mckenzie wark – BaixaCultura https://baixacultura.org Cultura livre & (contra) cultura digital Fri, 03 May 2024 15:12:54 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.0.9 https://baixacultura.org/wp-content/uploads/2022/09/cropped-adesivo1-32x32.jpeg mckenzie wark – BaixaCultura https://baixacultura.org 32 32 Um Manifesto Hacker e Extinção da Internet na Cryptorave https://baixacultura.org/2024/05/02/um-manifesto-hacker-e-extincao-da-internet-na-cryptorave/ https://baixacultura.org/2024/05/02/um-manifesto-hacker-e-extincao-da-internet-na-cryptorave/#respond Thu, 02 May 2024 14:15:36 +0000 https://baixacultura.org/?p=15643

 

Se uma outra internet – mais próxima à que acreditávamos nos anos 2000, descentralizada, menos vigilante, mais das pessoas do que de empresas e robôs – não é mais possível, como ela será? Viveremos numa distopia com pessoas trabalhando precariamente para inteligências artificiais criarem conteúdo para entupir os dutos das redes sociais? Como Geert Lovink se pergunta no livro: o que pode consistir a vida depois que nossas mentes frágeis não forem mais atacadas pelos efeitos entorpecentes e deprimentes de descer a barra de rolagem do apocalipse (doomscrolling)? Ou como Mckenzie Wark também questiona: podemos nos esconder e encontrar uma relação com a técnica em que podemos pelo menos minimizar a captura de nossas energias hacker e obter algum prazer em formas de trabalho inútil?

A partir dos recém-publicados (2023) livros “Um Manifesto Hacker“, de Mckenzie Wark, e “Extinção da Internet“, de Geert Lovink, a mesa vai debater as transformações ocorridas na cultura da internet nos últimos anos e as consequências tanto para a disputa tecnopolítica quanto para as pesquisas relacionadas à internet hoje. A proposta é também resgatar uma parte da história da cultura da internet até aqui para propor exercícios de futurologia, tanto do ponto de vista do que devemos ficar atentos nos próximos tempos como o que devemos pesquisar para que a distopia não traga paralisia. Será às 10h, no terraço da Biblioteca Mário de Andrade, centro de São Paulo, SP.

Com:
_ Leonardo Foletto: Professor e pesquisador (FGV ECMI), editor do BaixaCultura e cartógrafo dos fins da internet;
_ Rafael Grohmann: Professor de estudos críticos de plataformas da Universidade de Toronto, diretor do Digilabour e trabalhador internacional de karaokê;
_ Adriana Amaral: Professora e pesquisadora do programa de pós-graduação em comunicação da UNIP-SP, coordenadora do CULTPOP (Laboratório de Pesquisa em Cultura Pop, Comunicação e Tecnologias);_ Moderação:
_ Tatiana Dias, jornalista e editora-executiva do The Intercept Brasil;

A programação completa está excelente e pode ser vista no site. Como nos últimos 6 anos, estaremos lá também para acompanhar o evento e produzir um relato depois.

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Um Manifesto Hacker – 20 anos depois https://baixacultura.org/2024/02/20/um-manifesto-hacker-20-anos-depois/ https://baixacultura.org/2024/02/20/um-manifesto-hacker-20-anos-depois/#comments Tue, 20 Feb 2024 23:03:56 +0000 https://baixacultura.org/?p=15573 Não é fácil a tarefa de apresentar Um Manifesto Hacker, de McKenzie Wark, ao público brasileiro hoje. A natureza ensaística, provocativa e irônica da obra nos põe um desafio: como falar de um presente sem estragar a surpresa? Outra questão é o tempo: o livro foi lançado pela primeira vez há vinte anos. Como contextualizar a obra? O papel da informação e das tecnologias na sociedade contemporânea está ainda mais visível do que há vinte anos, o que faz com que a obra continue atual – como a própria autora afirma em sua introdução à edição brasileira. Se, por um lado, não vamos estragar as surpresas – elas são deliciosas – por outro, não espere uma apresentação tradicional. Ela seria o exato oposto do que o próprio livro tentou ser.

O que podemos contextualizar é que, embora a tradução apenas saia agora, sua recepção em território brasileiro aconteceu mesmo há quase vinte anos. De forma um tanto errática, quase underground, o livro foi lido e discutido em meios acadêmicos e ativistas, sobretudo onde havia pessoas interessadas em torno da grande área que se convencionou chamar cibercultura – nome que hoje, com a onipresença do digital em nossas vidas, parece ter sido abandonado.

Dentro dessa área, hackers afeitos também aos estudos filosóficos de inspiração deleuziana sobre a técnica receberam com entusiasmo estes escritos de McKenzie Wark; outros, especialmente teóricos da comunicação e da sociologia, leram com atenção as teses do livro e notaram as semelhanças com “A Sociedade do Espetáculo”, de Guy Debord, e “Manifesto Comunista”, de Karl Marx e Friedrich Engels, evidentes na forma aforística do texto mas nem tão clara no conteúdo – embora você verá muito de ambos autores nas páginas do livro.

