Guy Debord – BaixaCultura https://baixacultura.org Cultura livre & (contra) cultura digital Wed, 21 Feb 2024 12:40:50 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.0.9 https://baixacultura.org/wp-content/uploads/2022/09/cropped-adesivo1-32x32.jpeg Guy Debord – BaixaCultura https://baixacultura.org 32 32 Um Manifesto Hacker – 20 anos depois https://baixacultura.org/2024/02/20/um-manifesto-hacker-20-anos-depois/ https://baixacultura.org/2024/02/20/um-manifesto-hacker-20-anos-depois/#comments Tue, 20 Feb 2024 23:03:56 +0000 https://baixacultura.org/?p=15573 Não é fácil a tarefa de apresentar Um Manifesto Hacker, de McKenzie Wark, ao público brasileiro hoje. A natureza ensaística, provocativa e irônica da obra nos põe um desafio: como falar de um presente sem estragar a surpresa? Outra questão é o tempo: o livro foi lançado pela primeira vez há vinte anos. Como contextualizar a obra? O papel da informação e das tecnologias na sociedade contemporânea está ainda mais visível do que há vinte anos, o que faz com que a obra continue atual – como a própria autora afirma em sua introdução à edição brasileira. Se, por um lado, não vamos estragar as surpresas – elas são deliciosas – por outro, não espere uma apresentação tradicional. Ela seria o exato oposto do que o próprio livro tentou ser.

O que podemos contextualizar é que, embora a tradução apenas saia agora, sua recepção em território brasileiro aconteceu mesmo há quase vinte anos. De forma um tanto errática, quase underground, o livro foi lido e discutido em meios acadêmicos e ativistas, sobretudo onde havia pessoas interessadas em torno da grande área que se convencionou chamar cibercultura – nome que hoje, com a onipresença do digital em nossas vidas, parece ter sido abandonado.

Dentro dessa área, hackers afeitos também aos estudos filosóficos de inspiração deleuziana sobre a técnica receberam com entusiasmo estes escritos de McKenzie Wark; outros, especialmente teóricos da comunicação e da sociologia, leram com atenção as teses do livro e notaram as semelhanças com “A Sociedade do Espetáculo”, de Guy Debord, e “Manifesto Comunista”, de Karl Marx e Friedrich Engels, evidentes na forma aforística do texto mas nem tão clara no conteúdo – embora você verá muito de ambos autores nas páginas do livro.

Um Manifesto propõe a visão de que existem três classes dominantes e suas respectivas classes dominadas. Cada uma dessas classes dominantes deriva seu poder da propriedade privada de uma categoria de meios de produção. São elas a classe pastoralista, que detém terras; a classe capitalista, que possui capital; e a classe vetorialista, proprietária da informação. E suas decorrentes classes dominadas, respectivamente a classe camponesa, a classe trabalhadora e a classe hacker. Apesar de haver uma sequência histórica na emergência de cada uma delas (primeiro veio a pastoralista, depois a capitalista, e agora a vetorialista), a autora afirma que as três classes coexistem no presente.
Este é um trechinho do prefácio (íntegra) que eu, Victor Barcellos (também tradutor da obra) e Rafael Grohmann fizemos para a “Um Manifesto Hacker”, segundo livro publicado no Brasil de McKenzie Wark, ambos pela dupla de editoras SobInfluencia e Funilaria – fizemos uma breve resenha do primeiro, “O Capital Está Morto”, em fevereiro de 2023. “Um Manifesto Hacker” está à venda no site das duas editoras (Funilaria / SobInfluencia) e também nas melhores livrarias do país. Republicamos logo abaixo o prefácio à edição brasileira do livro, escrito por Mckenzie, que atualiza com muita clareza e honestidade a questão da liberação da informação da forma de propriedade na internet. O livro na íntegra também está disponível em PDF, mas não espalha.

[Leonardo Foletto]

“O que para nós era uma prática de vanguarda rapidamente, e de forma independente, tornou-se um movimento social: o movimento pela informação livre. À medida que a internet se tornou uma forma de comunicação mais popular, todos começaram a compartilhar. Como diz a tese 126 do livro: “a informação quer ser livre, mas está acorrentada em todos os lugares” (…) Parecia que poderíamos abrir a forma-mercadoria da informação em favor de uma espécie de economia de dádiva abstrata. (…) Não era pra ser. Os marxistas autonomistas italianos sustentam que toda “inovação” na forma-mercadoria é impulsionada de baixo para cima, na medida em que tenta resolver um antagonismo de classe subordinada contra a forma-mercadoria por meio de sua recaptura por meio de uma mutação dessa forma. Foi mais ou menos isso que aconteceu. A classe dominante dominante, que chamo de classe vetorialista, recuperou a energia do movimento popular pela informação livre transformando-a em trabalho não remunerado“.

 

CONSIDERAÇÕES SOBRE UM MANIFESTO HACKER

Mckenzie Wark*

Lendo Um Manifesto Hacker novamente depois de muito tempo, agora parece um livro que outra pessoa escreveu e, ao mesmo tempo, um livro que contém não apenas a semente de todo o meu trabalho, mas o padrão da minha vida desde então.

O livro faz pelo menos duas coisas ao mesmo tempo. Em parte é um diagnóstico de um ponto de viragem histórico, entendido a nível conceptual. Isso não é mais capitalismo; é algo pior. Essa mutação no modo de produção é global, mas distribuída de forma desigual. Os modos de produção são sempre plurais. Durante muito tempo, o modo dominante poderia ser descrito como capitalismo. Embora o capitalismo certamente ainda exista, não é mais o modo de produção dominante.

Não estou sozinha nesse diagnóstico, mas a maioria das outras tentativas de pensar essa ruptura não entenderam que ela também é uma ruptura de linguagem. Assim, temos tentativas muito insatisfatórias de pensá-lo como pós-capitalismo ou neofeudalismo. Em outras palavras, isso significaria pensar o surgimento de uma nova época apenas em relação à língua antiga. Cada nova era tenta pensar sua novidade na linguagem da antiga. Essa é uma falha linguística a ser superada,e considero isso uma das percepções mais importantes de Marx.

Em vez disso, tentei pensar a época em uma linguagem contemporânea a ela. Escrevi Um Manifesto Hacker em uma linguagem inexistente que chamo de “europeia”. Essa linguagem imaginária é composta de partes iguais de latim religioso, marxismo, filosofia francesa e inglês comercial. Essas são as linguagens transnacionais da modernidade que me fizeram. A edição em inglês não é a original – também é uma “tradução” que eu mesmo fiz dessa língua inexistente. Eu queria começar pelo menos com os recursos linguísticos que vários modos de produção sucessivos e sobrepostos infligiram ao mundo por meio da guerra e da colonização. Pensar nessa linguagem e contra ela.

O método de escrita é o que os situacionistas chamavam de desvio (détournement). Uma cópia e uma correção da linguagem encontrada. Assim, a primeira linha: “Um duplo assusta o mundo”, e toda a tese 001 que se segue, copiei e modifiquei da famosa abertura de O Manifesto Comunista. Toda a linguagem é um bem comum (commons), e pode-se fazer o possível para recusar a forma de propriedade e os nomes próprios de seus proprietários como uma prática de escrita. Sempre me diverte que existam livros que se dizem “radicais” em conteúdos que obedecem às convenções literárias mais conservadoras.

Partindo de um desvio das linguagens transnacionais, Um Manifesto Hacker oferece dois tipos de proposições: algumas se referem à situação estratégica das classes subalternas como eu a via 25 anos atrás. Alguns deles precisam de revisão à luz das lutas desde então. O outro tipo de proposição está menos ligado a circunstâncias imediatas. Eles são um pouco mais inoportunos. Vou oferecer algumas reflexões tardias sobre ambos.

Resumidamente, as coisas tomaram um rumo que eu não previ, e que exige uma alternância não só da prática política, mas também da teoria. Georg Lukács disse em seu ensaio sobre o método marxista que mesmo que todas as suas descobertas particulares se mostrassem incorretas na prática, a teoria marxista ortodoxa permaneceria correta. Eu tenho exatamente a visão oposta: apenas aquelas descobertas que se comprovam na prática podem ser consideradas parte do “marxismo”. Ele não tem nenhuma teoria essencial, ortodoxa ou não.

Vinte e cinco anos atrás, parecia uma boa tática liberar informações da forma de propriedade. As forças de produção, neste caso as forças de produção de informação, ultrapassaram as relações de produção existentes. A produção de informação livre surgiu como uma prática a partir da qual se cria uma produção autônoma de conhecimento. De diferentes maneiras, Adorno e Pasolini se refugiaram da pressão progressiva da mercantilização (commodification) em formas culturais e midiáticas residuais, eu fazia parte de um movimento que buscava um espaço de liberdade não-mercantilizada em mídias emergentes e formas técnicas.

Embora tenha escrito grande parte de Um Manifesto Hacker isoladamente, no norte do estado de Nova Iorque, eu não estava sozinha. Fiz parte de uma vanguarda que se reuniu em espaços online para desenvolver teoria e prática dentro dessas formas emergentes de produção de informação. Tentamos fazer uma teoria, uma arte, uma cultura e uma política neste espaço relativamente livre de uma só vez. Isso foi um tempo antes de a internet se tornar um grande negócio. Sua infraestrutura era mantida principalmente por universidades. Descobrimos que era uma maneira relativamente barata e rápida de se organizar transnacionalmente, de conduzir experimentos, de encontrar afinidades.

Todas as vanguardas são, em certo sentido, vanguardas midiáticas, desde o dadaísmo e o surrealismo até o fluxus, a tropicália ou os situacionistas. Eles usaram a mídia de seu tempo, da impressão offset ao cinema, gravação de som, até mesmo o sistema postal, para criar matrizes transnacionais de invenção formal que eram ao mesmo tempo estéticas, políticas e culturais. Vimo-nos continuando essa prática, mas não meramente repetindo-a. Um Manifesto Hacker é uma teoria dessa prática. Como todas as vanguardas, teve suas facções e dissensões. Meu espaço de afinidade dentro dele girava em torno do grupo nettime.org.

O que para nós era uma prática de vanguarda rapidamente, e de forma independente, tornou-se um movimento social: o movimento pela informação livre. À medida que a internet se tornou uma forma de comunicação mais popular, todos começaram a compartilhar. Como diz a tese 126 do livro: “a informação quer ser livre, mas está acorrentada em todos os lugares”. (Uma frase que é um desvio de Rousseau e do teórico utópico da internet John Perry Barlow). Parecia que poderíamos abrir a forma-mercadoria da informação em favor de uma espécie de economia de dádiva (gift) abstrata.

Não era pra ser. Os marxistas autonomistas italianos sustentam que toda “inovação” na forma-mercadoria é impulsionada de baixo para cima, na medida em que tenta resolver um antagonismo de classe subordinada contra a forma-mercadoria por meio de sua recaptura por meio de uma mutação dessa forma. Foi mais ou menos isso que aconteceu. A classe dominante dominante (dominant rulling class), que chamo de classe vetorialista (vectorialist), recuperou a energia do movimento popular pela informação livre transformando-a em trabalho não remunerado.

