fazer parte de uma “comunidade”, por falta de palavra melhor – e não gosto da palavra “comunidade” porque quase exige ser definida. São encontros. Encontros com as pessoas que você conhece informam sua teoria, mas é eventual de certa forma. A teoria é secundária à realidade de encontrar alguém. Essas revistas são uma potencialidade em direção aos encontros.

BaixaCultura: E por que sites de revistas e não, por exemplo, redes sociais?

Alessandro: Bem, porque há uma certa autonomia na revista. E isso volta ao que eu estava dizendo sobre essas “ideias interessantes”. Você simplesmente recebe qualquer uma. Fico feliz em conhecer qualquer um que tenha algo interessante a dizer, especialmente se discordam.

BaixaCultura: Voltando ao livro. Ele abre com a declaração provocativa de que “o fim do mundo é apenas outro signo do semiocapitalismo.” Pode explicar o que o levou a essa conclusão e como desenvolve o conceito de semiocapitalismo como distinto das tradições de crítica do capital, como nos livros do Bifo, por exemplo? Se há diferenças ou não.

Alessandro: Definitivamente há diferenças. E sempre tomo todas essas ideias como pontos de partida. E, em certa medida, não estou tentando desenvolver o conceito de semiocapitalismo, mas acho que é um terreno interessante. E, na minha visão, o que aconteceu foi que, em algum momento, a diferença entre materialidade e imaterialidade, entre uma cultura baseada na produção e commodities reais – a dicotomia entre produção e reprodução, nos termos que coloco – foi abolida. E o mundo se tornou mais efêmero e imaterial,  apenas uma estrutura de signos. O interessante é que o capitalismo conseguiu se vincular à reprodução de signos e se reproduzir através de signos, independentemente do que os signos significam. Isso poderia ter sido um problema no passado. Por exemplo, o capitalismo entrando em um discurso radical e obtendo lucro disso, isso poderia ter sido uma contradição no sentido marxista. Acho que agora o discurso foi nivelado e qualquer coisa pode se transformar em capital; qualquer coisa pode ser uma forma de reproduzir capital. E a forma mais extrema disso é o fim do mundo. Porque o capitalismo se alimenta da reprodução até mesmo do seu próprio fim, o que achei que era um ponto de partida interessante por causa da ironia intrínseca. Não acho que haja contradição, mas há uma forte ironia e um forte sentimento de que deveria ser o ponto de partida para algo diferente. E estou tentando encontrar uma forma de abrir para esse novo começo, mas acho que temos que realmente pensar fora da caixa, porque tudo que está dentro da caixa é capital.

BaixaCultura: Você afirma que o apocalipse, como tal, não ocorrerá porque já aconteceu. Isso parece desafiar tanto narrativas religiosas quanto seculares de fim. Como situa essa afirmação em relação às nossas crises ecológicas e sociais que estamos vivenciando? E como podemos pensar sobre outras relações com o fim?

Alessandro: Há, novamente, uma piada triste sobre a catástrofe climática e o “fim sem fim” do capitalismo. Conforme a catástrofe continua, reproduz mais e mais capital, e porque reproduz mais e mais capital, continuará mais e mais rápido. E, paradoxalmente, as poucas imagens que agora temos – por exemplo, os incêndios florestais acontecendo ao redor do mundo – vão aumentar porque o capital vai aumentar, e o capital são essas imagens. E então, conforme o capital aumenta, o fim do mundo se aproxima. Não vejo, seguindo essa linha de raciocínio, um fim para o capital. Mas conforme começamos a nos relacionar com a cultura de forma diferente e começamos a ver que essas imagens não são nada além de capital, que a reprodução é o problema do que representam, essa será uma forma antiga de pensar. O problema é que, se o fim do mundo está se aproximando, ainda estamos produzindo conteúdo e ainda estamos produzindo de forma capitalista. Então, por um lado, uma solução poderia ser encontrar novas formas de produção, mas entramos em um novo paradigma, que chamo de re-produção. Muitos dos diferentes modos de produção-reprodução foram neutralizados.

Então, a única coisa que resta fazer é repensar onde estamos agora. E isso é algo a que Geert Lovink se refere em “Extinção da Internet“: temos que olhar para o abismo para superá-lo. E para mim, também é olhar para como isso nos faz sentir. E, paradoxalmente, falo sobre isso em termos de tédio em vez de ansiedade, porque estamos fartos disso. São 50, 60 anos de predições apocalípticas que não se concretizaram, porque o capital, como disse antes, continua se reproduzindo. Mas se redirecionarmos o conceito de fim e começo de uma forma metafísica – e é por isso que também estamos falando sobre filosofia. Podemos repensar o que significa estar no fim do mundo e o que significa o fim e o começo sempre coexistirem. Uma vez que entendemos isso, abrimos novos caminhos – e, em uma palavra simples, uma nova imaginação.

BaixaCultura: Seguindo essa ideia de fim e começo: geralmente pensamos sobre o progresso humano como marcos de sucesso. Quando as coisas acontecem positivamente, as marcamos. E um desses exemplos é quando, em nível pessoal, nos apresentamos como profissionais, usamos um Curriculum Vitae, que significa as coisas que fizemos na vida, os bons marcos de nossas vidas. Mas uma vez ouvi um psicólogo que defendia a ideia de um Curriculum Mortis, que é a ideia de que, quando reconhecemos os marcos do fracasso, somos capazes de superar esses fracassos. Então, essa visão é algo em que podemos confiar neste momento do Antropoceno e do capitalismo tardio? Usar um Curriculum Mortis da história humana como forma de abordar esse momento.

Alessandro: Há um artigo publicado recentemente em uma revista italiana por Christian Damato que fala sobre como o fracasso foi reintegrado no discurso do sucesso dentro de uma ideologia corporativa. E acho que é uma declaração muito sombria, mas acredito que meramente inverter o problema não o resolve, porque na minha forma de pensar, é uma questão de estruturas. Apenas reverter a estrutura não está criando uma nova estrutura, mas pode ser um meio para uma nova estrutura. Então, até mesmo enfatizar o fracasso poderia potencialmente ser um caminho para algo, mas não é suficiente.

Eu diria que o progresso só existe de acordo com um certo conjunto de critérios estabelecidos por uma cultura. E, de fato, a ideia de progresso no Ocidente foi muito criticada (por exemplo, por Jacques Derrida). Você sempre encontra um progresso constante se apenas decidir sobre os parâmetros certos para avaliá-lo. E acho, portanto, que a solução para esse problema é mudar as regras da questão. Não há como responder à pergunta “melhor ou pior” se é avaliada de acordo com os critérios do problema. Você precisa descobrir quais são as suposições metafísicas que precisam mudar. Talvez nos tornemos cínicos sobre isso. Mas acredito em algo que Tiqqun diz no primeiro ensaio de sua primeira edição: que política é metafísica, e uma nova política demanda uma nova metafísica; não deveríamos ter vergonha de falar em metafísica só porque as ideias de algum metafísico nazista se tornaram muito influentes.

BaixaCultura: Em diálogo com essa questão, você às vezes posiciona seu trabalho em contraste com o realismo capitalista de Mark Fisher. Propõe, em seu livro, um manifesto para a imaginação de outra relação com o fim. Como seu conceito de anti-assombrologia difere do dele? E como essa outra relação se parece na prática?

Alessandro: A ideia original de anti-assombrologia foi desenvolvida por Matt Bluemink antes de eu conhecê-lo. Depois, continuei o que ele fez tomando como seu texto como ponto de partida e depois construindo minha própria direção. E temos algumas discordâncias sobre como os conceitos poderiam ser aplicados. Sobre a diferença entre assombrologia e antiassombrologia, isso foi discutido no debate entre Matt Bluemink e Matt Colquhoun, que Matt Bluemink publicou seu primeiro ensaio. Matt Colquhoun respondeu, e então houve um vai e vem que aconteceu em 2021. Matt Colquhoun criticou a ideia de fazer essa distinção entre assombrologia e anti-assombrologia porque ela mesma é “assombrológica”. E acho que essa é uma crítica, digamos, injusta.

[Nota da edição: “Assombrologia” – nos termos de Mark Fisher desenvolvido sobretudo em “Fantasmas da Minha Vida” (2014, no Brasil publicado em 2022) – seria o estudo da persistência de elementos do passado que “assombram” o presente, não numa visão nostálgica, mas sim como a manifestação de futuros perdidos ou potenciais não realizados, especialmente no contexto do capitalismo tardio . A anti-assombrologia proposta por Bluemink e Sbordoni seria uma ideia de pensar para além dos fantasmas que assombram o presente. Como Bluemink escreveu em 2021, “Se a assombrologia é a lógica do desespero, então a antiassombrologia pode ser vista como a lógica da esperança”.]

Essa crítica segue uma lógica pós-estruturalista típica: toda oposição não pode ser claramente estabelecida como oposição, porque todo conceito contém dentro de si sua negação e assim por diante. Mas esse é precisamente o tipo de problema que tentei superar. Por isso, decidi simplesmente impor a distinção entre assombrologia e antiassombrologia, mesmo que isso signifique fazer uma certa violência teórica ao abandonar a filosofia em favor da teoria. Às vezes você precisa defender uma posição sabendo que ela não pode ser “provada” no sentido filosófico clássico – o importante é que existe uma potencialidade real para o novo, e meu trabalho é tentar tornar essa potencialidade concreta na realidade.

Na prática, o que a antiassombrologia faz- e isso é algo que Matt Colquhoun diz – é usar a cultura para recuperar a esperança de que o novo ainda pode acontecer. Mais do que isso: o novo já está acontecendo através do nosso próprio trabalho teórico e cultural. Essa mudança pode se espalhar para qualquer área da experiência humana – você só precisa estabelecer as bases metafísicas adequadas.No primeiro capítulo do livro, escrevo que “hoje, nada é possível porque nada é impossível” – ou seja, vivemos numa paralisia onde tudo parece ao mesmo tempo bloqueado e em aberto. Mas essa frase também pode ser invertida: se nada é impossível, então tudo volta a ser possível. Não se trata de inventar soluções mágicas do nada, mas de transformar a forma como as pessoas percebem e se relacionam com o mundo. É uma mudança de subjetividade que pode emergir aparentemente “do nada”, mas que tem efeitos muito concretos.

