Geert Lovink – BaixaCultura https://baixacultura.org Cultura livre & (contra) cultura digital Wed, 10 Sep 2025 14:34:06 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.0.10 https://baixacultura.org/wp-content/uploads/2022/09/cropped-adesivo1-32x32.jpeg Geert Lovink – BaixaCultura https://baixacultura.org 32 32 Capitalismo, semiótica e as subjetividades do fim: entrevista com Alessandro Sbordoni https://baixacultura.org/2025/09/10/capitalismo-semiotica-e-as-subjetividades-do-fim-entrevista-com-alessandro-sbordoni/ https://baixacultura.org/2025/09/10/capitalismo-semiotica-e-as-subjetividades-do-fim-entrevista-com-alessandro-sbordoni/#respond Wed, 10 Sep 2025 14:25:14 +0000 https://baixacultura.org/?p=15913 Em julho de 2025, o italiano radicado em Londres Alessandro Sbordoni esteve no Brasil para o lançamento de “Semiótica do Fim – Capitalismo e Apocalipse”, pela editora SobInfluencia. O livro, como já comentamos no texto de apresentação, é uma coletânea de 13 ensaios que investiga como o fim do mundo se tornou apenas mais um signo do “semiocapitalismo”. A tese – se podemos assim chamá-la num texto tão aberto a provocações e leituras distintas – é que o fim do mundo é “apenas mais um signo” do semiocapitalismo: o apocalipse, tal como tradicionalmente concebido, não ocorrerá porque já está em curso permanente. Não há mais diferença entre o fim do mundo e o próprio capitalismo: ambos se reproduzem incessantemente segundo a lógica semiótica do capital, diz Sbordoni. Seu livro, então, se apresenta como um manifesto que nos convida a pensar sobre o que significa “fim” hoje.

Em 17 de julho de 2025, um dia antes do primeiro lançamento do livro [na sede da editora SobInfluencia, na Galeria Metrópole, referência cultural e artística do centro de São Paulo; veja íntegra do evento aqui], conversamos com Alessandro num restaurante amazônico dentro da galeria. Pelo BaixaCultura, Leonardo Foletto e Rafael Bresciani, com participação de Rodrigo Côrrea, editor e designer da SobInfluencia. Entre Cupuaçú amigo (a versão local do drink “Caju Amigo”) e Tacacás (a famosa “sopa” amazônica, com jambu e tucupi), a conversa foi de “Semiótica do Fim” às relação entre cultura alta e baixa, anti-assombrologia, revistas digitais como espaços de encontro intelectual, underground, tecnologia, teoria contemporânea. Abaixo uma versão editada da conversa. Originalmente em inglês, também foi publicada no Institute of Network Cultures (INC) de Amsterdam.

BaixaCultura: Para começar: como surgiu a ideia do livro? Em que contexto foi produzido? Conte um pouco mais sobre sua trajetória na escrita do livro.

Alessandro: Em 2020/2021, li “Fenomenologia do Fim” de Franco Berardi. Ao lê-la, achei a abordagem sobre o capital e o capitalismo muito intrigante, algo que ficou na minha cabeça por um tempo. Eu tinha acabado de escrever outro livro sobre algo completamente diferente, mas sabia que queria fazer algo assim. Alguns meses depois, escrevi um ensaio, que é o primeiro do livro, com um subtítulo diferente, mas o título principal era “Semiótica do Fim”. Eu não sabia o que sairia daquilo; era sobre tédio e o fim do mundo. Publiquei no Blue Labyrinths, a primeira vez que publiquei lá. Alguns meses depois, publiquei outro ensaio, novamente com o mesmo título e um subtítulo diferente, e depois o terceiro ensaio. Assim, pouco a pouco, tudo começou a se encaixar. Obviamente, o título “Semiótica do Fim” é uma referência a “Fenomenologia do Fim”, e pensei que faria algo similar.

Então, o livro surgiu organicamente. Pouco a pouco, comecei a perceber que queria misturar a ideia de semio-capitalismo como uma forma de analisar, criticar e ir além da ideia de realismo capitalista em Mark Fisher, que é o núcleo do livro.

BaixaCultura: Você é filósofo?

Alessandro: Eu não me consideraria… Há uma citação muito engraçada de Guy Debord, que disse: “Não sou filósofo, sou estrategista”. Me vejo assim: não sou filósofo, com certeza. Talvez seja estrategista, mas definitivamente me considero mais um teórico. A filosofia carrega toda essa bagagem cultural ocidental com a qual discordo totalmente em me identificar. Então me vejo como teórico, o que também traz certas questões, como: não estou buscando a verdade no que escrevo. Vejo mais como um empreendimento político ou cultural, se preferir, mas não buscando verdade ou conhecimento. Tudo isso é nonsense.

BaixaCultura: Gostaria de perguntar sobre Blue Labyrinths e Charta Sporca, duas revistas digitais nas quais você está envolvido. Quando começaram?

Alessandro: Com Blue Labyrinths, tudo começou quando li os ensaios anti-assombrologia (anti-hauntology) do fundador do Blue Labyrinths, Matt Bleumink, sobre os quais queria falar, e eles formaram o último capítulo do livro. Depois de publicar alguns outros ensaios no Blue Labyrinths, nos tornamos bons amigos e, pouco a pouco, comecei a desempenhar um papel no conselho editorial do Blue Labyrinths junto com outra pessoa.

Para Charta Sporca, eu realmente queria publicar e fazer algo com eles. Os encontrei quando estava na Itália, fazendo minha graduação, e sempre apreciei a mistura de política, literatura e filosofia, tudo junto, que eles fazem.

BaixaCultura: Sobre Blue Labyrinths: que tipo de contribuições vocês buscam? E como a revista se posiciona dentro do panorama atual de publicações culturais e filosóficas?

Alessandro: Aceitamos qualquer submissão que consideremos interessante para nós. Se você ler a descrição, diz algo muito geral: “Uma revista online focada em filosofia, cultura e uma coleção de ideias interessantes.” E essa parte das “ideias interessantes” é o principal, porque todas as revistas e editoras tendem a admitir que focam em uma coisa, talvez porque seja mais fácil ou porque as pessoas têm entendimento limitado. Mas sempre publicamos coisas que esticam um pouco, e até publicamos algumas coisas com as quais tendemos a discordar em certa medida, até mesmo no nível político. Nada muito louco – nunca publicaria um texto fascista, tenho certeza. Mas houve discordâncias, e isso é interessante. Por exemplo, foi uma política muito boa porque atraímos todos aqueles escritores que não sabem onde mais publicar, porque todas as outras revistas são muito específicas, e se você não se encaixa, dane-se. Então, foi muito interessante. E não foi minha ideia; foi Matt, o fundador, que sempre teve essa mentalidade, e sempre gostei disso. E acho que fui atraído porque também na minha escrita faço isso: trago muitas coisas diferentes todas juntas.

BaixaCultura: E por que revistas? Você gosta de revistas digitais?

Alessandro: Pessoalmente, as vejo como uma espécie de “academia cultural”. É quase como um campo de testes ou, se quiser, um treinamento no sentido militar. É uma forma de treinar uma teoria para, então, expandi-la e desenvolvê-la em outros espaços.

BaixaCultura: Charta Sporca, para mim, parece engajar com teoria e cultura italiana contemporânea, incluindo seu próprio trabalho e figuras como Mark Fisher e Deleuze. Como editar essa revista influenciou seu próprio desenvolvimento teórico? E que papel você vê as revistas intelectuais e digitais desempenhando hoje, especialmente no seu caso? A história intelectual italiana tem uma enorme histórico, com Quaderni Rossi, Classe Operaia e A/Traverso, por exemplo, nos anos 1960 e 1970.

Alessandro: Imagine que a revista fosse um espaço com o qual você interage. Você vai lá frequentemente e vê o que as pessoas estão fazendo. E o que sai disso não é teoria ou ideia. Sim, você lê textos interessantes, e eles podem despertar algo, mas essa não é a coisa principal e mais importante. A coisa mais importante é que você conhece as pessoas e cria relacionamentos, como os que também estamos fazendo agora. Isso é algo que percebi nos últimos anos: a coisa mais interessante sobre escrever não é escrever, é conhecer as pessoas. É fazer parte de uma “comunidade”, por falta de palavra melhor – e não gosto da palavra “comunidade” porque quase exige ser definida. São encontros. Encontros com as pessoas que você conhece informam sua teoria, mas é eventual de certa forma. A teoria é secundária à realidade de encontrar alguém. Essas revistas são uma potencialidade em direção aos encontros.

BaixaCultura: E por que sites de revistas e não, por exemplo, redes sociais?

Alessandro: Bem, porque há uma certa autonomia na revista. E isso volta ao que eu estava dizendo sobre essas “ideias interessantes”. Você simplesmente recebe qualquer uma. Fico feliz em conhecer qualquer um que tenha algo interessante a dizer, especialmente se discordam.

BaixaCultura: Voltando ao livro. Ele abre com a declaração provocativa de que “o fim do mundo é apenas outro signo do semiocapitalismo.” Pode explicar o que o levou a essa conclusão e como desenvolve o conceito de semiocapitalismo como distinto das tradições de crítica do capital, como nos livros do Bifo, por exemplo? Se há diferenças ou não.

Alessandro: Definitivamente há diferenças. E sempre tomo todas essas ideias como pontos de partida. E, em certa medida, não estou tentando desenvolver o conceito de semiocapitalismo, mas acho que é um terreno interessante. E, na minha visão, o que aconteceu foi que, em algum momento, a diferença entre materialidade e imaterialidade, entre uma cultura baseada na produção e commodities reais – a dicotomia entre produção e reprodução, nos termos que coloco – foi abolida. E o mundo se tornou mais efêmero e imaterial,  apenas uma estrutura de signos. O interessante é que o capitalismo conseguiu se vincular à reprodução de signos e se reproduzir através de signos, independentemente do que os signos significam. Isso poderia ter sido um problema no passado. Por exemplo, o capitalismo entrando em um discurso radical e obtendo lucro disso, isso poderia ter sido uma contradição no sentido marxista. Acho que agora o discurso foi nivelado e qualquer coisa pode se transformar em capital; qualquer coisa pode ser uma forma de reproduzir capital. E a forma mais extrema disso é o fim do mundo. Porque o capitalismo se alimenta da reprodução até mesmo do seu próprio fim, o que achei que era um ponto de partida interessante por causa da ironia intrínseca. Não acho que haja contradição, mas há uma forte ironia e um forte sentimento de que deveria ser o ponto de partida para algo diferente. E estou tentando encontrar uma forma de abrir para esse novo começo, mas acho que temos que realmente pensar fora da caixa, porque tudo que está dentro da caixa é capital.