Um Manifesto propõe a visão de que existem três classes dominantes e suas respectivas classes dominadas. Cada uma dessas classes dominantes deriva seu poder da propriedade privada de uma categoria de meios de produção. São elas a classe pastoralista, que detém terras; a classe capitalista, que possui capital; e a classe vetorialista, proprietária da informação. E suas decorrentes classes dominadas, respectivamente a classe camponesa, a classe trabalhadora e a classe hacker. Apesar de haver uma sequência histórica na emergência de cada uma delas (primeiro veio a pastoralista, depois a capitalista, e agora a vetorialista), a autora afirma que as três classes coexistem no presente.
Este é um trechinho do prefácio (íntegra) que eu, Victor Barcellos (também tradutor da obra) e Rafael Grohmann fizemos para a “Um Manifesto Hacker”, segundo livro publicado no Brasil de McKenzie Wark, ambos pela dupla de editoras SobInfluencia e Funilaria – fizemos uma breve resenha do primeiro, “O Capital Está Morto”, em fevereiro de 2023. “Um Manifesto Hacker” está à venda no site das duas editoras (Funilaria / SobInfluencia) e também nas melhores livrarias do país. Republicamos logo abaixo o prefácio à edição brasileira do livro, escrito por Mckenzie, que atualiza com muita clareza e honestidade a questão da liberação da informação da forma de propriedade na internet. O livro na íntegra também está disponível em PDF, mas não espalha.

[Leonardo Foletto]

“O que para nós era uma prática de vanguarda rapidamente, e de forma independente, tornou-se um movimento social: o movimento pela informação livre. À medida que a internet se tornou uma forma de comunicação mais popular, todos começaram a compartilhar. Como diz a tese 126 do livro: “a informação quer ser livre, mas está acorrentada em todos os lugares” (…) Parecia que poderíamos abrir a forma-mercadoria da informação em favor de uma espécie de economia de dádiva abstrata. (…) Não era pra ser. Os marxistas autonomistas italianos sustentam que toda “inovação” na forma-mercadoria é impulsionada de baixo para cima, na medida em que tenta resolver um antagonismo de classe subordinada contra a forma-mercadoria por meio de sua recaptura por meio de uma mutação dessa forma. Foi mais ou menos isso que aconteceu. A classe dominante dominante, que chamo de classe vetorialista, recuperou a energia do movimento popular pela informação livre transformando-a em trabalho não remunerado“.

 

CONSIDERAÇÕES SOBRE UM MANIFESTO HACKER

Mckenzie Wark*

Lendo Um Manifesto Hacker novamente depois de muito tempo, agora parece um livro que outra pessoa escreveu e, ao mesmo tempo, um livro que contém não apenas a semente de todo o meu trabalho, mas o padrão da minha vida desde então.

O livro faz pelo menos duas coisas ao mesmo tempo. Em parte é um diagnóstico de um ponto de viragem histórico, entendido a nível conceptual. Isso não é mais capitalismo; é algo pior. Essa mutação no modo de produção é global, mas distribuída de forma desigual. Os modos de produção são sempre plurais. Durante muito tempo, o modo dominante poderia ser descrito como capitalismo. Embora o capitalismo certamente ainda exista, não é mais o modo de produção dominante.

Não estou sozinha nesse diagnóstico, mas a maioria das outras tentativas de pensar essa ruptura não entenderam que ela também é uma ruptura de linguagem. Assim, temos tentativas muito insatisfatórias de pensá-lo como pós-capitalismo ou neofeudalismo. Em outras palavras, isso significaria pensar o surgimento de uma nova época apenas em relação à língua antiga. Cada nova era tenta pensar sua novidade na linguagem da antiga. Essa é uma falha linguística a ser superada,e considero isso uma das percepções mais importantes de Marx.

Em vez disso, tentei pensar a época em uma linguagem contemporânea a ela. Escrevi Um Manifesto Hacker em uma linguagem inexistente que chamo de “europeia”. Essa linguagem imaginária é composta de partes iguais de latim religioso, marxismo, filosofia francesa e inglês comercial. Essas são as linguagens transnacionais da modernidade que me fizeram. A edição em inglês não é a original – também é uma “tradução” que eu mesmo fiz dessa língua inexistente. Eu queria começar pelo menos com os recursos linguísticos que vários modos de produção sucessivos e sobrepostos infligiram ao mundo por meio da guerra e da colonização. Pensar nessa linguagem e contra ela.

O método de escrita é o que os situacionistas chamavam de desvio (détournement). Uma cópia e uma correção da linguagem encontrada. Assim, a primeira linha: “Um duplo assusta o mundo”, e toda a tese 001 que se segue, copiei e modifiquei da famosa abertura de O Manifesto Comunista. Toda a linguagem é um bem comum (commons), e pode-se fazer o possível para recusar a forma de propriedade e os nomes próprios de seus proprietários como uma prática de escrita. Sempre me diverte que existam livros que se dizem “radicais” em conteúdos que obedecem às convenções literárias mais conservadoras.

Partindo de um desvio das linguagens transnacionais, Um Manifesto Hacker oferece dois tipos de proposições: algumas se referem à situação estratégica das classes subalternas como eu a via 25 anos atrás. Alguns deles precisam de revisão à luz das lutas desde então. O outro tipo de proposição está menos ligado a circunstâncias imediatas. Eles são um pouco mais inoportunos. Vou oferecer algumas reflexões tardias sobre ambos.

Resumidamente, as coisas tomaram um rumo que eu não previ, e que exige uma alternância não só da prática política, mas também da teoria. Georg Lukács disse em seu ensaio sobre o método marxista que mesmo que todas as suas descobertas particulares se mostrassem incorretas na prática, a teoria marxista ortodoxa permaneceria correta. Eu tenho exatamente a visão oposta: apenas aquelas descobertas que se comprovam na prática podem ser consideradas parte do “marxismo”. Ele não tem nenhuma teoria essencial, ortodoxa ou não.