Na verdade, é ainda pior do que isso. O capitalismo explora nosso trabalho; o vetorialismo explora nosso comunismo. Ele explora nossa necessidade de dar um presente de nossa sociabilidade uns aos outros. A resposta da classe dominante ao movimento social pela informação livre foi a criação de uma forma de propriedade ainda mais abstrata. As relações de produção alcançaram as forças de produção. Este ciclo agora tem uma extensão adicional, pois a chamada “inteligência artificial” é treinada no vasto tesouro de informações livres que criamos para nós mesmos para desenvolver uma técnica que possa substituir a própria classe hacker.

Sob o capitalismo, as forças de produção se desenvolveram reduzindo o trabalho à repetição e mesmice, e então substituindo o trabalhador por uma máquina que reproduzia de forma mecânica essa repetição. O que estava além dessa substituição era o hack, a produção da diferença, a atividade distintiva da classe hacker nas artes e nas ciências. O que a classe vetorialista está tentando agora é a substituição da classe hacker por máquinas capazes de fabricar a diferença. Máquinas que fazem isso mal, mas que do ponto de vista da classe dominante são preferíveis porque não podem entrar em greve.

Em suma, a situação é muito pior do que há um quarto de século. Vencemos algumas batalhas, mas perdemos a guerra. O livro que escrevi logo após Um Manifesto Hacker, “Gamer Theory”, já era uma intuição disso. Trata-se do enclausuramento do hack, ali figurado como jogo, em um espaço de jogo global, totalizante. Onde todas as nossas energias coletivas e criativas são direcionadas para formas que podem ser quantificadas, classificadas e ranqueadas. Lamento dizer, esse foi profético.

Revisei ainda mais a perspectiva política de Um Manifesto Hacker em meu livro posterior, “O Capital Está Morto”. Em meu livro “Raving”, ofereci pelo menos uma teoria e prática de onde podemos nos esconder, podemos encontrar uma relação com a técnica onde podemos pelo menos minimizar a captura de nossas energias hacker e obter algum prazer em formas de trabalho inútil.

Ao contrário de alguns teóricos que eu poderia mencionar, não estou no negócio de oferecer “esperança”. A perspectiva é ruim. Os movimentos populares viveram uma longa série de derrotas históricas. Estamos em retiro na maioria dos lugares. O benefício de estar em retirada é que há menos oportunistas por perto. Em vez disso, os oportunistas se rebatizaram como os “intelectuais” da reação.

As proposições táticas de Um Manifesto Hacker são de seu tempo. Até que ponto as proposições teóricas precisam ser abandonadas ou modificadas não cabe a mim dizer. Ainda acho o livro infinitamente produtivo, pelo menos para meu próprio trabalho e até para minha vida. Olhando para trás, encontro as sementes de todos os meus livros subsequentes. A série de livros que relê e recupera certas práticas marxistas e de vanguarda que se cruzam, por exemplo: “The Beach Beneath the Street”, “The Spectacle of Disintegration” e “Molecular Red”. Ou a série de livros que lêem outras teorias contemporâneas de forma camarada: “General Intellects” e “Sensoria”.

Até encontro uma conexão com os livros que escrevi no processo de me assumir como transexual: “Philosophy for Spiders”, “Reverse Cowgirl”, and “Love and Money, Sex and Death”. Há um conceito de natureza como diferença, natureza como hackeável, que prefigura o hackeamento do meu próprio corpo, a produção da diferença na e como minha própria carne.

Certamente existem conceitos que ainda considero úteis em Um Manifesto Hacker, sendo a natureza como diferença apenas um exemplo. A sua contraposição da expressão à representação, a sua alergia às identidades e aos invólucros. Isso me parece uma crítica antecipada ao ressurgimento do sentimento fascista. Ou a intuição de que a sobrevivência planetária no Antropoceno pode exigir uma superação da subordinação da produção à reprodução da mesmice da forma de propriedade. Que pode de fato haver uma técnica potencial que é mais abstrata do que, e não recuperável dentro da própria propriedade.

O que prezo mais do que a teoria neste livro é a prática, que mais tarde vim a chamar de baixa teoria (low theory). A prática da baixa teoria é a prática de fazer teoria em e com um movimento social, uma vanguarda ou um projeto comunitário de resistência minorizada. A baixa teoria pode recorrer aos recursos da alta teoria, que às vezes se autodenomina filosofia, mas que na maioria das vezes é erudição sobre filosofia. A universidade tem sido um lugar onde poderíamos conseguir empregos, mas os prêmios brilhantes de reconhecimento acadêmico não são o objetivo da baixa teoria. A baixa teoria acontece em uma temporalidade diferente, a das tendências históricas, conjunturas políticas, situações culturais, não a do sistema semestral.

Talvez o melhor sinal de que o livro ainda tem sua utilidade é que eu o considero plagiado com tanta frequência – o que acho divertido quando assume a forma de um desvio (détournement) engenhoso. De qualquer forma, fico feliz em ver que ainda fala a muitos tipos diferentes de leitores, em muitas partes diferentes do mundo. Perdi a conta do número de idiomas em que você pode encontrá-lo. É um livro que foi feito para ser hackeado.

Brooklyn, Nova Iorque, julho de 2023

*McKenzie Wark (New Castle, Austrália) é professora de Mídia e Estudos Culturais na New School for Social Research e Eugene Lang College em Nova York. Seus escritos e projetos políticos se voltam para a análise do neoliberalismo tecnológico, além de escrever sobre os diversos movimentos Situacionistas, mídia tática e movimento anti-globalização. Publicou no Brasil pela Funilaria e sobinfluencia “O capital está morto” e “Um manifesto hacker”. Também é autora de livros como “Molecular Red: Theory for the Anthropocene”, “Reverse Cowgirl”, “50 Years of Recuperation of the Situationist International”, “The Spectacle pf Disintegration” e outros, McKenzie é também DJ e amplamente vivída na cultura da música techno e seus movimentos.

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Charlatanismo Revolucionário e a destruição do estado https://baixacultura.org/2019/09/06/charlatanismo-revolucionario-e-a-destruicao-do-estado/ https://baixacultura.org/2019/09/06/charlatanismo-revolucionario-e-a-destruicao-do-estado/#respond Fri, 06 Sep 2019 12:24:46 +0000 https://baixacultura.org/?p=12965

Há algumas semanas chegou em nosso email uma mensagem, de autor anônimo, perguntando se gostaríamos de publicar um pequeno livro sobre a mentira como estratégia de guerrilha contra o poder (mais precisamente, o Estado). Junto do e-mail, criptografado, veio dois anexos: um texto resumindo a obra, com o sugestivo nome “texto para blog” e o livro em PDF, intitulado “Uma Ode à Mentira para Destruição do Estado”. Achamos curioso; costumamos receber sugestões de pauta, pedidos para esclarecer algumas dúvidas (a maioria técnicas), fazer contatos, pedir zines, informações sobre os cursos, ou simplesmente comentários aleatórios criticando ou nos elogiando, mas nunca um email não assinado com um material completo para publicação.

Fomos ler o livro em anexo e nos pareceu interessante; bem diagramado, curto (70 páginas), havia uma série de referências à guerrilha da comunicação que trabalhamos em oficinas, cursos e textos para esta página, como Wu Ming, The Yes Men e Luther Blisset, e outras tantas citações ótimas, como de Malatesta, Chomsky, Ranciere e até Dairan Paul, que defendeu uma monografia sobre Luther Blisset já comentada por aqui. Havia ideias um tanto confusas (propositadamente?), mas outras sacadas e citações deveras interessantes; apêndices com um ótimo conto popular russo do século XX e outro conto de um escritor anarquista espanhol do século XIX. De autoria, algumas pistas: se tratava de um trabalho final de uma graduação, em artes visuais, de alguém que mora em São Paulo – percebe-se pelos agradecimentos da obra – e dois nomes: Patrik e Berth Pool, tido como autores da obra e que também assinava o outro arquivo enviado como anexo, “texto para blog”. Na rede, nenhuma referência a estes nomes, juntos ou separados.

Resolvemos publicar. Segue, abaixo, o conteúdo deste arquivo; ao final, a obra para download, de onde também tiramos as imagens que ilustram esse post.

“A partir da observação da capacidade do Estado em cooptar todas as formas de artes contra-hegemônicas para delimitar sua segurança, notou-se que uma das ações que as classes dominantes e o governo mais praticam é o ato de mentir. A mentira do Estado sustenta os ideais de nacionalismo, mascara o racismo e ilude o consumidor através da publicidade.

Diante do quadro de ascensão das forças neoliberais e fascistas no mundo na atualidade, e reconhecendo a necessidade de encontrar novas formas de ação contra essas potências – pois alguns métodos tradicionais de luta já são, em certo ponto, facilmente interrompidos pelo Estado – o livro enxerga na utilização da mentira pelos dissidentes desse sistema, uma capacidade de provocação ácida das autoridades.

Esse recurso abre caminho para a infiltração de outras ações rebeldes que miram a destruição do Estado. Portanto, parte da ideia do livro, não coloca como fim e tampouco pinta como salvadora a utilização da mentira como ação contra-hegemônica, mas ela resgata na história do mundo ações individuais e coletivas de natureza semelhante e estimula a exaltação da criatividade por uma perspectiva da rebeldia.

É importante ressaltar que a valorização da mentira neste livro se dá pelo viés de manifestação artística, onde os mentirosos são possíveis performers e suas mentiras podem se materializar em qualquer que seja a linguagem mais adequada para fazê-las explodir. É nesse ponto que se conclama a inversão do objetivo usual do ofício do charlatão – mentia anteriormente para manipular consumidores; agora, mente para desmascarar as mentiras do capitalismo.
Em um segundo momento do livro, reconhece-se a importância do ofício do contador de histórias nos processos educativos em espaços configurados ou não como instituições de ensino. O contador conta ficções, farsas, mentiras, mas isso não confere para suas narrativas uma problemática antiética, sendo que muitas vezes os contos carregam valores morais e éticos nesse ambiente lúdico propositalmente instaurado. As histórias são potentes. As mentiras também.

Sendo assim, a mentira pode ser reconfigurada pelos educadores – e aqui atribui-se uma reverência ao contador de histórias – a fim de se criarem ensejos de uma sociedade que não corresponda aos critérios do capitalismo. As mentiras podem inventar causos exemplares de reação dos oprimidos ao Estado e incitar a subversão criativa rumo a libertação dos povos, e serem contempladas seguramente por uma perspectiva da esfera da Educação.