A aplicação prática da antiassombrologia funciona similar à arte, que tem esse paradoxo interessante: ela transforma nossa visão de mundo sem alterar diretamente as condições materiais do mundo. Quando você vê uma obra de arte poderosa, sua visão de mundo muda e novas possibilidades se abrem – mas aparentemente “nada” mudou no mundo físico. Ao mesmo tempo, “tudo” mudou, porque sua subjetividade foi transformada.

Esse é o ponto central: o problema não é fundamentalmente material, é subjetivo. Quando pensamos que enfrentamos apenas problemas materiais na verdade estamos lidando com uma crise mais profunda de subjetividade. É nossa forma coletiva de perceber e se relacionar com o mundo que determina como interpretamos esses problemas “materiais”. Os problemas concretos podem ser resolvidos, mas primeiro precisamos recuperar, como coletivo, nossa capacidade de controlar e dar sentido à realidade.

BaixaCultura: Guattari, em 1993, em seu livro “Caosmose“, fala de estética como forma de ressignificar a subjetividade diante de questões sociopolíticas. Citando-o: “Não se pode conceber uma disciplina internacional neste domínio sem trazer uma solução aos problemas da fome mundial e hiperinflação no terceiro mundo”. “A única finalidade aceitável das atividades humanas é a produção de uma subjetividade que enriqueça o modo de continuidade e suas relações com o mundo”. Então, ele está tentando dizer que a estética cria influência nessa visão de mundo comum que se torna material.

Você acha que a contaminação da internet e das tecnologias digitais em nossa noção de estética, e a relação entre isso e o tecido sociopolítico, é uma forma de recriar e ressignificar esse canal, essa visão de mundo do contemporâneo? A arte é uma forma de alcançar essas mudanças?

Alessandro: Sempre penso que a subjetividade, em certa medida, pode ser vista como um fim em si mesma. A questão não é: “Que tipo de mundo queremos?” ou “Que tipo de futuro queremos?”. Na verdade, deveríamos pensar na subjetividade como o meio para chegar a um fim. Mas ainda não sabemos qual é esse fim, porque ainda não chegamos ao verdadeiro começo. E isso é algo, a propósito, que Baudrillard faz e é criticado por isso, porque nunca apresentou uma visão de como poderíamos superar o capital, nunca oferecia soluções concretas. Mas a solução é exatamente a subjetividade. Não no sentido de que uma nova subjetividade surge e o mundo se transforma imediatamente, mas porque o problema é fundamentalmente uma questão de potencialidade. Uma vez que essa potencialidade está disponível, tudo pode se desdobrar – ou não.

Mas também acho que a filosofia, especialmente, tem uma certa arrogância ao tentar moldar o mundo diretamente, e isso faz parte do problema. Porque é exatamente isso que a ciência faz, que o Estado faz, e não quero me envolver com essa lógica. Por isso, pode parecer que permaneço no abstrato, mas na verdade penso no sentido mais material possível: a partir da subjetividade.

Então concordo com tudo que você disse. Talvez a crítica seja que o que estou propondo é muito simples. Se você observar a arte, ela não muda as coisas diretamente, mas faz as pessoas olharem para o mundo de forma diferente. A arte reformula o problema, e reformular o problema já é parte da solução.

BaixaCultura: Sim, Guattari falou isso em 93, você disse antes, certo? Faz 40 anos que estamos discutindo isso e não está terminando. Há uma saída?

Alessandro: Acho que a coisa mais importante que mudou é como podemos ativar novas subjetividades mais rapidamente, em uma escala muito mais ampla e global. Sempre penso no que faço nesses termos: quantas pessoas posso alcançar de uma só vez e como elas podem ser imediatamente transformadas.E também como isso é perigoso para o sistema, podendo tanto facilitar mudanças quanto impedi-las mais facilmente. Isso é o que mudou nos últimos trinta anos – pelo menos uma das coisas mais importantes que mudaram.

BaixaCultura: Você fala sobre cultura, música, arte. Sua análise vai de Britney Spears ao K-pop e a internet. Como você conecta objetos culturais tão diversos e, na sua opinião, o que eles revelam sobre nosso momento contemporâneo?

Alessandro: Estou muito interessado na conexão entre o que no mundo anglófono chamamos de “cultura erudita” (alta cultura) e “cultura popular” (baixa cultura). E em como, especialmente no mundo anglófono, essa conexão é frequentemente cortada, criando uma divisão entre elas. Existe uma separação entre Heidegger e Britney Spears. Mas me interesso por Britney Spears e frequentemente penso sobre ela de forma talvez “hiperintelectual”.  Porém, não acho que as duas coisas sejam realmente distintas por causa da estrutura do semiocapital. Tudo está no mercado ao mesmo tempo, e essas distinções antiquadas entre cultura alta e baixa estão sendo abolidas. E creio que estão sendo abolidas pelo que chamo de “cultura trash”.

Se nos séculos 19 e 20, o kitsch tentou fazer a ponte entre a cultura da classe trabalhadora e a cultura da classe média, agora temos cultura trash. A internet, em particular, tem sido a tecnologia do trash. E trash, por definição, é aquilo que destrói a distinção entre o alto e o baixo, o bom e o ruim, e assim por diante…

Pessoalmente, acho que restabelecer essa conexão – que ainda está bastante aberta a várias “assemblages” – é um terreno fértil para novas formas de imaginação. Aqui, imaginação é algo que defino especificamente como a reconstrução de conexões entre subjetividades e cultura. Então, ao fazer uma piada conectando Kanye West e Hegel, digamos, você pode encontrar novas formas de refazer a assemblagem que constitui a cultura e descobrir novas expressões de subjetividades. Estou sendo muito otimista sobre isso, mas acho que ainda é algo que permanece aberto para teorização e politização.

Alessandro tomando um Tacacá

BaixaCultura: Queríamos perguntar sobre as diferentes perspectivas da geração de Mark Fisher e sua geração, nascida no final dos 1990 e início dos 2000. A percepção do fim ou da simulação do apocalipse, por exemplo: é diferente para nós? É interessante ou uma simulação?

Alessandro: Há uma citação de Grafton Tanner – que talvez faça parte de uma geração mais jovem de escritores – que fala que nos anos 2010, Mark Fisher e Simon Reynolds pensavam que havia uma crise para imaginar o passado e o futuro. Isso estava acontecendo nos anos 2010, mas agora a crise é para imaginar o presente. Então, acho que se tornou abrangente, e a crise da imaginação, que de alguma forma ainda era parcial na época de Mark Fisher, se generalizou, e muitas de suas afirmações se tornaram ainda mais fortes.

Mas o que mudou é que as pessoas não podem mais ignorar isso. E ainda é muito relevante que Mark Fisher continuse sendo o filósofo mais conhecido dos últimos 20 anos. Mas, ao mesmo tempo, também acho que a nova geração – e sim, talvez me inclua nesse grupo – está começando a entender que as regras foram mudadas pelo próprio problema. Pessoalmente, penso que a questão é sobre reinventar a imaginação, o que parece algo muito ambicioso. Mas também vejo que no uso da tecnologia se cria novas relações entre si mesmas e a cultura e, portanto, criando novos imaginários. O que não significa novas realidades, novos futuros, novas visões de mundo, mas novas práticas. E a velocidade com que isso está acontecendo está aumentando.

E acho que, após a morte de Mark Fisher em 2007, isso começou a acelerar além do controle do que poderia ter sido o capitalismo tardio antiquado. Agora vivemos no capitalismo tardio demais. Isso também significa que a temporalidade está encolhendo, e a imediatez está cada vez mais assumindo a liderança na relação com o capital. E isso é de certa forma benéfico.  Então, mesmo se você pensar sobre para que a inteligência artificial é realmente usada, é para fazer transações mais rápidas. Esta é a aplicação principal: encontrar formas de fazer a economia funcionar ainda mais rapidamente do que já funciona. Mas isso também está afetando nossa relação com a tecnologia, e está se afastando do controle biopolítico antiquado, acho, em certa medida, porque o número de relações, nós e circuitos está apenas aumentando agora. E as potencialidades também estão aumentando. Em geral, diria que sou mais otimista, e não vejo muito desse otimismo por aí, mas prevejo que continuará aumentando.

BaixaCultura: Você tem alguma relação com o aceleracionismo, em especial, Nick Land? Há um artigo sobre ele em Blue Labyrinths.

Alessandro: Nick Land é um caso estranho. Estou interessado nele tanto quanto alguém pode estar interessado no diabo. O que quero dizer é que o Diabo realmente foi um argumento cultural importante no que poderia ter sido o ideal na Idade Média, e Nick Land é o Diabo no capitalismo. Há algo muito interessante para mim na mudança que aconteceu no pensamento entre os escritos da primeira fase de Nick Land e a segunda fase, na qual ele se inclinou cada vez mais para a direita e novas direções, novos movimentos reacionários, e assim por diante. E estudando isso, estou começando a perceber que o que tenho definido como subjetividade também traz consigo uma certa ética – ética, que é uma palavra que você nunca encontra em Semiótica do Fim. Mas Nick Land é definitivamente alguém que não pensa em termos de ética ou moral, porque pensa no capital como uma agência inorgânica anônima. Pelo contrário, vê o ser humano como uma “ficção” ética e biológica produzida pelo capital.

Mas ele não pensa, nem por um momento, que isso poderia ser parte de uma “ideologia”, porque “ideologia” não é o termo certo a usar – uma palavra mais correta aqui seria paradigma. De qualquer forma, ele vê o capital como metafísica, mas metafísica é um paradigma, mesmo na conotação científica do termo. Então, é uma mudança de paradigma; é uma revolução metafísica no mundo. Quando o Sol não está mais no centro do universo, o mundo é completamente diferente, mas nada realmente mudou; quando o capital não está mais no centro de nossas relações, tudo é igual, mas tudo é diferente. Então, Nick Land nunca considera a possibilidade – e o critico por não levar o nível semiótico a sério, o que significa que o nível semiótico é manipulável, mas pode ser construído diferentemente. Então, estou interessado nisso, mas acho que seu ponto de vista é limitado.