BaixaCultura: Você afirma que o apocalipse, como tal, não ocorrerá porque já aconteceu. Isso parece desafiar tanto narrativas religiosas quanto seculares de fim. Como situa essa afirmação em relação às nossas crises ecológicas e sociais que estamos vivenciando? E como podemos pensar sobre outras relações com o fim?

Alessandro: Há, novamente, uma piada triste sobre a catástrofe climática e o “fim sem fim” do capitalismo. Conforme a catástrofe continua, reproduz mais e mais capital, e porque reproduz mais e mais capital, continuará mais e mais rápido. E, paradoxalmente, as poucas imagens que agora temos – por exemplo, os incêndios florestais acontecendo ao redor do mundo – vão aumentar porque o capital vai aumentar, e o capital são essas imagens. E então, conforme o capital aumenta, o fim do mundo se aproxima. Não vejo, seguindo essa linha de raciocínio, um fim para o capital. Mas conforme começamos a nos relacionar com a cultura de forma diferente e começamos a ver que essas imagens não são nada além de capital, que a reprodução é o problema do que representam, essa será uma forma antiga de pensar. O problema é que, se o fim do mundo está se aproximando, ainda estamos produzindo conteúdo e ainda estamos produzindo de forma capitalista. Então, por um lado, uma solução poderia ser encontrar novas formas de produção, mas entramos em um novo paradigma, que chamo de re-produção. Muitos dos diferentes modos de produção-reprodução foram neutralizados.

Então, a única coisa que resta fazer é repensar onde estamos agora. E isso é algo a que Geert Lovink se refere em “Extinção da Internet“: temos que olhar para o abismo para superá-lo. E para mim, também é olhar para como isso nos faz sentir. E, paradoxalmente, falo sobre isso em termos de tédio em vez de ansiedade, porque estamos fartos disso. São 50, 60 anos de predições apocalípticas que não se concretizaram, porque o capital, como disse antes, continua se reproduzindo. Mas se redirecionarmos o conceito de fim e começo de uma forma metafísica – e é por isso que também estamos falando sobre filosofia. Podemos repensar o que significa estar no fim do mundo e o que significa o fim e o começo sempre coexistirem. Uma vez que entendemos isso, abrimos novos caminhos – e, em uma palavra simples, uma nova imaginação.

BaixaCultura: Seguindo essa ideia de fim e começo: geralmente pensamos sobre o progresso humano como marcos de sucesso. Quando as coisas acontecem positivamente, as marcamos. E um desses exemplos é quando, em nível pessoal, nos apresentamos como profissionais, usamos um Curriculum Vitae, que significa as coisas que fizemos na vida, os bons marcos de nossas vidas. Mas uma vez ouvi um psicólogo que defendia a ideia de um Curriculum Mortis, que é a ideia de que, quando reconhecemos os marcos do fracasso, somos capazes de superar esses fracassos. Então, essa visão é algo em que podemos confiar neste momento do Antropoceno e do capitalismo tardio? Usar um Curriculum Mortis da história humana como forma de abordar esse momento.

Alessandro: Há um artigo publicado recentemente em uma revista italiana por Christian Damato que fala sobre como o fracasso foi reintegrado no discurso do sucesso dentro de uma ideologia corporativa. E acho que é uma declaração muito sombria, mas acredito que meramente inverter o problema não o resolve, porque na minha forma de pensar, é uma questão de estruturas. Apenas reverter a estrutura não está criando uma nova estrutura, mas pode ser um meio para uma nova estrutura. Então, até mesmo enfatizar o fracasso poderia potencialmente ser um caminho para algo, mas não é suficiente.

Eu diria que o progresso só existe de acordo com um certo conjunto de critérios estabelecidos por uma cultura. E, de fato, a ideia de progresso no Ocidente foi muito criticada (por exemplo, por Jacques Derrida). Você sempre encontra um progresso constante se apenas decidir sobre os parâmetros certos para avaliá-lo. E acho, portanto, que a solução para esse problema é mudar as regras da questão. Não há como responder à pergunta “melhor ou pior” se é avaliada de acordo com os critérios do problema. Você precisa descobrir quais são as suposições metafísicas que precisam mudar. Talvez nos tornemos cínicos sobre isso. Mas acredito em algo que Tiqqun diz no primeiro ensaio de sua primeira edição: que política é metafísica, e uma nova política demanda uma nova metafísica; não deveríamos ter vergonha de falar em metafísica só porque as ideias de algum metafísico nazista se tornaram muito influentes.

BaixaCultura: Em diálogo com essa questão, você às vezes posiciona seu trabalho em contraste com o realismo capitalista de Mark Fisher. Propõe, em seu livro, um manifesto para a imaginação de outra relação com o fim. Como seu conceito de anti-assombrologia difere do dele? E como essa outra relação se parece na prática?

Alessandro: A ideia original de anti-assombrologia foi desenvolvida por Matt Bluemink antes de eu conhecê-lo. Depois, continuei o que ele fez tomando como seu texto como ponto de partida e depois construindo minha própria direção. E temos algumas discordâncias sobre como os conceitos poderiam ser aplicados. Sobre a diferença entre assombrologia e antiassombrologia, isso foi discutido no debate entre Matt Bluemink e Matt Colquhoun, que Matt Bluemink publicou seu primeiro ensaio. Matt Colquhoun respondeu, e então houve um vai e vem que aconteceu em 2021. Matt Colquhoun criticou a ideia de fazer essa distinção entre assombrologia e anti-assombrologia porque ela mesma é “assombrológica”. E acho que essa é uma crítica, digamos, injusta.

[Nota da edição: “Assombrologia” – nos termos de Mark Fisher desenvolvido sobretudo em “Fantasmas da Minha Vida” (2014, no Brasil publicado em 2022) – seria o estudo da persistência de elementos do passado que “assombram” o presente, não numa visão nostálgica, mas sim como a manifestação de futuros perdidos ou potenciais não realizados, especialmente no contexto do capitalismo tardio . A anti-assombrologia proposta por Bluemink e Sbordoni seria uma ideia de pensar para além dos fantasmas que assombram o presente. Como Bluemink escreveu em 2021, “Se a assombrologia é a lógica do desespero, então a antiassombrologia pode ser vista como a lógica da esperança”.]

Essa crítica segue uma lógica pós-estruturalista típica: toda oposição não pode ser claramente estabelecida como oposição, porque todo conceito contém dentro de si sua negação e assim por diante. Mas esse é precisamente o tipo de problema que tentei superar. Por isso, decidi simplesmente impor a distinção entre assombrologia e antiassombrologia, mesmo que isso signifique fazer uma certa violência teórica ao abandonar a filosofia em favor da teoria. Às vezes você precisa defender uma posição sabendo que ela não pode ser “provada” no sentido filosófico clássico – o importante é que existe uma potencialidade real para o novo, e meu trabalho é tentar tornar essa potencialidade concreta na realidade.

Na prática, o que a antiassombrologia faz- e isso é algo que Matt Colquhoun diz – é usar a cultura para recuperar a esperança de que o novo ainda pode acontecer. Mais do que isso: o novo já está acontecendo através do nosso próprio trabalho teórico e cultural. Essa mudança pode se espalhar para qualquer área da experiência humana – você só precisa estabelecer as bases metafísicas adequadas.No primeiro capítulo do livro, escrevo que “hoje, nada é possível porque nada é impossível” – ou seja, vivemos numa paralisia onde tudo parece ao mesmo tempo bloqueado e em aberto. Mas essa frase também pode ser invertida: se nada é impossível, então tudo volta a ser possível. Não se trata de inventar soluções mágicas do nada, mas de transformar a forma como as pessoas percebem e se relacionam com o mundo. É uma mudança de subjetividade que pode emergir aparentemente “do nada”, mas que tem efeitos muito concretos.

A aplicação prática da antiassombrologia funciona similar à arte, que tem esse paradoxo interessante: ela transforma nossa visão de mundo sem alterar diretamente as condições materiais do mundo. Quando você vê uma obra de arte poderosa, sua visão de mundo muda e novas possibilidades se abrem – mas aparentemente “nada” mudou no mundo físico. Ao mesmo tempo, “tudo” mudou, porque sua subjetividade foi transformada.

Esse é o ponto central: o problema não é fundamentalmente material, é subjetivo. Quando pensamos que enfrentamos apenas problemas materiais na verdade estamos lidando com uma crise mais profunda de subjetividade. É nossa forma coletiva de perceber e se relacionar com o mundo que determina como interpretamos esses problemas “materiais”. Os problemas concretos podem ser resolvidos, mas primeiro precisamos recuperar, como coletivo, nossa capacidade de controlar e dar sentido à realidade.

BaixaCultura: Guattari, em 1993, em seu livro “Caosmose“, fala de estética como forma de ressignificar a subjetividade diante de questões sociopolíticas. Citando-o: “Não se pode conceber uma disciplina internacional neste domínio sem trazer uma solução aos problemas da fome mundial e hiperinflação no terceiro mundo”. “A única finalidade aceitável das atividades humanas é a produção de uma subjetividade que enriqueça o modo de continuidade e suas relações com o mundo”. Então, ele está tentando dizer que a estética cria influência nessa visão de mundo comum que se torna material.

Você acha que a contaminação da internet e das tecnologias digitais em nossa noção de estética, e a relação entre isso e o tecido sociopolítico, é uma forma de recriar e ressignificar esse canal, essa visão de mundo do contemporâneo? A arte é uma forma de alcançar essas mudanças?

Alessandro: Sempre penso que a subjetividade, em certa medida, pode ser vista como um fim em si mesma. A questão não é: “Que tipo de mundo queremos?” ou “Que tipo de futuro queremos?”. Na verdade, deveríamos pensar na subjetividade como o meio para chegar a um fim. Mas ainda não sabemos qual é esse fim, porque ainda não chegamos ao verdadeiro começo. E isso é algo, a propósito, que Baudrillard faz e é criticado por isso, porque nunca apresentou uma visão de como poderíamos superar o capital, nunca oferecia soluções concretas. Mas a solução é exatamente a subjetividade. Não no sentido de que uma nova subjetividade surge e o mundo se transforma imediatamente, mas porque o problema é fundamentalmente uma questão de potencialidade. Uma vez que essa potencialidade está disponível, tudo pode se desdobrar – ou não.

Mas também acho que a filosofia, especialmente, tem uma certa arrogância ao tentar moldar o mundo diretamente, e isso faz parte do problema. Porque é exatamente isso que a ciência faz, que o Estado faz, e não quero me envolver com essa lógica. Por isso, pode parecer que permaneço no abstrato, mas na verdade penso no sentido mais material possível: a partir da subjetividade.

Então concordo com tudo que você disse. Talvez a crítica seja que o que estou propondo é muito simples. Se você observar a arte, ela não muda as coisas diretamente, mas faz as pessoas olharem para o mundo de forma diferente. A arte reformula o problema, e reformular o problema já é parte da solução.

