Cultura Digital – BaixaCultura https://baixacultura.org Cultura livre & (contra) cultura digital Fri, 11 Apr 2025 22:42:04 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.0.9 https://baixacultura.org/wp-content/uploads/2022/09/cropped-adesivo1-32x32.jpeg Cultura Digital – BaixaCultura https://baixacultura.org 32 32 Conectados e cansados https://baixacultura.org/2025/03/23/conectados-e-cansados/ https://baixacultura.org/2025/03/23/conectados-e-cansados/#respond Sun, 23 Mar 2025 21:45:37 +0000 https://baixacultura.org/?p=15803  

A internet dos anos 2000 prometeu liberdade e colaboração e entregou Big Techs, plataformização da vida e a precarização do trabalho criativo. O que levou a essa transformação? No dia 13 de março, Sílvio Lorusso, autor do livro “Emprecariado” (Clube do Livro de Design, 2023) e eu debatemos os impactos desse cenário e o futuro do trabalho digital. Foi na Risotropical (Galeria Metrópole), centro de São Paulo, das 19h às 21h30, evento organizado pela Ubunttu, Clube do Livro do Design (especialmente Tereza Bettinardi, editora e designer por trás da iniciativa) e que fez parte da DW! Semana de Design.

Gravei em áudio a maior parte da conversa e recupero aqui alguns trechos destacados:

_ Um conceito central discutido é a plataformização, que se refere ao crescente domínio das estruturas de plataformas em diversos aspectos da vida, desde mobilidade e redes sociais até trabalho, saúde, alimentação e serviços públicos – veja aqui o artigo já clássico que analisa o conceito em suas principais dimensões.  Falamos da (óbvia) constatação de que cada vez mais se acessa a internet via plataformas (em seus “jardins murados”), locais onde infraestruturas econômicas e políticas, com seus mecanismos próprios de governança, operam. A plataformização coincide com uma mudança na percepção das possibilidades utópicas da internet, da “ressaca da internet”, com o reconhecimento de que foram as plataformas que acabaram com as possibilidades transformadoras de descentralização e autonomia da internet;

_ A crítica ao tecnolucionismo, a ideia de que a solução para diversos problemas reside em mais tecnologias, mais aplicativos, mais plataformas, quando na verdade essa abordagem muitas vezes só serve à monetização de dados e alimenta um ciclo de desigualdade, para não falar do aumento da concentração de poder político e da perda da capacidade de imaginar outros modelos de gestão e organização da infraestrutura da comunicação. A ascensão das IAs generativas tem acelerado ainda mais esse processo;

_  A discussão sobre empreendedorismo, tema do “Emprecariado” (livro de Lorusso), foi, claro, ponto central da conversa. A ideologia de ser empreendedor é vista por Lorusso como o outro lado da precariedade. Há, em comum, o fato de ambas ideias estarem ligados à ideia de risco,  mas com o empreendedor abraçando a incerteza como oportunidade, enquanto o trabalhador precário vivencia o ser empreendedor como uma imposição. As plataformas, como se sabe, exacerbam essa relação, como discutido no livro, que analisa diversas plataformas para além das tradicionais “Gafam” (Google, Amazon, Facebook, Apple, Microsoft): o LinkedIn, o makretplace de freelas Fiverrg; e o GoFundMe, plataforma de crowdfunding que, segundo Lorusso, exemplifica como a lógica da criatividade e do financiamento coletivo pode se estender a necessidades sociais e, com isso, expor uma certa “criatividade trágica” generalizada.

_ Falamos também das alternativas às plataformas centralizadas, como as plataformas federadas (no Fediverso), que operam com uma lógica descentralizada, onde cada instância têm suas próprias regras. Comentei também que essas plataformas, que têm ganhado um certo boom neste 2025 com a migração de pessoas cansadas das redes sociais alinhadas à Trump, também enfrentam desafios relacionados à moderação de conteúdo em larga escala, além da necessidade de organização e trabalho para manter esses espaços saudáveis.

_ Além de provar o chimarrão gaúcho, Lorusso comentou sobre como, na sua breve vivência em território brasileiro (que incluiu o Carnaval), teve um certo assombro em perceber a implementação generalizada – e normalizada –  das tecnologias de reconhecimento facial nas grandes cidades brasileiras. A precariedade inerente ao contexto brasileiro parece fazer com que experimentos tecnológicos sejam mais facilmente implementados aqui (e no restante do Sul Global) do que em lugares como a Europa (Portugal em especial, onde ele vive; mas também na Itália, sua terra de origem). 

_ Por fim, comentamos até sobre a proliferação das apostas online (bets), motivados por uma pergunta da platéia. É um fenômeno inescapável no país e que demanda um novo vocabulário para entender a dinâmica de plataforma e precarização, agora desvinculada da ideia de produção ou do trabalho tradicional, e que tem impactos sociais significativos, especialmente entre a população de baixa renda.

As fotos do evento abaixo são da Helena Wolfenson.

 

 

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A crise é cognitiva – a guerra cultural e os fins da internet https://baixacultura.org/2025/02/14/a-crise-e-cognitiva-a-guerra-cultural-e-os-fins-da-internet/ https://baixacultura.org/2025/02/14/a-crise-e-cognitiva-a-guerra-cultural-e-os-fins-da-internet/#respond Fri, 14 Feb 2025 14:09:45 +0000 https://baixacultura.org/?p=15788 Semana passada participei novamente no Balanço & Fúria para falar sobre as transformações da internet, das raízes rebeldes à ascensão da plataforma aliada (e potencializadora) da extrema direita. Falamos um pouco sobre como essa mudança impactou a cognição, o trabalho e a cultura, levando a uma crise de consenso e à ascensão da desinformação, entre outras coisas. No final destacamos a necessidade urgente de repensar a forma como interagimos com a tecnologia e de buscar alternativas que promovam a descentralização, a transparência e o bem comum. A ascensão do DeepSeek, com seu modelo de código aberto, oferece uma faísca de esperança em meio a um cenário de crescente preocupação com o poder das Big Techs e o impacto da desinformação. 

“Quem teve acesso à internet do fim dos anos 90 e começo dos anos 2000 jamais imaginaria que ela se tornaria um dos principais instrumentos para a elaboração do fascismo de nosso tempo, um impulsionador da crise política e estética, seguido da crise cognitiva que determinaria uma nova subjetividade em seus usuários, assim como uma nova definição de capitalismo ultraprecarizado e ultraliberal, que confundiu ainda mais os limites do trabalho, das liberdades e da democracia liberal.

Da guerra cultural à plataformização, passando pela monopolização das Big Techs e a disputa geopolítica baseada nas tecnologias criadas a partir do que resta da internet, Leonardo Foletto caminha sobre uma breve história das redes de compartilhamento, da pirataria, do hackativismo até o apodrecimento algorítmico fascista em que nos encontramos agora.”

Dá pra ouvir/baixar no site e também aqui abaixo.

[Leonardo Foletto]

 

 

 

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A cópia na era de sua proliferação técnica https://baixacultura.org/2024/10/11/a-copia-na-era-de-sua-proliferacao-tecnica/ https://baixacultura.org/2024/10/11/a-copia-na-era-de-sua-proliferacao-tecnica/#respond Fri, 11 Oct 2024 20:16:34 +0000 https://baixacultura.org/?p=15723 Muito já se falou sobre as mudanças que a internet e as tecnologias digitais trouxeram para o compartilhamento de informação: a era da “liberação do polo emissor da informação” propiciou o acesso fácil a maior quantidade de informação disponível na história da humanidade, para o maior número de pessoas já existentes no planeta até aqui. 

É normal que o debate tenha o foco na recepção das informações digitalizadas. As práticas de consumo e circulação de informação dizem respeito a toda a sociedade, enquanto que as práticas criativas dizem respeito a um grupo mais seleto de pessoas que, de forma assumida, afirma que cria – embora saibamos que a criação está em muito mais lugares do que imaginamos. As mesmas tecnologias que nos levam a conversar sobre novos modos de consumir e compartilhar informação colocam, também, em relevo práticas criativas ligadas ao roubo. Identificamos um sampler em menos de 3 s, uma imagem através de uma busca simples de comparação num buscador da web; usamos qualquer obra para criar outras.

As práticas de (re) criação ligadas à abundância de informação potencializada nos últimos 30 anos por objetos técnicos não fazem outra coisa que não coletar, armazenar, processar e difundir dados. Estes objetos, que você reconhece em todos os hábitos cotidianos de uma pessoa do século XXI, tem por essência a cópia. Isso significa dizer que eles só existem porque copiam; não há ação no uso da internet e de objetos digitais que não seja, em essência, uma combinação gigantesca de números copiados. São os 0 e 1 recombinados a exaustão que fazem brotar, às vezes como mágica, imagens, sons, textos, que vão ser captados pelos nossos sentidos e fruídos como arte, jornalismo, entretenimento – ou simplesmente mentira.

A proliferação mundial dos sistemas de inteligências artificiais generativas (ChatGPT, MidJourney, Stable Diffusion, Gemini, etc) em 2023 quebra um paradigma ao tornar a cópia ainda mais base para a criação. Tudo que está na internet e foi raspado – sem consentimento, aliás – por estes sistemas está sendo a base para a criação de inúmeras coisas, de cards de redes sociais a ilustrações de livros, passando por e-mails, artigos, filmes, textos e músicas. Se já no início do século XX a reprodução técnica, especialmente na fotografia e no cinema, tornava a cópia e o “original” não facilmente distinguíveis, o que dirá a partir de 2023, quando as IAs ampliam a reprodução digital e, cada vez mais, a separam de sua materialidade original, que passa a se transformar em mero dado, padrões de números a alimentarem grandes bancos onde não existe mais singularidade, apenas cópia – a hiperconexão do E E E E E em vez do OU OU, já que às máquinas não é facultado a possibilidade de fim, mas sim a reprodução contínua e infinita de presente. 

Diante disso, qual será o papel da cópia na criação artística na era da Inteligência Artificial Generativa? Estamos em uma investigação, desde 2023, para entendermos o papel da cópia ao longo dos últimos séculos na história da arte, o que passa pela questão histórica do desvio: como se sabe – e nós já tratamos um pouco aqui, nos “momentos da história da recombinação” – a arte é marcada pelo plágio, o roubo, o desvio, a cópia e apropriação. Estamos nos encaminhando para o encerramento desse processo, que vai resultar num livro a ser publicado pela SobInfluencia em 2025.

Em paralelo e complementar ao processo de produção do livro, nasceu o projeto Cópia & Desvio. É uma série de conferências experimentais/performances/lives sobre o direito para copiar e reutilizar o conhecimento humano. Organizado em quatro atos, o objetivo é apresentar uma narrativa crítica sobre a cópia e sua relação com a política e a sociedade ao longo do tempo. Em diálogo com o processo de escrita do livro, as quatro sessões vão abordar temas, pessoas, grupos e movimentos históricos onde a cópia ganhou destaque, sempre em diálogo com a história das tecnologias que permitiram transformações na reprodução técnica. 