BaixaCultura: Então você não é satanista? Se ele é o diabo…

Alessandro: Sou como um teórico do satanismo haha

BaixaCultura: Outro autor, Andrea Colamedici, o autor por trás de “Hipocracia”, identificado como de Jianwei Xun [veja esse texto para entender a polêmica].  Ele parece acreditar que estamos em um momento de fragmentação de nossa presença online em tantas camadas de presença online e offline e tudo mais… E ele meio que aponta na direção de que devemos aprender a coexistir em todas essas camadas, como uma presença viva aqui, mas também uma presença viva na rede social ou no grupo do WhatsApp ou no avatar, e em todas essas esferas de relações.

Então, como você conceitua a fragmentação como uma forma de prosperar neste momento de incerteza? No livro, ele tenta vender a ideia de que devemos saber que estamos em todos os lugares ao mesmo tempo. Por exemplo, quando fala sobre isso, ele traz a ideia de simulação real. Hoje, é tudo simulado e tudo é real ao mesmo tempo: isso é real e seu avatar é real e seu Instagram é real – tudo é real e, ainda assim, é uma simulação ao mesmo tempo. Mas não podemos nos perder.

Alessandro: Entendo. Acho fascinante, mas a escala na qual essas suposições são feitas é uma escala que, politicamente, não é muito operacional. Existem diferentes escalas. Então, em escala microscópica, na escala mineral – tomemos um computador como exemplo. Um computador tem várias escalas. Então, na escala microscópica, há luz passando pelos cabos, e na escala da partícula, não há política. Há muito pouco que você poderia fazer além de teorias sobre o que é luz e física quântica, e assim por diante; é muito difícil fazer uma mudança significativa nesse nível. Em um nível mais alto, há mais ou menos o que você está falando: um nível do habitus social que você assume na interação com o computador; esta é a escala social. E acho que, embora seja uma escala muito real, não é muito operacional. Agora, entre a luz na fibra óptica e o habitus social, há uma relação. O que media essa relação é o capital, porque é o capital que está pagando pelos cabos que conectam as luzes; por meio dele, você pode se ver no computador e tentar aprender com ele. Aqui, estou interessado no que chamo de medium, segundo minha própria interpretação: trata-se do que está acontecendo no meio. Certamente, o que está acontecendo no meio é muito real, mas também é o que reproduz a simulação.

Então, talvez aqui eu inverta as regras: em suas circunstâncias imediatas, você pode reconceituar sua relação e interagir com o computador de forma diferente, e até mesmo mudar o tipo de fibras ópticas que usa, afetando a relação agindo do nível mais alto para o mais baixo, e vice-versa. Em Semiótica do Fim, frequentemente faço esse tipo de salto das alturas. No capítulo sobre teoria da informação do livro – “Overdrive e significado” – um dos capítulos centrais do livro, escrevo sobre a estrutura da informação, que é uma teoria muito abstrata, mas como elemento político. Mas não há nada intrinsecamente político nos bits de informação. Há algo político apenas na relação. Mas se você foca apenas em um nível…

Para resumir, poderíamos dizer que o elemento interescalar é muito político, e tento atuar sobre ele. Mas se você pensa apenas em uma escala, pode ser complexo. Para acrescentar outra coisa, há uma tendência nas teorias da mídias que é interessante discutir: a pura materialidade dos recursos sendo usados. Por exemplo, Atlas da IA, de Kate Crawford, fala sobre os recursos, a materialidade do mapeamento do mundo e assim por diante. Mas ela conceitua isso como algo intraescalar. O que acho interessante é o elemento interescalar, onde ela também escreve sobre o que o software está fazendo; ela tenta conectar tudo, mas falando de apenas um nível. E há uma série de ações que podem ser muito locais, enquanto o global acontece entre as escalas. Isso poderia ser algo que percebi depois de escrever o livro – você também não encontrará a palavra “escala” nele, mas isso é o que acontece com os livros: você retrospectivamente chega a boas ideias que não escreveu.

BaixaCultura: Então, você meio que pensa que essa visão é “enganar a máquina”?

Alessandro: A solução deve estar na relação. Mas se você pensa sobre a pura materialidade, parece que o social é uma materialidade, como gestos e práticas, e essas coisas podem ser mudadas, mas não em um nível muito individual e mínimo local. Então, não é a melhor forma de abordar, acho.

Queria falar mais sobre o contexto de Charta Sporca. Vivendo na Itália e vindo do exterior, faz cerca de onze anos que estou aqui [Londres]. Tenho a impressão de que a cultura italiana cria uma materialidade diferente para a cultura underground. Não tenho certeza se essa é a palavra certa. Deixe-me seguir o que escrevi. Viver na Itália me dá a impressão de que muito do que é criado em diferentes realidades nas diferentes cidades italianas permanece, porque há uma espécie de resistência ao sistema e à sistematização. É como se o underground resistisse a se tornar mainstream por muito tempo. Se você vai a Bolonha, vê lojas que vendem quadrinhos há quarenta anos e não querem crescer. Então, você tem uma cultura de cenas espalhadas por todo o país, e as pessoas ainda as fazem e não querem publicá-las.

BaixaCultura: Como italiano que vive no exterior, você vê isso da mesma forma? E se sim, como a Charta se envolve com essa dimensão de conhecimento não institucionalizado que continua emergindo por toda a Itália? Ela se envolve ou não?

Alessandro: Sim. E mais em geral sobre a Itália, acho que a questão é sobre a economia dos corpos. A economia capitalista não é um padrão da economia: pense, por exemplo, em uma cidade antiga na Itália, como Trieste ou Bolonha. Mas conforme você se aproxima da metrópole, até Milão, e conforme vai subindo e vai para Paris, então a economia dos corpos e a economia real começam a se fundir uma na outra. Há um certo grau de hipnose acontecendo ali.

E acho que as pessoas só conseguem resistir quando não nascem dentro disso. É muito difícil recuar da metrópole se essa é a única realidade que você viu. Da mesma forma que vamos a uma floresta e, se não nascemos na floresta, não olhamos para a floresta de uma forma “natural”. Nossa visão é moldada pelo ambiente artificial da cidade, e por isso perdemos a capacidade de ver a natureza como ela realmente é – diferentemente de quem cresceu em contato direto com ela. O mesmo acontece com quem nasce e vive sempre na metrópole: essa pessoa desenvolve uma percepção distorcida do tempo e dos relacionamentos humanos. Para ela, as formas mais naturais de viver – aquelas que existem fora do ambiente metropolitano – parecem estranhas ou até impossíveis.

O coletivo francês Tiqqun tem uma distinção muito interessante e radical sobre a vida fora da metrópole: eles dizem que a metrópole é irrecuperável. Não há mais nada para salvar da metrópole. Você deveria apenas convencer as pessoas na metrópole a se afastarem dela e nunca voltarem. Não há como mudar o capital e o capitalista, mas você pode permitir que as pessoas vejam que há uma saída, se quiserem.

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Justiça ambiental e infraestruturas autônomas e comunitárias https://baixacultura.org/2025/09/05/justica-ambiental-e-infraestruturas-autonomas-e-comunitarias/ https://baixacultura.org/2025/09/05/justica-ambiental-e-infraestruturas-autonomas-e-comunitarias/#respond Fri, 05 Sep 2025 13:41:57 +0000 https://baixacultura.org/?p=15910 Faz alguns meses que saiu uma pesquisa do Sursiendo e May First Movement Technology chamada “Accioes por la Justicia Ambiental: Desde infraestructuras tecnológicas autónomas y comunitarias“. A investigação utilizou uma metodologia participativa para documentar práticas sustentáveis ​​já implementadas, principais obstáculos, projeções futuras e ideias especulativas de provedores independentes e comunitários de vários lugares do mundo. Os principais desafios apontados incluem narrativas dominantes sobre “recursos ilimitados”, tempo limitado para experimentação, infraestruturas centralizadas e escassez de hardware reparável. O relatório também destaca a importância da ação colaborativa e da imaginação radical para criar tecnologias mais comprometidas com a proteção da vida. Fala, por exemplo, em como “integrar a sustentabilidade ambiental em projetos autônomos de infraestrutura de comunicações por internet, documentando práticas de provedores comunitários que priorizam sustentabilidade e autonomia tecnológica”.

Algumas práticas já implementadas citadas que vale a pena recuperar aqui:

_ Não coleta de dados; o principal benefício indireto é o menor consumo energético devido à ausência de coleta massiva de dados;
_ Ciclo de vida do hardware: priorizar estender ao máximo a vida útil dos equipamentos de TI, reduzindo o lixo eletrônico, como no caso da coletiva brasileira MariaLab (que incorpora equipamentos doados e de segunda mão), ou da Koumbit, que usa servidores que têm até 15 anos!;
_ Energias renováveis: GreenNet, Riseup e Koumbit utilizam energias renováveis, especialmente hidrelétrica e eólica em regiões como Quebec e Seattle.
_ Apoio a organizações ecológicas: muitos grupos apoiam organizações ambientalistas, fornecendo hospedagem segura e ferramentas digitais;
_ Software livre: Além da questão política e de autonomia, o uso de software livre é visto também como um compromisso com a sustentabilidade, evitando a necessidade de “escrever tudo do zero” e facilitando a colaboração e a construção de comunidade, como no caso do Riseup, May First e Maddix.
_ Sites leves e estáticos: Sutty se concentra na criação de sites estáticos e leves, que “consomem menos energia, menos hardware e, em geral, utilizam menos largura de banda”.

_ Acesso offline: Sutty também explora projetos para acesso offline a sites através de telefones celulares, beneficiando comunidades remotas sem conectividade constante (p. 50-51).

_ Virtualização: GreenNet, Archipiélago Uno, Access Now e MariaLab usam servidores virtuais para “fazer um uso eficiente do hardware, executando múltiplos serviços de forma segura em menos máquinas”.
_ Data Centers autônomos: Colnodo e Código Sur mantêm data centers autônomos, com Colnodo usando energia solar para 30% de seu consumo. Código Sur recicla equipamentos e otimiza a largura de banda.