Vinte e cinco anos atrás, parecia uma boa tática liberar informações da forma de propriedade. As forças de produção, neste caso as forças de produção de informação, ultrapassaram as relações de produção existentes. A produção de informação livre surgiu como uma prática a partir da qual se cria uma produção autônoma de conhecimento. De diferentes maneiras, Adorno e Pasolini se refugiaram da pressão progressiva da mercantilização (commodification) em formas culturais e midiáticas residuais, eu fazia parte de um movimento que buscava um espaço de liberdade não-mercantilizada em mídias emergentes e formas técnicas.

Embora tenha escrito grande parte de Um Manifesto Hacker isoladamente, no norte do estado de Nova Iorque, eu não estava sozinha. Fiz parte de uma vanguarda que se reuniu em espaços online para desenvolver teoria e prática dentro dessas formas emergentes de produção de informação. Tentamos fazer uma teoria, uma arte, uma cultura e uma política neste espaço relativamente livre de uma só vez. Isso foi um tempo antes de a internet se tornar um grande negócio. Sua infraestrutura era mantida principalmente por universidades. Descobrimos que era uma maneira relativamente barata e rápida de se organizar transnacionalmente, de conduzir experimentos, de encontrar afinidades.

Todas as vanguardas são, em certo sentido, vanguardas midiáticas, desde o dadaísmo e o surrealismo até o fluxus, a tropicália ou os situacionistas. Eles usaram a mídia de seu tempo, da impressão offset ao cinema, gravação de som, até mesmo o sistema postal, para criar matrizes transnacionais de invenção formal que eram ao mesmo tempo estéticas, políticas e culturais. Vimo-nos continuando essa prática, mas não meramente repetindo-a. Um Manifesto Hacker é uma teoria dessa prática. Como todas as vanguardas, teve suas facções e dissensões. Meu espaço de afinidade dentro dele girava em torno do grupo nettime.org.

O que para nós era uma prática de vanguarda rapidamente, e de forma independente, tornou-se um movimento social: o movimento pela informação livre. À medida que a internet se tornou uma forma de comunicação mais popular, todos começaram a compartilhar. Como diz a tese 126 do livro: “a informação quer ser livre, mas está acorrentada em todos os lugares”. (Uma frase que é um desvio de Rousseau e do teórico utópico da internet John Perry Barlow). Parecia que poderíamos abrir a forma-mercadoria da informação em favor de uma espécie de economia de dádiva (gift) abstrata.

Não era pra ser. Os marxistas autonomistas italianos sustentam que toda “inovação” na forma-mercadoria é impulsionada de baixo para cima, na medida em que tenta resolver um antagonismo de classe subordinada contra a forma-mercadoria por meio de sua recaptura por meio de uma mutação dessa forma. Foi mais ou menos isso que aconteceu. A classe dominante dominante (dominant rulling class), que chamo de classe vetorialista (vectorialist), recuperou a energia do movimento popular pela informação livre transformando-a em trabalho não remunerado.

Na verdade, é ainda pior do que isso. O capitalismo explora nosso trabalho; o vetorialismo explora nosso comunismo. Ele explora nossa necessidade de dar um presente de nossa sociabilidade uns aos outros. A resposta da classe dominante ao movimento social pela informação livre foi a criação de uma forma de propriedade ainda mais abstrata. As relações de produção alcançaram as forças de produção. Este ciclo agora tem uma extensão adicional, pois a chamada “inteligência artificial” é treinada no vasto tesouro de informações livres que criamos para nós mesmos para desenvolver uma técnica que possa substituir a própria classe hacker.

Sob o capitalismo, as forças de produção se desenvolveram reduzindo o trabalho à repetição e mesmice, e então substituindo o trabalhador por uma máquina que reproduzia de forma mecânica essa repetição. O que estava além dessa substituição era o hack, a produção da diferença, a atividade distintiva da classe hacker nas artes e nas ciências. O que a classe vetorialista está tentando agora é a substituição da classe hacker por máquinas capazes de fabricar a diferença. Máquinas que fazem isso mal, mas que do ponto de vista da classe dominante são preferíveis porque não podem entrar em greve.

Em suma, a situação é muito pior do que há um quarto de século. Vencemos algumas batalhas, mas perdemos a guerra. O livro que escrevi logo após Um Manifesto Hacker, “Gamer Theory”, já era uma intuição disso. Trata-se do enclausuramento do hack, ali figurado como jogo, em um espaço de jogo global, totalizante. Onde todas as nossas energias coletivas e criativas são direcionadas para formas que podem ser quantificadas, classificadas e ranqueadas. Lamento dizer, esse foi profético.

Revisei ainda mais a perspectiva política de Um Manifesto Hacker em meu livro posterior, “O Capital Está Morto”. Em meu livro “Raving”, ofereci pelo menos uma teoria e prática de onde podemos nos esconder, podemos encontrar uma relação com a técnica onde podemos pelo menos minimizar a captura de nossas energias hacker e obter algum prazer em formas de trabalho inútil.

Ao contrário de alguns teóricos que eu poderia mencionar, não estou no negócio de oferecer “esperança”. A perspectiva é ruim. Os movimentos populares viveram uma longa série de derrotas históricas. Estamos em retiro na maioria dos lugares. O benefício de estar em retirada é que há menos oportunistas por perto. Em vez disso, os oportunistas se rebatizaram como os “intelectuais” da reação.