Vamos examinar momentos como a criação do rádio e da arte sonora do surrealismo e do dadaísmo; o détournement situacionista e o cut-up dos 1960; a arte xerox e a mail art dos anos 1970 e 1980; os samplers e a cultura hip-hop, os remixes e os memes potencializados na internet; até chegar, por fim, a criação na era da IAs generativas.

As conferências/performances se desenvolvem em um formato experimental, ao vivo, como lives, em que a narração irá acompanhar um live coding com elementos visuais e sonoros, além de outras intervenções ao vivo. Serão gravadas e transmitidas, via canal do Youtube do BaixaCultura.

A primeira destas conferências será chamada de “A cópia na era de sua proliferação técnica” e vai ocorrer no 24 de outubro, às 19h (Brasil, UTC-3). Rafael Bresciani e Leonardo Foletto vão criar artefatos sonoros e visuais para compor a narração da conferência, centrada nas práticas e reflexões de cópia no século XX, de Walter Benjamin a Lev Manovich, passando por Marcel Duchamp, Guy Debord, William Burroughs, Hugo Pontes, Paulo Bruczky, Moholy-Nagy, Rosalind Krauss, Yoko Ono, Andy Warhol, Sherrie Levine, Devo, Talking Heads, Neu!, entre outros.

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ViraCasacas: BaixemCultura https://baixacultura.org/2024/07/06/viracasacas-baixemcultura/ https://baixacultura.org/2024/07/06/viracasacas-baixemcultura/#comments Sat, 06 Jul 2024 23:10:24 +0000 https://baixacultura.org/?p=15679 Participei nesta semana de um dos podcasts mais conhecidos numa certa “bolha” progressista da internet brasileira: Viracasacas. O papo foi de Extinção da Internet à cultura hacker, passando por Mark Fisher, comuns, decrescimento, Napster e principalmente pela cultura livre e as implicações do download, do torrent e da pirataria na circulação da cultura no meio digital. Uma charla algo saudosista sobre como a internet era muito mais divertida, autônoma e livre antes da plataformização pode nos fazer lembrar de como ela ainda pode ser diferente. Segue abaixo o texto de divulgação do Viracasacas

“Saudações piratas! (“Abordar…navios mercantes…invadir, pilhar, roubar o que é nosso…”). Ou não, porque não há nada de errado – e tudo de muito certo – em liberar a cultura de amarras. Sobre as novas formas de trato com as guerras em função de uma cultura vista como propriedade material estática, e sobre como a internet virou uma vilã difusa nesse processo, trazemos Leonardo Foletto da Baixa Cultura, laboratório online que trabalha com documentação, pesquisa, formação e experimentação em cultura livre. O papo ficou fortíssimo, e com muita indicação de coisas para você conseguir grátis – como todas as outras coisas, aliás ;)”.

Dá pra escutar direto aqui abaixo e também nas principais plataformas de streaming.

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Modernismo popular em Mark Fisher https://baixacultura.org/2024/06/24/modernismo-popular-em-mark-fisher/ https://baixacultura.org/2024/06/24/modernismo-popular-em-mark-fisher/#respond Mon, 24 Jun 2024 18:23:52 +0000 https://baixacultura.org/?p=15673  

Qual foi a última vez que você viu algo “novo” na cultura popular? Algo que você ouça, veja, sinta, que te traga um arrepio que não é causado por uma citação ao que você conhece – de alguma era “atemporal” implícita, os eternos anos 1960, 1970 ou anos 1980 centrais na estética cultural ocidental – mas a algo inédito, a ponto de não se encontrar palavras para explicar o que você experienciou? Será que estamos velhos, elitistas e conservadores e ou a cultura popular, sobretudo a musical, está carente de novidades que não remetam a outras tantas já ouvidas, consumidas e até mesmo gastas? Seria o “novo” as formas culturais que ecoam os avanços transfeministas, indígenas e afro futuristas, como o kuduro angolano, o rap guarani ou o funk brasileiro, ritmos e estéticas musicais remixadores por excelência e que apontam um futuro algo precário e globoperiférico? 

Ou será mesmo que ainda faz sentido buscar esse tipo de novidade em uma experiência estética, sobretudo sonora e cinematográfica, na era das IAs generativas, quando boa parte do passado (ou de uma perspectiva do passado) pode ser acionado enquanto dado?

Para tentar formular melhores perguntas, ou apenas divagar e papear sobre temas que nos são caros, vamos fazer essa live na próxima quarta feira, 26/6, 19h, uma parceria do Transe com o BaixaCultura. Nossa conversa vai ocorrer a partir de alguns gatilhos de Mark Fisher, que já se debruçava sobre essas questões na década passada em textos como “Uma revolução social e psíquica de magnitude quase inconcebível”: os interrompidos sonhos aceleracionistas da cultura popular” (2013) e “Fantasmas da minha vida: escritos sobre depressão, assombrologia e futuros perdidos” (2014).  

No canal do Transe no Youtube. Aqui abaixo.



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O olho do mestre: a automação da inteligência geral https://baixacultura.org/2024/02/28/o-olho-do-mestre-a-automacao-da-inteligencia-geral/ https://baixacultura.org/2024/02/28/o-olho-do-mestre-a-automacao-da-inteligencia-geral/#respond Thu, 29 Feb 2024 01:07:13 +0000 https://baixacultura.org/?p=15585  

No final de 2023, não lembro onde nem como, fiquei sabendo de “The Eye of the Master”, novo livro do Matteo Pasquinelli sobre IA. Fiquei na hora empolgado. Primeiro porque a proposta do livro é a de contar uma “história social” da IA, indo desde Charles Babbage até hoje, passando e destrinchando o conceito de general intellect de Marx (hoje bastante usado nos estudos tecnopolíticos) e a onipresente cibernética, também uma área de estudos bastante retomada nos últimos anos por Yuk Hui, Letícia Cesarino e diversos outros pesquisadores, até chegar as IAs generativas de hoje. Tudo uma abordagem rigorosa, por vezes densa,  cheia de referências saborosas, e marxista – com várias aberturas típicas do autonomismo italiano e do pós-operaísmo, influências do autor.

Segundo porque Pasquinelli, professor de filosofia da ciência na Universidade Foscari, em Veneza, tem, ele próprio, um belo histórico em se debruçar nos estudos da filosofia da técnica. Eu o conheci pela primeira vez há cerca de 10 anos atrás, quando o artigo “A ideologia da cultura livre e a gramática da sabotagem” saiu como capítulo do Copyfight, importante livro organizado por Bruno Tarin e Adriano Belisário. Depois, outros textos de Pasquinelli foram publicados em português pelo coletivo Universidade Nômade; um deles, “O algoritmo do PageRank do Google: Um diagrama do capitalismo cognitivo e da exploração da inteligência social geral”, já em 2012 apontava para a exploração da “inteligência social geral” por algoritmos das big techs – o que hoje, com IAs generativas, virou um consenso global.

Ainda estou digerindo a leitura da obra e me debruçando sobre alguns tópicos e referências citados, enquanto espero minha cópia impressa do original chegar para rabiscar e estudar com mais calma. Encharcado de uma saborosa empolgação intelectual, daquelas que nos deixam ao mesmo tempo animado pelas descobertas e ansioso em compartilhar esses achados, fui ao texto que Pasquinelli publicou no E-Flux, em dezembro de 2023, “The Automation of General Intelligence” e traduzi para o português. O texto publicado é uma versão do posfácio do livro, onde o italiano sintetiza alguns pontos da obra e aponta caminhos tanto para a discussão teórica quanto para a disputa ativista. Com a ajuda do amigo Leonardo Palma, busquei traduzir cotejando e adaptando alguns conceitos para o português brasileiro, tentando quando possível trazer referências às obras já publicadas por aqui. 

Para acompanhar o texto, trouxe as imagens que ilustram a publicação no E-Flux. Disponibilizo também o livro inteiro em inglês, publicado pela Verso Books (edições em outros idiomas estão vindo) – “The Eye of the Master: A Social History of Artificial Intelligence” – para baixar – mas você sabe, não é para espalhar.

[Leonardo Foletto]

A automação da Inteligência geral (General Intelligence)

Matteo Pasquinelli

Queremos fazer as perguntas certas. Como as ferramentas funcionam? Quem as financia e as constroi, e como são usadas? A quem elas enriquecem e a quem elas empobrecem? Que futuros elas tornam viáveis e quais excluem? Não estamos procurando respostas. Estamos procurando por lógica.
—Logic Magazine Manifesto, 2017[¹]

Vivemos na era dos dados digitais e, nessa era, a matemática se tornou o parlamento da política. A lei social se entrelaçou com modelos, teoremas e algoritmos. Com os dados digitais, a matemática se tornou o meio dominante pelo qual os seres humanos se coordenam com a tecnologia… Afinal, a matemática é uma atividade humana. Como qualquer outra atividade humana, ela traz consigo as possibilidades tanto de emancipação quanto de opressão.
—Politically Mathematics manifesto, 2019[²]

“A mesma importância que as relíquias de ossos têm para o conhecimento da organização das espécies de animais extintas têm também as relíquias de meios de trabalho para a compreensão de formações socioeconômicas extintas. O que diferencia as épocas econômicas não é “o que” é produzido, mas “como”, “com que meios de trabalho”. Estes não apenas fornecem uma medida do grau de desenvolvimento da força de trabalho, mas também indicam as condições sociais nas quais se trabalha”.
—Karl Marx, Capital, 1867[³]


H
averá um dia no futuro em que a IA atual será considerada um arcaísmo, um fóssil técnico a estudar entre outros
. Na passagem de “O Capital” citada acima, Marx sugeriu uma analogia semelhante que ressoa nos estudos científicos e tecnológicos atuais: da mesma forma que os ossos fósseis revelam a natureza das espécies antigas e os ecossistemas em que viviam, os artefatos técnicos revelam a forma da sociedade que os rodeia e gere. A analogia é relevante, penso eu, para todas as máquinas e também para a aprendizagem automática, cujos modelos abstratos codificam, na realidade, uma concretização de relações sociais e comportamentos coletivos, como este livro tentou demonstrar ao reformular a teoria laboral da automação do século XIX para a era da IA.

 

 

Este livro [“ O Olho do Mestre”] começou com uma pergunta simples: Que relação existe entre o trabalho, as regras e a automação, ou seja, a invenção de novas tecnologias? Para responder a esta questão, iluminou práticas, máquinas e algoritmos a partir de diferentes perspectivas – da dimensão “concreta” da produção e da dimensão “abstrata” de disciplinas como a matemática e a informática. A preocupação, no entanto, não tem sido repetir a separação dos domínios concreto e abstrato, mas ver a sua coevolução ao longo da história: eventualmente, investigar o trabalho, as regras e a automação, dialeticamente, como abstrações materiais. O capítulo inicial sublinha este aspecto, destacando como os rituais antigos, os instrumentos de contagem e os “algoritmos sociais” contribuíram para a elaboração das ideias matemáticas. Afirmar, como o fez a introdução, que o trabalho é uma atividade lógica não é uma forma de abdicar da mentalidade das máquinas industriais e dos algoritmos empresariais, mas antes reconhecer que a práxis humana exprime a sua própria lógica (uma anti-lógica, poderia se dizer) – um poder de especulação e invenção, antes de a tecnociência o capturar e alienar [4].