BaixaCultura: Sim, Guattari falou isso em 93, você disse antes, certo? Faz 40 anos que estamos discutindo isso e não está terminando. Há uma saída?

Alessandro: Acho que a coisa mais importante que mudou é como podemos ativar novas subjetividades mais rapidamente, em uma escala muito mais ampla e global. Sempre penso no que faço nesses termos: quantas pessoas posso alcançar de uma só vez e como elas podem ser imediatamente transformadas.E também como isso é perigoso para o sistema, podendo tanto facilitar mudanças quanto impedi-las mais facilmente. Isso é o que mudou nos últimos trinta anos – pelo menos uma das coisas mais importantes que mudaram.

BaixaCultura: Você fala sobre cultura, música, arte. Sua análise vai de Britney Spears ao K-pop e a internet. Como você conecta objetos culturais tão diversos e, na sua opinião, o que eles revelam sobre nosso momento contemporâneo?

Alessandro: Estou muito interessado na conexão entre o que no mundo anglófono chamamos de “cultura erudita” (alta cultura) e “cultura popular” (baixa cultura). E em como, especialmente no mundo anglófono, essa conexão é frequentemente cortada, criando uma divisão entre elas. Existe uma separação entre Heidegger e Britney Spears. Mas me interesso por Britney Spears e frequentemente penso sobre ela de forma talvez “hiperintelectual”.  Porém, não acho que as duas coisas sejam realmente distintas por causa da estrutura do semiocapital. Tudo está no mercado ao mesmo tempo, e essas distinções antiquadas entre cultura alta e baixa estão sendo abolidas. E creio que estão sendo abolidas pelo que chamo de “cultura trash”.

Se nos séculos 19 e 20, o kitsch tentou fazer a ponte entre a cultura da classe trabalhadora e a cultura da classe média, agora temos cultura trash. A internet, em particular, tem sido a tecnologia do trash. E trash, por definição, é aquilo que destrói a distinção entre o alto e o baixo, o bom e o ruim, e assim por diante…

Pessoalmente, acho que restabelecer essa conexão – que ainda está bastante aberta a várias “assemblages” – é um terreno fértil para novas formas de imaginação. Aqui, imaginação é algo que defino especificamente como a reconstrução de conexões entre subjetividades e cultura. Então, ao fazer uma piada conectando Kanye West e Hegel, digamos, você pode encontrar novas formas de refazer a assemblagem que constitui a cultura e descobrir novas expressões de subjetividades. Estou sendo muito otimista sobre isso, mas acho que ainda é algo que permanece aberto para teorização e politização.

Alessandro tomando um Tacacá

BaixaCultura: Queríamos perguntar sobre as diferentes perspectivas da geração de Mark Fisher e sua geração, nascida no final dos 1990 e início dos 2000. A percepção do fim ou da simulação do apocalipse, por exemplo: é diferente para nós? É interessante ou uma simulação?

Alessandro: Há uma citação de Grafton Tanner – que talvez faça parte de uma geração mais jovem de escritores – que fala que nos anos 2010, Mark Fisher e Simon Reynolds pensavam que havia uma crise para imaginar o passado e o futuro. Isso estava acontecendo nos anos 2010, mas agora a crise é para imaginar o presente. Então, acho que se tornou abrangente, e a crise da imaginação, que de alguma forma ainda era parcial na época de Mark Fisher, se generalizou, e muitas de suas afirmações se tornaram ainda mais fortes.

Mas o que mudou é que as pessoas não podem mais ignorar isso. E ainda é muito relevante que Mark Fisher continuse sendo o filósofo mais conhecido dos últimos 20 anos. Mas, ao mesmo tempo, também acho que a nova geração – e sim, talvez me inclua nesse grupo – está começando a entender que as regras foram mudadas pelo próprio problema. Pessoalmente, penso que a questão é sobre reinventar a imaginação, o que parece algo muito ambicioso. Mas também vejo que no uso da tecnologia se cria novas relações entre si mesmas e a cultura e, portanto, criando novos imaginários. O que não significa novas realidades, novos futuros, novas visões de mundo, mas novas práticas. E a velocidade com que isso está acontecendo está aumentando.

E acho que, após a morte de Mark Fisher em 2007, isso começou a acelerar além do controle do que poderia ter sido o capitalismo tardio antiquado. Agora vivemos no capitalismo tardio demais. Isso também significa que a temporalidade está encolhendo, e a imediatez está cada vez mais assumindo a liderança na relação com o capital. E isso é de certa forma benéfico.  Então, mesmo se você pensar sobre para que a inteligência artificial é realmente usada, é para fazer transações mais rápidas. Esta é a aplicação principal: encontrar formas de fazer a economia funcionar ainda mais rapidamente do que já funciona. Mas isso também está afetando nossa relação com a tecnologia, e está se afastando do controle biopolítico antiquado, acho, em certa medida, porque o número de relações, nós e circuitos está apenas aumentando agora. E as potencialidades também estão aumentando. Em geral, diria que sou mais otimista, e não vejo muito desse otimismo por aí, mas prevejo que continuará aumentando.

BaixaCultura: Você tem alguma relação com o aceleracionismo, em especial, Nick Land? Há um artigo sobre ele em Blue Labyrinths.

Alessandro: Nick Land é um caso estranho. Estou interessado nele tanto quanto alguém pode estar interessado no diabo. O que quero dizer é que o Diabo realmente foi um argumento cultural importante no que poderia ter sido o ideal na Idade Média, e Nick Land é o Diabo no capitalismo. Há algo muito interessante para mim na mudança que aconteceu no pensamento entre os escritos da primeira fase de Nick Land e a segunda fase, na qual ele se inclinou cada vez mais para a direita e novas direções, novos movimentos reacionários, e assim por diante. E estudando isso, estou começando a perceber que o que tenho definido como subjetividade também traz consigo uma certa ética – ética, que é uma palavra que você nunca encontra em Semiótica do Fim. Mas Nick Land é definitivamente alguém que não pensa em termos de ética ou moral, porque pensa no capital como uma agência inorgânica anônima. Pelo contrário, vê o ser humano como uma “ficção” ética e biológica produzida pelo capital.

Mas ele não pensa, nem por um momento, que isso poderia ser parte de uma “ideologia”, porque “ideologia” não é o termo certo a usar – uma palavra mais correta aqui seria paradigma. De qualquer forma, ele vê o capital como metafísica, mas metafísica é um paradigma, mesmo na conotação científica do termo. Então, é uma mudança de paradigma; é uma revolução metafísica no mundo. Quando o Sol não está mais no centro do universo, o mundo é completamente diferente, mas nada realmente mudou; quando o capital não está mais no centro de nossas relações, tudo é igual, mas tudo é diferente. Então, Nick Land nunca considera a possibilidade – e o critico por não levar o nível semiótico a sério, o que significa que o nível semiótico é manipulável, mas pode ser construído diferentemente. Então, estou interessado nisso, mas acho que seu ponto de vista é limitado.

BaixaCultura: Então você não é satanista? Se ele é o diabo…

Alessandro: Sou como um teórico do satanismo haha

BaixaCultura: Outro autor, Andrea Colamedici, o autor por trás de “Hipocracia”, identificado como de Jianwei Xun [veja esse texto para entender a polêmica].  Ele parece acreditar que estamos em um momento de fragmentação de nossa presença online em tantas camadas de presença online e offline e tudo mais… E ele meio que aponta na direção de que devemos aprender a coexistir em todas essas camadas, como uma presença viva aqui, mas também uma presença viva na rede social ou no grupo do WhatsApp ou no avatar, e em todas essas esferas de relações.

Então, como você conceitua a fragmentação como uma forma de prosperar neste momento de incerteza? No livro, ele tenta vender a ideia de que devemos saber que estamos em todos os lugares ao mesmo tempo. Por exemplo, quando fala sobre isso, ele traz a ideia de simulação real. Hoje, é tudo simulado e tudo é real ao mesmo tempo: isso é real e seu avatar é real e seu Instagram é real – tudo é real e, ainda assim, é uma simulação ao mesmo tempo. Mas não podemos nos perder.

Alessandro: Entendo. Acho fascinante, mas a escala na qual essas suposições são feitas é uma escala que, politicamente, não é muito operacional. Existem diferentes escalas. Então, em escala microscópica, na escala mineral – tomemos um computador como exemplo. Um computador tem várias escalas. Então, na escala microscópica, há luz passando pelos cabos, e na escala da partícula, não há política. Há muito pouco que você poderia fazer além de teorias sobre o que é luz e física quântica, e assim por diante; é muito difícil fazer uma mudança significativa nesse nível. Em um nível mais alto, há mais ou menos o que você está falando: um nível do habitus social que você assume na interação com o computador; esta é a escala social. E acho que, embora seja uma escala muito real, não é muito operacional. Agora, entre a luz na fibra óptica e o habitus social, há uma relação. O que media essa relação é o capital, porque é o capital que está pagando pelos cabos que conectam as luzes; por meio dele, você pode se ver no computador e tentar aprender com ele. Aqui, estou interessado no que chamo de medium, segundo minha própria interpretação: trata-se do que está acontecendo no meio. Certamente, o que está acontecendo no meio é muito real, mas também é o que reproduz a simulação.

Então, talvez aqui eu inverta as regras: em suas circunstâncias imediatas, você pode reconceituar sua relação e interagir com o computador de forma diferente, e até mesmo mudar o tipo de fibras ópticas que usa, afetando a relação agindo do nível mais alto para o mais baixo, e vice-versa. Em Semiótica do Fim, frequentemente faço esse tipo de salto das alturas. No capítulo sobre teoria da informação do livro – “Overdrive e significado” – um dos capítulos centrais do livro, escrevo sobre a estrutura da informação, que é uma teoria muito abstrata, mas como elemento político. Mas não há nada intrinsecamente político nos bits de informação. Há algo político apenas na relação. Mas se você foca apenas em um nível…

Para resumir, poderíamos dizer que o elemento interescalar é muito político, e tento atuar sobre ele. Mas se você pensa apenas em uma escala, pode ser complexo. Para acrescentar outra coisa, há uma tendência nas teorias da mídias que é interessante discutir: a pura materialidade dos recursos sendo usados. Por exemplo, Atlas da IA, de Kate Crawford, fala sobre os recursos, a materialidade do mapeamento do mundo e assim por diante. Mas ela conceitua isso como algo intraescalar. O que acho interessante é o elemento interescalar, onde ela também escreve sobre o que o software está fazendo; ela tenta conectar tudo, mas falando de apenas um nível. E há uma série de ações que podem ser muito locais, enquanto o global acontece entre as escalas. Isso poderia ser algo que percebi depois de escrever o livro – você também não encontrará a palavra “escala” nele, mas isso é o que acontece com os livros: você retrospectivamente chega a boas ideias que não escreveu.