Por fim, adverte-se aos interessados que este livro foi escrito para a consagração do ritual de formação de um curso de graduação em Artes Visuais. Sustentado pela descrição de performances mentirosas e literatura duvidosa, a pretensão da queda do Estado é reduzida metodologicamente à própria composição literária deste trabalho para efeitos comparativos a cargo do leitor. Nesse contexto, também não deixa de se fazer uma autocrítica ao reconhecer as limitações da mentira no espectro da transformação social, mas assente sobre sua capacidade de inflamação do espírito revolucionário entre os dissidentes do capitalismo.

Patrik e Bert Pohl


Uma Onde à Mentira como Destruição do Estado.

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Saiu o zine BaixaCultura nº1 https://baixacultura.org/2015/06/19/saiu-o-zine-baixacultura-no1/ https://baixacultura.org/2015/06/19/saiu-o-zine-baixacultura-no1/#respond Fri, 19 Jun 2015 13:20:24 +0000 https://baixacultura.org/?p=10260 IMG_20150612_182536

Faz algum tempo que prometíamos uma continuidade no nosso selo editorial que lançou o Efêmero Revisitado em 2011/2012. Diversos contratempos e outros trabalhos infindáveis adiaram esse processo, mas eis que, em junho de 2015, a segunda publicação do selo é lançada: trata-se do Zine BaixaCultura nº1.

O tema escolhido pra edição foi o détournement, a partir de uma reedição de um texto já publicado aqui, o guia para os usuários do deturnamento, e de uma apresentação feita exclusivamente para a publicação. A ideia é dar continuidade a série “Pequenos Grandes Momentos da História da Recombinação”, mas também reeditar alguns textos do site e lançar conteúdos exclusivos relacionados à cultura livre e a (contra) cultura digital, em especial aqueles que achamos que combinam melhor com uma leitura em papel. Não vamos prometer uma periodicidade de lançamentos, mas já tem novos sendo gestados.

O primeiro lançamento do zine vai ocorrer hoje mesmo, 19 de junho de 2015, em Joinville, junto ao curso de jornalismo das faculdades Bom Jesus/Ielusc, conforme o cartaz de divulgação abaixo. A ideia é apresentar o conteúdo e falar um pouco sobre remix, plágio criativo e a ligação disso tudo com o copyleft e o software livre. A partir de segunda-feira o zine vai estar disponível em PDF (gratuito) na página Selo do site. E impresso, com envelope carimbado e adesivo, a módicos R$10 (taxas de envio incluso) ou na banca de zines mais próxima de sua cidade. Novas cidades e eventos de lançamentos serão divulgados aqui.

[Leonardo Foletto]

cartaz joinville
Fotos do evento de lançamento (Mauro Artur Schlieck)

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Como montar:

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Expediente (do zine): Calixto Bento (diagramação), Sheila Uberti (foto da capa – que abre esse post – sobre mosaico criado durante a oficina da artista Silvia Marcon, em Porto Alegre/RS) e Leonardo Foletto (edição).

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Um guia para usuários do détournement (2) https://baixacultura.org/2012/08/16/um-guia-para-usuarios-do-detournement-2/ https://baixacultura.org/2012/08/16/um-guia-para-usuarios-do-detournement-2/#comments Thu, 16 Aug 2012 15:11:15 +0000 https://baixacultura.org/?p=6845

Publicamos aqui a segunda (e última) parte do “guia”, de Guy Debord e Gil J. Wolman.

O texto, escrito em 1956 e publicado pela 1º vez numa revista surrealista belga chamada Les Lèvres Nues #8, faz uma interessante  incursão teórico-prática-irônica sobre “desvios” de obras já existentes para a produção de novas, as vezes de sentido oposto a original. É, como se vê, uma certa pré-história de práticas hoje popularizadas através do remix, remistura, remezcla, mashup, machinima, etc.

Nesta segunda parte, Debord e Wolman tratam de exemplos do détournament, mais ou menos moderados, mais ou menos efetivos. Falam da prática na literatura, mais efetiva no processo da escrita do que no resultado final (“Não há muito futuro no deturnamento de romances inteiros, mas durante a fase transitiva poderia haver um certo número de empreendimentos deste tipo.”)

Metagrafia de Isidore Isou, “sem título”, de 1964.

Na poesia, citam a metagrafia – uma técnica de colagem gráfica inventada pelo romeno Isidore Isou e adotada pelo movimento do letrismo, que inspirou os situacionistas – como uma prática adequada a aplicação do détournament. E tratam o cinema como a área onde o deturnamento pode atingir sua maior efetividade e beleza, já que “os poderes do filme são tão extensos, e a ausência de coordenação desses poderes é tão evidente, que virtualmente qualquer filme que esteja acima da miserável mediocridade provê tema para infinitas polêmicas entre espectadores ou críticos profissionais“.

A tradução para o português desse texto foi realizada por Railton Sousa Guedes, do Arquivo Situacionista Brasileiro/Projeto Periferia (e revisada por nós, que também colocamos alguns links).pescada do e-book. A tradução é a partir do texto em inglês de Ken Knabb, que, por sua vez, traduziu do francês original. Ela (a tradução para o português) foi publicada originalmente no e-book Recombinação, do Rizoma (disponível pra download na nossa biblioteca).

Um guia para usuários do detournament (parte 2)

Guy Debord e Gil J. Wolman

Agora pode-se formular várias leis no uso do deturnamento.

O mais distante elemento deturnado é aquele que contribui mais nitidamente à impressão global, e não os elementos que diretamente determinam a natureza desta impressão. Por exemplo, em uma metagrafia [poema-colagem*] relativa à Guerra Civil Espanhola, a frase que mais destaca o sentido revolucionário é o fragmento de um anúncio de batom: “Belos lábios são vermelhos”. Em outra metagrafia (“A Morte de J.H.”) 125 anúncios classificados expressam um suicídio mais notável que os artigos do jornal que o narram.

As distorções introduzidas nos elementos deturnados devem ser tão simples quanto possível, pois o impacto principal de um deturnamento tem relação direta com a lembrança consciente ou semiconsciente dos contextos originais dos elementos. Isto é bem conhecido. Basta simplesmente notar que se esta dependência da memória insinua a necessidade de determinar o público alvo antes de inventar um deturnamento, este é apenas um caso particular de uma lei geral que governa não apenas o deturnamento mas também qualquer outra forma de ação no mundo.

A idéia da expressão pura, absoluta, está morta; sobrevive apenas temporariamente na forma paródica na medida em que nossos outros inimigos sobrevivem. Quanto mais próximo de uma resposta racional menos efetivo é o deturnamento. Este é o caso de um número bem grande de máximas alteradas por Lautréamont. Quanto mais aparente for o caráter racional da resposta, mais indistingüível se torna do espírito ordinário da réplica, que semelhantemente usa as palavras opostas contra ele. Isto naturalmente não se limita à linguagem falada. Foi nesse sentido que contestamos o projeto de alguns de nossos camaradas que propuseram deturnar um cartaz anti-soviético da organização fascista “Paz e Liberdade” — que proclamava, em meio a imagens de bandeiras sobrepostas dos poderes Ocidentais, “a união faz força” — acrescentando por cima em uma folha menor a frase “e coalizões fazem a guerra”.

O deturnamento através da simples reversão é sempre o mais direto e o menos efetivo. Assim, a Missa Negra reage contra a construção de um ambiente baseado em determinada metafísica construindo outro ambiente na mesma base, que apenas inverte — mas ao mesmo tempo conserva — os valores de tal metafísica. Não obstante, tais reversões podem ter um certo aspecto progressivo. Por exemplo, Clemenceau chamado “o Tigre”+ poderia ser chamado “o Tigre chamado Clemenceau”.

Das quatro leis fixadas, a primeira é essencial e se aplica universalmente. As outras três, na prática, aplicam-se apenas a elementos deturnados enganosos. As primeiras conseqüências visíveis da difusão do uso do deturnamento, fora seu intrínseco poder de propaganda, foram a revivificação de uma multidão de livros ruins, e a extensa (não intencional) participação de seus desconhecidos autores; uma transformação cada vez maior de frases ou obras plásticas produzidas para estar na moda; e acima de tudo uma facilidade de produção que supera em muito, em quantidade, variedade e qualidade, a escrita automática que tanto nos chateia.

O deturnamento não conduz apenas à descoberta de novos aspectos do talento; também colide frontalmente com todas as convenções sociais e legais, e pode ser uma arma cultural poderosa a serviço de uma verdadeira luta de classes. A barateza de seus produtos é a artilharia pesada que derruba todas as muralhas da China do entendimento*. É um verdadeiro meio de educação artística proletária, o primeiro passo para um comunismo literário. No reino do deturnamento se pode multiplicar idéias e criações à vontade. No momento nos limitaremos a mostrar algumas possibilidades concretas em vários setores atuais da comunicação — estes setores separados são significantes apenas em relação às tecnologias atuais, com tudo tendendo a fundir-se em sínteses superiores com o avanço destas tecnologias.

Consuelo, de George Sand, poderia ser relançada no mercado literário disfarçada sob algum título inócuo como “Vida nos Subúrbios”

Aparte dos vários usos diretos de frases deturnadas em cartazes, registros e radiodifusão, as duas aplicações principais de prosa deturnada estão em escritos metagráficos e, em menor grau, na hábil perversão da moderna forma clássica.

Não há muito futuro no deturnamento de romances inteiros, mas durante a fase transitiva poderia haver um certo número de empreendimentos deste tipo. Se um deturnamento fica mais rico quando associado a imagens, tais relações para com textos não são imediatamente óbvias. Apesar das inegáveis dificuldades, acreditamos que seria possível produzir um instrutivo deturnamento psicogeográfico da Consuelo de George Sand, que poderia ser relançada no mercado literário disfarçada sob algum título inócuo como “Vida nos Subúrbios”, ou até mesmo sob um título deturnado, como “A Patrulha Perdida”. (seria uma boa idéia reutilizar deste modo muitos títulos de velhos filmes deteriorados dos quais nada mais permanece, ou de filmes que continuam enfraquecendo as mentes dos jovens nos clubes de cinema).

A escrita metagráfica, não importa quão antiquada possa ser sua base plástica, apresenta oportunidades bem mais ricas para a prosa deturnada, como outros objetos apropriados ou imagens. Pode-se obter uma idéia do significado disso pelo projeto, concebido em 1951 mas eventualmente abandonado por falta de meios financeiros suficientes, que pretendeu fabricar uma máquina de fliperama arranjada de tal forma que o jogo de luzes e trajetórias mais previsíveis das bolas formaria uma composição metagráfica-espacial intitulada Sensações Térmicas e Desejos de Pessoas que Passam pelos Portões do Museu do Cluny Cerca de uma Hora depois do Poente em Novembro. Percebemos desde então que um empreendimento situacionista-analítico não pode avançar cientificamente por meio de tais obras. Não obstante, os meios permanecem satisfatórios para metas menos ambiciosas.