A tese de que o trabalho tem de se tornar “mecânico” por si só, antes que a maquinaria o substitua, é um velho princípio fundamental que foi simplesmente esquecido. Remonta, pelo menos, à exposição de Adam Smith em “A Riqueza das Nações” (1776), que Hegel também comentou já nas suas conferências de Jena (1805-6). A noção de Hegel de “trabalho abstrato” como o trabalho que dá “forma” à maquinaria já estava em dívida para com a economia política britânica antes de Marx contribuir com a sua própria crítica radical ao conceito. Coube a Charles Babbage sistematizar a visão de Adam Smith numa consistente “teoria do trabalho da automação”. Babbage complementou esta teoria com o “princípio do cálculo do trabalho” (conhecido desde então como o “princípio de Babbage”) para indicar que a divisão do trabalho também permite o cálculo exato dos custos do trabalho. Este livro pode ser considerado uma exegese dos dois “princípios de análise do trabalho” de Babbage e da sua influência na história comum da economia política, da computação automatizada e da inteligência das máquinas. Embora possa parecer anacrônico, a teoria da automatização e da extração de mais-valia relativa de Marx partilha postulados comuns com os primeiros projetos de inteligência artificial.

Marx derrubou a perspetiva industrialista – “o olho do mestre” – que era inerente aos princípios de Babbage. Em “O Capital”, argumentou que as “relações sociais de produção” (a divisão do trabalho no sistema salarial) impulsionam o desenvolvimento dos “meios de produção” (máquinas-ferramentas, motores a vapor, etc.) e não o contrário, como as leituras tecno-deterministas têm vindo a afirmar, centrando a revolução industrial apenas na inovação tecnológica. Destes princípios de análise do trabalho, Marx fez ainda outra coisa: considerou a cooperação do trabalho não só como um princípio para explicar o design das máquinas, mas também para definir a centralidade política daquilo a que chamou o “Gesamtarbeiter“, o “trabalhador geral”. A figura do trabalhador geral era uma forma de reconhecer a dimensão maquínica do trabalho vivo e de confrontar o “vasto autômato” da fábrica industrial com a mesma escala de complexidade. Eventualmente, foi também uma figura necessária para fundamentar, numa política mais sólida, a ideia ambivalente do “intelecto geral” (general intellect) que os socialistas ricardianos, como William Thompson e Thomas Hodgskin, perseguiam.


Das linhas de montagem ao reconhecimento de padrões

Este livro apresentou uma história alargada da divisão do trabalho e das suas métricas como forma de identificar o princípio operativo da IA a longo prazo. Como vimos, na virada do século XIX, quanto mais a divisão do trabalho se estendia a um mundo globalizado, mais problemática se tornava a sua gestão, exigindo novas técnicas de comunicação, controle e “inteligência”. Se, no interior da fábrica a gestão do trabalho podia ainda ser esboçada num simples fluxograma e medida por um relógio, era muito complicado visualizar e quantificar aquilo que Émile Durkheim, já em 1893, definia como “a divisão do trabalho social“[5]. A “inteligência” do patrão da fábrica já não podia vigiar todo o processo de produção num único olhar; agora, só as infra-estruturas de comunicação podiam desempenhar esse papel de supervisão e quantificação. Os novos meios de comunicação de massas, como o telégrafo, o telefone, a rádio e as redes de televisão, tornaram possível a comunicação entre países e continentes, mas também abriram novas perspectivas sobre a sociedade e os comportamentos coletivos. James Beniger descreveu corretamente a ascensão das tecnologias da informação como uma “revolução do controle” que se revelou necessária nesse período para governar o boom econômico e o excedente comercial do Norte Global.  Após a Segunda Guerra Mundial, o controle desta logística alargada passou a ser preocupação de uma nova disciplina militar que fazia a ponte entre a matemática e a gestão: a pesquisa operacional (Operations Research). No entanto, há que ter em conta que as transformações da classe trabalhadora no interior de cada país e entre países, marcadas por ciclos de conflitos urbanos e lutas descoloniais, foram também um dos fatores que levaram ao aparecimento destas novas tecnologias de controle.

A mudança de escala da composição do trabalho do século XIX para o século XX também afetou a lógica da automatização, ou seja, os paradigmas científicos envolvidos nesta transformação. A divisão industrial do trabalho relativamente simples e as suas linhas de montagem aparentemente retilíneas podem ser facilmente comparadas a um simples algoritmo, um procedimento baseado em regras com uma estrutura “se/então“(if/then) que tem o seu equivalente na forma lógica da dedução. A dedução, não por coincidência, é a forma lógica que, através de Leibniz, Babbage, Shannon e Turing, se inervou na computação eletromecânica e, eventualmente, na IA simbólica. A lógica dedutiva é útil para modelar processos simples, mas não sistemas com uma multiplicidade de agentes autônomos, como a sociedade, o mercado ou o cérebro. Nestes casos, a lógica dedutiva é inadequada porque explodiria qualquer procedimento, máquina ou algoritmo num número exponencial de instruções. A partir de preocupações semelhantes, a cibernética começou a investigar a auto-organização em seres vivos e máquinas para simular a ordem em sistemas de alta complexidade que não podiam ser facilmente organizados de acordo com métodos hierárquicos e centralizados. Esta foi fundamentalmente a razão de ser do conexionismo e das redes neurais artificiais, bem como da investigação inicial sobre redes de comunicação distribuídas, como a Arpanet (a progenitora da Internet).

Ao longo do século XX, muitas outras disciplinas registaram a crescente complexidade das relações sociais. Os conceitos gêmeos de “Gestalt” e “padrão” (“pattern”), por exemplo, utilizados respectivamente por Kurt Lewin e Friedrich Hayek, foram um exemplo da forma como a psicologia e a economia responderam a uma nova composição da sociedade. Lewin introduziu noções holísticas como “campo de forças”(“force field”) e “espaço hodológico” (“hodological space”) para mapear a dinâmica de grupo a diferentes escalas entre o indivíduo e a sociedade de massas[6].

O pensamento francês tem sido particularmente fértil e progressivo nesta direção. Os filósofos Gaston Bachelard e Henri Lefebvre propuseram, por exemplo, o método da “ritmanálise” (“rhythmanalysis”) como estudo dos ritmos sociais no espaço urbano (que Lefebvre descreveu de acordo com as quatro tipologias de arritmia, polirritmia, eurritmia e isorritmia [7]). De forma semelhante, a arqueologia francesa dedicou-se ao estudo de formas alargadas de comportamento social nas civilizações antigas. Por exemplo, o paleoantropólogo André Leroi-Gourhan, juntamente com outros, introduziu a ideia de cadeia operacional (“chaîne opératoire”) para explicar a forma como os humanos pré-históricos produziam utensílios [8]. No culminar desta longa tradição de “diagramatização” dos comportamentos sociais no pensamento francês, Gilles Deleuze escreveu o seu célebre “Pós-escrito sobre a Sociedade de Controle”, no qual afirmava que o poder já não se preocupava com a disciplina dos indivíduos, mas com o controle dos “dividuais”, ou seja, dos fragmentos de um corpo alargado e desconstruído [9].

Os campos de força de Lewin, os ritmos urbanos de Lefebvre e os dividuais de Deleuze podem ser vistos como previsões dos princípios de “governação algorítmica” que se estabeleceram com a sociedade em rede e os seus vastos centros de dados desde o final da década de 1990. O lançamento em 1998 do algoritmo PageRank da Google – um método para organizar e pesquisar o hipertexto caótico da Web – é considerado, por convenção, a primeira elaboração em grande escala de “grandes dados” das redes digitais [10]. Atualmente, estas técnicas de mapeamento de redes tornaram-se onipresentes: O Facebook, por exemplo, utiliza o protocolo Open Graph para quantificar as redes de relações humanas que alimentam a economia da atenção da sua plataforma [11]. O exército dos EUA tem utilizado as suas próprias técnicas controversas de “análise de padrões de vida” para mapear redes sociais em zonas de guerra e identificar alvos de ataques de drones que, como é sabido, mataram civis inocentes [12]. Mais recentemente, as plataformas da gig economy (“Economia do Bico”) e os gigantes da logística, como a Uber, a Deliveroo, a Wolt e a Amazon, começaram a localizar a sua frota de passageiros e condutores através de aplicações de geolocalização [13]. Todas estas técnicas fazem parte do novo domínio da “análise de pessoas” (também conhecida como “física social” ou “psicografia”), que é a aplicação da estatística, da análise de dados e da aprendizagem automática ao problema da força de trabalho na sociedade pós-industrial [14].

 

A automação da psicometria, ou inteligência geral (general intellect)

A divisão do trabalho, tal como o design das máquinas e dos algoritmos, não é uma forma abstrata em si, mas um meio de medir o trabalho e os comportamentos sociais e de diferenciar as pessoas em função da sua capacidade produtiva. Tal como os princípios de Babbage indicam, qualquer divisão do trabalho implica uma métrica: uma medição da performatividade e da eficiência dos trabalhadores, mas também um juízo sobre as classes de competências, o que implica uma hierarquia social implícita. A métrica do trabalho foi introduzida para avaliar o que é e o que não é produtivo, para manipular uma assimetria social e, ao mesmo tempo, declarar uma equivalência ao sistema monetário. Durante a era moderna, as fábricas, os quartéis e os hospitais têm procurado disciplinar e organizar os corpos e as mentes com métodos semelhantes, tal como Michel Foucault, entre outros, pressentiu.

No final do século XIX, a metrologia do trabalho e dos comportamentos encontrou um aliado num novo campo da estatística: a psicometria. A psicometria tinha como objetivo medir as competências da população na resolução de tarefas básicas, fazendo comparações estatísticas em testes cognitivos em vez de medir o desempenho físico, como no campo anterior da psicofísica [15]. Como parte do legado controverso de Alfred Binet, Charles Spearman e Louis Thurstone, a psicometria pode ser considerada uma das principais genealogias da estatística, que nunca foi uma disciplina neutra, mas sim uma disciplina preocupada com a “medida do homem”, a instituição de normas de comportamento e a repressão de anomalias [16]. A transformação da métrica do trabalho em psicometria do trabalho é uma passagem fundamental tanto para a gestão como para o desenvolvimento tecnológico no século XX. É revelador que, ao conceber o primeiro perceptron de rede neural artificial, Frank Rosenblatt tenha se inspirado não só nas teorias da neuroplasticidade, mas também nas ferramentas de análise multivariável que a psicometria importou para a psicologia norte-americana na década de 1950.