BaixaCultura: Então, você meio que pensa que essa visão é “enganar a máquina”?

Alessandro: A solução deve estar na relação. Mas se você pensa sobre a pura materialidade, parece que o social é uma materialidade, como gestos e práticas, e essas coisas podem ser mudadas, mas não em um nível muito individual e mínimo local. Então, não é a melhor forma de abordar, acho.

Queria falar mais sobre o contexto de Charta Sporca. Vivendo na Itália e vindo do exterior, faz cerca de onze anos que estou aqui [Londres]. Tenho a impressão de que a cultura italiana cria uma materialidade diferente para a cultura underground. Não tenho certeza se essa é a palavra certa. Deixe-me seguir o que escrevi. Viver na Itália me dá a impressão de que muito do que é criado em diferentes realidades nas diferentes cidades italianas permanece, porque há uma espécie de resistência ao sistema e à sistematização. É como se o underground resistisse a se tornar mainstream por muito tempo. Se você vai a Bolonha, vê lojas que vendem quadrinhos há quarenta anos e não querem crescer. Então, você tem uma cultura de cenas espalhadas por todo o país, e as pessoas ainda as fazem e não querem publicá-las.

BaixaCultura: Como italiano que vive no exterior, você vê isso da mesma forma? E se sim, como a Charta se envolve com essa dimensão de conhecimento não institucionalizado que continua emergindo por toda a Itália? Ela se envolve ou não?

Alessandro: Sim. E mais em geral sobre a Itália, acho que a questão é sobre a economia dos corpos. A economia capitalista não é um padrão da economia: pense, por exemplo, em uma cidade antiga na Itália, como Trieste ou Bolonha. Mas conforme você se aproxima da metrópole, até Milão, e conforme vai subindo e vai para Paris, então a economia dos corpos e a economia real começam a se fundir uma na outra. Há um certo grau de hipnose acontecendo ali.

E acho que as pessoas só conseguem resistir quando não nascem dentro disso. É muito difícil recuar da metrópole se essa é a única realidade que você viu. Da mesma forma que vamos a uma floresta e, se não nascemos na floresta, não olhamos para a floresta de uma forma “natural”. Nossa visão é moldada pelo ambiente artificial da cidade, e por isso perdemos a capacidade de ver a natureza como ela realmente é – diferentemente de quem cresceu em contato direto com ela. O mesmo acontece com quem nasce e vive sempre na metrópole: essa pessoa desenvolve uma percepção distorcida do tempo e dos relacionamentos humanos. Para ela, as formas mais naturais de viver – aquelas que existem fora do ambiente metropolitano – parecem estranhas ou até impossíveis.

O coletivo francês Tiqqun tem uma distinção muito interessante e radical sobre a vida fora da metrópole: eles dizem que a metrópole é irrecuperável. Não há mais nada para salvar da metrópole. Você deveria apenas convencer as pessoas na metrópole a se afastarem dela e nunca voltarem. Não há como mudar o capital e o capitalista, mas você pode permitir que as pessoas vejam que há uma saída, se quiserem.

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Um Manifesto Hacker e Extinção da Internet na Cryptorave https://baixacultura.org/2024/05/02/um-manifesto-hacker-e-extincao-da-internet-na-cryptorave/ https://baixacultura.org/2024/05/02/um-manifesto-hacker-e-extincao-da-internet-na-cryptorave/#respond Thu, 02 May 2024 14:15:36 +0000 https://baixacultura.org/?p=15643

 

Se uma outra internet – mais próxima à que acreditávamos nos anos 2000, descentralizada, menos vigilante, mais das pessoas do que de empresas e robôs – não é mais possível, como ela será? Viveremos numa distopia com pessoas trabalhando precariamente para inteligências artificiais criarem conteúdo para entupir os dutos das redes sociais? Como Geert Lovink se pergunta no livro: o que pode consistir a vida depois que nossas mentes frágeis não forem mais atacadas pelos efeitos entorpecentes e deprimentes de descer a barra de rolagem do apocalipse (doomscrolling)? Ou como Mckenzie Wark também questiona: podemos nos esconder e encontrar uma relação com a técnica em que podemos pelo menos minimizar a captura de nossas energias hacker e obter algum prazer em formas de trabalho inútil?

A partir dos recém-publicados (2023) livros “Um Manifesto Hacker“, de Mckenzie Wark, e “Extinção da Internet“, de Geert Lovink, a mesa vai debater as transformações ocorridas na cultura da internet nos últimos anos e as consequências tanto para a disputa tecnopolítica quanto para as pesquisas relacionadas à internet hoje. A proposta é também resgatar uma parte da história da cultura da internet até aqui para propor exercícios de futurologia, tanto do ponto de vista do que devemos ficar atentos nos próximos tempos como o que devemos pesquisar para que a distopia não traga paralisia. Será às 10h, no terraço da Biblioteca Mário de Andrade, centro de São Paulo, SP.

Com:
_ Leonardo Foletto: Professor e pesquisador (FGV ECMI), editor do BaixaCultura e cartógrafo dos fins da internet;
_ Rafael Grohmann: Professor de estudos críticos de plataformas da Universidade de Toronto, diretor do Digilabour e trabalhador internacional de karaokê;
_ Adriana Amaral: Professora e pesquisadora do programa de pós-graduação em comunicação da UNIP-SP, coordenadora do CULTPOP (Laboratório de Pesquisa em Cultura Pop, Comunicação e Tecnologias);_ Moderação:
_ Tatiana Dias, jornalista e editora-executiva do The Intercept Brasil;

A programação completa está excelente e pode ser vista no site. Como nos últimos 6 anos, estaremos lá também para acompanhar o evento e produzir um relato depois.

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Extinção da Internet no Rio de Janeiro https://baixacultura.org/2024/04/05/extincao-da-internet-no-rio-de-janeiro/ https://baixacultura.org/2024/04/05/extincao-da-internet-no-rio-de-janeiro/#respond Fri, 05 Apr 2024 16:01:03 +0000 https://baixacultura.org/?p=15628 Na próxima quinta-feira (11/4), 18h, vai acontecer um debate de lançamento do “Extinção da Internet”, de Geert Lovink, no Rio de Janeiro. Será na Livraria da Vinci (Av. Rio Branco, 185 – Subsolo), no Centro da cidade, com a presença de:

_ Leonardo Foletto, autor do prefácio e editor do BaixaCultura, professor e pesquisador (FGV ECMI);
_ Debora Pio, doutoranda em Comunicação e pesquisadora do MediaLab UFRJ;
_ Joana Varon, fundadora e diretora-executiva da Coding Rights, afiliada ao Berkman Klein Center for Internet and Society em Harvard;

A proposta da mesa é debater as utopias e distopias da internet nos últimos anos a partir das provocações presentes no livro de Geert. Como salvar o “tecnossocial” das mãos do Vale do Silício e do controle estatal, sem cair no romantismo offline ou no comunalismo defensivo e voltado para dentro? Será que uma outra internet — descentralizada, menos vigilante, mais das pessoas do que de empresas e robôs, transfeminista, decolonial e antirracista — ainda é possível?

Extinção da Internet”, o livro, não é apenas uma fantasia de fim de mundo da tecnologia digital que um dia será exterminada por um pulso eletromagnético ou pelo corte de cabos. Em vez disso, marca o fim de uma era de possibilidades e especulações, quando a adaptação já não é uma opção. Como pergunta Geert: “O que deve ser feito para defender o inevitável? Precisamos de ferramentas que descolonizem, redistribuam valor, conspirem e organizem. Junte-se ao êxodo da plataforma, é hora de atacar a otimização. Existe beleza no colapso”.

Além de convocar os leitores a examinar o status atual da internet, o livro tenta pensar, criativamente, em alternativas bifurcativas. Para isso, usa memes, cita fóruns da internet, ativistas conhecidos e chama um time de pensadores que estão, quase todos, se debruçando hoje sobre a relação do capitalismo neoliberal com a tecnologia digital.

Professor da Universidade de Amsterdam de Ciências Aplicadas, Geert Lovink tem um longo histórico no ativismo midiático e ciberativista europeu. Membro fundador da rede Nettime (1996), é diretor do Institute of Network Cultures, em Amsterdam, e autor de livros como “Networks Without a Case” (2012), “Social Media Abyss” (2016), Sad by Design (2019, em tradução para o português) e Stuck on the Platform (2022).

O livro é o primeiro da coleção “Âncoras do Futuro”, organizada pela Funilaria e o BaixaCultura, com publicações que buscam politizar o mal-estar que nos acomete hoje sobre os rumos da internet e das tecnologias digitais. Os próximos lançamentos da coleção estão marcados para o segundo semestre de 2024. Ele pode ser aquirido e/ou baixado aqui.

Uma transcrição automática, sem edições, via PinPoint, da conversa pode ser vista aqui.

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A Extinção da Internet https://baixacultura.org/2023/11/20/a-extincao-da-internet/ https://baixacultura.org/2023/11/20/a-extincao-da-internet/#comments Tue, 21 Nov 2023 02:10:24 +0000 https://baixacultura.org/?p=15477  

Será que uma outra internet — uma mais próxima à que acreditávamos nos anos 2000, descentralizada, menos vigilante, mais das pessoas do que de empresas e robôs — ainda é possível? “Extinção da Internet”, de Geert Lovink, é um esforço para tentar responder a esta pergunta. Geert convoca os leitores a examinar o status atual da internet para se pensar, criativamente, em alternativas bifurcativas. Para isso, usa memes, cita fóruns da internet, ativistas conhecidos e chama um time de pensadores que estão, quase todos, se debruçando hoje sobre a relação do capitalismo neoliberal com a tecnologia digital. Professor da Universidade de Amsterdam de Ciências Aplicadas, Geert Lovink tem um longo histórico no ativismo midiático e ciberativista europeu. Membro fundador da Nettime (1996), é diretor do Institute of Network Cultures. Escrevi o prefácio e acompanhei o processo de tradução, já que ele faz parte de uma coleção que estamos organizando aqui no BaixaCultura, em parceria com a Editora Funilaria, com livros que buscam politizar o mal-estar que nos acomete hoje sobre os rumos da internet: Âncora do Futuro. Em 2024 vem mais livros! “Extinção da Internet” tem tradução de Dafne Melo, está em pré-venda e será lançado durante a Flipei neste mês de novembro de 2023. Com pequenas variações, segue abaixo o texto publicado como prefácio de “Extinção da Internet”, também republicado impresso no Jornal da Flipei e na Jacobin Brasil.