_ Visão de longo prazo: muitos grupos priorizam o desenvolvimento de tecnologias com uma visão de longo prazo, em vez de soluções pontuais

_ Não uso de IA: Esta é uma opção também, por que não? “Não usar IA” é uma política fundamental para muitos, promovendo o uso “intencional, cuidadoso e não consumindo dados indiscriminadamente” da tecnologia.

 

Vale a leitura completa (PDF, espanhol).

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Informática do Oprimido na Tapera Taperá https://baixacultura.org/2025/08/11/informatica-do-oprimido-na-tapera-tapera/ https://baixacultura.org/2025/08/11/informatica-do-oprimido-na-tapera-tapera/#respond Mon, 11 Aug 2025 14:06:28 +0000 https://baixacultura.org/?p=15895 Na próxima quinta-feira, 14/8, 19h, Rodrigo Ochigame, autor de “Informática do Oprimido” conversa com Gabriela Nardy, do Comitê de Redes Comunitárias, e comigo, Leonardo Foletto.

Rodrigo (site pessoal) é um historiador e antropólogo que estuda computação e inteligência artificial sob uma perspectiva crítica, professor na Universidade de Leiden (Holanda) e doutor pelo MIT (EUA). Alguns dos textos publicados por Rodrigo são ” A longa história da justiça algorítmica” (2022) e “Filtrar la Disidencia: Redes sociales y luchas por la tierra en Brasil” (2016). Atualmente ele está estudando epistemologia do aprendizado de máquina, tema que vai desenvolver nos próximos meses pesquisando no CERN, aquele mesmo laboratório do Grande Colisor de Hédrons (LHC) e da invenção da WWW pela turma de Tim Berners-Lee.

O livro tem ilustrações de Léo Daruma, prefácio do Instituto Paulo Freire e texto de apresentação de Leonardo Foletto e Caio Valiengo, também editores da coleção e está disponível para compra, com 20% de desconto até 22/8, no site da Funilaria (cupom BAIXACULTURA).

🗓 14/8, às 19h
📕 Tapera Taperá – Galeria Metrópole
📍Av. São Luís, 187 – 2º andar, loja 29 – República – São Paulo

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Conectados e cansados https://baixacultura.org/2025/03/23/conectados-e-cansados/ https://baixacultura.org/2025/03/23/conectados-e-cansados/#respond Sun, 23 Mar 2025 21:45:37 +0000 https://baixacultura.org/?p=15803  

A internet dos anos 2000 prometeu liberdade e colaboração e entregou Big Techs, plataformização da vida e a precarização do trabalho criativo. O que levou a essa transformação? No dia 13 de março, Sílvio Lorusso, autor do livro “Emprecariado” (Clube do Livro de Design, 2023) e eu debatemos os impactos desse cenário e o futuro do trabalho digital. Foi na Risotropical (Galeria Metrópole), centro de São Paulo, das 19h às 21h30, evento organizado pela Ubunttu, Clube do Livro do Design (especialmente Tereza Bettinardi, editora e designer por trás da iniciativa) e que fez parte da DW! Semana de Design.

Gravei em áudio a maior parte da conversa e recupero aqui alguns trechos destacados:

_ Um conceito central discutido é a plataformização, que se refere ao crescente domínio das estruturas de plataformas em diversos aspectos da vida, desde mobilidade e redes sociais até trabalho, saúde, alimentação e serviços públicos – veja aqui o artigo já clássico que analisa o conceito em suas principais dimensões.  Falamos da (óbvia) constatação de que cada vez mais se acessa a internet via plataformas (em seus “jardins murados”), locais onde infraestruturas econômicas e políticas, com seus mecanismos próprios de governança, operam. A plataformização coincide com uma mudança na percepção das possibilidades utópicas da internet, da “ressaca da internet”, com o reconhecimento de que foram as plataformas que acabaram com as possibilidades transformadoras de descentralização e autonomia da internet;

_ A crítica ao tecnolucionismo, a ideia de que a solução para diversos problemas reside em mais tecnologias, mais aplicativos, mais plataformas, quando na verdade essa abordagem muitas vezes só serve à monetização de dados e alimenta um ciclo de desigualdade, para não falar do aumento da concentração de poder político e da perda da capacidade de imaginar outros modelos de gestão e organização da infraestrutura da comunicação. A ascensão das IAs generativas tem acelerado ainda mais esse processo;

_  A discussão sobre empreendedorismo, tema do “Emprecariado” (livro de Lorusso), foi, claro, ponto central da conversa. A ideologia de ser empreendedor é vista por Lorusso como o outro lado da precariedade. Há, em comum, o fato de ambas ideias estarem ligados à ideia de risco,  mas com o empreendedor abraçando a incerteza como oportunidade, enquanto o trabalhador precário vivencia o ser empreendedor como uma imposição. As plataformas, como se sabe, exacerbam essa relação, como discutido no livro, que analisa diversas plataformas para além das tradicionais “Gafam” (Google, Amazon, Facebook, Apple, Microsoft): o LinkedIn, o makretplace de freelas Fiverrg; e o GoFundMe, plataforma de crowdfunding que, segundo Lorusso, exemplifica como a lógica da criatividade e do financiamento coletivo pode se estender a necessidades sociais e, com isso, expor uma certa “criatividade trágica” generalizada.

_ Falamos também das alternativas às plataformas centralizadas, como as plataformas federadas (no Fediverso), que operam com uma lógica descentralizada, onde cada instância têm suas próprias regras. Comentei também que essas plataformas, que têm ganhado um certo boom neste 2025 com a migração de pessoas cansadas das redes sociais alinhadas à Trump, também enfrentam desafios relacionados à moderação de conteúdo em larga escala, além da necessidade de organização e trabalho para manter esses espaços saudáveis.

_ Além de provar o chimarrão gaúcho, Lorusso comentou sobre como, na sua breve vivência em território brasileiro (que incluiu o Carnaval), teve um certo assombro em perceber a implementação generalizada – e normalizada –  das tecnologias de reconhecimento facial nas grandes cidades brasileiras. A precariedade inerente ao contexto brasileiro parece fazer com que experimentos tecnológicos sejam mais facilmente implementados aqui (e no restante do Sul Global) do que em lugares como a Europa (Portugal em especial, onde ele vive; mas também na Itália, sua terra de origem). 

_ Por fim, comentamos até sobre a proliferação das apostas online (bets), motivados por uma pergunta da platéia. É um fenômeno inescapável no país e que demanda um novo vocabulário para entender a dinâmica de plataforma e precarização, agora desvinculada da ideia de produção ou do trabalho tradicional, e que tem impactos sociais significativos, especialmente entre a população de baixa renda.

As fotos do evento abaixo são da Helena Wolfenson.

 

 

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Vale a pena ver de novo – Tudo Vigiado por máquinas de adorável graça (2012) https://baixacultura.org/2025/03/07/vale-a-pena-ver-de-novo-tudo-vigiado-por-maquinas-de-adoravel-graca-2012/ https://baixacultura.org/2025/03/07/vale-a-pena-ver-de-novo-tudo-vigiado-por-maquinas-de-adoravel-graca-2012/#respond Sat, 08 Mar 2025 01:23:04 +0000 https://baixacultura.org/?p=15805 Quase 13 anos atrás, fizemos um texto no BaixaCultura falando do “Tudo Vigiado por Máquinas de Adorável Graça”, de Adam Curtis, grande documentarista inglês conhecido por seu estilo único e denso de contar histórias políticas e interessantes do século XX. O post reproduziu uma resenha de uma amiga do BaixaCultura de tempos, Aracele Torres, doutora e mestre em história social pela USP, autora da bela tese “A internet livre e aberta como ideologia: o debate da neutralidade da rede no Brasil e nos Estados Unidos” e do livro essencial “A Tecnoutopia do Software Livre”, baseado em sua dissertação e em seu trabalho de militante do software livre de muitos anos.

O belo e misterioso nome do documentário, “All Watched Over By Machines of Loving Grace” (no original), faz referência a um poema publicado em 1967 sob o mesmo nome, cujo o autor, Richard Brautigan, falava de uma sociedade onde os homens estavam livres de trabalho e a natureza tinha alcançado seu estado de equilíbrio, tudo graças ao avanço da cibernética.

All Watched Over By Machines Of Loving Grace
I like to think (and
the sooner the better!)
of a cybernetic meadow
where mammals and computers
live together in mutually
programming harmony
like pure water
touching clear sky.

I like to think
(right now, please!)
of a cybernetic forest
filled with pines and electronics
where deer stroll peacefully
past computers
as if they were flowers
with spinning blossoms.

I like to think
(it has to be!)
of a cybernetic ecology
where we are free of our labors
and joined back to nature,
returned to our mammal
brothers and sisters,
and all watched over
by machines of loving grace.

 

O documentário é uma crítica contundente à tradição tecno-utópica originada nos Estados Unidos, da ideologia californiana ao tecnosolucionismo. Você deve imaginar, por conta disso tudo, o quanto o filme está cada vez mais atual na Era Musk-Trump, por isso nossa recomendação de hoje.

Está dividido em 3 partes: “Amor e Poder“ mostra como o casamento entre a teoria de Ayn Rand e a crença no poder das máquinas produziu a ilusão de uma sociedade que prescinde, entre outras coisas, de políticos e que se autogovernava e se autoregulava com a ajuda dos computadores. ”O uso e abuso dos conceitos vegetais” apresenta o entrelaçamento entre a teoria da cibernética e a teoria do ecossistemas naturais, que produziu a crença de que a natureza era um sistema autorregulado e estável. Por fim, “O macaco dentro da máquina e a máquina dentro dos macacos“, encerra com a discussão em torno da teoria sobre o comportamento humano moldado por códigos matemáticos genéticos – o ser humano como uma máquina controlada por seus genes. Cada uma com cerca de uma hora de duração, todos disponíveis no Vimeo do BaixaCultura para assistir, legendados e de grátis, e aqui abaixo:

 

 

 

Há este e outros vídeos na nossa BaixaTV, canal com uma seleção de documentários, curtas, longas, programas de TV e vídeos variados sobre cultura livre, (contra) cultura digital e diversos temas ao redor disso, tanto produzidos por nós quando por outros e rearrajandos por nós. Acreditamos que organizar a informação de modo a facilitar o acesso permitirá que ela siga circulando.