Seria melhor deturnar “O Nascimento de uma Nação” em sua totalidade, adicionando uma trilha sonora que faça uma poderosa denúncia dos horrores da guerra imperialista e das atividades da Ku Klux Klan

É obviamente no reino do cinema que o deturnamento pode atingir sua maior efetividade e, para os que se interessam por este aspecto, sua maior beleza. Os poderes do filme são tão extensos, e a ausência de coordenação desses poderes é tão evidente, que virtualmente qualquer filme que esteja acima da miserável mediocridade provê tema para infinitas polêmicas entre espectadores ou críticos profissionais. Apenas o conformismo dessas pessoas lhes impede descobrir tanto a atração apelativa como as falhas berrantes dos piores filmes.

Para ilustrar esta absurda confusão de valores, podemos observar que “O Nascimento de uma Nação” de Griffith é um dos filmes mais importantes na história do cinema por causa de sua riqueza de inovações. Por outro lado, é um filme racista e portanto não merece absolutamente ser mostrado em sua presente forma. Mas sua proibição total poderia ser vista como lamentável do ponto de vista do secundário, mas potencialmente meritório, domínio do cinema. Seria melhor deturná-lo em sua totalidade, sem a necessidade de sequer alterar a montagem, adicionando uma trilha sonora que faça uma poderosa denúncia dos horrores da guerra imperialista e das atividades da Ku Klux Klan que até hoje continua atuando nos Estados Unidos.

Tal deturnamento — um tanto moderado — é em última análise nada mais que um equivalente moral da restauração de velhas pinturas em museus. Mas a maioria dos filmes merece apenas serem cortados para compor outras obras. Esta reconversão de seqüências preexistentes serão obviamente acompanhadas de outros elementos, musicais ou pictóricos como também históricos. Enquanto a reprodução cinematográfica da história permanecer em grande parte semelhante à reprodução burlesca de Sacha Guitry, alguém poderá ouvir Robespierre dizer, antes de sua execução: “Apesar de tantos julgamentos, a minha experiência e a grandeza de minha tarefa me convence que tudo está bem”. Se neste caso uma apropriada reutilização de uma tragédia grega nos permite exaltar Robespierre, podemos imaginar uma sequência tipo-neorealista, no balcão de um bar de beira de estrada para caminhoneiros, por exemplo, com um motorista de caminhão dizendo seriamente para outro: “Antigamente a ética se restringia formalmente aos livros dos filósofos; nós a introduzimos no governo das nações”. Percebe-se que esta justaposição elucida a idéia de Maximilien, a idéia de uma ditadura do proletariado*.

A luz do deturnamento propaga-se em linha reta. À medida que a nova arquitetura parece ter começado com uma fase barroca experimental, o complexo arquitetônico — que concebemos como a construção de um ambiente dinâmico relacionado a estilos de comportamento — provavelmente deturnará as formas arquitetônicas existentes, e em todo caso fará um uso plástico e emocional de todos os tipos de objetos deturnados: arranjos cuidadosos de coisas como guindastes ou andaimes de metal substituirão uma tradição escultural defunta. Isto choca apenas os mais fanáticos admiradores dos jardins estilo-francês.

Comenta-se que em sua velhice D’Annunzio, aquele suíno pró-fascista, mantinha a proa de um barco torpedeiro em seu parque. Sem considerar seus motivos patrióticos, a idéia de tal monumento não está isenta de um certo charme. Se o deturnamento fosse estendido a realizações urbanísticas, não seriam poucas as pessoas que seriam afetadas pela exata reconstrução em uma cidade de um bairro inteiro em outro. A vida nunca pode estar demasiado desorientada: o deturnamento neste nível realmente a faria bela. Os próprios títulos, como vimos anteriormente, são um elemento básico no deturnamento. Isto resulta de duas observações gerais: que todos os títulos são intercambiáveis e que eles têm uma importância decisiva em vários gêneros.

Todas as histórias de detetive “Série Noir” são extremamente semelhantes, contudo basta simplesmente mudar continuamente os títulos para garantir uma considerável audiência. Na música um título sempre exerce uma grande influência, contudo a escolha é bem arbitrária. Assim não seria uma má idéia fazer uma correção final ao nome “Sinfonia Heróica” mudando-a, por exemplo, para “Sinfonia Lênin”*.

O título contribui fortemente no deturnamento de uma obra, mas há uma inevitável ação contrária à obra no título. Assim pode-se fazer extenso uso de títulos específicos retirados de publicações científicas (“Biologia Litoral dos Mares Temperados”) ou militares (“Combate Noturno de Pequenas Unidades de Infantaria”), ou até mesmo de muitas frases encontradas nos livros ilustrados infantis (“Paisagens Maravilhosas Cumprimentam os Passageiros”).

Para encerrar, mencionaremos rapidamente alguns aspectos do que chamamos de ultradeturnamento, quer dizer, as tendências para um deturnamento que atue na vida social cotidiana. Pode-se dar outros significados a gestos e palavras, e isto tem sido feito ao longo da história por várias razões práticas. As sociedades secretas de China antiga fizeram uso de técnicas bem sutis de sinalização que abrangiam a maior parte do comportamento social (a maneira de organizar xícaras; de beber; de declamar poemas interrompendo-os em determinados pontos). A necessidade de um idioma secreto, de contra-senhas, é inseparável de qualquer tendência em jogo. No final das contas, qualquer sinalização ou palavra é suscetível de ser convertida em qualquer outra coisa, até mesmo em seu contrário.

Os insurgentes monarquistas do Vendée, por conduzirem a asquerosa imagem do Sagrado Coração de Jesus, foram chamados de Exército Vermelho. No domínio limitado do vocabulário político de guerra esta expressão foi completamente deturnada durante um século. Fora da linguagem, é possível usar os mesmos métodos para deturnar roupas, com todas suas fortes conotações emocionais. Aqui novamente encontramos a noção de disfarce que é inerente ao jogo.

Finalmente, quando alcançamos à fase de construir situações — a meta última de toda nossa atividade — todo mundo será livre para deturnar situações inteiras mudando deliberadamente esta ou aquela condição que as determina.

Não apresentamos estes métodos brevemente expostos aqui como algo inventado por nós, mas como uma prática geralmente difundida a qual nos propomos sistematizar.

Em si mesma, a teoria do deturnamento bem pouco nos interessa. Contudo achamos que ela está ligada à quase todos os aspectos construtivos do período pré-situacionista da transição. Assim seu enriquecimento, pela prática, parece necessário.

Futuramente prosseguiremos no desenvolvimento dessas teses.

GUY DEBORD E GIL WOLMAN, 1956

*1. A metagrafia foi uma técnica de colagem gráfica inventada pelo romeno Isidore Isou e adotada pelo movimento do letrismo, por ele liderado. Mais sobre os letristas nessa entrevista de Orson Welles com Isou.(Nota do Rizoma)

*2. Os autores estão deturnando uma sentença do Manifesto Comunista: “O baixo preço das mercadorias da burguesia foi a artilharia pesada que derrubou todas as muralhas da China, que forçou a capitulação do intenso, obstinado e bárbaro ódio aos estrangeiros”. (N. do Tradutor)
*3. Na primeira cena imagina-se uma frase de uma tragédia grega (Oedipus em Colonus de Sófocles) sendo colocada na boca de Maximilien Robespierre, líder da Revolução francesa. Na segunda, uma frase de Robespierre sendo colocada na boca de um motorista de caminhão.
*4. Beethoven originalmente nomeou sua terceira sinfonia em homenagem a Napoleão (tido como defensor da Revolução Francesa), mas quando Napoleão coroou a si mesmo como imperador o compositor rasgou furiosamente tal dedicatória renomeando-a como “Heróica”. A alusão a Lenin nesta passagem (como eventualmente é mencionado em “estados operários” no “Relatório na Construção de Situações” de Debord) é um vestígio de um vago anarco-trotskyismo nos primitivos letristas, em um período politicamente menos sofisticado.

Imagens: 1, 3, 4 daqui; metagrafia (daqui) e O Nascimento (daqui).
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Um guia para usuários do détournement (1) https://baixacultura.org/2012/08/10/um-guia-para-usuarios-do-detournement-1/ https://baixacultura.org/2012/08/10/um-guia-para-usuarios-do-detournement-1/#respond Fri, 10 Aug 2012 17:50:23 +0000 https://baixacultura.org/?p=8840

Os situacionistas, você sabe, foram um bando de doidos teóricos-práticos-políticos que assaltaram o status quo reinante do final dos 1950 e nos 1960 com suas ideias de que “a arte é revolucionária, ou não é nada“.

Guy Debord e Raul Vaneigem foram seus, talvez, principais nomes. Debord, muito tageado por aqui, é o autor do ultra-citado e pouco lido “A Sociedade do Espetáculo“, livro essencial até como leitura nas faculdades de comunicação brasileiras.

Em 1956, Debord e Gil J. Wolman, outro situacionista francês, publicaram um “guia para um possível usuário do détournement” numa revista surrealista belga chamada Les Lèvres Nues #8. Nesse texto, introduziam, conceituavam e abusavam da prática citada – claro que com muito sarcasmo e ironia, talvez a fim de que ninguém levasse totalmente a sério aquilo que eles diziam.

As duas leis fundamentais do detournament apontadas inicialmente seriam 1) a perda de importância de cada elemento “detourned” (ou “detunado”, numa tradução literal para o português), que pode ir tão longe a ponto de perder completamente seu sentido original, e, ao mesmo tempo, a 2) reorganização em outro conjunto de significados que confere a cada elemento um novo alcance e efeito.

No “guia”, são apresentados dois tipos principais: os “menores“, onde é feito um desvio de um elemento que não tem importância própria, e que portanto toma todo seu significado do novo contexto onde foi colocado; e os “enganadores“, onde é feito o desvio de um elemento intrínsecamente significativo, o qual toma um dimensão diferente a partir do novo contexto.

Debord e sua gangue situacionista

Publicamos a seguir o “guia”. Dividimos em duas partes, para facilitar a fruição, porque sabemos que a leitura longa na tela costuma ser mais dispersa e difícil que no papel (até quando?).

Por que publicar esse texto aqui no BaixaCultura? Não sabemos bem. Acreditamos que ele, em diversos aspectos, é um dos precursores teóricos mais interessantes do que hoje chamamos de remix, remistura, remezcla, etc. Lembre-se: o texto foi escrito em 1956, há imensos 56 anos atrás, mais ou menos na mesma época que William Burroughs e Bryon Gisin experimentavam com o cut-up.

Publicamos aqui também para dar sequência a ideia de fazer circular a linda biblioteca rizomática, de onde a tradução para o português desse texto foi pescada, feita por Railton Sousa Guedes, do Arquivo Situacionista Brasileiro/Projeto Periferia (e revisada por nós, que também colocamos alguns links). A tradução é a partir do texto em inglês de Ken Knabb, que, por sua vez, traduziu do francês original. Ou seja, estamos falando mais de uma outra edição do que propriamente de uma tradução.