Nesta perspetiva, este livro tenta esclarecer como o projeto de IA surgiu, na realidade, da automação da psicometria do trabalho e dos comportamentos sociais – e não da procura da solução do “enigma” da inteligência. Num resumo conciso da história da IA, pode se dizer que a mecanização do “intelecto geral” (“general intellect”) da era industrial na “inteligência artificial” do século XXI foi possível graças à medição estatística da competência, como o fator de “inteligência geral” de Spearman, e à sua posterior automatização em redes neurais artificiais. Se na era industrial a máquina era considerada uma encarnação da ciência, do conhecimento e do “intelecto geral” (“general intellect”) dos trabalhadores, na era da informação as redes neurais artificiais tornaram-se as primeiras máquinas a codificar a “inteligência geral” em ferramentas estatísticas – no início, especificamente, para automatizar o reconhecimento de padrões como uma das tarefas-chave da “inteligência artificial”. Em suma, a forma atual de IA, a aprendizagem automática, é a automatização das métricas estatísticas que foram originalmente introduzidas para quantificar as capacidades cognitivas, sociais e relacionadas com o trabalho. A aplicação da psicometria através das tecnologias da informação não é um fenômeno exclusivo da aprendizagem automática. O escândalo de dados de 2018 entre o Facebook e a Cambridge Analytica, em que a empresa de consultoria conseguiu recolher os dados pessoais de milhões de pessoas sem o seu consentimento, é um lembrete de como a psicometria em grande escala continua a ser utilizada por empresas e atores estatais numa tentativa de prever e manipular comportamentos coletivos [17].

Dado o seu legado nas ferramentas estatísticas da biometria do século XIX, também não é surpreendente que as redes neurais artificiais profundas tenham recentemente se desdobrado em técnicas avançadas de vigilância, como o reconhecimento facial e a análise de padrões de vida. Acadêmicos críticos da IA, como Ruha Benjamin e Wendy Chun, entre outros, expuseram as origens racistas destas técnicas de identificação e definição de perfis que, tal como a psicometria, quase representam uma prova técnica do viés social (“social bias”) da IA [18]. Identificaram, com razão, o poder da discriminação no cerne da aprendizagem automática e a forma como esta se alinha com os aparelhos de normatividade da era moderna, incluindo as taxonomias questionáveis da medicina, da psiquiatria e do direito penal [19].

A metrologia da inteligência iniciada nos finais do século XIX, com a sua agenda implícita e explícita de segregação social e racial, continua a funcionar no cerne da IA para disciplinar o trabalho e reproduzir as hierarquias produtivas do conhecimento. Por conseguinte, a lógica da IA não é apenas a automação do trabalho, mas o reforço destas hierarquias sociais de uma forma indireta. Ao declarar implicitamente o que pode ser automatizado e o que não pode, a IA impôs uma nova métrica da inteligência em cada fase do seu desenvolvimento. Mas comparar a inteligência humana e a inteligência das máquinas implica também um julgamento sobre que comportamento humano ou grupo social é mais inteligente do que outro, que trabalhadores podem ser substituídos e quais não podem. Em última análise, a IA não é apenas um instrumento para automatizar o trabalho, mas também para impor padrões de inteligência mecânica que propagam, de forma mais ou menos invisível, hierarquias sociais de conhecimentos e competências. Tal como acontece com qualquer forma anterior de automatização, a IA não se limita a substituir trabalhadores, mas desloca-os e reestrutura-os numa nova ordem social.

 

A automação da automação

Se observarmos atentamente como os instrumentos estatísticos concebidos para avaliar as competências cognitivas e discriminar a produtividade das pessoas se transformaram em algoritmos, torna-se evidente um aspecto mais profundo da automação. De fato, o estudo da metrologia do trabalho e dos comportamentos revela que a automação emerge, em alguns casos, da transformação dos próprios instrumentos de medição em tecnologias cinéticas. Os instrumentos de quantificação do trabalho e de discriminação social tornaram-se “robôs” por direito próprio. Antes da psicometria, se poderia referir a forma como o relógio utilizado para medir o tempo de trabalho na fábrica foi mais tarde implementado por Babbage para a automatização do trabalho mental na Máquina Diferencial. Os cibernéticos, como Norbert Wiener, continuaram a considerar o relógio como um modelo-chave tanto para o cérebro como para o computador. A este respeito, o historiador da ciência Henning Schmidgen observou como a cronometria dos estímulos nervosos contribuiu para a consolidação da metrologia cerebral e também para o modelo de redes neurais de McCulloch e Pitts [20]. A teoria da automação que este livro ilustrou não aponta, portanto, apenas para a emergência de máquinas a partir da lógica da gestão do trabalho, mas também a partir dos instrumentos e métricas para quantificar a vida humana em geral e torná-la produtiva.

Este livro procurou mostrar que a IA é o culminar da longa evolução da automação do trabalho e da quantificação da sociedade. Os modelos estatísticos da aprendizagem automática não parecem, de fato, ser radicalmente diferentes da concepção das máquinas industriais, mas antes homólogos a elas: são, de fato, constituídos pela mesma inteligência analítica das tarefas e dos comportamentos coletivos, embora com um grau de complexidade mais elevado (isto é, número de parâmetros). Tal como as máquinas industriais, cuja concepção surgiu gradualmente através de tarefas de rotina e de ajustes por tentativa e erro, os algoritmos de aprendizagem automática adaptam o seu modelo interno aos padrões dos dados de treino através de um processo comparável de tentativa e erro. Pode dizer-se que a concepção de uma máquina, bem como a de um modelo de um algoritmo estatístico, seguem uma lógica semelhante: ambos se baseiam na imitação de uma configuração externa de espaço, tempo, relações e operações. Na história da IA, isto era tão verdadeiro para o perceptron de Rosenblatt (que visava registar os movimentos do olhar e as relações espaciais do campo visual) como para qualquer outro algoritmo de aprendizagem de máquinas atual (por exemplo, máquinas de vetores de apoio, redes bayesianas, modelos de transformadores).

Enquanto a máquina industrial incorpora o diagrama da divisão do trabalho de uma forma determinada (pensemos nos componentes e nos “graus de liberdade” limitados de um tear têxtil, de um torno ou de uma escavadora mineira), os algoritmos de aprendizagem automática (especialmente os modelos recentes de IA com um vasto número de parâmetros) podem imitar atividades humanas complexas [21]. Embora com níveis problemáticos de aproximação e enviesamento, um modelo de aprendizagem automática é um artefato adaptativo que pode codificar e reproduzir as mais diversas configurações de tarefas. Por exemplo, um mesmo modelo de aprendizagem automática pode imitar tanto o movimento de braços robóticos em linhas de montagem como as operações do condutor de um automóvel autônomo; o mesmo modelo pode também traduzir entre línguas tanto como descrever imagens com palavras coloquiais.

O surgimento de grandes modelos de base nos últimos anos (por exemplo, BERT, GPT, CLIP, Codex) demonstra como um único algoritmo de aprendizagem profunda pode ser treinado num vasto conjunto de dados integrado (incluindo texto, imagens, fala, dados estruturados e sinais 3D) e utilizado para automatizar uma vasta gama das chamadas tarefas a jusante (resposta a perguntas, análise de sentimentos, extração de informações, geração de texto, legendagem de imagens, geração de imagens, transferência de estilos, reconhecimento de objectos, seguimento de instruções, etc.) [22]. Pela forma como foram construídos com base em grandes repositórios de patrimônio cultural, conhecimento coletivo e dados sociais, os grandes modelos de base são a aproximação mais próxima da mecanização do “intelecto geral” que foi prevista na era industrial. Um aspecto importante da aprendizagem automática que os modelos de base demonstram é que a automação de tarefas individuais, a codificação do patrimônio cultural e a análise de comportamentos sociais não têm qualquer distinção técnica: podem ser realizadas por um único e mesmo processo de modelação estatística.

Em conclusão, a aprendizagem automática pode ser vista como o projeto de automatizar o próprio processo de concepção de máquinas e de criação de modelos – ou seja, a automação da teoria laboral da própria automação. Neste sentido, a aprendizagem automática e, especificamente, os modelos de grandes fundações representam uma nova definição de Máquina Universal, pois a sua capacidade não se limita a executar tarefas computacionais, mas a imitar o trabalho e os comportamentos coletivos em geral. O avanço que a aprendizagem automática passou a representar não é, portanto, apenas a “automação da estatística”, como a aprendizagem automática é por vezes descrita, mas a automação da automação, trazendo este processo para a escala do conhecimento coletivo e do patrimônio cultural [23]. Além disso, a aprendizagem automática pode ser considerada como a prova técnica da integração progressiva da automação do trabalho e da governação social. Emergindo da imitação da divisão do trabalho e da psicometria, os modelos de aprendizagem automática evoluíram gradualmente para um paradigma integrado de governança que a análise de dados empresariais e os seus vastos centros de dados bem exemplificam.

 

Desfazendo o Algoritmo Mestre

Tendo em conta a dimensão crescente dos conjuntos de dados, os custos de formação dos grandes modelos e o monopólio da infraestrutura de computação em nuvem que é necessário para que algumas empresas como a Amazon, a Google e a Microsoft (e as suas congéneres asiáticas Alibaba e Tencent) hospedarem esses modelos, tornou-se evidente para todos que a soberania da IA continua a ser um assunto difícil à escala geopolítica. Além disso, a confluência de diferentes aparelhos de governança (ciência climática, logística global e até cuidados de saúde) para o mesmo hardware (computação em nuvem) e software (aprendizagem de máquina) assinala uma tendência ainda mais forte para a monopolização. Para além da notória questão da acumulação de poder, a ascensão dos monopólios de dados aponta para um fenômeno de convergência técnica que é fundamental para este livro: os meios de trabalho tornaram-se os mesmos meios de medição e, do mesmo modo, os meios de gestão e logística tornaram-se os mesmos meios de planejamento econômico.

Isto também se tornou evidente durante a pandemia de Covid-19, quando foi criada uma grande infraestrutura para acompanhar, medir e prever os comportamentos sociais [24]. Esta infraestrutura, sem precedentes na história dos cuidados de saúde e da biopolítica, não foi, no entanto, criada ex nihilo, mas construída a partir de plataformas digitais existentes que orquestram a maior parte das nossas relações sociais. Sobretudo durante os períodos de confinamento, o mesmo meio digital foi utilizado para trabalhar, fazer compras, comunicar com a família e os amigos e, eventualmente, para os cuidados de saúde. As métricas digitais do corpo social, como a geolocalização e outros metadados, foram fundamentais para os modelos preditivos do contágio global, mas elas são usadas há muito tempo para acompanhar o trabalho, a logística, o comércio e a educação. Filósofos como Giorgio Agamben afirmaram que esta infraestrutura prolongou o estado de emergência da pandemia, quando, na verdade, a sua utilização nos cuidados de saúde e na biopolítica dá continuidade a décadas de monitorização da produtividade econômica do corpo social, que passou despercebida a muitos [25].