 

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https://baixacultura.org/2025/03/07/vale-a-pena-ver-de-novo-tudo-vigiado-por-maquinas-de-adoravel-graca-2012/feed/ 0
Conhecimento é direito https://baixacultura.org/2025/03/07/conhecimento-e-direito/ https://baixacultura.org/2025/03/07/conhecimento-e-direito/#respond Fri, 07 Mar 2025 21:01:59 +0000 https://baixacultura.org/?p=15798 A Wikimedia Brasil, Coalizão Direitos na Rede e diversas outras organizações lançaram manifesto por uma reforma da Lei de Direitos Autorais (LDA) no Brasil em defesa da ciência aberta e cultura livre. O documento defende que a legislação nacional acompanhe os desafios e oportunidades da era digital, equilibrando a proteção dos direitos dos criadores com o direito da sociedade ao acesso à cultura, à ciência e à informação.

Promulgada em 1998, a LDA está, como vocês devem imaginar, desatualizada frente à realidade digital e às novas formas de produção e compartilhamento de conhecimento, seja por Inteligência Artificial ou (ainda) pela difusão via Plataformas. O manifesto aponta que o Brasil, ao assinar o Pacto Digital Global da ONU, se comprometeu a adotar políticas públicas mais inclusivas e alinhadas aos chamados bens públicos digitais – como softwares livres e plataformas de conteúdo aberto, dados abertos e inclusive modelos de inteligência artificial abertos que beneficiem a sociedade como um todo, e não apenas poucos grupos.

“A atual LDA, da forma como é aplicada, restringe o acesso ao conhecimento e coloca o Brasil em desvantagem no cenário global. Precisamos de uma legislação que proteja os autores, mas que também garanta à sociedade o direito à informação, fundamental para o desenvolvimento social, econômico e cultural”, disse Chico Venâncio, vice-presidente da Wikimedia Brasil e integrante da Coalizão Direitos na Rede.

O manifesto segue o lançamento da campanha “ConhecimentoÉDireito”, que a Wikimedia Brasil e a CDR lançaram com o objetivo de também estimular o debate sobre a necessidade de atualização da LDA no Brasil e promover um amplo acesso ao conhecimento e à cultura no contexto da era digital. A campanha parte da premissa de que o conhecimento é essencial para o desenvolvimento de qualquer sociedade, deve ser tratado como um direito fundamental, e que é possível utilizar mecanismos em políticas públicas com este objetivo, defendendo uma legislação que proteja os direitos dos autores, mas que também permita que o conhecimento circule livremente, incentivando a criatividade e o desenvolvimento social.

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https://baixacultura.org/2025/03/07/conhecimento-e-direito/feed/ 0
A crise é cognitiva – a guerra cultural e os fins da internet https://baixacultura.org/2025/02/14/a-crise-e-cognitiva-a-guerra-cultural-e-os-fins-da-internet/ https://baixacultura.org/2025/02/14/a-crise-e-cognitiva-a-guerra-cultural-e-os-fins-da-internet/#respond Fri, 14 Feb 2025 14:09:45 +0000 https://baixacultura.org/?p=15788 Semana passada participei novamente no Balanço & Fúria para falar sobre as transformações da internet, das raízes rebeldes à ascensão da plataforma aliada (e potencializadora) da extrema direita. Falamos um pouco sobre como essa mudança impactou a cognição, o trabalho e a cultura, levando a uma crise de consenso e à ascensão da desinformação, entre outras coisas. No final destacamos a necessidade urgente de repensar a forma como interagimos com a tecnologia e de buscar alternativas que promovam a descentralização, a transparência e o bem comum. A ascensão do DeepSeek, com seu modelo de código aberto, oferece uma faísca de esperança em meio a um cenário de crescente preocupação com o poder das Big Techs e o impacto da desinformação. 

“Quem teve acesso à internet do fim dos anos 90 e começo dos anos 2000 jamais imaginaria que ela se tornaria um dos principais instrumentos para a elaboração do fascismo de nosso tempo, um impulsionador da crise política e estética, seguido da crise cognitiva que determinaria uma nova subjetividade em seus usuários, assim como uma nova definição de capitalismo ultraprecarizado e ultraliberal, que confundiu ainda mais os limites do trabalho, das liberdades e da democracia liberal.

Da guerra cultural à plataformização, passando pela monopolização das Big Techs e a disputa geopolítica baseada nas tecnologias criadas a partir do que resta da internet, Leonardo Foletto caminha sobre uma breve história das redes de compartilhamento, da pirataria, do hackativismo até o apodrecimento algorítmico fascista em que nos encontramos agora.”

Dá pra ouvir/baixar no site e também aqui abaixo.

[Leonardo Foletto]

 

 

 

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Software livre pode derrotar as big techs? https://baixacultura.org/2025/02/07/codigo-aberto-pode-derrotar-as-big-techs/ https://baixacultura.org/2025/02/07/codigo-aberto-pode-derrotar-as-big-techs/#respond Fri, 07 Feb 2025 17:09:28 +0000 https://baixacultura.org/?p=15779 Falei para o programa “Outra Manhã”, do Outras Palavras, na segunda 3/2/25 sobre DeepSeek e a questão do open source, a partir do texto publicado aqui – que foi republicado pelo OP também

Na conversa, de cerca de 1h, busquei enfatizar o potencial dos modelos de código aberto para desafiar o domínio de grandes empresas de tecnologia. Trouxe também questões éticas e práticas sobre o uso de dados, as implicações políticas da IA ​​e possibilidades futuras de desenvolvimento de IAs descentralizadas, locais e de código aberto. A manchete é um pouco sensacionalista, como o jornalismo tem costumado ser (às vezes por questão de sobrevivência).

[Leonardo Foletto]

Na semana seguinte, Antônio Martins e Glauco Faria conversaram com Uirã Porã sobre como o software livre vive no Brasil e como ele pode ser base da autonomia tecnológica, numa conversa que vale a pena escutar:

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A corrida da IA ganha um novo capítulo – chinês e open source https://baixacultura.org/2025/01/29/a-corrida-da-ia-ganha-um-novo-capitulo-chines-e-open-source/ https://baixacultura.org/2025/01/29/a-corrida-da-ia-ganha-um-novo-capitulo-chines-e-open-source/#comments Thu, 30 Jan 2025 01:31:18 +0000 https://baixacultura.org/?p=15766  

Segunda-feira, 27 de janeiro, Wall Street atravessou um de seus dias mais turbulentos. As previsões para o setor de inteligência artificial desmoronaram, “players” viram seus papéis derreterem. As ações da Nvidia, inflacionada pela corrida por chips instalados nas IAs generativas, tombaram 17%, resultando em uma perda de US$ 589 bilhões em valor de mercado – a maior queda diária já registrada na história do mercado financeiro americano, que virou matéria e foco de atenção de diversos jornais. Sete bigtechs (Apple, Amazon, Alphabet, Meta, Microsoft, Nvidia e Tesla) viram uma perda de US$ 643 bilhões em suas ações. O responsável por essa reviravolta? Um chatbot de baixo custo lançado por uma startup chinesa, a DeepSeek, criado em 2024 como um braço de pesquisa de um fundo chamado High Flyer, também chinês. Segundo a empresa, o custo de treinamento do modelo por trás da IA, o DeepSeek-R1, foi de aproximadamente US$ 6 milhões – um décimo do que a Meta investiu no desenvolvimento do Llama 3.1, por exemplo, ou menos ainda dos US$ 100 milhões que a OpenIA investiu no seu último modelo. Além disso, a startup informou que seu chatbot apresentou um desempenho superior ao GPT-4, da OpenAI, em 20 das 22 métricas analisadas.

Não entrando nos pormenores econômicos especulativos do mercado de ações (o tombo se deu no valor do mercado destas big techs a partir da desvalorização de suas ações), o fato principal aqui é: a queda foi sobretudo porque a DeepSeek mostrou ao mundo que existe possibilidade de se competir na área com menos dinheiro, investido de forma eficiente. Com menos processadores, chips e data centers, a empresa destravou a possibilidade de operar com custos menores, justo semanas depois de Trump, ao lado de Sam Altman (Open IA) e Larry Ellison (Oracle), anunciar o “Stargate”, um mega programa de investimentos em IA no Texas com potencial anunciado de alavancar até US$ 500 bilhões de dólares em cinco anos. O lançamento do modelo da DeepSeek redesenha a disputa entre EUA e China pela inteligência artificial e mostra que, mesmo com as travas colocadas pelo Governo Biden na compra de chips da Nvidia pela China, ainda assim é possível fazer sistemas robustos de IA de forma mais barata do que Altman e cia afirmam.

As diferenças técnicas do sistema chinês

Vamos tentar explicar aqui brevemente como funciona o DeepSeek e as principais diferenças em relação ao seus modelos concorrentes. O recém-lançado R1 é um modelo de linguagem em grande escala (LLM) que conta com mais de 670 bilhões de parâmetros, projetado a partir de 2.048 chips H800 da Nvidia – estima-se, por exemplo, que os modelos desenvolvidos pelas big techs utilizem cerca de 16 mil chips para treinar os robôs. Utiliza-se de aprendizado por reforço, uma técnica de aprendizado de máquina (machine learning) em que o sistema aprende automaticamente com os dados e a própria experiência, sem depender de supervisão humana,  a partir de mecanismos de recompensa/punição.

Para aumentar sua eficiência, a DeepSeek adotou a arquitetura Mixture-of-Experts (MoE), uma abordagem dentro do aprendizado de máquina que, em vez de utilizar todos os parâmetros do modelo (ou toda as redes neurais) em cada tarefa, ativa só os necessários de acordo com a demanda. Isso torna o R1 mais ágil e reduz o consumo de energia computacional, executando as operações de forma mais leve e rápida. É como se o modelo fosse uma grande equipe de especialistas e, ao invés de todos trabalharem sem parar, apenas os mais relevantes para o trabalho em questão são chamados, economizando tempo e energia.