Um guia para usuários do detournament

Guy Debord e Gil J. Wolman

Toda pessoa razoavelmente atenta em nossos dias está alerta ao óbvio fato de que a arte já não pode mais ser considerada como uma atividade superior, ou nem mesmo como uma atividade compensatória à qual alguém honradamente poderia dedicar-se. A razão para esta deterioração é o claro aparecimento de forças produtivas que necessitam de outras relações de produção e de uma nova prática de vida. Na atual fase da guerra civil em que estamos engajados, e em íntima conexão com a orientação que estamos descobrindo para certas atividades superiores por vir, acreditamos que todos os meios conhecidos de expressão irão convergir para um movimento geral de propaganda que terá que abarcar todos os aspectos eternamente interrelacionados da realidade social.

Há várias opiniões contraditórias sobre as formas e até mesmo sobre a verdadeira natureza da propaganda educativa, essas opiniões geralmente refletem uma ou outra variedade do reformismo político da moda. Basta-nos dizer que, em nossa visão, as premissas para revolução, tanto no aspecto cultural como no estritamente político, não apenas estão maduras como começaram a apodrecer.

Não se trata aqui de voltar ao passado, o que é reacionário; até mesmo os “modernos” objetivos culturais são em última análise reacionários na medida em que dependem de formulações ideológicas de uma sociedade passada que prolongou sua agonia de morte até o presente. A única tática historicamente justificada é inovação extremista. A herança literária e artística da humanidade é usada para propósitos de propaganda partidária. É claro que é necessário ir além de qualquer idéia meramente escandalosa. A oposição à noção burguesa da arte e do gênio artístico tornou-se um chapéu roto. O bigode que Duchamp rabiscou na Mona Lisa não é mais interessante que a versão original daquela pintura. Temos agora que empurrar este processo ao ponto de negar a negação.

Bertolt Brecht revelou em uma recente entrevista no “Françe-Observateur” que ele fez cortes em clássicos do teatro de forma a torná-los mais educativos – nesse aspecto ele está mais próximo que Duchamp da orientação revolucionária que proclamamos. É necessário destacar, contudo, que no caso de Brecht tais salutares alterações são estreitamente limitadas por seu infeliz respeito à cultura definida pelos parâmetros da classe governante — aquele mesmo respeito, ensinado tanto nos jornais dos partidos operários como também nas escolas primárias da burguesia, que induz até mesmo os distritos operários mais vermelhos de Paris a sempre preferir “El Cid” à “Mãe Coragem” [de Brecht].

Na realidade, é necessário eliminar todos resquícios da noção de propriedade pessoal nesta área. O aparecimento das já ultrapassadas novas necessidades por obras “inspiradas”. Elas se tornam obstáculos, hábitos perigosos. Não se trata de gostar ou não delas. Temos que superá-las. Pode-se usar qualquer elemento, não importa de onde eles são tirados, para fazer novas combinações. As descobertas de poesia moderna relativas à estrutura analógica das imagens demonstram que quando são reunidos dois objetos, não importa quão distantes possam estar de seus contextos originais, sempre é formada uma relação. Restringir-se a um arranjo pessoal de palavras é mera convenção. A interferência mútua de dois mundos de sensações, ou a reunião de duas expressões independentes, substitui os elementos originais e produz uma organização sintética de maior eficácia. Pode-se usar qualquer coisa.

Desnecessário dizer que ninguém fica limitado a corrigir uma obra ou a integrar diversos fragmentos de velhas obras em uma nova; a pessoa pode também alterar o significado desses fragmentos do modo que achar mais apropriado, deixando os imbecis com suas servis referências às “citações”. Tais métodos paródicos foram freqüentemente usados para obter efeitos cômicos. Mas tal humor é o resultado das contradições dentro de uma condição cuja existência é tida como certa. Como o mundo da literatura quase sempre nos parece tão distante quanto o da Idade da Pedra, tais contradições não nos fazem rir. É então necessário conceber uma fase paródica-séria onde a acumulação de elementos deturnados, longe de contribuir para provocar indignação ou riso em sua alusão a algum trabalho original, expresse nossa indiferença para com um inexpressivo e desprezível original, e se interesse em fazer uma certa sublimação.

Lautréamont foi tão longe nesta direção que ele ainda é parcialmente mal compreendido até mesmo pelos seus mais declarados admiradores. A despeito de suas óbvias aplicações deste método na linguagem teórica de Poiesies — onde Lautréamont (utilizando as máximas de Pascal e Vauvenargues, particularmente) se esforça por reduzir o argumento, através de sucessivas concentrações, tão somente a máximas — um certo Viroux, três ou quatro anos atrás, causou considerável espanto ao demonstrar conclusivamente que “Os Cantos de Maldoror” é um grande deturnamento de Buffon e de outras obras de história natural, entre outras coisas.

O fato dos prosélitos do Figaro, como o próprio Viroux, serem capazes de ver nisto uma justificação para desacreditar Lautréamont, e de outros acreditarem que tinham que defendê-lo elogiando sua insolência, apenas testifica a senilidade destes dois agrupamentos de parvos em elegante combate. Um lema como «o plágio é necessário, o progresso o implica» ainda é pobremente compreendido, e pelas mesmas razões que a famosa frase sobre a poesia, que “deve ser feita por todos”.

Aparte da obra de Lautréamont — que bem à frente de seu tempo foi em grande parte uma crítica precisa — as tendências para o deturnamento que podem ser observadas na expressão contemporânea são em sua maior parte inconscientes ou acidentais. É na indústria da propaganda, mais do que na decadente produção estética, onde estão os melhores exemplos. Podemos em primeiro lugar definir duas categorias principais de elementos deturnados, levando em consideração se o ajuntamento vem ou não acompanhado por correções inseridas nos originais. Temos aqui détournement secundários e deturnamentos enganosos.

O détournement secundário é o deturnamento de um elemento que não tem nenhuma importância em si mesmo e que tira todo seu significado do novo contexto em que foi colocado. Por exemplo, um recorte de jornal, uma frase neutra, uma fotografia comum.

O détournement enganoso, também chamado détournement de proposição-premonitória, é em contraste o deturnamento de um elemento intrinsecamente significante que deriva de um diferente escopo de um novo contexto. Por exemplo, um slogan de Saint-Just ou um trecho de um filme de Eisenstein. Obras extensamente deturnadas são usualmente compostas por uma ou mais séries de deturnamentos enganosos e secundários.

Notas: A palavra francesa détournement significa desvio, diversão, reencaminhamento, distorção, abuso, malversação, seqüestro, ou virar ao contrário do curso ou propósito normal. Às vezes é traduzida como  “diversão”, mas esta palavra gera confusão por causa de seu significado mais comum como entretenimento inativo. Como a maioria das outras pessoas que de fato pratica o deturnamento, eu simplesmente preferi aportuguesar a palavra francesa. (Nota do Tradutor)
Nota do Rizoma: Embora traduzido por Raílton como “deturnação”, optamos pelo uso corrente, aqui neste site, do termo “deturnamento”, já presente em outros textos sobre o assunto.
Nota do BaixaCultura: Preferimos usar, no título, o termo francês original “détournement”.

(a segunda parte vem tá aqui).

Créditos: 1, 3, 4 daqui; 2 (situacionistas).
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O roubo de ideias só se discute onde elas não existem https://baixacultura.org/2012/08/03/o-roubo-de-ideias-so-se-discute-onde-elas-nao-existem/ https://baixacultura.org/2012/08/03/o-roubo-de-ideias-so-se-discute-onde-elas-nao-existem/#respond Fri, 03 Aug 2012 18:56:15 +0000 https://baixacultura.org/?p=8775

Os acadêmicos sem imaginação merecem a polícia, já que desejam algum tipo de madrasta, do mesmo modo que a universidade, quando atua como polícia, não merece metade de um cérebro que se dispõe a gastar tempo com ela. É impraticável discutir o plágio, em seus lances mais instigantes, ou enquanto questão, quando os plagiadores produzidos nas academias não passam de ladrões sem graça, e quando a política das casas de saber é produzir cartilhas sobre como não copiar a si mesmo.

Quando Guy Debord, no magistral Panegírico, registra que a citação desviada não vale mais a pena porque ninguém pode identificá-la, parece agora um gesto de boa vontade. Aqueles que podem praticá-la não a reconheceriam nem com um apud grudado na testa, e os que a praticam, é porque não sabem fazer mais nada.

Em todo caso, as universidades sempre viram o plágio como puro roubo; também por isso as experiências de fusão de materiais se efetivaram sobretudo nas artes ou em conexão com elas. Me parece, como já escrevi acerca de Kenneth Goldsmith, que atualmente se coloca um falso problema, de que toda criação é plágio, ou remix, como se interessasse uma técnica de despersonalização da escrita, e não que o escritor seja algo entre multiplicidades. Não se resolve um problema de autoridade concedendo-a a um senhor diverso, e além do mais esse tipo de formulação, “tudo é isto ou aquilo”, só poderia servir para dissolver um problema, não vale nada se apenas o reverte para instituir um totem.

Enquanto o poeta da Casa Branca não larga o osso de seu fantasma moderno, a universidade perpetua um tipo de autoria de casta, em que o principal é deixar claro a quem se pertence, por declarações de “recorte”, “viés” e comprometimento com os tópicos dados por um campo. [No mestrado em Ciências Sociais da UFMA, a cada dia um “novo trabalho” explica o bumba-meu-boi, o reggae, o tambor de crioula e até mesmo o brega segundo Pierre Bourdieu, esta verdadeira prótese].

O rigor da documentação (no fundo um recurso cientificista, a “exigência da prova”, embora sirva para alguma coisa) também serve a esse mecanismo. Recentemente, comentando uma simples exposição de motivos da mudança de meu projeto de doutorado, um raciocínio em voz alta de três páginas, uma professora sugeriu que eu apresentasse fontes, “porque senão poderiam pensar que saiu tudo da sua cabeça”. De fato, tudo saiu da minha cabeça, mas felizmente ela é povoada por muita gente diferente de mim. Como se vê, demonstrar que não se pensa sozinho é a principal ocupação de quem deveria estar pensando alguma coisa, por isso a escrita universitária é cheia de barricadas.

A lógica hegemônica do texto acadêmico só conhece um sistema de citação, ao qual a escrita está subordinada – e não o contrário. As citações tomam partido de um sistema de autoria, que possui destacados traços semióticos, como a recusa da igualdade de termos com o texto (sobrenome em caixa alta, citações longas destacadas da narrativa). É por isso que, a não ser por quem não é bobo nem nada, já se sabe como corre a história: após elencar “todos” os autores que já tocaram no assunto, o acadêmico acrescenta sua vírgula.

Ah, a academia Jesús Martín-Barbero

Um livro muito popular em certos departamentos de Comunicação ilustra essa curiosa mentalidade. Em “Dos meios às mediações“, o professor Jesús Martín-Barbero faz resenha de um número assombroso de livros e autores, para ao final de cada uma delas mostrar de que modo ninguém abordou a questão que interessava a ele próprio. Até para dizer o que supostamente não se disse é necessário citar, ao preço de responsabilizar outros autores por coisas que sequer lhes preocupava. Aparentemente, é preciso falsear muitos autores para se tornar um.