A convergência técnica das infra estruturas de dados revela também que a automação contemporânea não se limita à automação do trabalhador individual, como na imagem estereotipada do robô humanoide, mas à automação dos patrões e gestores da fábrica, como acontece nas plataformas da gig economy. Dos gigantes de logística (Amazon, Alibaba, DHL, UPS, etc.) e da mobilidade (Uber, Share Now, Foodora, Deliveroo) às redes sociais (Facebook, TikTok, Twitter), o capitalismo de plataforma é uma forma de automação que, na realidade, não substitui os trabalhadores, mas multiplica-os e governa-os de novo. Desta vez, não se trata tanto da automação do trabalho, mas sim da automação da gestão. Sob esta nova forma de gestão algorítmica, todos nós passamos a ser trabalhadores individuais de um vasto autômato composto por utilizadores globais, “turkers“, prestadores de cuidados, condutores e cavaleiros de muitos tipos. O debate sobre o receio de que a IA venha a substituir totalmente os empregos é errôneo: na chamada economia das plataformas, os algoritmos substituem a gestão e multiplicam os empregos precários. Embora as receitas da gig economy continuem a ser pequenas em relação aos setores locais tradicionais, ao utilizarem a mesma infraestrutura a nível mundial, estas plataformas estabeleceram posições de monopólio. O poder do novo “mestre” não está na automatização de tarefas individuais, mas na gestão da divisão social do trabalho. Contra a previsão de Alan Turing, é o mestre, e não o trabalhador, que o robô veio substituir em primeiro lugar [26].

Nos perguntamos qual seria a possibilidade de intervenção política num espaço tão tecnologicamente integrado e se o apelo ao “redesign da IA” que as iniciativas populares e institucionais defendem é razoável ou praticável. Este apelo deveria começar por responder a uma questão mais premente: Como é que é possível “redesenhar” os monopólios de dados e conhecimento em grande escala [27]? À medida que grandes empresas como a Amazon, a Walmart e a Google conquistaram um acesso único às necessidades e aos problemas de todo o corpo social, um movimento crescente pede não só que estas infra-estruturas se tornem mais transparentes e responsáveis, mas também que sejam coletivizadas como serviços públicos (como sugeriu Fredric Jameson, entre outros), ou que sejam substituídas por alternativas públicas (como defendeu Nick Srnicek [28]). Mas qual seria uma forma diferente de projetar essas alternativas?

Tal como a teoria da automação deste livro sugere, qualquer aparelho tecnológico e institucional, incluindo a IA, é uma cristalização de um processo social produtivo. Os problemas surgem porque essa cristalização “ossifica” e reitera estruturas, hierarquias e desigualdades do passado. Para criticar e desconstruir artefatos complexos como os monopólios de IA, devemos começar por fazer o trabalho meticuloso do desconexão (“deconnectionism”) , desfazendo – passo a passo, arquivo a arquivo, conjunto de dados a conjunto de dados, metadado a metadado, correlação a correlação, padrão a padrão – o tecido social e econômico que os constitui na origem. Este trabalho já está sendo desenvolvido por uma nova geração de acadêmicos que estão a dissecar a cadeia de produção global de IA, especialmente os que utilizam métodos de “pesquisa-ação”. Destacam-se, entre muitos outros, a plataforma Turkopticon de Lilly Irani, utilizada para “interromper a invisibilidade do trabalhador” na plataforma de trabalho temporário Amazon Mechanical Turk; a investigação de Adam Harvey sobre conjuntos de dados de treino para reconhecimento facial, que expôs as violações maciças da privacidade das empresas de IA e da investigação acadêmica; e o trabalho do coletivo Politically Mathematics da Índia, que analisou o impacto econômico dos modelos preditivos da Covid-19 nas populações mais pobres e recuperou a matemática como um espaço de luta política (ver o seu manifesto citado no início deste texto).

A teoria laboral da automação é um princípio analítico para estudar o novo “olho do mestre” que os monopólios de IA encarnam. No entanto, precisamente devido à sua ênfase no processo de trabalho e nas relações sociais que constituem os sistemas técnicos, é também um princípio sintético e “sociogênico” (para utilizar o termo programático de Frantz Fanon e Sylvia Wynter [29]). O que está no cerne da teoria laboral da automação é, em última análise, uma prática de autonomia social. As tecnologias só podem ser julgadas, contestadas, reapropriadas e reinventadas se se inserirem na matriz das relações sociais que originalmente as constituíram. As tecnologias alternativas devem situar-se nestas relações sociais, de uma forma não muito diferente do que os movimentos cooperativos fizeram nos séculos passados. Mas construir algoritmos alternativos não significa torná-los mais éticos. Por exemplo, a proposta de codificação de regras éticas na IA e nos robôs parece altamente insuficiente e incompleta, porque não aborda diretamente a função política geral da automação no seu cerne [30].

O que é necessário não é nem o tecnosolucionismo nem o tecnopauperismo, mas sim uma cultura de invenção, concepção e planejamento que se preocupe com as comunidades e o coletivo, sem nunca ceder totalmente a agência e a inteligência à automação. O primeiro passo da tecnopolítica não é tecnológico, mas político. Trata-se de emancipar e descolonizar, quando não de abolir na totalidade, a organização do trabalho e das relações sociais em que se baseiam os sistemas técnicos complexos, os robôs industriais e os algoritmos sociais – especificamente o sistema salarial, os direitos de propriedade e as políticas de identidade que lhes estão subjacentes. As novas tecnologias do trabalho e da sociedade só podem se basear nesta transformação política. É evidente que este processo se desenrola através do desenvolvimento de conhecimentos não só técnicos mas também políticos. Um dos efeitos problemáticos da IA na sociedade é a sua influência epistêmica – a forma como transforma a inteligência em inteligência de máquina e promove implicitamente o conhecimento como conhecimento processual. O projeto de uma epistemologia política que transcenda a IA terá, no entanto, de transmutar as formas históricas do pensamento abstrato (matemático, mecânico, algorítmico e estatístico) e integrá-las como parte da caixa de ferramentas do próprio pensamento crítico. Ao confrontar a epistemologia da IA e o seu regime de extrativismo do conhecimento, é necessário aprender uma mentalidade técnica diferente, uma “contra-inteligência” coletiva.

 

NOTAS

[1]: “Disruption: A Manifesto,” Logic Magazine, no. 1, março de 2017.
[2]: Politically Mathematics collective, “Politically Mathematics Manifesto,” 2019
[3]: Karl Marx, Capital, Livro 1: O processo de produção do capital, p.330. Trad. Rubens Enderle. Boitempo, 2013
[4]: Veja o debate sobre o processo trabalhista em: Harry Braverman, Labor and Monopoly Capital: The Degradation of Work in the Twentieth Century (Monthly Review Press, 1974); David Noble, Forces of Production: A Social History of Industrial Automation (Oxford University Press, 1984).
[5]: Émile Durkheim, “Da Divisão do Trabalho Social” (1893), publicado no Brasil com esse título, por entre outras, a WMF Martins Fontes, em tradução de Eduardo Brandão.
[6]:
Kurt Lewin, “Die Sozialisierung des Taylorsystems: Eine grundsätzliche Untersuchung zur Arbeits- und Berufspsychologie,” Schriftenreihe Praktischer Sozialismus, vol. 4 (1920) – sem tradução para o português. Também ver Simon Schaupp, “Taylorismus oder Kybernetik? Eine kurze ideengeschichte der algorithmischen arbeitssteuerung,” WSI-Mitteilungen 73, no. 3, (2020).
[7]: Gaston Bachelard, “La dialectique de la durée” (Boivin & Cie, 1936), traduzido no Brasil para “A Dialética da Duração”, publicado pela Editora Ática em 1993. Henri Lefebvre, “Éléments de rythmanalyse” (Éditions Syllepse, 1992), último livro do autor, publicado no Brasil como “Elementos de Ritmanálise e outros Ensaios” pela Editora Consequência em 2021.
[8]: Frederic Sellet, “Chaîne Opératoire: The Concept and Its Applications,” Lithic Technology 18, no. 1–2 (1993). Sem tradução no Brasil
[9]: Gilles Deleuze, “Postscript on the Society of Control,” October, no. 59 (1992). Publicado no Brasil em DELEUZE, Gilles. Conversações: 1972-1990. Rio de Janeiro: Ed. 34,1992. Ver também David Savat, “Deleuze’s Objectile: From Discipline to Modulation,” in Deleuze and New Technology, ed. Mark Poster and David Savat (Edinburgh University Press, 2009).
[10]: Matthew L. Jones, “Querying the Archive: Data Mining from Apriori to PageRank,” in Science in the Archives, ed. Lorraine Daston (University of Chicago Press, 2017); Matteo Pasquinelli, “Google’s PageRank Algorithm: A Diagram of Cognitive Capitalism and the Rentier of the Common Intellect,” in Deep Search, ed. Konrad Becker and Felix Stalder (Transaction Publishers, 2009).
[11]:
Irina Kaldrack and Theo Röhle, “Divide and Share: Taxonomies, Orders, and Masses in Facebook’s Open Graph,” Computational Culture, no. 4 (November 2014); Tiziana Terranova, “Securing the Social: Foucault and Social Networks,” in Foucault and the History of Our Present, ed. S. Fuggle, Y. Lanci, and M. Tazzioli (Palgrave Macmillan, 2015).
[12]:
Grégoire Chamayou, “Pattern-of-Life Analysis,” chap. 5 in A Theory of the Drone (New Press, 2014). Publicado no Brasil como “Teoria do Drone”, pela Cosac & Naify em 2015. Veja também Matteo Pasquinelli, “Metadata Society,” keyword entry in Posthuman Glossary, ed. Rosi Braidotti and Maria Hlavajova (Bloomsbury, 2018), e “Arcana Mathematica Imperii: The Evolution of Western Computational Norms,” in Former West, ed. Maria Hlavajova and Simon Sheikh (MIT Press, 2017).
[13]:
Andrea Brighenti and Andrea Pavoni, “On Urban Trajectology: Algorithmic Mobilities and Atmocultural Navigation,” Distinktion: Journal of Social Theory 24, no. 1 (2001).
[14]:
M. Giermindl et al., “The Dark Sides of People Analytics: Reviewing the Perils for Organisations and Employees,” European Journal of Information Systems 33, no. 3 (2022). Veja também Alex Pentland, “Social Physics: How Social Networks Can Make Us Smarter” (Penguin, 2015).
[15]: A palavra “estatística” significava originalmente o conhecimento que o Estado possuía sobre seus próprios assuntos e territórios: um conhecimento que tinha de ser mantido em segredo. Em: Michel Foucault, Security, Territory, Population (Segurança, Território, População): Lectures at the Collège de France 1977-1978, trans. Graham Burchell (Palgrave Macmillan, 2009).
[16]:
Sobre a influência da metrologia cerebral na história da IA, ver Simon Schaffer: “Os julgamentos de que as máquinas são inteligentes envolveram técnicas para medir os resultados do cérebro. Essas técnicas mostram como o comportamento discricionário está ligado ao status daqueles que dependem da inteligência para sua legitimidade social.” Schaffer, “OK Computer”, em Ansichten der Wissenschaftsgeschichte, ed., Michael Hagner (Fischer, 2001) Michael Hagner (Fischer, 2001). Sobre a metrologia inicial do sistema nervoso, veja Henning Schmidgen, The Helmholtz Curves: Tracing Lost Times (Fordham University Press, 2014).
[17]:
Luke Stark, “Algorithmic Psychometrics and the Scalable Subject,” Social Studies of Science 48, no. 2 (2018).
[18]: Ruha Benjamin, Race after Technology: Abolitionist Tools for the New Jim Code (Polity, 2019); Wendy Chun, Discriminating Data: Correlation, Neighborhoods, and the New Politics of Recognition (MIT Press, 2021). Tarcízio Silva fez uma boa análise deste livro em seu blog.
[19]:
Sobre a imbricação de colonialismo, racismo e tecnologias digitais, veja Jonathan Beller, The World Computer: Derivative Conditions of Racial Capitalism (Duke University Press, 2021); Seb Franklin, The Digitally Disposed: Racial Capitalism and the Informatics of Value (University of Minnesota Press, 2021). No Brasil, ver “Racismo Algorítmico: Inteligência Artificial e Discriminação nas Redes Digitais”, de Tarcízio SIlva, lançado pelas Edições Sesc em 2022;“Colonialismo de dados: como opera a trincheira algorítmica na guerra neoliberal“”, org. de Sérgio Amadeu, Joyce Souza e Rodolfo Avelino lançada em 2021 pela Autonomia Literária; e “Colonialismo Digital: Por uma crítica hacker-fanoniana”, de Deivison Faustino e Walter Lippold, publicado pela Boitempo em 2023.
[20]:
Henning Schmidgen, “Cybernetic Times: Norbert Wiener, John Stroud, and the ‘Brain Clock’ Hypothesis”, History of the Human Sciences 33, no. 1 (2020). Sobre a cibernética e a “medição da racionalidade”, veja Orit Halpern, “Beautiful Data: A History of Vision and Reason since 1945” (Duke University Press, 2015), 173.
[21]:
Em mecânica, os graus de liberdade (DOF) de um sistema, como uma máquina, um robô ou um veículo, são o número de parâmetros independentes que definem sua configuração ou estado. Normalmente, diz-se que as bicicletas têm dois graus de liberdade. Um braço robótico pode ter muitos. Um modelo grande de aprendizado de máquina, como o GPT, pode ter mais de um trilhão.
[22]:
Rishi Bommasani et al., On the Opportunities and Risks of Foundation Models, Center for Research on Foundation Models at the Stanford Institute for Human-Centered Artificial Intelligence, 2021
[23]: Para uma leitura diferente sobre a automação da automação, ver Pedro Domingos, The Master Algorithm: How the Quest for the Ultimate Learning Machine Will Remake Our World (Basic Books, 2015); Luciana Parisi, “Critical Computation: Digital Automata and General Artificial Thinking,” Theory, Culture, and Society 36, no. 2 (March 2019).
[24]: “Breaking Models: Data Governance and New Metrics of Knowledge in the Time of the Pandemic,” workshop, Max Planck Institute for the History of Science, Berlin, and KIM research group, University of Arts and Design, Karlsruhe, September 24, 2021.
[25]:
Giorgio Agamben, Where Are We Now? The Epidemic as Politics, trans. V. Dani (Rowman & Littlefield, 2021). Publicado no Brasil como “Em que ponto estamos?”, pela n-1 edições em 2021.
[26]: Min Kyung Lee et al., “Working with Machines: The Impact of Algorithmic and Data-Driven Management on Human Workers,” in Proceedings of the 33rd Annual ACM Conference on Human Factors in Computing Systems, Association for Computing Machinery, New York, 2015; Sarah O’Connor, “When Your Boss Is an Algorithm,” Financial Times, September 8, 2016. See also Alex Wood, “Algorithmic Management Consequences for Work Organisation and Working Conditions,” no. 2021/07, European Commission JRC Technical Report, Working Papers Series on Labour, Education, and Technology, 2021.
[27]: Redesigning AI, ed. Daron Acemoglu (MIT Press), 2021.
[28]:
Leigh Phillips and Michal Rozworski, The People’s Republic of Walmart: How the World’s Biggest Corporations Are Laying the Foundation for Socialism (Verso, 2019); Frederic Jameson, Archaeologies of the Future: The Desire Called Utopia and Other Science Fictions (Verso, 2005), 153n22; Nick Srnicek, Platform Capitalism (Polity Press, 2017), 128.
[29]:
Sylvia Wynter, “Towards the Sociogenic Principle: Fanon, Identity, the Puzzle of Conscious Experience, and What It Is Like to Be ‘Black,’” in National Identities and Sociopolitical Changes in Latin America, ed. Antonio Gomez-Moriana, Mercedes Duran-Cogan (Routledge, 2001). Veja também Luciana Parisi, “Interactive Computation and Artificial Epistemologies,” Theory, Culture, and Society 38, no. 7–8 (October 2021).
[30]: Frank Pasquale, New Laws of Robotics: Defending Human Expertise in the Age of AI (Harvard University Press, 2020); Dan McQuillan, “People’s Councils for Ethical Machine Learning,” Social Media+ Society 4, no. 2 (2018).