Outra técnica utilizada pelo R1 é a Multi-Head Latent Attention (MLA), que permite ao modelo identificar padrões complexos em grandes volumes de dados, usando de 5 a 13% da capacidade de modelos semelhantes como a MHA (Multi-Head Attention), o que a torna mais eficiente, segundo essa análise bem técnica publicada por Zain ul Abideen, especialista em LLM e aprendizado de máquina, em dezembro 2024. Grosso modo, a MLA analisa de forma simultânea diferentes partes dos dados, a partir de várias “perspectivas”, o que possibilita ao DeepSeek-R1 processar informações de maneira mais precisa gastando menos recursos de processamento. A MLA funciona como um grupo de pessoas olhando para o mesmo problema de diferentes ângulos, sempre buscando a melhor solução — de novo e de novo e de novo, a cada novo desafio.

Além de seu baixo custo de treinamento, um dos maiores atrativos do modelo está no baixo custo da operação geral. Grandes empresas de tecnologia costumam cobrar valores altos para acessar suas APIs, ferramentas que permitem que outras empresas usem seus modelos de inteligência artificial em seus próprios aplicativos. A DeepSeek, por outro lado, adota uma abordagem mais acessível; a API do R1 custa entre 20 e 50 vezes menos do que a da OpenAI, de acordo com a empresa. O preço de uma API é calculado com base na quantidade de dados processados pelo modelo, medido em “tokens”. No caso da DeepSeek, a API cobra US$ 0,88 por milhão de tokens de entrada e US$ 3,49 por milhão de tokens de saída. Em comparação, a OpenAI cobra US$ 23,92 e US$ 95,70, respectivamente. Ou seja, empresas que optarem pela tecnologia da chinesa podem economizar substancialmente ao integrar o modelo R1 em suas plataformas.

A DeepSeek declarou que usou 5,5 milhões de dólares (32 milhões de reais) em capacidade computacional, utilizando apenas as 2.048 GPUs Nvidia H800 que a empresa chinesa tinha, porque não podia comprar as GPUs H100 ou A100, superiores, que as big techs acumulam às centenas de milhares. Para ter uma ideia: Elon Musk tem 100 mil GPUs, a OpenAI treinou seu modelo GPT-4 em aproximadamente 25 mil GPUs A100.

Em entrevista à TV estatal chinesa, Liang Wenfeng, CEO da DeepSeek e também do fundo que bancou o modelo (High Flyer), disse que a empresa nunca pretendeu ser disruptiva, e que o “estrelato” teria vindo por “acidente”. “Não esperávamos que o preço fosse uma questão tão sensível. Estávamos simplesmente seguindo nosso próprio ritmo, calculando custos e definindo preços de acordo. Nosso princípio não é vender com prejuízo nem buscar lucros excessivos. O preço atual permite uma margem de lucro modesta acima de nossos custos”, afirmou o fundador da DeepSeek.

“Capturar usuários não era nosso objetivo principal. Reduzimos os preços porque, primeiro, ao explorar estruturas de modelos de próxima geração, nossos custos diminuíram; segundo, acreditamos que os serviços de IA e API devem ser acessíveis e baratos para todos.”

Wenfeng é bacharel e mestre em engenharia eletrônica e da informação pela Universidade de Zhejiang. Entre muitas especulações momentâneas sobre sua vida pessoal, o que se sabe é que o empresário de 40 anos parece “mais um nerd do que um chefe” e que é um entusiasta do modelo open source de desenvolvimento, o que nos leva para o próximo tópico.

As vantagens do código aberto 

Um componente fundamental do sucesso (atual) do modelo chinês é o fato de estar em código aberto. O DeepSeek-V3, lançado no final de 2024, está disponível no GitHub, com uma documentação detalhada sobre como foi feito e como pode ser replicado.

Isso, na prática, tem fomentado uma corrida de várias pessoas e grupos para experimentar fazer seus próprios modelos a partir das instruções dadas pela equipe do DeepSeek. Dê uma busca no Reddit e nos próprios buscadores nestes últimos dias de janeiro de 2025 e você já verá uma enxurrada de gente fazendo.

Como vocês já ouviram falar no “A Cultura é Livre”, a natureza do código aberto, de origem filosófica no liberalismo clássico do século XVII e XVIII, permite mais colaborações, e acaba por impulsionar tanto a concorrência de outras empresas no setor quanto diferentes forks independentes e autônomos individuais. Vale, porém, aqui dizer que o código aberto não é o mesmo que um software livre. Software de código aberto (free/libre/open source software, acrônimo Floss adotado pela primeira vez em 2001) é um nome usado para um tipo de software que surgiu a partir da chamada Open Source Initiative (OSI), estabelecida em 1998 como uma dissidência com alguns princípios mais pragmáticos que os do software livre. A flexibilização na filosofia de respeito à liberdade dos usuários (mais rígida e comprometida com a justiça social no software livre, mais pragmática e aplicável como metodologia de desenvolvimento no open source) propiciou uma expansão considerável tanto do software de código aberto quanto de projetos e empresas que têm este tipo de software como produto e motor de seus negócios. A OSI tem como texto filosófico central “A catedral e o bazar”, de Eric Raymond, publicado em 1999. Nele, Raymond trabalha com a ideia de que “havendo olhos suficientes, todos os erros são óbvios”, para dizer que, se o código fonte está disponível para teste, escrutínio e experimentação pública, os erros serão descobertos mais rapidamente.

A definição da OSI diz que um sistema open source é:

The program must include source code, and must allow distribution in source code as well as compiled form. Where some form of a product is not distributed with source code, there must be a well-publicized means of obtaining the source code for no more than a reasonable reproduction cost, preferably downloading via the Internet without charge. The source code must be the preferred form in which a programmer would modify the program. Deliberately obfuscated source code is not allowed. Intermediate forms such as the output of a preprocessor or translator are not allowed.

O esclarecimento sobre o que é código aberto é importante porque, na esteira do desenvolvimento das IAs de código aberto, vem também surgindo um movimento de open washing, ou seja: a prática de empresas privadas dizerem que os códigos de seus sistemas algorítmicos são abertos – quando na verdade não são tão abertos assim. Ou então quando grandes corporações (ou startups) iniciam projetos em código aberto para incorporar o trabalho colaborativo de colaboradores (desenvolvedores, tradutores, cientistas de dados) – para logo depois, quando o projeto se torna mais robusto, fecharem o código e nunca mais abrirem. “O Google tem um histórico nessa prática, a própria OPEN IA fez isso – e foi processada por Elon Musk (!) justamente por não seguir os princípios abertos.

Escrevemos em nossa última newsletter do BaixaCultura que a Meta, ao dizer que seu modelo LLama é aberto, vem “poluindo” e “confundindo” o open source, como afirma Stefano Maffulli, diretor da Open Source Initiative (OSI). Mas o que o Llama traz como aberto, porém, são os pesos que influenciam a forma como o modelo responde a determinadas solicitações. Um elemento importante para a transparência, mas que por si só não faz se encaixar na definição do open source. A licença sob a qual o Llama foi lançado não permite o uso gratuito da tecnologia por outras empresas, por exemplo, o que não está em conformidade com as definições de código aberto reconhecidas pela OSI. “Programadores que utilizam modelos como o Llama não têm conseguido ver como estes sistemas foram desenvolvidos, ou construir sobre eles para criar novos produtos próprios, como aconteceu com o software de código aberto”, acrescenta Maffuli.

Mas existem IAs totalmente abertas?

A disputa (velha, aliás) pelo que de fato é open source – e principalmente o que não é – também ganha um novo capítulo com o DeepSeek. A “OSI AI Definition – 1.0-RC1” aponta que uma IA de código aberto deve oferecer quatro liberdades aos seus utilizadores:

_ Utilizar o sistema para qualquer fim e sem ter de pedir autorização;

_ Estudar o funcionamento do sistema e inspecionar os seus componentes;

_ Modificar o sistema para qualquer fim, incluindo para alterar os seus resultados;

_ Partilhar o sistema para que outros o utilizem, com ou sem modificações, para qualquer fim;

Nos quatro pontos o DeepSeek v-1 se encaixa. Tanto é que, como mencionamos antes, já tem muita gente fazendo os seus; seja criando modelos ainda mais abertos quanto para ser executada localmente em um dispositivo separado, com boas possibilidades de customização e com exigência técnica possível na maior parte dos computadores bons de hoje em dia. Para não falar em modelos parecidos que já estão surgindo na China, como o Kimi k1.5, lançado enquanto esse texto estava sendo escrito – o que motivou memes de que a competição real na geopolítica de IA está sendo feita entre regiões da China, e não entre EUA X China.

O fato de ser de código aberto faz com que o DeepSeek, diferente do ChatGPT ou do LLama, possa ser acoplado e inserido com diferentes funcionalidades por outras empresas, grupos, pessoas com mais facilidade e menor custo. Ao permitir que novas soluções surjam, torna a barreira de entrada da inteligência artificial muito menor e estoura a bolha especulativa dos financistas globais sobre o futuro da tecnologia – o que talvez seja a melhor notícia da semana.

Mas há um porém importante nessa discussão do código aberto: as bases de dados usadas para treinamento dos sistemas. Para treinar um modelo de IA generativa, parte fundamental do processo são os dados utilizados e como eles são utilizados. Como analisa o filósofo e programador Tante nesse ótimo texto, os sistemas de IA generativa (os LLMs) são especiais porque não consistem em muito código em comparação com o seu tamanho. Uma implementação de uma rede neural é constituída por algumas centenas de linhas de Python, por exemplo, mas um LLM moderno é composto por algum código e uma arquitetura de rede – que depois vai ser parametrizada com os chamados “pesos”, que são os milhares de milhões de números necessários para que o sistema faça o que quer que seja, a partir dos dados de entrada. Assim como os dados, estes “pesos” também precisam ser deixados claros quando se fala em open source, afirma Tante.

Não está claro, ainda, quais foram os dados de treinamento do DeepSeek e como estes pesos foram distribuídos. Endossando Tante, Timnit Gibru disse neste post que para ser open source de fato teria que mostrar quais os dados usados e como foram treinados e avaliados. O que talvez nunca ocorra de fato, pois isso significa assumir que a DeepSeek pegou dados de forma ilegal na internet tal qual o Gemini, a LLama e a OpenIA – que está acusando a DeepSeek de fazer o mesmo que ela fez (!). Outras IAs de código aberto também não deixam muito claro como funcionam suas bases, embora as proprietárias muito menos. Ainda assim, são os modelos de IA identificados como open source, com seus códigos disponíveis no Github, os que lideram o nível de transparência, segundo este índice criado por pesquisadores da Universidade de Stanford, que identificou como os mais transparentes o StarCoder e o Jurassic 2.