Parece pouco brigar com um formato, mas é um modo de lhe recusar a transparência, ou naturalidade, que como em tudo o mais não existe; não se deve supor que uma estrutura lógica possa apenas ser preenchida pelos conteúdos “propriamente científicos”. Se o Iluminismo legou uma noção essencialista da autoria, na escrita acadêmica é a lógica do formato que se toma por essência; e aos que gostam de dizer que ela é útil, esta modalidade de escrita, aos que a absolvem por sua utilidade, seria preciso lembrar que essa eficácia é o principal mantenedor de sua hegemonia.

A citação direta, entre aspas e destacada do texto, que pode perfeitamente funcionar, deve muito de sua manutenção a uma inabilidade para digerir. É mais fácil mantê-la intacta, para não fazer bobagem, para não mudar nada.

Me lembro da graduação, quando uma excelente monografia do curso de História da UFMA não pôde ser aceita na biblioteca da universidade por não ter um resumo (o orientador, puto da vida, escreveu um resumo de próprio punho, na mesma hora, a caneta, e depositou o trabalho). Via twitter, tem uns meses, Alexandre Nodari dizia que um departamento não queria receber a sua tese porque na capa não constava seu nome completo. Quando estava no mestrado, fui “aconselhado” a utilizar palavras-chave diferentes das que usei, porque estas não “pertenciam ao campo”, embora dissessem algo sobre o texto.

Ocorre na universidade o mesmo que no jornalismo ou em qualquer produção intelectual que se queira normatizar: ela seca, condenada a uma forma, porque aí basta preencher alguma coisa, e é a vitória dos funcionários. Seria melhor algo semelhante ao corpo de Tetsuo em Akira, de Katsuhiro Otomo, que não cessa de crescer porque a força dentro dele possui enorme apetite, e absorve outras coisas em si, assimilando porta-aviões, edifícios, aviões ao corpo que não basta. Como se sabe, o preço é a sua identidade, que se dissolve na força, assim como um autor aciona coisas a perder de vista, a começar da sua.

Para que se pense, não importa de onde as ideias vêm, mas para que servem. Esta fixação da retaguarda, inclusive, é também razão para a autoria ser uma grife, para uma ideia valer tanto quanto vale seu autor no feirão do imaginário.

Uma ideia não precisa de autor para bater na mente. Felizmente, muitos entendem o que isso quer dizer. A pirataria forçou muitas portas de entrada para o século 21, que ainda não começou, e a universidade está ocupada retocando as paredes que sobraram.

[Reuben da Cunha Rocha, fundador e colaborador esporádico do BaixaCultura]

Créditos imagens: 1, 2

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A biblioteca rizomática de Ricardo Rosas https://baixacultura.org/2012/03/09/a-biblioteca-rizomatica-de-ricardo-rosas/ https://baixacultura.org/2012/03/09/a-biblioteca-rizomatica-de-ricardo-rosas/#comments Fri, 09 Mar 2012 15:28:40 +0000 https://baixacultura.org/?p=6375

Ricardo Rosas foi uma das figuras mais proeminentes do ciberativismo brasileiro pré-popularização das redes sociais. Em 2002, quando Mark Zuckerberg recém entrava em Harvard e o Twitter não era nem ideia, o cearense de Fortaleza criou o Rizoma.net, um site que, ao longo de sete anos de existência, abrigou o melhor acervo nacional de artigos sobre hackativismo, contracultura e intervenção urbana.

Em 2003, Rosas fincaria de vez sua importância na cultura digital brasileira ao ser um dos organizadores do Mídia Tática Brasil, histórico encontro inspirado no holandês Next5Minutes, realizado na Casa das Rosas e no SESC, em plena Av. Paulista, entre 13 e 16 de março, que reuniu Gilberto Gil, John Perry Barlow, Richard Barbrook, Peter Pál PebartGiuseppe Cocco, André Lemos, Beá Tibiriçá, Gilson Schwartz, Hernani Dimantas, Lucas Bambozzi, Suely Rolnik, dentre outras tantas figuras e coletivos interessantes e representantivos da cultura digital da época. Foi um dos primeiros encontros no país a aproximar artistas, hackers, aficcionados por tecnologia e ativistas políticos.

Capa do site do Mídia Tática 2003

Além disso, o Mídia tática de 2003 é considerado por muitos o berço das políticas de cultura digital no MinC brasileiro. Foi ali que, segundo conta Claudio Prado, ele e Gilberto Gil – que mediou a mesa de abertura com John Perry Barlow, Richard Barbrook, Danilo Santos de Miranda (diretor regional do SESC), Beá Tibiriçá (na época, coordenadora do Governo Eletrônica da Prefeitura de SP) e Ricardo Rosas – tiveram o primeiro papo acertando os pontos para o trabalho com cultura digital no mistério. Gil já estava antenado no assunto, muito alimentado pelo antropólogo Hermano Vianna.

A mesa de abertura do Mídia Tática foi uma faísca só. Dizem aqueles que lá estiveram que foi um momento histórico: Barbrook,  professor da universidade de Westminster nos EUA (e que é comunista) detonou Barlow, vice-presidente da Electronic Freedom Foundation (e que já foi do partido Republicano); ambos tinham (ainda tem?) visões diferentes de mundo e, também, de cultura digital.

[Para os que ficaram curiosos, os arquivos desse debate podem ser baixados, parte 1 e parte 2; agradeço ao Felipe Fonseca pelos links].

A partir do Mídia Tática, Claudio Prado encontraria José Murilo Jr,  que ate hoje é o coordenador de cultura digital do MinC, Uirá Porã, Sérgio Amadeu e outras figuras que seriam alguma das principais responsáveis por colocar na cabeça do governo, via Gil, os conceitos de software livre, inclusão digital e copyleft – ideias que, hoje, sabemos que andam amplamente esquecidas pela ministra Ana de Hollanda.

Capa de Anarquitextura, do Rizoma

Ricardo faleceu em 11 de abril de 2007, em sua cidade natal, Fortaleza, por problemas de saúde. A relevância de seu trabalho também fez com que fosse homenageado em Fortaleza dando nome ao prêmio de arte e cultura digital da cidade.

De 2002 a 2009, o Rizoma.net abrigou um acervo significativo de artigos, traduções, entrevistas sobre hackativismo, contracultura e intervenção urbana. Parte desse acervo saiu do ar com o site, mas foi recuperado pelo coletivo CCR (Centro de Criação de Ruídos), que se dispôs a editorar em PDF os textos das seções do site. Num esforço conjunto com o Vírgula-imagem e com Jesus – assim se identificou o voluntário que enviou as últimas contribuições por email, segundo conta a Select – criou-se uma página onde estão disponíveis todos os PDFs e links.

Tem muita coisa boa. São 18 PDFs disponibilizados para download e visualização no Issuu, em edições intituladas “Neuropolítica“, “Lisergia Visual“, “Hierografia“, “Desbunde“, “Anarquitextura“, “Recombinação“, dentre outros. Todos são documentos importantes da contracultura, digital ou não, brasileira, e interessarão muito aos curiosos sobre o assunto.

Capa de "Recombinação"

Para se ater aquele tema que gostamos mais de falar por aqui, destacamos a edição sobre “Recombinação“. São 153 páginas de artigos, entrevistas e traduções em 37 textos que todos, sem excessão, poderiam ser abordados em posts diferentes por aqui. Tem Critical Art Ensemble com “Plágio Utópico, Hipertextualidade e Produção Cultural Eletrônica“, que re-plagiamos nos posts “Revalorizar o Plágio na Criação“; “Copyright e Maremoto“, dos italianos do Wu Ming, ambos textos do coletivo Baderna.org, que organizou a maravilhosa coleção Baderna da Conrad.

Brasil?  Tem “Manifesto da Poesia Sampler“, do Círculo de Poetas Sampler de São Paulo. “Por que somos contra a propriedade intelectual“, de Pablo Ortellado; “O que é arte xerox“, de Hugo Pontes”. “Entrevista o coletivo Re:Combo“, por Giselle Beiguelman. “A Cultura da Reciclagem“, por Marcus Bastos.

Traduções de textos clássicos? Tem “Montagem“, de Sergei Einsenstein. “Um Guia para o usuário do Detournament“, de Gil Wolman e Guy Debord (que já comentamos por aqui). “O método do cut-up“, de William Burroughs.

E muito mais coisas legais, que não vamos citar mais para não ficar cansativo. Melhor: vamos, nos próximos meses, republicar algum desses textos, com uma apresentação e/ou ensaio crítico – ou, caso precise, de alguma atualização. É uma forma de divulgá-los mais amplamente e, também, homenagear o belo legado que o Rizoma e Ricardo Rosas deixaram.

Capa de "Afrofuturismo", do Rizoma

Pra encerrar este post, vai uma compilação de textos que Rosas deixou, organizado por Marcelo Terça-Nada, do Vírgula-Imagem:

 Táticas de Aglomeração – Publicação do Reverberações 2006
Gambiarra: alguns pontos para se pensar uma tecnologia recombinante (PDF) – Caderno VideoBrasil
Nome: coletivos | Senha: colaboração – FILE / Sabotagem
Notas sobre o coletivismo artístico no Brasi – Trópico/UOL
Hibridismo Coletivo no Brasil: Transversalidade ou Cooptação? – Fórum Permanente/Fapesp
Alguns comentários sobre Arte e Política – Canal Contemporâneo
Hacklabs, do digital ao analógico (tradução) – Suburbia
The Revenge of Lowtech : Autolabs, Telecentros and Tactical Media in Sao Paulo (PDF) – Sarai.net

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O falso problema da escrita não-criativa https://baixacultura.org/2012/03/02/o-falso-problema-da-escrita-nao-criativa/ https://baixacultura.org/2012/03/02/o-falso-problema-da-escrita-nao-criativa/#comments Fri, 02 Mar 2012 18:39:16 +0000 https://baixacultura.org/?p=6395

Depois que Kenneth Goldsmith, o poeta-dândi por trás do belo acervo de arte experimental do ubuweb, lançou a ideia da escrita não-criativa, parece que um caminhão de fichas começaram a cair no entendimento das cacholas lítero-digitais. Não foram poucos os que se impressionaram com a possibilidade de produzir uma literatura somente a partir de outros textos – ou com a ideia de fazer isso abertamente, através de um curso de escrita não-criativa, uma simpática ironia a proliferação nos EUA (e também no Brasil) de cursos de escrita criativa.

Nós mesmos: lemos a entrevista de Goldmsith na Select – a porta de entrada da escrita não-criativa para a maioria, que depois foi reciclada/sensacionalizada pela Folha Ilustrada – e nos impressionamos. O remix que o Mr. Ubuweb fazia da ideia do detournement de Debord e GIl Wolman, do cut-up de Burroughs e Gysin e de outras tantas práticas não assumidas de roubo na criação veio como uma possível via seguraatual para o nosso dilema mortal de criar histórias na era do compartilhamento e do livre acesso a (quase) tudo.