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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No final de 2023, após quase um ano de volta do Ministério da Cultura, uma articulação de pessoas, organizações e coletivos com um histórico na Cultura Digital no saudoso período de Gilberto Gil e Juca Ferreira à frente do ministério (entre 2003 e 2010) voltou a agitar a área. Depois de quatro anos sem MinC, e mais pelo menos outros quatro com uma discussão bastante enfraquecida (apesar das tentativas de Juca no MinC de Dilma entre 2015 e 2016), agora finalmente foi possível retomar o debate sobre cultura digital.

Depois de tanto tempo, muitos desafios novos existem, a começar pelo termo: o que é cultura digital hoje? Acesso, inclusão, participação, ativismo, arte, política, comunicação, documentação, acervos, tudo isso misturado? Construção de plataformas livres para produção, circulação e preservação da cultura brasileira, ou para participação cidadã nas instâncias públicas nacionais, ou mesmo para streaming (público?) de nossas obras culturais? Criação de políticas públicas verdadeiramente coletivas e colaborativas de valorização e preservação da nossa rica diversidade cultural, com respeito e destacando nossa ancestralidade negra e indígena? Criação de planos de inclusão digital que sejam guiados por uma Soberania Digital que não ache que inclusão é dar acesso a poucas plataformas privadas de redes sociais ou submetidas à satélites de acesso produzidos por uma empresa de um magnata lunático?  Se faz ainda sentido falar em cultura digital, como defini-la hoje, e por quê? O que de fato queremos dizer hoje, e pro futuro, com cultura digital, para além dessa retomada do histórico brasileiro e da filiação dela ao MinC?

Não é preciso se estender muito em lembrar que a década de 2010 foi o período de ascensão das Big Techs como as grandes organizadoras do debate público mundial. São muitas consequências dessa mudança, especialmente para o que se chama (va) cultura digital (ou cibercultura, no meio acadêmico). Entre elas: o enfraquecimento do movimento (e da opção) do software livre como uma alternativa mais justa e segura às plataformas privadas guiadas pelo lucro com a venda dos dados;  a potencialização da desinformação no universo digital como problema central na política (e talvez na sociedade) contemporânea; a vigilância generalizada tirando cada vez a já pouca privacidade de todo o mundo; a dependência dos artistas das grandes plataformas para produzirem, circularem e guardarem suas obras; apenas para citar quatro e não usar todo este espaço para listar as transformações na internet nesta última década.

O primeiro grande encontro para discutir os novos rumos da cultura digital brasileira hoje é a 1ª Conferência Temática da Cultura Digital, realizada de forma online nos dias 24, 25 e 26 de janeiro no site Plantaformas.org com transmissão pela TV Tainã (tv.taina.net.br). O encontro é parte das atividades preparatórias da 4ª Conferência  Nacional de Cultura e tem como objetivo prático sistematizar um debate acerca da Cultura Digital para compor o Caderno da 4ª Conferência Nacional de Cultura, a ser realizada ainda neste 2024, e eleger três propostas para serem apresentadas na plenária da conferência nacional. As propostas mais votadas nesta plenária integrarão o Plano Nacional de Cultura. 

O objetivo simbólico, intelectual e astral, se podemos dizer assim, já está dito: retomada. A construção da programação foi toda colaborativa a partir de propostas e votações mediadas pela Plantaformas, criada pela Casa Preta Amazônia em software livre a partir do Decidim, usada para participação cidadã em diversos lugares do mundo. O tempo de construção das propostas, escasso – entre final de dezembro de 2023 e meados de janeiro de 2024  -, foi criticado por muitas pessoas e coletivos. A justificativa tem relação com o tempo da(s) política(s): ele só foi feito rápido assim devido a necessidade (e o desejo) de participar da Conferência Nacional de Cultura em 2024 e a dificuldade de rearticulação, entre sociedade civil e Governo, que levou boa parte de 2023. O evento foi puxado pelo que se está chamando de Rede da Cultura Digital Brasileira – este grupo de pessoas, coletivos e organizações que têm voltado a debater o tema desde 2023, como comentei no início, com a coordenação do Laboratório de Cultura Digital da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e apoio de diversas organizações e coletivos (que podem ser vistos aqui).

O tema central da conferência, proposto pela Rede de Produtoras Colaborativas, é PermaCultura Digital: Começo, meio e começo, tema apresentado na Plantaformas pela Rede de Produtoras Colaborativas e que será o da mesa de abertura, com a participação de mestres e mestras do Conselho Ancestral e representantes do Comitẽ de Governança Colaborativa da Rede da Cultura Digital. “A PermaCultura é a sistematização de saberes ancestrais para a permanência de todas as formas de vida na Terra. Entendemos que esse conhecimento, como proposta ética e metafórica para essa nova onda da Cultura Digital tem uma grande potência”, explica Fabs Balvedi, integrante da Rede. Já o “começo, meio e começo”, aspas do mestre quilombola Nego Bispo, chega para somar ao movimento a ênfase contracolonial e a ancestral que rege a Cultura Digital, nessa confluência entre tradições e transgressões que as tecnologias digitais podem promover.

“Tecnologia é mato, o importante são as pessoas”, anunciou Daniel Pádua na abertura dos caminhos da Cultura Digital brasileira na década de 2000. Tecendo por esse mesmo fio, vinte anos depois, se agora “Tecnologia é Mata, é Floresta, o que importa?”.

A programação completa (que pode ser vista aqui) tem diversas mesas com temas que vão da Institucionalização, Marcos Legais e Sistema Nacional de Cultura ao  Democratização do acesso à cultura e Participação Social, passando por Identidade, patrimônio e memória; Diversidade Cultural e Transversalidades de Gênero, Raça e Acessibilidade na Política Cultural; Economia Criativa, Trabalho, Renda e Sustentabilidade, entre outros. 

Debate sobre Permacultura Digital realizado no III Encontro SUL da Rede de Produtoras Culturais Colaborativas, realizada em Porto Alegre, com o BaixaCultura como um dos organizadores, em outubro de 2017

Publico aqui abaixo o Manifesto pensado para a Conferência, puxado por Lívia Ascava (HackLab/LabHacker) e diversos integrantes e coletivos participantes da Rede da Cultura Digital Brasileira.