As proposições táticas de Um Manifesto Hacker são de seu tempo. Até que ponto as proposições teóricas precisam ser abandonadas ou modificadas não cabe a mim dizer. Ainda acho o livro infinitamente produtivo, pelo menos para meu próprio trabalho e até para minha vida. Olhando para trás, encontro as sementes de todos os meus livros subsequentes. A série de livros que relê e recupera certas práticas marxistas e de vanguarda que se cruzam, por exemplo: “The Beach Beneath the Street”, “The Spectacle of Disintegration” e “Molecular Red”. Ou a série de livros que lêem outras teorias contemporâneas de forma camarada: “General Intellects” e “Sensoria”.

Até encontro uma conexão com os livros que escrevi no processo de me assumir como transexual: “Philosophy for Spiders”, “Reverse Cowgirl”, and “Love and Money, Sex and Death”. Há um conceito de natureza como diferença, natureza como hackeável, que prefigura o hackeamento do meu próprio corpo, a produção da diferença na e como minha própria carne.

Certamente existem conceitos que ainda considero úteis em Um Manifesto Hacker, sendo a natureza como diferença apenas um exemplo. A sua contraposição da expressão à representação, a sua alergia às identidades e aos invólucros. Isso me parece uma crítica antecipada ao ressurgimento do sentimento fascista. Ou a intuição de que a sobrevivência planetária no Antropoceno pode exigir uma superação da subordinação da produção à reprodução da mesmice da forma de propriedade. Que pode de fato haver uma técnica potencial que é mais abstrata do que, e não recuperável dentro da própria propriedade.

O que prezo mais do que a teoria neste livro é a prática, que mais tarde vim a chamar de baixa teoria (low theory). A prática da baixa teoria é a prática de fazer teoria em e com um movimento social, uma vanguarda ou um projeto comunitário de resistência minorizada. A baixa teoria pode recorrer aos recursos da alta teoria, que às vezes se autodenomina filosofia, mas que na maioria das vezes é erudição sobre filosofia. A universidade tem sido um lugar onde poderíamos conseguir empregos, mas os prêmios brilhantes de reconhecimento acadêmico não são o objetivo da baixa teoria. A baixa teoria acontece em uma temporalidade diferente, a das tendências históricas, conjunturas políticas, situações culturais, não a do sistema semestral.

Talvez o melhor sinal de que o livro ainda tem sua utilidade é que eu o considero plagiado com tanta frequência – o que acho divertido quando assume a forma de um desvio (détournement) engenhoso. De qualquer forma, fico feliz em ver que ainda fala a muitos tipos diferentes de leitores, em muitas partes diferentes do mundo. Perdi a conta do número de idiomas em que você pode encontrá-lo. É um livro que foi feito para ser hackeado.

Brooklyn, Nova Iorque, julho de 2023

*McKenzie Wark (New Castle, Austrália) é professora de Mídia e Estudos Culturais na New School for Social Research e Eugene Lang College em Nova York. Seus escritos e projetos políticos se voltam para a análise do neoliberalismo tecnológico, além de escrever sobre os diversos movimentos Situacionistas, mídia tática e movimento anti-globalização. Publicou no Brasil pela Funilaria e sobinfluencia “O capital está morto” e “Um manifesto hacker”. Também é autora de livros como “Molecular Red: Theory for the Anthropocene”, “Reverse Cowgirl”, “50 Years of Recuperation of the Situationist International”, “The Spectacle pf Disintegration” e outros, McKenzie é também DJ e amplamente vivída na cultura da música techno e seus movimentos.

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McKenzie Wark e a morte do “capital” https://baixacultura.org/2023/02/15/mckenzie-wark-e-a-morte-do-capital/ https://baixacultura.org/2023/02/15/mckenzie-wark-e-a-morte-do-capital/#comments Wed, 15 Feb 2023 22:17:52 +0000 https://baixacultura.org/?p=15183  

A publicação de “O Capital Está Morto”, de McKenzie Wark, no Brasil, em parcerias das editoras Sob Influência e Funilaria, é um acontecimento importante nos estudos críticos sobre o neoliberalismo, especialmente nas discussões sobre comunicação, cultura digital e política. Por dois motivos principais: um por ser o primeiro livro lançado no país de McKenzie, intelectual importante no mundo anglo-saxão há pelo menos 20 anos, especialmente a partir de “A Hacker Manifesto” (2004 – aqui em PDF), uma potente crítica à mercantilização da informação da informação na era digital, que ecoa (e em alguns casos, remixa) diretamente Guy Debord e seu “A Sociedade do Espetáculo” (PDF Edições Antipáticas, 2005), inclusive na forma de escrita e na estrutura da obra.

Intelectual nascida na Austrália, professora de Mídia e Estudos Culturais na criativa New School for Social Research, em Nova York, McKenzie (@chicamarx) estuda mídia, cultura e tecnologia desde os anos 1990, com textos que vão desde o legado dos situacionistas franceses da década de 1950 e 1960 (como em The Beach Beneath the Street: The Everyday Like and Glorious Times of the Situationist International, de 2011) à teorização da cultura gamer (Gamer Theory, de 2006), passando também pela discussão sobre história da mídia, percepção e classe (Telesthesia: Communication, Culture and Class, de 2012). Seus trabalhos analisam as mudanças sociais pela inserção das tecnologias na sociedade (como em Excommunication: Three Inquiries in Media and Mediation, com Alexander R. Galloway and Eugene Thacker, de 2013) a partir de referenciais marxistas, que bebem principalmente nos estudos culturais ingleses e nos pós-estruturalistas franceses, mas também dos teóricos de crítica de mídia alemã e dos autonomistas italianos. Aliado a essa ampla bagagem teórica, a autora mescla em seus livros as referências e a profunda vivência no mundo cultural, especialmente como DJ na cultura da música techno, a forte noção de corporeidade – relatada sobretudo em “Reverse Cowgirl” (2020, PDF), em que McKenzie faz uma “polibiografia” de sua transição de gênero, como comenta Paul Preciado no prefácio – e uma escrita que, informal e direta, mas também rigorosa e densa, almeja a teoria como uma forma de literatura.