 

Construindo bifurcações na (história da) internet

Há alguns anos, ativistas, pesquisadores, filósofos e intelectuais comentam que a internet não é mais o que já foi. A esperança de construir um mundo mais justo via rede — com menos discriminação e mais respeito aos outros, com todos sendo também mídia, a partir de uma saudável proliferação de pontos de vista causada pela liberação do polo emissor da informação — tem dado lugar a um pesadelo de desinformação. Realidades paralelas são construídas a partir de informações mentirosas proliferadas em dispositivos acessados por, pelo menos, dois terços da população mundial, turbinadas por uma defesa por vezes absolutista da liberdade de expressão e pela plataformização de nossas vidas online.

A consequência tem sido conhecida: circulação de discursos de ódio e espalhamento de desinformação “como nunca antes na história”; captura ativa de nossa atenção e do nosso olhar, transformados em dados que, coletados em quase todos os lugares da rede, estão a serviço de poucas empresas que lucram cada vez mais oferecendo tudo para o nosso consumo; precarização das relações de trabalho a partir de novas formas de exploração do trabalho digital*, atomizada e globalizada também para tentar dificultar qualquer tipo de reação organizada dos trabalhadores; continuação das relações coloniais, agora a partir de um colonialismo digital (ou de dados), criado a partir de um processo de extração de valor que reproduz e amplia o racismo, incrustando também na técnica os vieses de raça (e gênero), em um fenômeno chamado de racismo algorítmico. Essa exploração também tem levado dados do sul global para o enriquecimento de empresas de tecnologia do norte, especialmente dos Estados Unidos e da Europa, o que também traz consequências para a soberania digital dos países que não constroem uma infraestrutura própria para armazenar e cuidar de suas informações, jogando conhecimento precioso de forma silenciosa em datacenters privados que não sabemos bem como funcionam, como no caso das universidades que adotam nuvens (“Não existe nuvem: é apenas os computadores de outras pessoas” diz o meme) das big techs. E isso é apenas um resumo: poderíamos falar também das consequências ambientais de um modo de vida conectado que demanda muita energia em um planeta cada vez mais quente e colapsado, ou dos efeitos psicológicos que a hiperexposição a telas e informações rasas que abundam nas redes sociais têm sobre o cérebro humano – mas, por hora, você já entendeu o que estou dizendo.

 

Diante de tudo isso, é inevitável pensar que, de fato, a internet deu ruim — ou, pelo menos, não cumpriu nossas expectativas de melhora global e pode estar acelerando os problemas do planeta. O que nos leva a um outro pensamento: o que vamos fazer diante desse colapso? Há alguns anos, muita gente tem diagnosticado esse cenário e tentado apontar caminhos, entre os quais se encontra o autor deste livro. A questão, hoje mais clara do que duas décadas atrás, é muito mais política e econômica do que tecnológica. E quando falamos nestas duas palavras — política e economia —, sabemos que toda e qualquer bifurcação não será fácil nem suave. “É mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”, como disse Mark Fisher, numa frase hoje bastante ouvida e que sintetiza bem a encruzilhada que nos traz o chamado Realismo Capitalista. Será que uma outra internet — uma mais próxima à que acreditávamos nos anos 2000, descentralizada, menos vigilante, mais das pessoas do que de empresas
e robôs — ainda é possível?

É a essa pergunta inquietante que buscamos, nesta coleção, tentar responder. Sem a pretensão de trazer respostas definitivas nem únicas, porque não existem. Mas com a esperança de politizar esse mal-estar que nos acomete para jogar luz a bifurcações possíveis — já existentes ou a serem criadas. Falar bastante do problema é um primeiro passo para tentar resolvê-lo, nos ensina a psicanálise. O livro que você tem em mãos, portanto, é o primeiro desse esforço. Geert Lovink, seu autor, é alguém que faz a crítica da internet tal como ela se tornou há algum tempo; já no final dos anos 1990, a partir do conceito de mídia tática (da qual é o seu principal proponente) e de uma corrente de estudos chamada net-criticism, apontava para os perigos da internet estar diretamente relacionada com a expansão do poder de empresas privadas em sua maioria oriundas de um único país, os Estados Unidos. Em coro com A Ideologia Californiana, , ensaio seminal (publicado em 1995) de Richard Barbrook e Andy Cameron sobre a tecnopolítica da rede, Geert aponta, há mais de 20 anos, também para a necessidade de criação de infraestruturas e redes autônomas, organizadas coletivamente e independentes de grandes empresas, para que não deixássemos o desenvolvimento, o controle e a inovação das tecnologias digitais em rede apenas na mão de um punhado de organizações privadas do Vale do Silício.

Geert Lovink

 

Professor da Universidade de Amsterdam de Ciências Aplicadas, Geert tem um longo histórico no ativismo midiático e ciberativista europeu. Membro fundador da Nettime — um grupo e uma lista de e-mails sobre cultura digital (ou networked cultures), política e tática que, desde 1996 (!), reúne uma série de pesquisadores, professores, teóricos e práticos europeus —, também fundou, em 2004, o Institute of Network Cultures, que trabalha com pesquisas e publicações ligadas a arte digital, cultura da imagem, design e publicação digital a partir de uma perspectiva interdisciplinar e crítica. É autor de livros como Networks Without a Case (2012), Social Media Abyss (2016) e Organization after Social Media (com Ned Rossiter) — todos sem edição brasileira, mas traduzidos para o alemão, espanhol e italiano. Nos últimos anos, Geert tem reforçado sua posição crítica ao que a internet se transformou em livros como Sad by Design (2019) e Stuck on the Platform (2022), nos quais ele analisa o crescimento das plataformas de mídias sociais e a relação do design pela qual foram feitas com a proliferação da desinformação, da circulação de memes tóxicos e discursos de ódio, da fadiga online a partir das telas (explorado durante a pandemia no chamado “zoom bombing”) e da adicção online.

Neste Extinção da Internet, ele segue nessa análise, agora de modo sintético e dialético, trazendo um resumo de suas principais questões atuais sobre essa “ressaca da internet”, como eu mesmo já a chamei em 2018. Provoca sua plateia — o texto parte de uma aula inaugural dada em 18 de novembro de 2022 na Universidade de Amsterdam — a examinar o status atual da internet para se pensar, criativamente, em alternativas de bifurcação. Para isso, usa memes, cita fóruns da internet, menciona ativistas conhecidos e chama um time de pensadores que estão, quase todos, se debruçando sobre a relação do capitalismo neoliberal com a tecnologia digital: há Bernard Stiegler, Franco “Bifo” Berardi, Tiziana Terranova, Donatella Della Ratta, Yuk Hui, mas também outros, como Mark Fisher, Jacques Derrida, Bertold Brecht e Walter Benjamin. De Stiegler, vem uma máxima que também percorre as intenções deste livro: “colocar os automatismos a serviço de uma desautomização negantrópica”. De Benjamin, um convite à uma tarefa de hoje: “escovar a história a contrapelo”. Propor bifurcações é uma forma de lutar contra o imobilismo do “não há nada a fazer”, que a leitura dos primeiros parágrafos dessa introdução pode sugerir. Geert faz, diversas vezes neste livro, perguntas para nos tirar dessa posição exclusivamente niilista e nos chamar à ação. Por exemplo: “Como transformar descontentamento e contra-hegemonia em uma verdadeira transição de poder nesta era da plataforma tardia? O que pode ocupar o vazio em nossos cérebros desfragmentados depois que a internet desocupar a cena? Em que pode consistir a vida depois que nossas mentes frágeis não forem mais atacadas pelos efeitos entorpecentes e deprimentes de descer a barra de rolagem do apocalipse (doomscrolling)?”

Embora fale em colonialismo, a perspectiva de Geert ainda é a europeia branca. Nesse caso, sua visão nos ajuda a entender os problemas do ocidente em que a internet foi concebida, capturando um zeitgeist de quem — com menos problemas de conexão, mais produção de tecnologias digitais e a caminho (neste 2023) de uma regulação razoável das plataformas — ainda se pergunta o que pode ser feito para reinventar a internet. Nos próximos volumes da coleção, trataremos perspectivas sobre as bifurcações possíveis a partir de pontos de vista do sul global. Acreditamos que nossa região, ainda com todos os problemas de acesso, regulação possível e desigualdade generalizada, tem o potencial real de alternativas novas ao incorporar e incubar soluções desde abajo, baseadas na inventividade gambiarrística de quem cria porque entende melhor que não há outro caminho para (sobre)viver.

[Leonardo Foletto]

*: Que tem dado origem a outras denominações e hipóteses sobre o sistema econômico político hoje. Cito aqui duas delas: 1) “tecno-feudalismo”, que afirma que o capitalismo industrial, enquanto um modo de produção progressivo e gerador de crescimento econômico, foi já substituído por um capitalismo rentista, depredador, que deve ser agora chamado de tecno-feudalismo, termo popularizado especialmente a partir de Cédric Durand em Technoféodalisme: Critique de l’économie numérique (2020); e 2) “o capital está morto”, como defende McKenzie Wark no livro homônimo, que anuncia o que seria um novo modo de produção, não mais capitalista, mas pior, que não baseia mais seu poder na propriedade privada dos meios de produção, mas sim no controle do “vetor de informação”, formado por aquelas tecnologias que não apenas coletam grandes quantidades de dados, mas também os ordenam, gerenciam e processam para extrair seu valor.

 

 

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Mídia tática: uma introdução https://baixacultura.org/2016/01/20/midia-tatica-uma-introducao/ https://baixacultura.org/2016/01/20/midia-tatica-uma-introducao/#respond Wed, 20 Jan 2016 18:56:13 +0000 https://baixacultura.org/?p=10587 the-yes-men-bbc-world


Em novembro de 2015, apresentei um artigo no II Congresso Internacional de Net-ativismo, em São Paulo, que retomava a ideia de mídia tática, hoje nem tão falada quanto na segunda metade dos 1990 e nos 2000, e a relacionava com a cultura hacker. Os usos táticos das mídias é um assunto que às vezes costuma passar por esta página; por conta disso, fiz uma versão do artigo também como forma de documentar algumas ações efêmeras realizadas nesse período que se perderam na rede. Segue abaixo a primeira, com um histórico do conceito e algumas ações da “era de ouro”, final dos 1990 e início dos 2000. [
Leonardo Foletto] 

*

Existem várias (in) definições possíveis para mídia tática, mas convém começar pelo início, 1993, quando acontece em Amsterdam, Holanda, o Next Five Minutes (N5M), festival sobre arte, política, ativismo e mídia com artistas e ativistas dos Estados Unidos, Europa e ex-URSS interessados em explorar as possibilidades dos aparelhos eletrônicos domésticos como meio para a mobilização social. O termo surgiu a partir da ampliação do conceito de “televisão tática”, tema central do 1º N5M, que teve por objetivo expor e debater vídeos independentes e produções audiovisuais de cunho político realizados durante a segunda metade do século XX. Discutido internamente, mídia tática viria a nomear a segunda edição do N5M, em 1996, e assim aparece definido na seção de perguntas e respostas do site do festival:

O termo “mídia tática” se refere a uma utilização crítica e teorização das práticas de mídia que recorrem a todas às formas de mídias, antigas e novas, ambas lúcidas e sofisticadas, para a realização de diversos objetivos não comerciais, impulsionando todos os tipos de questões políticas potencialmente subversivas (recuperado da dissertação de mestrado de Anne Clinio na UFRJ, em 2011, porque a fonte original saiu do ar)

Um ano depois vem a primeira referência como um conceito estruturado, quando Geert Lovink e David Garcia publicam o texto “O ABC da Mídia Tática” (aqui o original em inglês, e a versão traduzida por Ricardo Rosas publicada pelo CMI Brasil), que circula numa lista de emails chamada Nettime que agrupava pessoas com algum envolvimento no N5M (e ainda agrupa, sendo uma lista interessantíssima de acompanhar que disponibiliza todo seu acervo no site Nettime.org).