MANIFESTO DA REDE DA CULTURA DIGITAL PARA A CONFERÊNCIA TEMÁTICA DA CULTURA DIGITAL 

A retomada do MinC, com a força dos movimentos que apontam suas echas para o “resgate do que é nosso”, embala também uma possível e potente nova onda da Cultura Digital. As chamadas novas tecnologias de informação e comunicação, que há 30 anos foram gestadas e paridas no Brasil inicialmente pela Comunicação e pela Ciência, Tecnologia e Inovação, quando foram apadrinhadas por Gil, no Ministério da Cultura, receberam uma outra potência. 

Naquele momento, as Big Techs ainda eram uma hydra imaginária e apostávamos que era possível enfrentar a captura que hoje assistimos, se fossemos ágeis em tecer redes distribuídas, descentralizadas e autônomas de ação, inspiradas na infraestrutura democrática da Internet, tendo como chão uma outra cultura de produção e reprodução da vida, em resistência, tesão e tensão: colaborativa, generosa, transgressora, democrática, criativa, com pés rmes em suas ancestralidades territoriais e caminhos abertos para as rupturas necessárias. Pontos e pontões de cultura foram recebidos como hardwares poderosos que somados às redes de telecentros, às casas de cultura digital, casas coletivas, redes colaborativas, aos ônibus e clubes hackers apresentariam um estilo de vida, um software contracultural, capaz de pulverizar e absorver desejos de transformação de corpos cansados da imposição neoliberal à vida. Hackatons, festivais de cultura digital, listas de email, ocupações de rua, redes de desenvolvimento de software livre, somavam-se às metodologias de contra-captura tão pulsantes quanto as aparelhagens, festas populares e o carnaval. 

O impacto que a indústria cultural, sobretudo da música e do audiovisual, sofreu com a tomada de assalto dos sistemas de distribuição peer to peer ou em redes de seus conteúdos proprietários, como o The Pirate Bay, transbordou para a comunicação que já não teria como sobreviver nem no impresso, tampouco no modelo “um para muitos”. De forma análoga, a democracia já não via como deixar de incorporar essa Cultura e técnica digital em seus processos de participação social, assim como de absorver as novas subjetividades já impressas em corpos políticos moldados nesse contexto. A velocidade com a qual as Big Techs, as máquinas de desinformação, os sistemas de Vigilância, a pandemia do covid e a ascensão da extrema direita no mundo e, especialmente no Brasil, colonizaram a Internet e complexificaram os desafios já postos, dificultaram o jogo e capturaram as atenções para essa necropolítica instaurada. 

Se, por um lado, essa conjuntura provocou um violento aborto coletivo de embriões espalhados entre coletivos, movimentos sociais e organizações de diversas natureza. Por outro, uma série de coletivos, movimentos e organizações nasceram ou mantiveram suas lutas e resistências ao longo desse tempo, garantindo uma retomada que seja fomentada e impulsionada pelo Ministério da Cultura sem uma grande dependência da máquina institucional.

Além disso, a disputa acirrada das narrativas que envolvem a cultura digital, somada a uma minoria representativa de corpos pretos, indígenas, mulheres e periféricos nas lideranças de processos, na constituição destes modos e compreensão de mundo, enfraquece a terra preta digital para um projeto cultural revolucionário. É vital que essa próxima onda seja estabelecida a partir do ponto de vista e prática de quem decide o próprio destino.

A retomada do MinC oferta para a Cultura Digital a possibilidade de uma rearticulação dessa rede, garantindo brechas para que estes movimentos, redes, coletivos e organizações se re-conheçam em encontros intergeracionais para uma consequente (re)elaboração do que é a Cultura Digital na atualidade. Quais imaginários foram plantados e colhidos ao longo destes anos? Quais estão sendo plantados hoje? Quais ervas daninhas precisam ser retiradas do terreno? Quais tradições de cultivo devem ser preservadas? Quais transgressões são desejáveis para evitar uma tendência à monocultura? Quais metodologias e tecnologias precisam ser criadas, ocupadas e disseminadas para ações de resistência na micro e macropolítica?

Nessa toada, a próxima onda da Cultura Digital, deve sim promover dentro do próprio Ministério uma retomada de programas e políticas para a Cultura Digital, que tratavam de temas como tecnologias de participação social, mapeamento e gestão da cultura, produção de indicadores, direitos autorais, pontos e pontões de cultura, redes de streaming nacionais, entre outros, mas também – e sobretudo – incluir uma capacidade de escutar, dialogar, incluir e desenhar as novas agendas para que a Cultura Digital exista no presente.

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Crises e ressacas em poéticas fronteiriças de Minas Gerais https://baixacultura.org/2023/07/05/crises-e-ressacas-em-poeticas-fronteiricas-de-minas-gerais/ https://baixacultura.org/2023/07/05/crises-e-ressacas-em-poeticas-fronteiricas-de-minas-gerais/#comments Wed, 05 Jul 2023 18:45:24 +0000 https://baixacultura.org/?p=15289  

Depois de alguns anos de trocas nas redes, finalmente conheci as experimentações arte tecnológicas do LabFront no 8º Congresso Internacional de Arte, Ciência e Tecnologia e Seminário de Artes Digitais, realizado no final de junho em BH. Organizado por uma rede de grupos de pesquisa desde 2015, o seminário esse ano falou de “Crises” – crise financeira, crise climática, crise de saúde, crise política, de refugiados, de recursos híbridos, saúde mental, ambiental. Teve GTs de trabalho, exposição de arte, performances e lançamento de livros em áreas que vão da arte digital à literatura expandida, da documentação de acervos ao uso do software livre na produção musical, passando até por direitos dos animais, edição de livros, paisagens da cidade, políticas e estéticas das imagens digitais, entre outros temas.
Para dialogar com o tema do evento, apresentei na abertura “Crises e ressacas da internet em tempos de inteligência artificial”, um apanhado do que tenho visto desde a ressaca da internet (texto de 2018) até as recentes discussões sobre IA, copyright/cultura livre e colonialismo de dados, temas que tenho tratado também aqui no BaixaCultura, com o acréscimo de algumas provocações de “Terra Arrasada”, livro recente (2023) de Jonathan Crary que estou terminando de ler (quem acompanha nossa newsletter sabe) mas já impactado (e digerindo), como por exemplo aqui:

“A partir de meados dos anos 1990, o complexo internético foi propagandeado como inerentemente democrático, descentralizador e anti-hierárquico. Dizia-se que se tratava de um meio inédito para a livre troca de ideias, de forma independente de controles impostos de cima para baixo, e capaz de equilibrar a arena do acesso midiático. Mas não foi nada disso. Houve uma fase breve de entusiasmo ingênuo, similar às esperanças não concretizadas veiculadas a respeito da ampla disponibilidade da televisão a cabo nos anos 1970. A narrativa de agora – aquela de uma tecnologia igualitária colocada em risco por monopólios corporativos, pela supressão da neutralidade da rede e pela invasão da privacidade – é claramente falsa. Não houve nem haverá “bens comuns digitais”. Desde o começo, o acesso de um público global á internet sempre esteve ligado à captura do tempo, ao desempoderamento e à conectividade despersonalizada. A única razão pela qual, em um primeiro momento, a internet parecia “mais livre” ou mais aberta se deveu ao fato de que os projetos de financeirização e de expropriação não foram implementados todos ao mesmo tempo, tendo levado alguns anos para alcançar um ponto de aceleração, no começo da década de 2000”.

 

Aqui está o vídeo da fala na íntegra, transmitida ao vivo no Instagram. Aqui o PPT da apresentação, que vai virar um texto que mais adiante compartilho aqui também. As fotos abaixo são da abertura, em conversa com Pablo Gobira, diretor/presidente/fundador/agitador do LabFront e do evento. Créditos das fotos para Priscila Portugal, mestranda na UEMG e pesquisadora do Labfront.

[Leonardo Foletto]

 


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BaixaCharla ao vivo #7: Ciberfeminismos 3.0 https://baixacultura.org/2021/04/30/baixacharla-7-ciberfeminismos-3-0/ https://baixacultura.org/2021/04/30/baixacharla-7-ciberfeminismos-3-0/#respond Fri, 30 Apr 2021 21:08:23 +0000 https://baixacultura.org/?p=13641  

A sétima BaixaCharla ao vivo, terceira de 2021, vai falar sobre Ciberfeminismos 3.0, obra recém publicada pelo Grupo de Pesquisa em Gênero, Tecnologias Digitais e Cultura (Gig@/UFBA) da UFBA, com organização da professora Graciela Natansohn (Facom/PosCom/UFBA), nossa convidada da conversa.

A obra, publicada em e-book pela Editora LabCom de Portugal [baixe grátis], reúne pesquisadoras e pesquisadores trazendo novos olhares sobre a interface entre o gênero e as tecnologias digitais. Alguns dos temas da publicação são os usos e apropriações das tecnologias de informação e comunicação: o ativismo realizado por mulheres e outros grupos em vulnerabilidade social, sobretudo em prol de uma internet feminista e antirracista; a questão das brechas e violências digitais de gênero; a dataficação, algoritmização e plataformização das tecnologias e mídias digitais e seus impactos nos usos e apropriações por mulheres e pessoas LGBTQIA +.

A proposta do “3.0” do título dialoga com a perspectiva de uma internet mais “madura”, que questiona e perde a inocência da neutralidade da tecnologia, compreende as brechas e violências digitais e elucida a episteme colonial dominante, que se datatificou a partir de algoritmos que arquitetam a criptografia do poder, como Graciela descreve na apresentação do livro:

“A internet institui ainda cenários privilegiados e tensos para a ação política e as resistências e lutas feministas, antirracistas, de mulheres cis e trans, hetero, lésbicas, bissexuais e pessoas queer e não binárias e de­mandam, ao mundo acadêmico, balizar teorizações e práticas alternativas críticas, descolonizadoras, isto é, dar visibilidade e, mais do que nada, le­gitimidade epistêmica a outras formas de imaginar internet, que não se limitem apenas ao uso das plataformas corporativas, à exploração do tra­balho humano via tecnologias sob o nome de empreendedorismo, ao uso exaustivo de ferramentas desenhadas pelas lógicas do capital” 

Fonte:CartelUrbano, el clitoris de la red.

Os ciberfeminismos, hackativismos feministas e transhackativistas estão ‘parindo’ como, segue Graciela, não mais por princípios liberais, extrativistas, brancos e masculinistas, mas por princípios éticos feministas inspirados em ideais emancipacionistas. Ela considera que há uma terceira geração de ciberfeministas nos quais os discursos acerca do feminismo mudaram; interpeladas pelas lutas antirracistas e ambientalistas, reivindicam um mundo e uma internet sustentável, contestam armadilhas da colonialidade digital dominante sem abrir mão do termo “ciber”. 