 

Foto: Jessica Dunn Rovinelli

O segundo motivo para a publicação de “O Capital Está Morto” ser importante no Brasil, claro, é o próprio livro. Aqui, ela aprofunda alguns os argumentos em “A Hacker Manifesto” (talvez seu livro mais influente, publicado também em espanhol) para anunciar o que seria um novo modo de produção, não mais capitalista, mas pior, que não se baseia mais seu poder na propriedade privada dos meios de produção, mas sim no controle do “vetor de informação”, formado por aquelas tecnologias que não apenas coletam grandes quantidades de dados, mas também os ordenam, gerenciam e processam para extrair seu valor. A tese central do livro, exposta desde seu início e trazida do “A Hacker Manifesto”, é de que a ascensão deste modo de produção (que podemos aproximar ao conceito de “Capitalismo de Vigilância, proposto por Shoshana Zuboff no já clássico “A Era do Capitalismo de Vigilânciaaqui PDF grátis ptbr ) tem produzido uma contradição no centro daqueles que almejam a ostentar o poder. Se antes, tradicionalmente, as classes dominantes controlavam algum tipo de bem escasso (a propriedade, os meios de produção, etc), agora essa classe necessita controlar algo que é extremamente abundante: a informação. Esta contradição, hoje sem resolução alguma, encaminharia para um novo meio de produção ainda mais selvagem que o capitalismo, em que o domínio se daria na posse e no controle da informação, manifestado na excelência e no constante aperfeiçoamento da coleta, do processamento, da visualização e da distribuição (ultra) personalizada dessa informação no mundo digital. O que, por sua vez, não implica que os modos de produção anteriores tenham sido apagados: eles coexistem e se sobrepõem, mas agora há uma classe emergente que, dominando a informação, controla também o trabalho e o capital – pelo menos do jeito que tradicionalmente o entendemos.

É fácil de ver alguns dos principais integrantes desta nova classe emergente: Amazon, Google, Meta (Facebook), Microsoft. Mas não só; há também empresas que, oriundas da produção de bens escassos tradicionais, adentram a esta nova classe buscando controlar a informação logística, caso da Nike e da Walmart. Maior empregadora dos Estados Unidos, a empresa varejista é mostrada por McKenzie como uma empresa que conseguiu, através do uso massivo de dados, tanto organizar os fluxos de mercadorias e seu sistema de distribuição quanto criar um modelo preditivo de consumo a partir das informações geradas por quem compra em suas lojas. Ao adotar a abordagem “orientada por dados”, baseada na extração de dados dos compradores, a Walmart potencializa um processo de exploração não apenas dos corpos e dos direitos dos trabalhadores, mas também de seus rastros digitais, um passo importante para a indução de desejos e a construção de formas ainda não vistas de controle. “Talvez haja novas formas de exploração, desigualdade e assimetria como uma camada sobre as antigas com as quais estamos mais acostumados”, diz a autora (p.9).

McKenzie desenvolve sua tese de modo fluído, com usos da tática de desvio do détournement de Debord (no primeiro capítulo, principalmente) e também de referências culturais que vão de Kim Gordon (Sonic Youth) ao filme “O Jovem Marx”, também para tentar mostrar que criar uma nova linguagem (ou um estilo menos sóbrio e chato), como Marx fez em sua época, pode ser vital para analisar o hoje e encontrar saídas para esse algo ainda pior que está vindo.

Confira essa ótima entrevista com Mckenzie na Revista Rosa;

[Leonardo Foletto]

 

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2023: o que esperar do cenário digital? https://baixacultura.org/2023/01/06/2023-o-que-esperar-do-cenario-digital/ https://baixacultura.org/2023/01/06/2023-o-que-esperar-do-cenario-digital/#respond Fri, 06 Jan 2023 16:07:34 +0000 https://baixacultura.org/?p=15109  

No final de 2022 conversei no Podcast Tecnopolítica com Sérgio Amadeu – professor da UFABC, ciberativista histórico e parceiro de várias frentes de batalha – sobre o que esperar no cenário da tecnologia em 2023.

O papo buscou responder a pergunta: o que esperar de 2023 no cenário digital? Listei alguns pontos de atenção, que foram discutidos no programa junto com outros pontos trazidos por Sérgio. Segue abaixo o vídeo completo, no Youtube, mas dá também para escutar direto no site do Podcast.

 

 

À época, fiz um texto sistematizando alguns destes pontos, com diversos trechos que não falei no podcast (como do trecho de “O Capital Está Morto”, de McKenzie Wark), outros que abordei de forma diferente e algumas anotações a partir das falas de Sérgio. Há, claro, como em toda boa conversa, outros temas abordados na 1h do vídeo, como a questão do 5G, as tecnologias para a sustentabilidade socioambiental, as tensões nas disputas geoestratégicas dos semicondutores. Como gosto do bruto, segue abaixo o texto, que, penso, tem vários insights para acompanhar neste 2023.