Mídias táticas são o que acontece quando mídias baratas tipo ‘faça você mesmo’, tornadas possíveis pela revolução na eletrônica de consumo e formas expandidas de distribuição (do cabo de acesso público à internet), são utilizadas por grupos e indivíduos que se sentem oprimidos ou excluídos da cultura dominante. A mídia tática não apenas noticia eventos, porque elas nunca são imparciais, elas sempre participam e é isto que mais do que qualquer outra coisa as separa da mídia mainstream.

n5m

Site da 2º edição do N5M, 1996, que ajudaria a espraiar o conceito de mídia tática mundo afora

n5m4

Anúncio do N5M4, em 2003, o último que ocorreu.

A partir daí, ocorreriam mais dois festivais de Mídia Tática, 1999 e 2003, e um no Brasil (do qual já falamos por aqui). O termo ganharia o mundo com movimentos ativistas, artísticos e políticos dos anos 1990 e início dos 2000 que se descolam dos fazeres políticos tradicionais e buscam acompanhar as revoluções tecnológicas e culturais como base de suas ações e debates, como diz Paulo José Lara (autor da primeira dissertação de mestrado sobre o assunto, em filosofia na Unicamp, 2008).

Alguns exemplos de ações, grupos e movimentos agregados a ideia de mídia tática nesse contexto são a atuação de ativistas dos movimentos altermundistas, também chamados de antiglobalização; a ação de ativistas que veiculam programas de rádio em transmissores de baixa potência ou daqueles que elaboram vídeos com câmeras digitais e distribuem sua produção numa Internet pré smartphones e redes sociais gigantescas; o trabalho de programadores de software livre e de código aberto; a arte midiática e a net-art; pesquisas sobre a política e a economia das tecnologias da informação, em especial no que se convencionou chamar de net criticism, uma perspectiva crítica em relação à estrutura da internet que pode ser posicionada na encruzilhada interdisciplinar entre as artes visuais, movimentos sociais, cultura pop, e pesquisas acadêmicas (Ver Geert Lovink, Dynamics of Critical Internet Culture 1994-2001).

Formulado na Europa, dentro de um ciclo de debates pós queda do muro de Berlim que envolvia principalmente artistas, teóricos da comunicação, jornalistas, hackers, ativistas políticos e cientistas sociais, o termo apresenta uma mescla de referências entre movimentos sociais e artísticos do século XX e experiências de “usos da cultura” – maneiras de apropriação dos objetos técnicos e sua realização para determinada ação.

Nesse contexto, dialogam com a mídia tática vários movimentos e ações desviantes ao longo do século XX, como os (já citados por aqui) trazidos por Stewart Home em sua história da (anti) arte deste período, Assalto à Cultura, de 2005 (só disponível em sebos e raras livrarias hoje); o détournament dos situacionistas franceses; os happenings dos provos holandeses e dos integrantes do Fluxus (George Maciunas, John Cage, Nam June Paik, Yoko Ono e cia); a mail art o do it yourself punk dos anos 1970; o neoísmo dos fakes e nomes coletivos dos 1980; e o culture jamming dos 1980 pra cá. Também conversam com a mídia tática conceitos próximos como os de guerrilha da comunicação e guerrilha midiática, proposto por Luther Blisset: “a realização de um jogo de artimanhas recíprocas, uma forma de envolvimento da mídia em um trama impossível de se captar e de se entender, uma trama que provoca a queda da mídia, vítima de sua própria prática. Arte marcial pura: utilizar a força (e a estupidez) do inimigo, voltando-se contra ele” (em Guerrilha Psíquica, editado pela Conrad em 2001). Conceitos que, por sua vez, são desdobramentos de, entre outras referências, os estudos semióticos de Umberto Eco, que apontava a guerrilha semiótica como uma tática que se aproveita “de uma margem de indeterminação e em uma modificação das circunstâncias nas quais as mensagens são recebidas, sendo possível uma escolha nos modos de interpretação” (Umberto Eco em A Theory of Semiotics, 1976, traduzido por Paulo José Lara em sua dissertação).

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de certeau 2

Mas a fonte mais presente no conceito original é, sem dúvida, Michel de Certeau e A Invenção do Cotidiano. Publicado originalmente em 1980, o livro examina as maneiras de fazer criativas com que as pessoas individualizam e se apropriam da cultura de massa, de objetos cotidianos até planejamentos urbanos e rituais, leis e linguagem. No capítulo 3, o autor francês traz a distinção entre tática e estratégia que é essencial para o entendimento da mídia tática. Ele define como estratégia “o cálculo (ou a manipulação) das relações de forças que se tornam possível a partir do momento em que um sujeito de querer e poder (uma empresa, um exército, uma cidade, uma instituição científica) pode ser isolado” (na 20º edição, de 2013, p.93).

As táticas seriam, em oposição, procedimentos que “jogam com os mecanismos da disciplina e não se conformam com ela a não ser para alterá-los” (p.94). Assim, enquanto as estratégias seriam gestos típicos de uma modernidade militar e científica, que valoriza as estruturas e o lugar, as táticas seriam ações típicas de uma pós (ou pré-modernidade), que valorizariam o movimento e o tempo – ou “às circunstâncias que o instante preciso de uma intervenção transforma em situação favorável”, como diz o autor francês na p.96. Os usos que consumidores (usuários, segundo o autor) fazem de textos e objetos que os rodeiam são diferentes dos esperados ou imaginados por aqueles detentores do poder estabelecido ou de posse dos objetos; são usos táticos, rebeldes, “ações de apropriação e engano que desobedecem ao pré estabelecido, truques engenhosos, astúcias de caçadores, mobilidades nas manobras, operações polimórficas, achados alegres, poéticos e bélicos”, como diz o autor francês na p.98. Ao identificar a distinção estratégia e tática analisando a cultura popular, De Certeau, segundo o “ABC da Mídia Tática”, transferiu a ênfase das representações para os usos das representações. A partir daí ele sugeriria algumas maneiras de pensar práticas cotidianas – como o habitar, circular, falar, ler – que estabeleceriam um vocabulário complexo que identificaria as maneiras que a cultura popular buscaria romper com o que lhe é imposto pelas estruturas do poder ou de consumo. Aquilo que se chama de “vulgarização” ou “degradação” de uma cultura seria, então

“um aspecto, caricaturado e parcial, da revanche que as táticas utilizadoras tomam do poder dominador da produção. O consumidor não poderia ser identificado ou qualificado conforme os produtos jornalísticos e comerciais que assimila: entre eles (que deles se serve) e esses produtos (indícios da “ordem” que lhe é imposta), existe o distanciamento mais ou menos grande do uso que se faz deles. Deve-se, portanto, analisar o uso por si o mesmo”. (DE CERTEAU, 2013, p.90)

Inicialmente pensadas por De Certeau no auge da cultura de massa um-muitos dos anos 1970, a ideia de tática foi reapropriada em um cenário de proliferação da internet e do desenvolvimento dos dispositivos digitais do início dos anos 1990 por Lovink, Garcia e outros. A internet anunciava a possibilidade da convivência do modelo massivo um-muitos com a do muitos-muitos, e os artistas e ativistas reunidos em torno do N5M viram como os usos das mídias poderiam se tornar táticos – porque criativos e rebeldes aos pré estabelecidos – e assim tanto subverter a ordem política quanto dar voz a grupos grupos e indivíduos que se sentiam oprimidos ou excluídos da cultura dita dominante.

O conceito de mídia tática despontaria, então, num contexto de renascença do midiativismo, misturando uma ação política de engajamento de artistas com as novas tecnologias. Por um lado ativista em relação a subversão, mesmo que temporária, da ordem política, e por outro lado artístico, porque criativo e de experimentação com as então novas mídias digitais da época.

***

Os primeiros trabalhos identificados enquanto mídia tática, originários do campo artístico e de uma postura crítica sobre a função da arte na sociedade contemporânea, ajudam a ilustrar esta compreensão das táticas como forma de resistência criativa e subversão das mensagens e das plataformas dominantes. Segundo Lovink num texto de 2011 (“Atualizando a mídia tática. Estratégias de midiativismo”, presente num dos capítulos do livro “Informação, Conhecimento e Poder: Mudança tecnológica e inovação social“), estes exemplos se situam na “era de ouro” da MT, que vai de 1993 a 1999, quando o acesso a equipamentos baratos e fáceis de usar fomentou um novo sentido de autonomia entre ativistas, programadores, teóricos, curadores e artistas que impulsionou experimentação de formas alternativas de narrativas. Alguns exemplos de ações e coletivos deste momento foram:

flood zapatistas

_ Flood net em apoio aos zapatistas, desenvolvido pelo Eletronic Disturbance Theater, uma estrutura ad hoc com os integrantes do coletivo Critical Art Ensemble. A tática realizada com maior destaque foi a do sit-in virtual, um tipo de ação direta contra um determinado site com o objetivo de torná-lo inacessível a partir da coordenação de acesso simultâneo por diversas pessoas à mesma página alvo. O grupo organizou ataques em dez datas significativas para o movimento Zapatista, depois registrada em abril de 1998. Para participar, as pessoas deveriam acessar determinada URL, clicar em um link e manter o navegador aberto durante o período programado para a ação; o aplicativo acionado recarregaria a mesma URL várias vezes por minuto impossibilitando o acesso à página, num tipo de ação, chamada Ataque de negação de serviço – DDoS, que seria muito utilizada pelo Anonymous e outros grupos hackativistas posteriormente.

gwbush

_ www.gwbush.com; desenvolvido pelo ®TMark, um coletivo conhecido por suas ações anticoporativas, era um site (inicialmente cópia do oficial) construído como tática para interferir na campanha eleitoral do então candidato à presidência dos Estados Unidos, George W. Bush, em 1999. Numa época em que desenvolver sites ainda era algo difícil e para poucos, gerou repercussão na mídia – em especial por conta de questionar a negação do consumo de cocaína por parte de Bush – confundiu eleitores e provocou pronunciamentos do candidato de que “deveria haver limite” à liberdade.