A proposta da charla é apresentar, ao menos em caráter inicial, conceitos teóricos presentes no livro e compartilhados com autoras como Donna Haraway (o corpo ciborgue), Diana Maffía (dimensão simbólica do corpo e suas fronteiras), Dianna Boyd (Affordances em ambientes digitais e colapso de contexto) e autores transfeministas e dos estudos queer como Judith Butler (performatividade de gênero), Jon Preciado (corpo como um texto sexualmente construído), Foucault (biopoder) nas questões da digitalização de si em ambientes digitais. Também traremos as narrativas históricas da palavra “ciberfeminismo” e  “hackfeminismo” para uma abordagem prática a partir das primeiras iniciativas de coletivos ativistas e as extensões dos conceitos sob o contexto da hiperconexão global. 

 “Nesta década, novas expressões do ciberativismo feminista reaparecem sob o nome hackfeminista, que repensa o lugar do ativismo de outras manei­ras, não se limitando à camada da Internet que produz e divulga conteúdo, mas analisa o campo das infraestruturas lógicas e físicas, responsável pe­las condições de existência da internet. Também autodenominado como transhackfeminista, com todas as suas variações, aderem ao feminismo queer e trans, enfatizam e promovem processos de autonomia tecnológi­ca, comunitarismo, redes alternativas e rejeita as cumplicidades do big data com o modelo de negócios na Internet. Apesar de serem poucos, esses coletivos têm assimilado os princípios hackers relacionados ao software li­vre, mas com uma forte crítica ao androcentrismo típico da cultura hacker.”

Fonte: Ilustração Leonard Beard.

Para debater o tema, Leonardo Foletto e Tatiana Balistieri, do BaixaCultura, conversam com Graciela Natansohn, coordenadora do GIG@, professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas e da FACOM da UFBA. Graduada em Jornalismo e Licenciatura em Comunicação Social pela Universidad Nacional de La Plata (Argentina), possui Mestrado e doutorado em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela UFBA. Suas pesquisas e produções concentram-se na interseção entre a comunicação e o feminismo e sobre questões de gênero na cultura digital e no jornalismo. Atualmente pesquisa “ A Apropriação de mídias digitais – Um Olhar de gênero”, onde problematiza as experiências das pessoas nas suas aproximações às tecnologias de informação digitais, com um olhar sensível às questões de gênero e outras interseccionalidades.

A conversa vai ser realizada na quinta-feira, 6 de maio, às 19h, no canal do Youtube do BaixaCultura, onde as outras charlas já estão disponíveis. Nas próximas semanas ela também vira podcast, que pode ser escutado aqui e nas principais plataformas de streaming.

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BaixaCharla ao vivo #5: Gramofone, Filme, Typewriter, Kittler https://baixacultura.org/2021/01/29/baixacharla-ao-vivo-5-gramofone-filme-typewriter-kittler/ https://baixacultura.org/2021/01/29/baixacharla-ao-vivo-5-gramofone-filme-typewriter-kittler/#respond Fri, 29 Jan 2021 17:25:24 +0000 https://baixacultura.org/?p=13380

 

Estamos de volta com as “BaixaCharlas”, nossas conversas sobre tecnologia, cultura livre e contracultura digital ao vivo. Depois da primeira temporada gravada em 2017/18, da segunda (ao vivo) em 2019, pulamos um ano para, neste 2021, retomar com uma discussão mensal sobre tecnologia, cultura e política, sempre a partir de um livro (ou tema) e com convidadxs.

A quinta BaixaCharla ao vivo, primeira do ano, vai falar sobre “Gramofone, Filme, Typewriter”, obra seminal do teórico das mídias alemão Friedrich A. Kittler. Publicada originalmente em alemão em 1986, ganhou sua primeira tradução para o Brasil em 2019, por Daniel Martineschen e Guilherme Gontijo Flores, em co-edição da Editora UFMG e da Ed. Uerj. Tornou-se um marco na obra do autor; ninguém traçou o impacto discursivo e ontológico das mídias analógicas em maior profundidade que ele, segundo Geoffrey Winthrop-Young, professor da University of British Columbia, na contracapa do livro, e “ em nenhuma parte ele apresenta um relato mais acessível e convincente do que em “Gramofone, filme e typewriter” graças à combinação inaudita entre reflexão teórica e expertise tecnológica, a singular mistura de análise do discurso francesa (Lacan e Foucault), teoria da mídia canadense (McLuhan) e filosofia alemã da técnica (Heidegger)”.

Acessível não é bem algo que dá para falar da obra de Kittler. Sua reflexão sobre a técnica em diversos momentos entra em digressões que misturam áreas diversas do conhecimento e impressionam pelo estilo narrativo, como se ele entrasse num fluxo de consciência tal qual um personagem de William Faulkner (ou de James Joyce) e recheasse o fluxo com ligações não convencionais de ideias que pulam de física acústica à Nietzsche e Pink Floyd em questão de poucas linhas, às vezes na mesma frase. Não primam pela facilidade, mas convence enquanto teoria – e torna a leitura prazerosa como poucos obras “teóricas” na área da filosofia, comunicação, tecnologia, história, com frases como: “De maneira muito mais precisa do que a imaginação poética, cujo alfabetismo ou criatividade já se opunha, em 1800, a uma memória meramente reprodutiva, a tecnologia faz com que o inaudito se torne possível, no sentido estrito da palavra”. Depois desse trecho, num dos momentos mais interessantes do longo livro (412p. na edição brasileira), é mostrada a letra de “Fat Old Sun”, do Pink Floyd, e Kittler segue sua reflexão sobre a magia e a física da reprodução elétrica de sons começada pelo primeiro aparelho de reprodução desse tipo a ser popularizado – o gramofone de Thomas Edison, no final do século XIX.

 “O inaudito, no sentido estrito da palavra, é o ponto em que a tecnologia da informação e a fisiologia do cérebro coincidem. Não fazer barulho algum, erguer os pés do chão e, quando a noite cai, ouvir o som de uma voz – todos fazemos isso: ao colocarmos para tocar o disco que comanda tal magia. E o que vem depois é verdadeiramente um ruído prateado, estranho ou inaudito. Pois ninguém sabe quem está cantando – a voz chamada Gilmour que entoa a canção, ou a voz da qual parte o discurso, ou enfim a voz do próprio ouvinte, que não faz nenhum som e mesmo assim tem que cantar tão logo estejam cumpridas todas as condições da magia”.

 

Kittler. Fonte: Neue Zürcher Zeitung (The New Zurich TImes)

Mas afinal, quem é esse sujeito que narra a história da técnica com datas, fatos, teorias, figuras históricas e objetos técnicos como se fosse um escritor de ficção a manejar vozes de personagens em um romance? Nascido no final da Segunda Guerra Mundial e falecido em 2011, Friedrich Kittler começou sua carreira como crítico literário, passando pelo estudo das mídias analógicas, depois para a gênese do computador e, por fim voltou à Grécia Arcaica para investigar a relação entre os deuses, o alfabeto e a matemática, numa espécie de gênese do ocidente sob perspectiva tecnológica. A literatura sempre esteve presente em seus estudos: fez a tese de doutorado (em filosofia) sobre um poeta alemão, Conrad Ferdinand Meyer, foi primeiro professor de Literatura Moderna Alemã e depois se encaminhou para os estudos de mídias e estética, em universidades alemãs e dos Estados Unidos. Ao lado de Hans Ulrich Gumbrecht, Siegfried Zielinski e Vilém Flusser, foi um dos nomes mais proeminentes da Teoria Alemã de Mídia, uma perspectiva de pensamento “popularizada” (porque nunca realmente popular, como deve se imaginar) no meio acadêmico a partir dos anos 1980 como “Arqueologia das Mídias”, um mergulho profundo nas mídias do passado para entender, em detalhes, o funcionamento das máquinas (e da relação entre homem, sociedade e máquina) do presente.

“A pergunta básica da arqueologia da mídia poderia ser simplesmente: quais as condições de existência dessa coisa, desse enunciado, desses discursos e das múltiplas práticas midiáticas com as quais vivemos? Tais questões são políticas, estéticas, econômicas, tecnológicas, científicas e além – e deveríamos recusar tentativas de deixar de fora quaisquer desses aspectos”. (Jussi Parikka, What is Media Arqueology, p. 18, tradução livre de Leonardo Lamha)

“Gramofone, Filme, Typewriter” é considerada seu trabalho mais conhecido, mas o leitor brasileiro dispõe também em português de “Mídias Óticase “A verdade do mundo tecnológico, lançados pela editora Contraponto. Apesar da publicação recente desses livros, sua obra ainda é (relativamente) pouco estudada no Brasil. Uma pista para isso decorre de sua interdisciplinaridade sui generis, mistura de literatura, história militar, computação, matemática e teoria pós-estruturalista, que não cai bem em formas de pensar separadas em “caixinhas” que pouco se cruzam, modo predominante no status quo da universidade brasileira. Outra é que Kittler, ao contrário de outros pensadores mais populares, não fornece teorias prontas, mas desenha genealogias – em seu caso, genealogias do desenvolvimento de processamento, armazenamento e transmissão de informação. Há ainda uma terceira pista: o texto de Kittler pode ser complexo e chato demais para alguns.

As três palavras que dão nome ao livro correspondem a “sistemas discursivos” ou “sistemas de notação”, que é como Kittler denomina os dispositivos tecnológicos e culturais que registram, processam e transmitem informações conhecidas como “mídias” (ou meios) em português. Cada palavra é um ensaio sobre um desses aparatos, “sistemas”, “mídias”, que quebram, pela primeira vez desde a invenção do alfabeto, o monopólio da escrita. O gramofone, a película/câmera de cinema e a máquina de escrever fragmentam a informação em incompatíveis fluxos acústicos, visuais e escritos e, pela primeira vez na história, fazem com que as pessoas (não) se reconhecem em mídias que registram a natureza e os corpos humanos.

Das palavras também vem uma particularidade do título: Grammophon, Film, Typewriter, título original do livro em alemão, já vinha grafado de forma híbrida: typewriter estava em inglês, e assim permanece em português porque no contexto da obra não deve ser traduzida: se refere a uma dupla significação (máquina de escrever e datilógrafo/a) e a uma dupla articulação das duas mídias: “de um lado, o aparato tecnológico inventado para padronizar a escrita; de outro, a pessoa que faz uso profissional do aparelho”, como escrevem Adalberto Müller e Erick Felinto no prefácio brasileiro à obra, professores da UERJ que foram também grandes incentivadores da publicação da obra no Brasil.

Para conversar sobre e a partir de Kittler, o convidado da BaixaCharla é Leonardo Petersen Lamha, doutorando em Literatura Comparada na Universidade Federal Fluminense (UFF). Ele recentemente escreveu a resenha “Ruído, noite e frio”, publicada na Internet & Sociedade, revista do InternetLab, da qual muitas informações desse texto foram retiradas. Leonardo pesquisa relações entre mídia, tecnologia e literatura a partir da teoria alemã da mídia, em especial as obras de Friedrich Kittler e Franz Kafka.

A conversa vai ser realizada na próxima quinta-feira, 4/2, às 19h, entre Leonardo Lamha e Leonardo Foletto, editor do BaixaCultura, em nosso canal do Youtube. Depois ficará disponível no mesmo site.

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