Mas depois da ideia se tornar papo comum (e de boteco) entre os interessados no assunto e aparecer em diversos posts por aqui, começam a vir algumas críticas e provocações. Uma das que pescamos e trazemos aqui é do nosso caro Reuben da Cunha Rocha, jornalista, poeta, tradutor e doutorando em comunicação na USP e um dos fundadores do BaixaCultura.

Reuben continua desafiando ideias consensuais em seu novo espaço na rede, o webzine Cavalo Dada, e não poderia deixar de dar seus centavos ao debate sobre a escrita não-criativa. É de lá que roubamos este texto logo abaixo, escrito em 10 de dezembro de 2011.

Beckett,que a tudo observa do alto do ubuweb

A provocação final para trazê-lo para o debate foi a conversa minha (Leonardo) com Marcelo Noah no programa Elefante, ontem à tarde, na webrádio Minima.fm (que tem uma ótima programação e um bom slogan: “Mais que no ar, no wireless“). A ideia era falar sobre cultura livre, música e outros papos decorrentes destes, mas, sem querer querendo como nem porquê, me peguei falando um tantinho da escrita não-criativa by Goldsmith.

Pior: fui tentado a explicar para quem ouvia a rádio o que seria a coisa toda, inclusive com a ressalva de que isso não é a “morte” da escrita criativa, mas mais uma bifurcação de linguagem (?) que está se desenvolvendo potencializado pela cultura digital.

A conversa me soou um alerta, um “peraí, o que significa esse papo mesmo?”. Foi aí que a provocação de Reuben, lida tempos atrás, me retornou enorme, e não tive outra escolha se não compartilhar ela aqui abaixo como uma saudável crítica ao consenso oba oba.

[Leonardo Foletto]

O falso problema de K. Goldsmith

Reuben da Cunha Rocha

Que a dicotomia “escrita criativa”//”escrita não-criativa” seja um falso problema dá-se a ver no fato de o questionamento da autoria nascer c/ a própria autoria; isto é, se a autoria é um fenômeno moderno tal como a conhecemos, o plágio criativo também o é, como atesta a energia que gigantes da modernidade como Lautréamont ou Walter Benjamin nele empregaram, o impulso de nutrição que o roubo representa em suas obras. O falso problema se instaura ainda mais confortavelmente na poltrona das veleidades quando se nota que, enormíssimos saqueadores, seus nomes permanecem inscritos na história da autoria, bem como é Kenneth Goldsmith quem gira o mundo concedendo entrevistas, colaborando em simpósios e oferecendo cursos. Seu rosto, ao contrário do de Lautréamont, já é bastante conhecido.

Me sinto óbvio escrevendo algo como isto, mas circundado pelo que se tem dito sobre o assunto, e evidentemente admirando, como admiro, a obra & presença de Kenneth Goldsmith entre os humanos, tenho a impressão de que o poeta torna em totem um dilema c/ o qual não deveríamos sequer nos comprometer. É como os teóricos franceses, nalgum ponto do século XX, digladiando-se c/ o problema do significante/significado quando bastaria contorná-lo, já havendo disponíveis formulações mais produtivas acerca da natureza da linguagem. No caso de Goldsmith, quando detecta em dada função exercida pela autoria a prepotência p/ a qual o ego serve muitas vezes de escudo, compreende que ela não encerra os limites da criação mas ignora que nada lhe encerra os limites, entrando nesse ramerrão de “o futuro da escrita é assim & assado”.

Não interessa o contrário do autor, ou o contrário da autoria; interessa é que a criação não seja uma instância de autoridade, e que aquilo que o autor propõe, que o proponha primeiro a si próprio. Me vêm à mão, à lembrança, uma bela fala de José Celso Martinez Corrêa acerca do carnaval enquanto entrega à dissolução coletiva na qual o ser atinge seu mais alto brilho, & a simples presença de um livro como Curare, de Ricardo Corona, gesto por meio do qual, através do poeta, uma língua & um povo se dão à luz. Não há nada de libertário nesta ou naquela técnica de escrita, a peleja mais interessante está, me parece, no esquecimento das funções coletivas da arte, sua notória irrelevância, cujo nome mais conhecido é “entretenimento”. Quanto ao sujeito, tudo está em exercê-lo como grande domesticador ou em excitá-lo como porta perceptiva, canal p/ tudo o que existe. Neste ponto, ter uma ideia ou apropriar-se de uma ideia são recursos, dois entre tantos — a criação sempre esteve em aberto, ao contrário de muitas cabeças.

Que a linguagem nos diga coisas das quais sequer suspeitamos, inclusive em se tratando de algo escrito por nós mesmos, é uma experiência que não escapa a ninguém que se pronuncie — é a raiz dos mal-entendidos, das ambiguidades, das polissemias. A isto uns não reagem bem, voltando-se às aberturas de sua obra c/ o clássico “não entenderam nada”, quando nem sempre é este o caso; a outros alegra que a obra escape de seus domínios e sirva a outros que dela se apropriem. O que importa não é eleger o “não-eu” contra o “eu”, mas que “eu” não se cristalize nunca, que se deixe modificar sempre que necessário, inclusive pelo produto de suas mãos — neste sentido, não é que um poema expresse algo, mas que o revele, inclusive ao poeta. Caso contrário é apenas um novo autoritarismo — veja-se o que diz Goldsmith nesta entrevista, “não é tanto o que nós escrevemos, mas sim aquilo que decidimos reformular o que faz um escritor melhor que outro”. De minha parte, desde que percebi que viveria pela poesia, jamais me ocorreu que se tratasse de uma competição

Créditos fotos: daqui e do UbuWeb.
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Pequenos grandes momentos ilustrados da história da recombinação (1): Détournement https://baixacultura.org/2010/05/10/pequenos-grandes-momentos-ilustrados-da-historia-da-recombinacao-1-detournement/ https://baixacultura.org/2010/05/10/pequenos-grandes-momentos-ilustrados-da-historia-da-recombinacao-1-detournement/#comments Mon, 10 May 2010 11:23:50 +0000 https://baixacultura.org/?p=2886 .

Desde o início do BaixaCultura, temos falado de alguns tópicos que envolvem o histórico da recombinação voltada à arte e a cultura. Reuben comentou aspectos específicos dessa questão na tradução do pequeno manual do festival do plágio (parte I e II), um evento interessantíssimo criado por Stewart Home na Inglaterra dos anos 80 e influenciado pelo situacionismo, punk, neoísmo e outras vanguardas artísticas da qual o próprio Home tratou em seu livro “Assalto à Cultura“, um levantamento histórico e sarcástico das vanguardas artísticas do século XX.

Como você deve supor (ou não), muito se tem conversado sobre as mudanças que a rede e o compartilhamento de arquivos trazem para a sociedade, mas muito pouco tem se tratado das práticas criativas ligadas ao roubo que a rede também potencializa demais, ao colocar a dois toques do mouse um mundo de material prontinho para ser baixado, visto e usado como bem se entende (ou não, se você não quiser se incomodar com os barões do copyright). Como dissemos neste post, é natural que o debate mantenha o foco na recepção, pois as novas práticas de distribuição e consumo de cultura dizem respeito a toda a sociedade, enquanto que as práticas criativas dizem respeito a um grupo ainda seleto de pessoas.

Pensando nisso, começamos nesse post uma nova trincheira pro BaixaCultura, a de resgatar algumas práticas (momentos, charadas, causos) criativas do século XX ligadas ao uso – e roubo –  de outras criações. Existiram diversas formas e ocasiões de apropriação indébita de obras de outros artistas neste século passado, e, ademais de algumas práticas e causos serem bastante conhecidos hoje (o remix e, mais recentemente, o mashup estão aí para mostrar), existem outras tantas que pouco saíram dos guetos artísticos. Começamos nosso “resgate” justamente com uma dessas práticas relativamente pouco conhecidas, o chamado “détournement”.

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A origem

Détournement é uma palavra francesa que significa desvio, diversão, reencaminhamento, distorção, abuso, malversação, seqüestro, ou virar ao contrário do curso ou propósito normal. Ela (a palavra) foi apropriada para designar uma prática criativa pelo movimento situacionista, especialmente por dois de seus líderes, Guy Debord e Gil J. Wolman. Em 1956, Debord e Wolman publicaram um guia para um possível usuário do détournement numa revista surrealista belga chamada Les Lèvres Nues #8, um texto (aqui a sua tradução para o português, em duas versões) onde introduziam, conceituavam e abusavam da prática – claro que com muito sarcasmo e ironia, talvez a fim de que ninguém levasse totalmente a sério aquilo que eles diziam.

O que quer dizer

Poderíamos falar que o détournement é uma variação em um trabalho já conhecido que produz um significado antagônico ao original. As duas leis fundamentais da prática apontadas inicialmente seriam a perda de importância de cada elemento “detourned” (ou “detunado”, numa tradução literal para o português), que pode ir tão longe a ponto de perder completamente seu sentido original, e, ao mesmo tempo, a reorganização em outro conjunto de significados que confere a cada elemento um novo alcance e efeito. No guia produzido pelos situacionistas, são apresentados dois tipos principais: os menores, onde é feito um desvio de um elemento que não tem importância própria, e que portanto toma todo seu significado do novo contexto onde foi colocado; e os “enganadores“, onde é feito o desvio de um elemento intrínsecamente significativo, o qual toma um dimensão diferente a partir do novo contexto.

Exemplos

Guy Debord, um dos maiores e mais criativos plagiadores que o século 20 já viu, se tornou conhecido por sua atuação teórico-prática no Situacionismo e sobretudo pelo livro A Sociedade do Espetáculo, um clássico nos cursos de comunicação Brasil afora. No livro, Debord começa com um exemplo de détournement ao apresentar, já no primeiro parágrafo da obra, uma cópia de O Capital (de Karl Marx). Dá uma olhada:

Debord: “Toda a vida das sociedades nas quais reinam as condições modernas de produção se anuncia como uma imensa acumulação de espetáculos. “
Marx: “A riqueza das sociedades em que domina o modo-de-produção capitalista apresenta-se como uma “imensa aumulação de mercadorias”.
Sem entrar em muitos detalhes, a ideia de Debord era mostrar que a etapa do capitalismo em que vivíamos pelo acúmulo de mercadorias havia passado, e chegara o tempo em que passaríamos a acumular apenas imagens de mercadorias – espetáculos.  Assim que, ao invés de citar o parágrafo original e discorrer sobre ele até chegar a uma conclusão, procedimento tornado comum na academia, Debord julgou que seria melhor a substituição direta do que já não servia.
Um exemplo gráfico está aqui abaixo, feito por Francis Bacon a partir de uma pintura clássica do pintor Diego Velásquez, conhecido retratista espanhol do século XVII:

Bacon, Study after Velázquez’s Portrait of Pope Innocent X (1953)

Velázquez, Retrato do Papa Inocêncio X

Imagine que um observador mais atento vai ver que a obra de Bacon precede em três anos o lançamento do guia para o usuário de Debord e Wolman. Isso é mais uma prova de que a manifestação do détournament está longe de ser algo original, no sentido de ter sido criado pelos dois situacionistas franceses. Ela é, sim, mais uma manifestação de algo que vem se fazendo há muito tempo e que os dois, como bons plagiadores que foram, resolveram agrupar sob alguns conceitos e preceitos a fim de que pudesse chamar atenção para o uso do roubo criativo na prática artística.