 

  1. REGULAÇÃO DAS PLATAFORMAS & CAPITALISMO DE VIGILÂNCIA

Há um “Zeitgeist”, espírito do tempo, sobre regulação, que é mundial.

Não basta defender “direitos” nas plataformas. É preciso redefinir sua lógica, buscar transparência para os algoritmos.

A organização das informações em torno da timeline, que prioriza não a ordem cronológica das postagens, padrão das redes até então, mas diversos outros fatores (localização, interesses, interação em outros posts, além de publicidade) embutidos no algoritmo, potencializou erros na comunicação digital. Isso começou ali por 2012, com o Facebook, e depois se espalhou por outras redes. Agora, com tudo que vem acontecendo, é como se agora a gente tivesse isso mais claro e começasse a reagir para reverter isso.

Como muitos de nós ativistas do conhecimento livre, que acreditavam numa tecnoutopia de uma internet totalmente livre e na criação de uma sociedade melhor a partir da internet, eu inicialmente não pensava que seria necessário regular a internet e as redes sociais; acreditava que “daríamos um jeito”, que a possibilidade de ter onde e como falar, a partir da “liberação do pólo emissor da informação”, era muito importante para contrapor as narrativas viciadas das mídias tradicionais.

Escrevi um texto no BaixaCultura, em 2018, que fala de uma ressaca da internet e que pensa bastante sobre isso. Eu conto no texto que lembro bem, no final de 2011, quando escrevi um relato sobre a luta pela defesa dos princípios da internet, como a neutralidade da rede, a partir da fala de Yochai Benkler na abertura do Festival Cultura Digital.br. Já naquela época o questionamento sobre o fim da neutralidade da rede e o crescimento dos grandes monopólios era assunto corrente, embora não com tanta presença quanto hoje. Na época, comecei o texto com a pergunta: “é utopia pensar em uma internet democrática e livre, sem privilégios de acesso e tráfego de dados para nenhum lado, assim como foi definido nos princípios do desenvolvimento da rede?”

Bom, esquecemos todos os poderes do capitalismo se reinventar, talvez de um modo ainda pior, como diz o “O Capital Está Morto”, de McKenzie Wark, recém lançado no Brasil pela Sob Influencia e a Funilaria. Acabei de escrever um texto sobre o livro (logo publicamos aqui), que fala de um novo modo de produção, não mais capitalista, mas pior, que não se baseia mais seu poder na propriedade privada dos meios de produção, mas sim no controle do “vetor de informação”, formado por aquelas tecnologias que coletam grandes quantidades de dados e os ordenam, gerenciam e processam para extrair seu valor. A tese central do livro é de que a ascensão deste modo de produção tem criado uma contradição no centro daqueles que detém o poder: se antes as classes dominantes controlavam algum tipo de bem escasso (a propriedade, os meios de produção), agora essa classe necessita controlar algo que é extremamente abundante: a informação. Esta contradição, hoje sem resolução, encaminharia para um novo meio de produção ainda mais selvagem que o capitalismo, em que o domínio se daria na posse e no controle da informação. O que, por sua vez, não implica que os modos de produção anteriores tenham sido apagados: eles coexistem e se sobrepõem, mas agora há uma classe emergente que, dominando a informação, controla também o trabalho e o capital – pelo menos do jeito que tradicionalmente o entendemos.

O modelo de negócio das plataformas é tão nocivo como o do tabaco. Para deter a desinformação, talvez a gente devesse responsabilizar o produtor em escala industrial, no atacado, não no varejo; não o cara que vende baseado na esquina, mas quem produz em larga escala, o grande traficante, se quisermos seguir na metáfora.

Anatel, agência reguladora que é refém do regulado;

Como disse o Rafael Evangelista recentemente, num texto publicado no Outras Palavras, o poder das plataformas precisa ser combatido tendo em vista o modelo de negócios que operam e o gigantismo que adquiriram. Não dá para uma poucas empresas internacionais serem proprietárias ocultas de tudo e fazerem todas as funções, de hospedagem de dados e conteúdos a recomendações de consumo; de publicidade programática a financiamento da produção cultural; de intermediação de serviços de transporte a gerenciamento urbano.

Dito isso, hoje eu não tenho dúvida que a regulação é um caminho. Sobram muitas questões sobre isso que muita gente está pensando hoje em dia, inclusive o Governo Lula: de que forma fazer a regulação com transparência, participação da sociedade civil, com soberania digital, tendo em conta a questão do comum, do que precisa ser comum. O problema é de natureza transversal e creio que hoje tem muita gente se preocupando com isso. E o “inimigo” aqui é difícil, poderoso, compra tudo e todos, então é um problema gigante.

Mas é um “espírito do tempo” da regulação. Os limites das plataformas talvez vão ser dados nos próximos anos.


2. COOPERATIVISMO DE PLATAFORMA

Eu gosto de falar, se me permite, também em alternativas. Uma delas é o cooperativismo de plataforma, uma ideia que tenho acompanhado faz tempo, desde 2017 no Brasil, quando da publicação do livro “Cooperativismo de Plataforma”, do Trebor Scholz, pela Elefante com apoio da Fundação Rosa Luxemburgo.

Recentemente, participei de um documento que faz sugestões a partir de uma preocupação sobre como as grandes plataformas têm se colocado como intermediárias do trabalho, digital ou não, gerenciando e extraindo valor das atividades. Foi produzido a partir de um seminário sobre cooperativismo de plataforma e políticas públicas, em Porto Alegre, organizado pelo Digilabour, do parceiro Rafael Grohmann. O foco aqui é a apropriação dessas estruturas de intermediação pelos trabalhadores organizados.