Podemos concluir que na escala em que estamos falando desses sistemas estatísticos atualmente, e entendendo o acesso e o tratamento dos dados como elementos constituintes do códigos a ser aberto, uma IA totalmente open source pode ser quase uma utopia. Muitos modelos menores foram e estão sendo treinados com base em conjuntos de dados públicos explicitamente selecionados e com curadoria. Estes podem fornecer todos os processos, os pesos e dados, e assim serem considerados, de fato, como IA de código aberto. Os grandes modelos de linguagem que passamos a chamar de IA generativa, porém, baseiam-se todos em material adquirido e utilizado ilegalmente também porque os conjuntos de dados são demasiado grandes para fazer uma filtragem efetiva de copyright e garantir a sua legalidade – e, talvez, mesmo a sua origem definitiva, dado que muitas vezes podemos ter acesso ao conjunto de uma determinada base de dados, mas não exatamente que tipo de dado desta base foi utilizada para treinamento. Aliás, não é surpresa que hoje muitos dos que estão procurando saber exatamente o dado utilizado são detentores de copyright em busca de processar a Open AI por roubo de conteúdo.

Mesmo que siga o desafio de sabermos como vamos lidar com o treinamento e a rastreabilidade dos dados usados pelos modelos de IA, a chegada do DeepSeek como um modelo de código aberto (ou quase) tem enorme importância sobretudo na ampliação das possibilidades de concorrência frente aos sistemas da big techs. Não é como se o império das grandes empresas de tecnologia dos Estados Unidos tivesse ruído da noite pro dia, mas houve uma grande demonstração de como a financeirização da economia global amarrou uma parte gigantesca do valor financeiro do mundo às promessas de engenheiros que claramente estavam equivocados nas suas projeções do que era preciso para viabilizar a inteligência artificial – seja para ganhos especulativos ou por puro desconhecimento.

A parte ainda não solucionada da equação é uma repetição do antigo episódio envolvendo o lançamento do Linux: se essa solução estará disponível para ser destrinchada por qualquer um, como isso vai gerar mais independência aos cidadãos? A inteligência artificial tem milhares de aplicações imaginadas, e até agora se pensava em utilizá-la nos processos produtivos de diversas indústrias e serviços pelo mundo. Mas como ela pode sugerir independência e autonomia para comunidades, por exemplo? Espera-se, talvez de maneira inocente, que suas soluções sejam aproveitadas pela sociedade como um todo, e que não sejam meramente cooptadas pelo mercado para usos privados como tem ocorrido até aqui. Por fim, o que se apresenta é mais um marco na história da tecnologia, onde ela pode dobrar a curva da independência, ou seguir no caminho da instrumentalização subserviente às taxas de lucro.

[Leonardo Foletto e Victor Wolffenbüttel]

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IA e os direitos dos escritores https://baixacultura.org/2024/11/01/ia-e-os-direitos-dos-escritores/ https://baixacultura.org/2024/11/01/ia-e-os-direitos-dos-escritores/#respond Fri, 01 Nov 2024 12:40:35 +0000 https://baixacultura.org/?p=15749 Traduzimos um artigo do escritor e ativista Cory Doctorow que explora como a Penguin Random House (PRH), maior grupo editorial do mundo, tem restringido o uso de seus livros para treinamento de IA, o que tem gerado uma sensação de proteção entre escritores. No entanto, convém ter calma: esse tipo de movimento pode ser mais sobre controle econômico do que defesa dos direitos dos trabalhadores criativos. “Só porque você está do lado deles, não significa que eles estejam do seu lado”.

Doctorow destaca que muitas editoras e grandes players da mídia usam táticas como essa para maximizar lucros, enquanto os trabalhadores criativos raramente se beneficiam diretamente dessas mudanças. Mesmo com a nova política da PRH – que provavelmente servirá de base para outras editoras mundo afora – é improvável que os escritores recebam qualquer compensação adicional se a PRH cobrar pelo uso das obras em treinamentos de IA.

Doctorow aponta também que a concentração do mercado editorial reduz as chances de negociação para autores. Hoje, com apenas cinco grandes editoras dominando o setor, os escritores perdem força de negociação e encontram dificuldades para exigir melhores condições, algo que era mais viável em um mercado menos concentrado.

O ensaio também sugere que em vez de focar exclusivamente em garantir mais direitos autorais, escritores e outros trabalhadores criativos poderiam se mobilizar para conquistar maior autonomia financeira e melhores condições em negociações com as editoras. Movimentos como, por exemplo, o direito de reaver suas obras após alguns anos – 14 anos, como era no sistema original de copyright dos EUA, e não 35 ou após a morte do autor – e revendê-las por mais dinheiro, poderiam dar mais controle aos autores sobre suas criações, garantindo uma renda justa e estável.

 

Penguin, Inteligência Artificial e os direitos dos escritores

Cory Doctorow

Publicado originalmente no Pluralistic em 19/10/24
Tradução: Leonardo Foletto

Minha amiga Teresa Nielsen Hayden é uma fonte de ditados sábios, como “você não é responsável pelo que faz nos sonhos de outras pessoas” e o meu favorito de todos os tempos, da época do Napster: “Só porque você está do lado deles, não significa que eles estejam do seu lado”.

As gravadoras odiavam o Napster, assim como muitos músicos, e quando esses músicos ficaram do lado de suas gravadoras nas campanhas legais e de relações públicas contra o compartilhamento de arquivos, eles deram legitimidade legal e pública à causa das gravadoras, que acabou prevalecendo.

Mas as gravadoras não estavam do lado dos músicos. O fim do Napster e, com ele, a ideia de um sistema de licença geral para distribuição de música pela Internet (semelhante aos sistemas de rádio, apresentações ao vivo e música enlatada) em locais e lojas) estabeleceu firmemente que os novos serviços *devem* obter permissão das gravadoras para operar.

A era atual é muito boa para as gravadoras. O cartel das “Big Three”- Universal, Warner e Sony – ditou os termos com o Spotify, que em contrapartida entregou bilhões de dólares em ações e permitiu que as três grandes co-projetassem o esquema de royalties sob o qual o Spotify opera hoje.

Se você ouviu alguma coisa sobre os pagamentos do Spotify, provavelmente sabe que eles são extremamente desfavoráveis aos artistas. Isso é verdade, mas não significa que seja desfavorável para as três grandes gravadoras. As “Big Three” têm seus pagamentos mensais assegurados, grande parte registrada como “royalties não atribuíveis” –  dinheiro que as gravadoras podem distribuir entre os artistas ou usarem como bem entenderem. Também tem outras vantagens, como por exemplo poder incluir gratuitamente músicas de seus artistas nas principais listas de reprodução. Além disso, os pagamentos ultra baixos aos artistas aumentam o valor das ações das gravadoras no Spotify, pois quanto menos o Spotify tiver que pagar pela música, melhor será sua imagem para os investidores. Assim, as Big Three – que detêm 70% de todas as músicas já gravadas no mundo, graças a uma orgia de fusões – compensam o déficit dessas baixas taxas por fluxo com pagamentos garantidos e promoções.

Mas as gravadoras independentes e os músicos, que representam os 30% restantes, ficam de fora dessa conta. Eles estão presos ao mesmo esquema de royalties fracionários de centavo por streaming que as  Big Three, mas não recebem garantias gigantescas de dinheiro mensal, além de precisarem pagar pela colocação de músicas em playlists – o que as Big Three fazem de graça.

Só porque você está do lado deles, não significa que eles estejam do seu lado. [Leia o que escrevi sobre como o Spotify rouba dos artistas

 

Em um sentido muito concreto e importante, os trabalhadores criativos – escritores, cineastas, fotógrafos, ilustradores, pintores e músicos – não estão do mesmo lado que as gravadoras, agências, estúdios e editoras que colocam nosso trabalho no mercado. Essas empresas não são instituições de caridade; elas são motivadas a maximizar os lucros e uma maneira importante de fazer isso é reduzir os custos, inclusive e principalmente o custo de nos pagar pelo nosso trabalho.

É fácil não perceber esse fato porque os trabalhadores dessas gigantescas empresas de entretenimento são nossos aliados de classe. O mesmo impulso que restringe os pagamentos aos escritores é usado quando as empresas de entretenimento pensam em quanto pagam aos editores, assistentes, publicitários e à equipe da logística. Essas são as pessoas com as quais os trabalhadores criativos lidam no dia a dia; elas, em geral, estão sim do nosso lado, e é fácil confundir essas pessoas com seus empregadores.

Essa guerra de classes não precisa ser o fato central do relacionamento dos trabalhadores criativos com nossas editoras, gravadoras, estúdios, etc. Quando há muitas dessas empresas de entretenimento, elas competem umas com as outras pelo nosso trabalho (e pelo trabalho dos funcionários que levam esse trabalho ao mercado), o que aumenta nossa participação no lucro que nosso trabalho produz.

Mas vivemos em uma era de extrema concentração de mercado em todos os setores, inclusive no de entretenimento, onde lidamos com cinco editoras, quatro estúdios, três gravadoras, duas empresas de tecnologia de publicidade e uma única empresa que controla todos os e-books e audiolivros na América do Norte. Essa concentração faz com que seja muito mais difícil para os artistas negociarem de forma eficaz com as empresas de entretenimento, o que significa que é possível – e até provável – que as empresas de entretenimento obtenham vantagens de mercado que não são compartilhadas com os trabalhadores criativos. Em outras palavras: quando seu campo é dominado por um cartel, você pode estar do lado deles, mas é quase certo que eles não estão do seu lado.

Esta semana, a Penguin Random House (PRH), a maior editora “da história da raça humana”, ganhou as manchetes quando alterou o aviso de copyrights de seus livros para proibir o treinamento de IA.