_ The Yes Men Project e o caso DowEthics.com; A dupla de ativistas Andy Bichlbaum e Mike Bonanno, do The Yes Men, é conhecida por ações de produzir danos a indivíduos e entidades que causam estragos sociais, econômicos e ambientais (crimes, no julgamento dos ativistas). São “correções de imagem” realizadas a partir da personificação dos representantes destas empresas. A de mais sucesso ocorreu em 2004, quando Andy concedeu uma entrevista para a rede de televisão britânica BBC como executivo da empresa Dow Chemicals (vídeo acima) e afirmou que, passados 20 anos do desastre químico causado na cidade indiana de Bhopal que matou 20 mil pessoas, a empresa assumiria a responsabilidade e indenizaria os atingidos em U$ 12 bilhões. Pro Brasil de 2016, seria como se um integrante de um coletivo de ativistas tivesse convencido a Globo de que era um executivo da Samarco, principal responsável pela tragédia em Bento Rodrigues – Mariana, e concedesse entrevista num programa como o Jornal da Globo assumindo que a empresa vai pagar uma indenização de bilhões de reais às famílias atingidas (o que, convenhamos, deveria ser o mínimo, não?).

Era um trote: Yes Men havia criado um site espelho da empresa, chamado dowethics.com, que os jornalistas da emissora britânica entraram em contato erroneamente para combinar uma entrevista. Durante duas horas, a entrevista circulou pela internet, foi repetida na mesma BBC e só então a empresa Dow Chemicals notificou a emissora que o entrevistado era um impostor. Como contra-ataque, a empresa solicitou o cancelamento do serviço de IPS (Internet Service Provider) para a empresa que hospedava o site falso. Segundo a dissertação de Anne Clinio (2011), quando o site se tornou offline, outros ativistas se mobilizaram pela causa defendida pelo Yes Men Project e criaram vários sites espelho para escapar da censura e oferecer fontes múltiplas para as informações divulgadas pela dupla. Mais detalhes da ação podem ser vistos na Wikipedia

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Protestos em 1999 no Brasil. Foto: André Ryoki

_ Independent Media Center (Indymedia); foi uma criação de diversas entidades no campo da época chamada mídia alternativa com o intuito de realizar a cobertura dos protestos de Seattle em razão da reunião da Organização Mundial do Comércio (OMC), em 30 de setembro de 1999. Desenvolveram um site que oferecia diversos materiais – cobertura em tempo real, relatórios, fotos, vídeos e áudios – das manifestações num sistema de publicação aberto, ou seja, qualquer um poderia submeter seu material para publicação, sem filtros editoriais. A intenção era organizar uma cobertura de orientação alternativa àquela realizada na mídia tradicional, num contexto em que a publicação na internet não era acessível a qualquer pessoa: não havia redes sociais como as que conhecemos hoje, e os blogs recém iniciavam sua trajetória – o primeiro sistema gratuito e facilitado de publicação de conteúdo (CMS) a se tornar popular, o blogger, havia começado a funcionar também em 1999. Depois dos protestos em Seattle, uma rede internacional IndyMedia se constituiu e se mantém hoje em mais de 160 países.

No Brasil, o IndyMedia ajudou a formar o Centro de Mídia Independente (CMI), um coletivo de autopublicação que está na base do ativismo digital brasileiro. “A ideia foi fazer um site de mídia que mostrasse as nossas lutas. É diferente de montar um coletivo de mídia. Nós precisávamos do nosso próprio veículo”, conta Elisa Ximenes, membro do coletivo brasileiro, em entrevista à Tatiana de Mello Dias nesta boa reportagem (“CMI: o coletivo que fundou o ativismo digital“) na Galileu. De integrantes do CMI saiu também o Saravá, coletivo que mantém o principal servidor de iniciativas ativistas do Brasil e um dos mais destacados grupos tecnopolíticos brasileiros – se você se interessa pelo assunto, vá ler uma ótima entrevista com Sílvio Rhatto, um dos integrantes do grupo, em “Cartografias da Emergência”, lançado ano passado.

Na segunda parte do artigo falaremos das apropriações gambiarrísticas e hackers da mídia tática no Brasil.

Imagens: N5M e Tactical Media (fonte), De Certeau (fonte), protestos 1999 (fonte).

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Os 20 anos da ideologia californiana https://baixacultura.org/2015/10/29/os-20-anos-da-ideologia-californiana/ https://baixacultura.org/2015/10/29/os-20-anos-da-ideologia-californiana/#respond Thu, 29 Oct 2015 12:22:10 +0000 https://baixacultura.org/?p=10488 california

Em 1995, a internet comercial estreava no Brasil, Mark Zuckerberg ia a escola primária em White Plains (interior do Estado de Nova York, nos EUA) aos 11 anos, Larry Page e Sergey Brin se conheciam na pós-graduação em computação em Stanford (na California) e começavam a trabalhar na ideia do Page Rank que originaria o Google três anos depois, e Richard Barbrook e Andy Cameron, então membros do Hypermedia Research Centre of the University of Westminster, em Londres, publicavam um ensaio chamado “A Ideologia Californiana” na Mute Magazine, texto que logo circularia pela lista de emails Nettime e seria uma das primeiras críticas ao neoliberalismo agressivo do Vale do Silício.

No ensaio, Barbook e Cameron definiam a tal ideologia como uma improvável mescla das atitudes boêmias e anti-autoritárias da contracultura da costa oeste dos EUA com o utopismo tecnológico e o liberalismo econômico. Dessa mistura hippie com yuppie nasceria o espírito das empresas .com do Vale do Silício, que passaram a alimentar a ideia de que todos podem ser “hip and rich” –  para isso basta acreditar em seu trabalho e ter fé que as novas tecnologias de informação vão emancipar o ser humano ampliando a liberdade de cada um e reduzir o poder do estado burocrático.

Na época, a ideologia californiana era bem representada por empresas como a Apple e a revista Wired, e entusiasmava a todos que estavam por perto desse cenário – nerds de computadores, slackers, capitalistas inovadores, ativistas sociais, acadêmicos “da moda”, burocratas futuristas e políticos oportunistas, como escrevem os autores no ensaio. Também: como resistir a um coquetel que unia as premonições tecnológicas de McLuhan de uma aldeia global tecnológica com as potencialidades de emancipação individual a partir da digitalização do conhecimento?

A explosão da bolha especulativa das empresas de internet no final dos 1990 poderia ter servido como um alerta sobre onde esse pensamento poderia levar o planeta, mas a sedução da ideologia californiana persistiu e se espalhou com a ajuda do Google, Facebook, Apple e vários outros dos gigantes do Silício que hoje fazem parte da nossa vida cotidiana. A ideia de um mundo pós-industrial baseada na economia do conhecimento, em que a digitalização das informações impulsionaria o crescimento e a criação de riqueza ao diminuir as estruturas de poder mais antigas em prol de indivíduos conectados em comunidades digitais, prosperou. E hoje, queiramos ou não, predomina na nossa sociedade digital.

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Será então que, 20 anos depois, é possível dizer que a ideologia californiana “venceu”? Para discutir essa e outras questões é que Barbrook acaba de lançar, junto do Institute of Network Cultures, sediado na Holanda, o livro “The Internet Revolution: From Dot-com Capitalism to Cybernetica Communism“. Na introdução especialmente escrita para este 20º aniversário do ensaio, o autor inglês faz um balanço de como os “capitalistas hippies” mudaram o Vale do Silício (e o mundo) e de como sua ideologia, num mundo cada vez mais social e digital, ainda é um assunto relevante a se discutir. Como McLuhan tinha insistido, a provocação teórica cria compreensão política, explica o editor do livro e também teórico da mídia Geert Lovink

A visão do novo livro e do texto de 1995 não é favorável a ideologia californiana. Em dado momento do ensaio original, os autores relatam que o pensamento oriundo dessa ideologia é o de que as estruturas sociais, políticas e legais serão substituídas por interações autônomas entre pessoas e os softwares – e que o “grande governo” não deve atrapalhar os “empreendedores engenhosos” do mundo digital. O texto tem uma posição crítica a esta postura, dizendo que ela rejeita noções de comunidade e de progresso social e dá importância somente para uma posição guiada por um “fatalismo tecnológico e econômico”.

Barbrook e Cameron dizem que a construção exclusivamente privada e corporativo do ciberespaço poderia promover a fragmentação da sociedade estadunidense e a criação de mais desigualdade social e racial. Um trecho: “Os moradores de áreas pobres da cidade podem ser excluídos dos novos serviços online por falta de dinheiro. Em contraste, yuppies e seus filhos podem brincar de ser ciberpunks em um mundo virtual sem ter de encontrar qualquer de seus vizinhos empobrecidos”.

Anos depois, o documentarista Adam Curtis criticaria a ideologia californiana, que ainda é predominante no imaginário das empresas de tecnologia (não só do Vale do Silício), na parte 1 e 2 do documentário “Tudo Vigiado por Máquinas de Adorável Graça“. Ele traz para o debate a escritora russo-estadunidense Ayn Rand e sua filosofia objetivista, que influenciou a ideologia californiana (e muitos empresários do Vale do Silício) com a ideia de que os seres humanos se encontrariam sozinhos no universo e que deveriam se liberar de todas as formas de controle político e religioso, vivendo apenas guiados por seus desejos egoístas. O casamento entre a teoria de Ayn e a crença no poder das máquinas produziria a ilusão de uma sociedade que prescindia, entre outras coisas, de políticos e que se autogovernava e se autorregulava com a ajuda dos computadores. Alguém aí lembrou do anarcocapitalismo, que a própria Rand criticava?

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A ideologia californiana (a ideia) está presente hoje como base filosófica para, por exemplo, ações de vigilância em massa como as da NSA. A internet é a ferramenta de controle dos sonhos, tudo é registrado e deixa rastro (que alguns apagam, mas a maioria não), um cenário perfeito para que orgãos de vigilância, em nome da segurança, e com a ajuda dos computadores, possam vasculhar a vida de todos. Está presente quando Zuckerberg fala de uma internet onde o padrão é ser sociável – de preferência sendo sociável numa ferramenta privada de um empresário do Vale do Silício, já que, afinal, toda tecnologia é neutra regula a si próprio melhor do que ninguém (aham). Está presente também quando os diretores dessas empresas, como o próprio Zuck, ganham status de chefe de estado em encontro de países e passam a prover “serviços” para a sociedade – como é o recente caso do Internet.org e seu objetivo de oferecer uma internet paralela e privada “gratuita” para lugares remotos.