Linhas para Políticas Públicas

_ Estado como catalisador de relações de trabalho mais dignas e inclusivas a partir do cooperativismo de plataforma no marco da economia solidária, fomentando iniciativas “de baixo para cima”;

_ Desenvolvimento de uma política nacional para o cooperativismo de plataforma, incluindo fomento a projetos locais, regionais e nacionais em diversos setores;
_ Políticas para o desenvolvimento de plataformas cooperativas baseadas em tecnologias livres de modo a favorecer a auto-organização de trabalhadoras e trabalhadores;

É um caminho que dialoga com o movimento do software livre, da qual você é parte importante Sérgio, e com a cultura e o conhecimento livre, que fala em mais acesso, mas também autonomia sobre as tecnologias, pautando por por uma perspectiva de desalienação, de revolta das pessoas contra processos de apropriação de meios de produção e extração de valor.

De modo geral, tudo é menos tecnológico do que se imagina. É mais organização dos trabalhadores do que uma tecnologia que vai resolver.

 

3. COPYRIGHT TROLLS

Em paralelo a isso, para seguir no ponto da cultura livre, continua ocorrendo a criminalização de quem baixa arquivos, tão comum nos anos 2000. Em 2021 e 2022 a gente teve diversas ações dos Copyright Trolls,  pessoas ou organizações que realizam ameaças de processo judicial, ou outras atitudes particularmente agressivas, para obter remuneração a partir de questões ligadas à proteção dos direitos autorais. Atuam a despeito de um real embasamento jurídico para sua reivindicação nesses casos, e a notificação se presta a causar terror psicológico pela ameaça de ação judicial que dificilmente resultaria em vitória para quem a ajuizasse.

Continuam intimidando pessoas que baixaram determinados filmes com avisos ameaçadores por email, como títulos como “Notificação extrajudicial pela infração a direitos autorais” ou “Alerta sobre infração a direitos autorais”, como mostra a nota publicada no Partido Pirata.

Eles explicam como obtiveram os dados cadastrais, via provedor (Claro), a conexão estava ligada a uma rede wifi, registrada em nome da pessoa que recebeu a carta. Agora eis a questão: como eles podem afirmar que a pessoa, que fez o suposto download, estava conectada a uma rede wifi, e não usando uma conexão por cabo de rede? Com base nas “provas” apresentadas, não há como. É puro achismo e especulação por parte deles.

Ainda há esse entendimento hoje, da equiparação do arquivo digital ao arquivo físico, do bem material ao bem imaterial, da criminalização do download. A indústria cultural não parou e vai continuar se a gente não propor novas legislações e, principalmente, entendimentos sobre o que é um bem comum, que não é necessariamente rival de um bem material, etc. Até mesmo editoras de esquerda criminalizam pessoas que baixaram seus livros! No Brasil precisamos pensar com cuidado a questão de acesso antes de sair criminalizando ou incitando o ódio a quem baixa arquivos de bens culturais como livros. Precisamos pensar também no paradigma da abundância, não da escassez. Maximização social cultural pode tornar sustentável a maximização econômica. A produção social vem antes da maximização dos lucros.

 

4. INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL 

Padronização e classificação de dados. Aplicativos como Lensa, GPT-3, etc.

A velocidade com que esses sistemas generativos estão se complexificando é assustadora. E não há sinais claros de que estamos perto do limite.

Já é plenamente possível gerar textos e imagens críveis de maneira automatizada. Vozes, Vídeos e Modelos 3D estão logo ali. Já tem alguns resultados e provas de conceito. Em todos os casos, o custo maior – tanto de processamento quanto de coleta e organização de informação – é treinar o ‘modelo’.

Tem todo um debate sobre privacidade, propriedade intelectual e direitos autorais que se reacende nesse novo mundo. De quem é a “propriedade” de um desenho gerado por IA? De quem a treinou? É plágio? Como vamos lidar com obras de arte feitas inteiramente em IA ganhando concursos artísticos?

O designer Jason M. Allen recorreu ao Midjourney, programa que usa algoritmos treinados com fotos da web para gerar novas imagens, para fazer uma imagem que ganhou um concurso de arte doméstico no Colorado, Estados Unidos (logo abaixo). Ele precisou apenas descrever que tipo de obra de arte desejava para que o software realizasse o trabalho, em segundos.

 

5. MODELOS DE NEGÓCIO / MONETIZAÇÃO DOS DADOS PESSOAIS

Meus dados, minhas regras. Tem gente que diz que a monetização de dados pessoais diminuirá a desigualdade social. Defendem que será possível ampliar a renda das pessoas se elas tiverem autonomia sobre as próprias informações, como financeiras, de saúde, de comportamento e outras. O mundo estaria próximo de passar por uma revolução na economia, baseada na propriedade dos dados até 2025. Será?

 

 

 

 

Théâtre d’Opéra Spatial, Jason M. Allen (e Midjourney?)

 

 

[Leonardo Foletto]

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De quem, afinal, é a cultura? https://baixacultura.org/2022/01/20/de-quem-afinal-e-a-cultura/ https://baixacultura.org/2022/01/20/de-quem-afinal-e-a-cultura/#respond Thu, 20 Jan 2022 15:51:40 +0000 https://baixacultura.org/?p=13880

Imagem de Ж, Filme-designer, educador e programador.