A página de copyright agora inclui esta frase:

Nenhuma parte deste livro pode ser usada ou reproduzida de qualquer maneira para fins de treinamento de tecnologias ou sistemas de inteligência artificial.

Muitos escritores estão comemorando essa mudança como uma vitória dos direitos dos trabalhadores criativos sobre as empresas de IA, que arrecadaram centenas de bilhões de dólares, em parte prometendo aos nossos chefes que podem nos demitir e nos substituir por algoritmos.

Mas esses escritores estão presumindo que, só porque estão do lado da Penguin Random House, a PRH está do lado deles. Eles estão presumindo que, se a PRH lutar contra as empresas de IA que treinam bots com seu trabalho gratuitamente, isso significa que a PRH não permitirá que bots sejam treinados com seu trabalho de forma alguma.

Essa é uma visão bastante ingênua. O que é muito mais provável é que a PRH use todos os direitos legais que possui para insistir que as empresas de IA paguem pelo direito de treinar chatbots com os livros que escrevemos. É muito improvável que a PRH compartilhe o dinheiro da licença com os escritores cujos livros são então jogados no funil de treinamento do bot. Também é extremamente provável que a PRH tente usar a produção dos chatbots para reduzir nossos salários ou nos demitir e substituir nosso trabalho por uma IA lixo.

Isso é especulação de minha parte, mas é uma especulação informada. Observe que a PRH não anunciou que permitiria aos autores reivindicar o direito contratual de impedir que seu trabalho fosse usado para treinar um chatbot. Ou que estava oferecendo aos autores uma parte de qualquer uma das taxas de licença de treinamento, ou uma parte da renda de qualquer coisa produzida por bots treinados com o nosso trabalho.

De fato, à medida que o mercado editorial se transformou das trinta e poucas editoras de médio porte que floresciam quando eu era um escritor novato para as Cinco Grandes que dominam o campo atualmente, seus contratos ficaram notavelmente e materialmente piores para os escritores.

Isso não tem nada de surpreendente. Em qualquer leilão, quanto mais licitantes sérios houver, mais alto será o preço final. Quando havia trinta possíveis licitantes para nosso trabalho, conseguíamos em média um acordo melhor do que agora, quando há no máximo cinco licitantes.

Embora isso seja evidente, a Penguin Random House insiste em dizer que não é verdade. Na época em que a PRH estava tentando comprar a Simon & Schuster (reduzindo assim as cinco grandes editoras para quatro), eles insistiram que continuariam a fazer lances contra eles mesmos: editores da Simon & Schuster (que seria uma divisão da PRH) fariam lances contra editores da Penguin (outra divisão da PRH) e da Random House (mais uma divisão da PRH).

Isso é um absurdo óbvio, como disse [o escritor] Stephen King quando testemunhou contra a fusão (que foi posteriormente bloqueada pelo tribunal): “Você poderia muito bem dizer que terá marido e mulher concorrendo um contra o outro pela mesma casa. Seria muito cavalheiresco e tipo, ‘Depois de você’ e ‘Depois de você’, disse ele, gesticulando com um movimento educado do braço”.

A Penguin Random House não se tornou a maior editora da história publicando livros melhores ou fazendo um marketing melhor. Eles atingiram sua escala comprando seus rivais. A empresa é, na verdade, uma espécie de organismo colônia formado por dezenas de editoras que antes eram independentes. Cada uma dessas aquisições reduziu o poder de barganha dos escritores, mesmo dos escritores que não escrevem para a PRH, porque o desaparecimento de um licitante confiável para o nosso trabalho no portfólio corporativo da PRH reduz os possíveis licitantes para o nosso trabalho, independentemente de para quem o estamos vendendo.

Prevejo que a PRH não permitirá que seus escritores incluam uma cláusula em seus contratos proibindo a PRH de usar seu trabalho para treinar uma IA. Essa previsão se baseia em minha experiência direta com duas das outras cinco grandes editoras, onde sei com certeza que elas se recusaram terminantemente a fazer isso e disseram ao escritor que qualquer insistência em incluir esse contrato levaria à rescisão da oferta.

As Big Five têm termos de contrato marcadamente semelhantes. Ou melhor, contratos incrivelmente semelhantes, uma vez que os setores concentrados tendem a convergir em seu comportamento operacional. As Big Five são semelhantes o suficiente para que se entenda que um escritor que processe uma delas provavelmente será excluído das demais.

Meu próprio agente me deu esse conselho quando uma das Big Fives me roubou mais de US$ 10.000 – cancelou um projeto do qual eu fazia parte porque outra pessoa envolvida com ele desistiu e, em seguida, retirou cinco dígitos da taxa de inscrição especificada em meu contrato, só porque podia. Meu agente me disse que, embora eu certamente ganhasse o processo, isso custaria a minha carreira, pois me colocaria em má situação com todos as Big Five.

Os escritores que estão aplaudindo o novo aviso de direitos autorais da Penguin Random House estão operando sob a crença equivocada de que isso tornará menos provável que nossos chefes comprem uma IA na esperança de nos substituir por ela. Isso não é verdade. Conceder à Penguin Random House o direito de exigir taxas de licença para treinamento em IA não fará nada para reduzir a probabilidade de que a Penguin Random House opte por comprar uma IA na esperança de reduzir nossos salários ou nos demitir.

Mas outra coisa fará! O Escritório de Direitos Autorais dos EUA emitiu uma série de decisões, confirmadas pelos tribunais, afirmando que nada feito por uma IA pode ser protegido por direitos autorais. Por estatuto e tratado internacional, o direito autoral é um direito reservado para obras de criatividade humana (é por isso que a “selfie do macaco” não pode ser protegida por direitos autorais).

Cryteria/CC BY 3.0, modificado

Se todas as outras coisas forem iguais, as empresas de entretenimento vão preferir pagar aos trabalhadores criativos o mínimo possível (ou nada) pelo nosso trabalho. Mas, por mais forte que seja sua preferência por reduzir os pagamentos aos artistas, elas estão muito mais comprometidas em poder controlar quem pode copiar, vender e distribuir os trabalhos que lançam.

Em outras palavras, quando confrontadas com a escolha entre “Não precisamos mais pagar aos artistas” e “Qualquer pessoa pode vender ou distribuir nossos produtos e não receberemos um centavo por isso”, as empresas de entretenimento pagarão aos artistas todo o dia.

Lembra-se daquele idiota de quem todos riram porque ele conseguiu ganhar um concurso de arte com uma porcaria de IA e depois ficou com raiva porque as pessoas estavam copiando a “sua” imagem? A insistência desse cara de que sua porcaria deveria ter direito a direitos autorais é muito mais perigosa do que o golpe original de fingir que ele pintou a porcaria em primeiro lugar.

Se a PRH estivesse intervindo nesses casos de direitos autorais de IA do Copyright Office para dizer que os trabalhos de IA não podem ser protegidos por direitos autorais, isso seria um caso em que estaríamos do lado deles – e eles estariam do nosso lado. No dia em que eles apresentarem uma petição de amicus curiae ou um comentário de regulamentação apoiando a ausência de direitos autorais para IA, eu os louvarei aos céus.

Mas essa alteração no aviso de direitos autorais do PRH não vai melhorar o saldo bancário dos escritores. Dar aos escritores a capacidade de controlar o treinamento de IA não impedirá a PRH e outras empresas gigantes de entretenimento de treinar IAs com nosso trabalho. Elas simplesmente dirão: “Se você não assinar o direito de treinar uma IA com seu trabalho, não o publicaremos”.

O maior indicador de quanto dinheiro um artista ganha com a exploração de seu trabalho não é a quantidade de direitos exclusivos que temos, mas sim o poder de negociação que temos. Quando você negocia com cinco editoras, quatro estúdios ou três gravadoras, todos os novos direitos que você obtém do Congresso ou dos tribunais são simplesmente transferidos para eles na próxima vez que você negociar um contrato.

Como Rebecca Giblin e eu escrevemos em nosso livro de 2022 “Chokepoint Capitalism”:

Dar mais direitos autorais a um trabalhador criativo é como dar mais dinheiro para o lanche de um aluno que sofre bullying. Não importa o quanto você dê a ele, os valentões ficarão com tudo. Dê a seu filho dinheiro suficiente para o lanche e os valentões poderão subornar o diretor da escola para que faça vista grossa. Continue dando dinheiro para o lanche da criança e os agressores poderão lançar um apelo global exigindo mais dinheiro para o lanche de crianças famintas!

Como a sorte dos trabalhadores criativos diminuiu durante a era neoliberal de fusões e consolidações, nós nos distraímos com campanhas para obter mais direitos autorais, em vez de mais poder de negociação.

Existem políticas de direitos autorais que nos dão mais poder de negociaçao. Proibir que trabalhos de IA obtenham direitos autorais nos dá mais poder de negociação. Afinal, só porque a IA não pode fazer nosso trabalho, não significa que os vendedores de IA não possam convencer nossos chefes a nos demitir e nos substituir por uma IA incompetente.

Depois, há a “rescisão de direitos autorais”. De acordo com o Copyright Act de 1976, nos Estados Unidos os trabalhadores criativos podem reaver os direitos autorais de suas obras após 35 anos, mesmo que assinem um contrato abrindo mão dos direitos autorais por toda a sua duração.

Trabalhadores criativos, de George Clinton a Stephen King e Stan Lee, converteram esse direito em dinheiro – ao contrário, por exemplo, de termos mais longos de direitos autorais, que são simplesmente transferidos para empresas de entretenimento por meio de cláusulas contratuais não negociáveis. Em vez de nos juntarmos aos nossos editores na luta por termos mais longos de direitos autorais, poderíamos exigir termos mais curtos para a rescisão de direitos autorais. Por exemplo, o direito de retomar um livro, música, filme ou ilustração popular após 14 anos (como era o caso no sistema original de direitos autorais dos EUA) e revendê-lo por mais dinheiro como um sucesso comprovado e sem riscos.

Até lá, lembre-se: “só porque você está do lado deles, isso não significa que eles estejam do seu lado”. A PRH não quer evitar que o conteúdo de baixa qualidade feito por IA reduza os nossos salários como escritores; eles só querem ter certeza de que é a produção da IA deles que vai fazer isso, e não outra de fora.

 

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