Quando aqui falamos do “fim da privacidade”, citamos o diálogo fictício do livro “O Círculo”, de Dave Eggers, que também ilustra a aplicação prática – e extrema – da ideologia californiana hoje. Um mundo onde tudo deve ser compartilhado, em que a sonegar qualquer informação a outros pode ser encarado como “roubar o meu semelhante”, em que a vida privada é um roubo, é um mundo onde sistemas informáticos estão a organizar e governar a sociedade a partir de critérios supostamente objetivos. Alguém lembrou da pesquisa sobre manipulações de emoções realizada no Facebook?

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Barbrook e Cameron em 1995

O ensaio foi apontado à época por pessoas ligadas ao Vale do Silício como o trabalho de ‘esquerdistas’ , o que realmente é: Barbrook, em especial, é leitor de Marx, Hegel e escreveu um livro chamado Cybercomunism: How the americans are supersending capitalism in cyberspace. Lovink, na apresentação de “The Internet Revolution: From Dot-com Capitalism to Cybernetica Communism“, diz que A Ideologia Californiana é um dos primeiros textos de uma corrente de pensamento chamada de net-criticism, que pode ser posicionada na encruzilhada entre as artes visuais, movimentos sociais, cultura pop, e pesquisas acadêmicas, com intenção interdisciplinar de tanto interferir quanto contribuir para o desenvolvimento das novas mídias, como Lovink explica em “Dynamics of Critical Internet Culture 1994-2001“.

É uma corrente que se situa como uma terceira via, entre, de um lado, uma posição ligada a uma certa esquerda que critica a internet por ela ter seu desenvolvimento baseado numa expansão do domínio dos EUA em relação ao seu poder cultural e econômico. E, de outro lado, justamente o da ideologia californiana, que tem a internet como viabilização de um novo modelo de negócios e como realização de uma profecia indicativa da aldeia global congregada, como defende, entre outros, John Perry Barlow na conhecida “Declaração de Independência do Ciberespaço“.

A construção desta terceira via teria como função, segundo Lovink, “observar a maneira com que os desenvolvedores e as primeiras comunidades de usuários tentaram conquistar e então modelar o rápido crescimento e mutação do ambiente da internet, apoiando alguns dos valores libertários (anti-censura), mas criticando outros (populismo do mercado neoliberal)”. Ganhou força em meados dos 1990, no desenvolvimento da net-art, do hackativismo e dos festivais de mídia tática, inclusive no Brasil, e tinha (tem) como postura criar uma infraestrutura de rede independente de grandes empresas, além de proteger certas liberdades da internet e a privacidade.

O net-criciticism (talvez não com esse nome) ainda está presente hoje, por exemplo, na postura de Assange, dos criptopunks, de uma certa linha da cultura hacker européia e latino-americana e da filosofia original do software livre, por exemplo, que defendem “transparência para os fortes, privacidade para os fracos” e que se diferem de uma cultura hacker dos EUA que está a impulsionar a gentrificação do ethos hacker, como apontado no texto “The hacker hack”, de Brett Scott, publicado na revista Aeon (e traduzido aqui pro ptbr). No fundo, o debate contemporâneo Uber X taxistas não deixa de ser um embate das duas posturas criticadas por “A Ideologia Californiana”, mas esse é um assunto que pode ficar para outra postagem.

P.s: Marcelo Träsel traduziu o texto original de “A Ideologia Californiana” para o português faz alguns bons anos e ainda está disponível aqui.

Imagens: 1 (Mute Magazine), 2 (G1), 3 (wikipedia).

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Salve a (contra) cultura digital brasileira! https://baixacultura.org/2012/02/15/salve-a-contra-cultura-digital-brasileira/ https://baixacultura.org/2012/02/15/salve-a-contra-cultura-digital-brasileira/#comments Wed, 15 Feb 2012 22:14:00 +0000 https://baixacultura.org/?p=6301

Alguns dizem que a internet é um dos frutos da contracultura norte-americana – do Do It Yourself e da livre expressão/circulação/piração de mentes & informações que os beats, o existencialismo de Sartre, Timothy Leary e o LSD, primeiramente, os Provos, Beatles, happenings, Bob Dylan, o maio de 1968 e os hippies, para citar alguns poucos num 2º momento, trouxeram para as cabeças jovens mundo afora – e da parceria improvável dessa contracultura com as redes fechadas militares e de universidades é que a internet nasceu e se propagou, já nos 1990.

A questão de que a internet surgiu como um desdobramento da contracultura me traz uma questão anterior: a contracultura nasceu mesmo na década de 1960? Aliás, o que é contracultura? seria todos aqueles que contestam, de maneira articulada e reflexiva, a cultura dominante? Se for isso, a contracultura não seria anterior a 1960?

O que dizer da cultura em torno do grande pensador grego Sócrates, do ocultismo dos árabes Sufis a partir do século VIII (de quem o contemporâneo Hakim Bey bebeu – e estudou – muito), dos trovadores heréticos da Idade Média, dos trancendentalistas americanos (Ralph Waldo Emerson, H. D. Thoureau), como aponta o livro Contracultura através dos Tempos, de Ken Gofman e Dan Joy, importante referência para quem quer entender o assunto?

Não seriam os hippies e o que convencionou chamar de contracultura sessentista o berço da contracultura jovem? E o Tropicalismo, ícone nacional da cultura dos 1960, seria o pai dessa expressão da contracultura brasileira?

Divagações à parte, estas são questões para guardar e responder (se quiser) algum dia. O fato é que inevitavelmente lembrei dessa conversa ao saber de um dos bons projetos que surgiram ano passado, motivados pela bolsa da Funarte Reflexão Crítica em Mídias Digitais  (a mesma com que fizemos o Efêmero Revisitado), e que tentou dar um caldo brasileiro ao unir a indomável contracultura com a efervescente cultura digital.

ContraCultura Digital” é  um site e uma publicação coordenada por Thaís Brito, jornalista e mestre em Ciências Sociais pela UFBA. O projeto aprovado na Bolsa da Funarte propunha “analisar o contexto contemporâneo de apropriação de tecnologias livres” e constava, como produto final, a produção de uma revista com textos sobre a nascente contracultura digital brasileira, de relatos de experiências a ensaios filosóficos, passando por manifestos, ficções, traduções e outras coisinhas que o guarda-chuva do projeto entendia como pertinente.

O site Contra Cultura Digital surgiu antes da publicação, dentro da plataforma CulturaDigital.br, para documentar e ampliar a pesquisa, com materiais que vão desde vídeos relacionados ao tema até as referências utilizadas no trabalho, passando por textos complementares que valem uma fuçada na Home do projeto. No final de 2011, foi publicada a revista (ou seria um livro?), somente no meio digital – que pode ser livremente baixada e acessada aqui.

Ela contém 19 textos (muito) heterogêneos, dividos em três grandes guarda-chuvas: Experiências, que busca uma conexão com a realidade de pessoas/projetos e grupos da cultura digital; Poéticas, que, bem, trata-se de experiências póeticas envolvendo de algum modo o digital, seja através de relatos de viagem até poesia/desenho em linguagem de programação; e Filosofias, manifestos e ensaios mais teóricos/viajandões sobre temas como o Psico-Ativismo Neodarwinista e a Cultura Dialegital do Contra.

Seria a cultura copyleft uma contracultura?

Ademais do hermetismo de certos textos, de alguns descuidos na revisão (especialmente nas referências) e da edição bruta, quase tosca, a revista é um belo incentivo à deriva pela nascente contracultura digital. Deriva aqui entendida na acepção que os situacionistas nos despertaram nos 1960: andar sem rumo, para, assim, ser “estranhado” pelos passeios e atuar crítica e conscientemente no aprofundamento/revolução de um cotidiano específico.

Neste caso, a publicação estimula passeios por questões, (não) lugares e ideias não tão comentadas na cultura digital para, a partir daí, o leitor aprofundar (ou não) o seu interesse pelos assuntos abordados – e então criar seus próprios “mapas” de interesses/conexões com os temas discutidos.

Destaco aqui seis textos da publicação (com o respectivo link para ver direto no site, quando há esta opção):

_ “SISTEMA FORTUITO (DES)ENCONTRO: Estratégia Hacker De Um Sistema Telemático“, de Leonardo Galvão, um relato detalhado sobre o projeto que dá nome ao título, uma aplicação de estratégias de hackeamento de um site de relacionamento via webcam e sua retransmissão por projeção no espaço arquitetônico da cidade – arte digital pura.

_ “Azucrina Records : Relatos de uma experiência com selos virtuais (netlabels)“, uma investigação sobre comunidades online e sites de música eletrônica não-comercial que disponibilizam downloads gratuitos. Ao final, há uma compilação de sites de netlabels realizada pelo Azucrina, um circuito de experimentação eletrônica e sonora.

_ “Uma chamada ao Exército do Amor e ao Exército do Software“, tradução coletiva de um texto de Franco Berardi e Geert Lovink de 2011 (original aqui) que finaliza com a profética frase: “O intelecto geral e o corpo social erótico devem se encontrar nas ruas e nas praças, e unidos irão quebrar as cadeias do Finazismo.” Finazismo, entenda-se, é o nazismo financeiro.

_ “A-própria-ação dos conceitos“, escrito pela organizadora da revista Thaís Brito, uma espécie de editoral às avessas (escrita no final da revista);

_ “Carta aos novos navegantes – breve itinerário de uma Viagem“, uma bela retrospectiva poética da cultura lado brasileira lado B, de Oswald de Andrade às saudosas e finadas editoras Ciência do Acidente e Livros do Mal, escrita por Leonardo Barbosa Rossato, do Massa Coletiva, de São Carlos. Curti o fim: Oswald hoje faria mixtapes:`Tudo que não é meu me pertence’ e estaria fazendo passeatas pelo matriarcado livre & a favor do ócio junto a Lautreamont, num free-style beleza: ‘A poesia deveria ser escritos por todos’.


_ “Cotidiano Sensitivo, incluído na seção Poéticas. O projeto dos cientistas da computação Ricardo Ruiz e Ricardo Brasileiro, também apresentado no Festival CulturaDigital.br ano passado, prevê 1) captação de dados sinestéticos (luminosidade, temperatura, freqüência de sinais) de alguns ambientes do nordeste brasileiro por hardwares e softwares, 2) a catalogação desses dados abstratos, 3) e a transformação desses dados em formas de visualização na plataforma web do projeto.

Na revista, Cotidiano Sensitivo está apresentado em 24 páginas de muitos códigos em linguagem de programação. No meio deles, alguns textos em “português”, que provocam o leitor que desconhece os termos usados a entender que diabos é esse monte de coisa (aparentemente) sem sentido. No final, ao observar todo o grande encadeamento de códigos-fonte, tu pode ver alguns desenhos formados – uma aranha, uma árvore, uma barata. Como diz o WordPressCode is Poetry? 

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ContraCultura Digital (org. Thaís Brito)
Disponível para Download 

[Leonardo Foletto]

Créditos imagens: Seja Marginal,  Cara y Señal e o restante screeshot das páginas
 
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