 

Victor Barcellos, doutorando em Comunicação e Cultura na ECO/UFRJ e pesquisador no Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS), escreveu uma resenha sobre o “A Cultura é Livre” na revista da Eco-Pós. A resenha tem o título de “De quem é a Cultura? Obras Culturais entre o privado, o público e o comum” e faz um ótimo panorama do livro – inclusive permitindo novas interpretações do tema e diálogos com outros pensadores/as, como McKenzie Wark e Maurízio Lazaratto, o que é sempre um sinal positivo quando se fala de resenha e construção de conhecimento crítico.

Abaixo, reproduzo alguns trechos, com algumas edições, comentários e supressões, para seguir fomentando o debate sempre necessário (achamos) sobre propriedade e cultura. Vale a pena ler todo a edição, um Dossiê sobre Apropriações e Ressignificações na arte e no pensamento, editado por Ciro Lubiner e Lucas Murari.

“A história da liberdade da cultura tem a potência de nos lembrar que a cultura, uma vez produzida e usufruída coletivamente como um bem comum, transmitida livremente de geração em geração, circula hoje majoritariamente em forma de mercadoria. Justamente no momento em que as possibilidades técnicas permitiram à cultura que circulasse rapidamente, sem barreiras e com baixo custo –é exatamente o momento em que ela se encontra mais limitada. Percebeu-se o potencial de lucratividade da criação de escassez artificial precisamente neste tempo de abundância informacional que é como o presente.

Em uma paráfrase a Jean-Jacques Rousseau, Mckenzie Wark afirma sobre a informação o mesmo que se poderia afirmar a respeito da cultura: “A informação quer ser livre mas por toda parte se vê acorrentada“. [Em “A Hacker Manifesto“, ótimo livro de McKenzie Wark que reflete sobre tecnologia, propriedade intelectual e filosofia em um texto que remete, principalmente na forma, ao clássico “A Sociedade do Espetáculo“, de Guy Debord – sem tradução para o português ainda]

O capitalismo, sabidamente estruturado sobre contradições, encontrou formas de modular essa relação entre liberdade e privação de forma a rentabilizar o processo. Para compreendê-lo, é útil a distinção feita por Maurizio Lazzarato entre “criação” e “produção”. De acordo com o autor, o primeiro está mais ligado à criação de novos mundos, enquanto o segundo diz respeito à replicação de cópias desses mundos efetuados para sua monetização na forma de mercadoria. Assim, afirma: o “nascimento do capitalismo é sobretudo uma luta contra a infinidade de mundos possíveis que o precederam e o ultrapassaram” (Lazzarato em  “As revoluções no Capitalismo“, p. 188, PDF). E qual a melhor forma de falar dessa liberdade da cultura, senão demonstrando que historicamente, apesar das diversas tentativas de seu enclausuramento, sempre houve movimentos contrários que advogaram sua liberdade?

A afirmação categórica e precisa do título deixa evidente sua posição: a cultura é livre, e essa característica quase ontológica, ainda que negada de tempos em tempos, não se deixa sucumbir por completo.

A cultura pode ser compreendida como o último limite adentrado pelo crescente processo de commoditização da vida. A gradativa transformação dos diversos aspectos da experiência em propriedade privada se iniciou na terra, passou pelo capital e hoje encontra na cultura sua commodity central. Isso porque, em um processo de crescente abstração da forma-mercadoria, nota-se o incrível potencial de extração de valor em uma cooptação parasitaria da produção de cultura. Ao invés de precisar investir na produção, agora se torna possível capturar a cultura, que é produzida naturalmente pelo intelecto geral (general intellect) e lucrar com sua circulação. “Seu poder reside no monopólio da propriedade intelectual –patentes, direitos autorais e marcas registradas –e os meios de reproduzir seu valor –os vetores de comunicação. A privatização da informação se tornou o aspecto dominante, e não subsidiário, da vida ‘commoditizada’ (Wark, 2004, p. 25, tradução nossa)”.

Capa do Livro de McKenzie Wark, de 2004

Por meio de uma série de exemplos, Foletto nos mostra como boa parte daqueles que até hoje são reconhecidos como gênios inventores das maiores tecnologias não foram os responsáveis propriamente pelas invenções, mas apenas tiveram o capital financeiro e político para obter sua patente para produção em escala. Logo, deve-se desmistificar a visão de gênios solitários trabalhando em suas oficinas quando, por iluminação sobrenatural, obtiveram êxito na criação de invenções. A história real é menos solitária e muito mais social, tem pouco de inspiração espiritual e muito mais de disputas materiais.

A China, em especial até a modernidade e por influência do confucionismo, valorizava-se a tradição que incentivava, na educação infantil, a memorização e a cópia, o que colocou em contradição os direitos de propriedade intelectual com os valores morais tradicionais. Por essa valorização maior da transmissão do que da inovação, chegava-se a atribuir a ausência da percepção de uma cópia não pela ausência de atribuição da autoria, mas por ignorância daquele que consome a obra.

Em outras culturas, como algumas ameríndias estudadas por antropólogos como Marcel Mauss e Eduardo Viveiros de Castro, também se pode encontrar cosmovisões que se colocam radicalmente em oposição às concepções de direitos autorais. Como proteger obras em contextos em que a criação é entendida como um processo que envolve inclusive agentes não-humanos? E em que a concepção de que as transações não se esgotam na troca física de moedas ou mercadorias, mas representam apenas uma etapa de uma relação duradoura entre os agentes? Essa diferença radical apresentada por Foletto nos ajuda a tomar consciência do quão arbitrárias e contingentes são as concepções que sustentam os direitos autorais tradicionais.

 

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