E hoje?

O détournement foi algo desenvolvido nos longínquos anos 50, década em que – bueno, não é nem preciso dizer o quão mais díficil era o acesso à cultura naquela época, não?. Atualize para o século XXI as possibilidades que a prática do détournement permite, e tu tem um espectro criativo gigantesco a ser habitado e re-habitado e transformado no que tu quiser.

Engraçado é que, ainda hoje, assim como Debord e Wolman apontavam já na década de 1950, é na indústria do marketing (e do anti-marketing) que estão os melhores exemplos desse tipo de desvio criativo. São muitas as manifestações desenvolvidas pelo Adbusters, por exemplo, coletivo internacional (com sede no Canadá) que tem chamado a atenção para o absurdo do consumismo em publicações como essa aqui, onde Obama é o palhaço da questão eco-psicológica global, ou nessa imagem abaixo, uma crítica pesada à maneira como a famosa Nike põe seus tentáculos em todo o canto do planeta:

Essa prática de subversão de propagandas corporativas – um caso de détournament aplicado à propaganda, digamos  – é tão usual que tem até um nome próprio para designar, culture jamming. São tantos os exemplos de jamming que vamos deixar para mostrá-los e comentá-los em outro post. Por hora, fiquemos com uma amostrinha curiosa, vinda de Londres:

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Música, literatura, cinema, fotografia, artes visuais, propaganda: teríamos mais uns quantos exemplos a serem mostrados de práticas ligadas ao détournement e, em uma esfera maior, ao plágio criativo. Tu mesmo deve conhecer vários, a começar pelas inocentes camisetas de turma de faculdade que se apropriam de logomarcas conhecidas até uma estranha frase que tu leu e pensou já ter visto em outro lugar, ligeiramente modificada.

Ao contrário do plágio praticado por pura falta de talento, a ideia do plágio criativo – e do détournement, me arrisco a dizer – funciona mais para revelar do que para ocultar suas origens. Ele talvez seja uma forma de entrar diretamente no longo diálogo do conhecimento, de expor suas referências e mostrar à todos o que tu quer e o que tu não quer absorver dessas referências – e da união do que tu aproveita de um lado com o que tu aproveita de outro é que nasce algo diferente. Parece sempre ter sido assim a criação, e barrar o uso dessas referências é, em todos os sentidos, limitar a criatividade.

No fim de sua vida, Debord passou a desistir do détournament, por acreditar que esse tipo de técnica seria adequada apenas a sociedades que fossem capazes de reconhecê-la. Será que hoje, com o advento da internet e toda a enorme cultura que está disponível à todos que tem acesso à rede, ele faria o mesmo?

Por questões de tamanho, deixaremos esta e outras perguntas e exemplos para as próximas edições desse post, que já ficou maior do que o esperado e é bom que termine por aqui.

Créditos: 1, 2, 3, 4, 5.


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Comentário: As vantagens financeiras do anticopyright https://baixacultura.org/2009/03/14/comentario-as-vantagens-financeiras-do-anticopyright/ https://baixacultura.org/2009/03/14/comentario-as-vantagens-financeiras-do-anticopyright/#comments Sat, 14 Mar 2009 13:59:59 +0000 https://baixacultura.org/?p=1424 Ah, a montagem

Sim! Por trás desta imagem há um conceito

Por dizerem respeito a toda a sociedade, são as novas práticas de distribuição e consumo de cultura que têm estado na parte mais visível da demanda por uma revisão nas leis de direito autoral. Afinal de contas, estes pontos da conversa falam de uma intrincada cadeia econômica que inclui potencialmente qualquer pessoa. Há, no entanto, um debate que corre paralelamente  a este, e que trata de uma revisão igualmente importante para o contexto cultural em que vivemos. A revisão da ideia de autor, e do que consiste seu trabalho.

A arte é um campo cultural dos mais ideológicos, permeado de ingenuidades e mitos que têm tudo pra parecerem perfeitamente naturais, mas que uma análise histórica mesmo superficial apontaria como construções recentíssimas. É possível usar como exemplo a idéia de “novidade” na arte. Make it new, o slogan preferido de Ezra Pound, um dos mais influentes poetas do modernismo norte-americano, tem influenciado gerações de criadores por muitas décadas. Original seria aquilo que apresenta certo grau de novidade, e o papel do autor seria introduzir informação nova no tecido da cultura — informação (arte) que seria fruto do que os românticos chamaram inspiração, posteriormente substituída no imaginário artístico pelo trabalho.

No entanto, historicamente a novidade é um valor moderno — da era moderna, da arte moderna. Nós aprendemos na escola que a cultura romana — sua poesia, seus deuses — foi em boa medida uma adaptação da cultura grega. Da mesma forma, muito da tradição japonesa é herança da cultura chinesa. E nada disso é demérito aos olhos de quem se insere ou inseria nestes sistemas culturais. A educação artística mais antiga passa pelo aprendizado das formas, e o bom artista é quem as domina. Quando a modernidade instaura o “novo” como um valor artístico, a relação do criador com as formas e gêneros passa a ser de superação.

Será por acaso que essa mesma modernidade é a etapa histórica do desenvolvimento do capitalismo, e será que não há qualquer correspondência entre o desejo de novidade da arte moderna e o desejo de novidade da economia de mercado, onde os produtos são cada vez mais velozmente substituídos por outros com aparência de novo? É evidente que a arte moderna produziu obras grandiosas, como a do próprio Pound, e apontar suas ideologias não significa rejeitar sua vanguarda. Significa mostrar que, apesar do apego que a arte possui em relação a suas próprias mitologias, uma simples mudança de perspectiva pode revelar o que há de ideológico em suas crenças.

Político como todos os outros campos da cultura, o campo artístico cria seus mecanismos de defesa e preservação. Os questionamentos levantados nos parágrafos acima têm sido abordados há mais de um século por correntes mais radicais de artistas e pensadores, que vêm apresentando propostas não apenas no campo conceitual, mas na prática criativa, introduzindo conceitos “malditos”, como por exemplo o plágio, no território da criação. Boa parte destes pensadores, no entanto, passam longe dos holofotes da cultura, e embora por vezes seus nomes sejam conhecidos (os surrealistas, por exemplo, fazem parte desse grupo), a radicalidade de suas práticas ainda não foi devidamente assimilada.

É a estes autores que o primeiro parágrafo de As vantagens financeiras do anticopyright faz referência. E ao próprio Critical Art Ensemble, cuja obra se insere nesta longa tradição de roubo e apropriação cultural. Embora eu tenha no último post esboçado uma reflexão sobre outros aspectos do texto, me parece de alguma utilidade comentar antes estas questões. Artistas de rap e hip hop já foram processados por utilizarem samplers de outros artistas. A justiça (ou as empresas, ou certo público) adotaria os mesmos procedimentos diante de cabeções do naipe de um Walter Benjamin, este grande adepto das técnicas de colagem/montagem, e glorioso fumador de haxixe?

"Hmmm, isso aqui dá pra usar..."

Walter Benjamin: "Hmmm, isso aqui dá pra usar..."

O próprio cinema, inclusive o milionário cinema hollywoodiano, não vive sem apropriação. O exemplo que me ocorre agora é o daquela cena em Be Cool em que John Travolta e Uma Thurman repetem a dança que haviam protagonizado antes em Pulp Fiction. A própria música do Black Eye Peas que serve de trilha começa com uma referência a Tom Jobim. Costuma-se chamar este tipo de procedimento de citação. Trata-se, no entanto, de um tipo muito peculiar de citação, em que se omite a autoria do “original”. Outro nome para esta modalidade criativa seria plágio.

[youtube=http://www.youtube.com/watch?v=rKHhbOaM5xs]

[youtube=http://www.youtube.com/watch?v=4Xwxce3ubK4]

Mas o plágio não é um fruto deliberado da má-fé como prega o senso comum. A rigor, é qualquer utilização de ideia ou linguagem que não remeta explicitamente ao original. Note o detalhe da linguagem. Isto quer dizer que, em certos meios (o acadêmico, por exemplo), pegar uma expressão emprestada de alguém sem mencionar explicitamente este alguém já é considerado plágio, ainda que não tenha havido roubo de ideia. A citação cinematográfica é plágio porque não remete explicitamente ao original. Ninguém avisa lá nos créditos finais que determinada cena é uma citação de outra.

Por que isto não nos choca, enquanto público? Porque em geral, nós conhecemos a obra que deu origem à segunda obra, ou temos algum amigo cinéfilo que conhece e nos conta, todo exibido. Isto não acontece com a mesma frequência quando se trata de outras modalidades de criação. Socialmente, lemos menos do que vemos filmes. Portanto a possibilidade de reconhecer um filme dentro de outro é mais presente do que a de reconhecer um livro dentro de outro. O risco que não podemos correr é o de nos sentimos insultados ao não o reconhecermos. O risco de nos tornamos intolerantes.

Guy Debord, um dos maiores e mais criativos plagiadores que o século 20 conheceu, chamou a atenção para isto no fim da vida. Debord ficou famoso por sua atuação teórico-prática no Situacionismo e sobretudo pelo livro A Sociedade do Espetáculo, que abre com um caso clássico de plágio. O primeiro parágrafo da obra é literalmente o primeiro parágrafo de O Capital, do famoso atacante do Vasco Karl Marx, com apenas uma troca de palavra. A técnica ficou conhecida como detournement, que seria algo como um desvio, uma citação desviada.

Os usos de Marx

Os usos de Marx

Sem entrar em muitos detalhes, o objetivo era mostrar que a etapa do capitalismo em que vivíamos pelo acúmulo de mercadorias havia passado, e chegara o tempo em que no lugar delas passáramos a acumular apenas imagens de mercadorias — espetáculos. Daí que, ao invés de citar o parágrafo original e discorrer sobre ele até alcançar uma conclusão, Debord julgou mais útil (por razões que não cabem discutir neste já longo texto) a substituição direta do que já não servia.

No fim da vida, em seu último livro, ele desistiria do procedimento, e registraria que esse tipo de técnica seria adequada apenas a sociedades que fossem capazes de reconhecê-la. Esta é a chave do roubo criativo. Ao contrário do plágio praticado por pura falta de talento, o plágio criativo funciona para revelar, não para ocultar suas origens. Ele não pretende muito mais do que ser uma forma mais direta de entrar no longo diálogo do conhecimento.

[Reuben da Cunha Rocha.]

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