comum – BaixaCultura https://baixacultura.org Cultura livre & (contra) cultura digital Thu, 29 Aug 2024 22:52:29 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.0.9 https://baixacultura.org/wp-content/uploads/2022/09/cropped-adesivo1-32x32.jpeg comum – BaixaCultura https://baixacultura.org 32 32 Cultura livre como liberdade positiva https://baixacultura.org/2024/08/29/cultura-livre-como-liberdade-positiva/ https://baixacultura.org/2024/08/29/cultura-livre-como-liberdade-positiva/#comments Thu, 29 Aug 2024 22:52:29 +0000 https://baixacultura.org/?p=15712 Traduzimos um texto que nos convida a refletir sobre um tema sempre importante por aqui: a cultura livre. Foi publicado em maio de 2024 por Mariana Fossati, socióloga uruguaia e ativista da cultura livre, parte do Ártica Online, parceiro deste espaço já há muitos anos. Ao final, fiz alguns comentários a respeito de pontos do texto, como a insuficiência do acesso à informação e aos bens culturais para garantir que todos os indivíduos e coletivos possam participar livre e igualmente na vida cultural; e a necessidade de uma política do cuidado dentro das comunidades e movimentos da cultura livre.

 

CULTURA LIVRE COMO LIBERDADE POSITIVA

 

Por Mariana Fossati, em Ártica Cultural
Tradução e adaptação: Leonardo Foletto

 

Como definimos liberdade quando falamos de cultura livre? Há algum tempo, escrevi que a cultura livre não é apenas uma filosofia, expressa em práticas concretas através das quais tornamos as nossas obras livres quando as compartilhamos. A cultura livre se expressa não só na ética de “compartilhar é bom”, mas também, de modo concreto, nas licenças que utilizamos, onde e como compartilhamos – e também no apoio a reformas progressivas dos direitos de autor. Gostaria agora de voltar à dimensão filosófica da liberdade na cultura livre, com a intenção de clarificar para que é que fazemos cultura livre e porque é que a defendemos.

Muitas vezes, ao longo da minha militância neste tema, senti que falo de uma coisa quando falo de cultura livre, enquanto os críticos falam de outra. Sobretudo os críticos “de esquerda” acusam aqueles que defendem a cultura livre de serem liberais, ou associam “cultura livre” a “mercado livre”. Durante muito tempo ri destas associações grosseiras, mas sinto que hoje, mais do que nunca, e sobretudo no conceito de cultura livre, a noção de liberdade deve ser reapropriada pelos movimentos de defesa dos direitos, para nos diferenciarmos claramente dos movimentos de direita autodenominados “libertários”.

Num artigo crítico aos libertários em seu blog, Rolando Astarita, [conhecido professor de economia argentino, estudioso do marxismo] fala da diferença entre liberdade negativa e liberdade positiva, no sentido proposto por Isaiah Berlin. A liberdade negativa é a possibilidade do indivíduo atuar sem interferência ou coerção, e é limitada pela liberdade dos outros e pela lei. A liberdade positiva é a capacidade real de exercer a autonomia e de se auto-realizar, o que depende não só de cada pessoa, mas também de condicionantes sociais. É por isso que Astarita entende que a tradição marxista enfatiza sobretudo a liberdade positiva. 

O artigo de Astaria me serve como inspiração para este post, porque a cultura livre pode ser entendida desde qualquer uma destas noções de liberdade. Creio, porém, que é necessário esclarecer onde colocamos nossa ênfase.

Se entendermos a cultura livre em termos de liberdade negativa, nos resta apenas a ideia de acesso sem interferência a qualquer recurso cultural ou de informação de que um indivíduo possa necessitar. Desde que esse acesso seja legal e que não afete os direitos de propriedade de terceiros. Daí a importância da licença (que é um contrato privado) e a ênfase no fato de cada indivíduo ser livre de conceder autorizações de acesso e utilização da sua obra (sua propriedade privada). As licenças livres funcionam com base numa renúncia a uma parte dos direitos de propriedade intelectual. É minha liberdade, enquanto proprietário, de renunciar a uma parte desses direitos. Já o acesso aberto é a liberdade de acessar e utilizar toda a propriedade intelectual que outras pessoas disponibilizaram de forma aberta, dentro dos limites da licença que escolheram. É um sistema aparentemente equilibrado que reafirma a tese de que a propriedade, a liberdade e um mínimo de regulação estatal que as garanta são suficientes.

Mas se a nossa compreensão termina aqui, estamos perdendo algo fundamental. O efeito prático deste tipo particular de renúncia de cada indivíduo a uma parte da sua propriedade intelectual produz uma contribuição para o bem comum intelectual. Este bem comum, no seu conjunto, constitui uma reserva de conhecimentos que já não é uma questão individual ou contratual entre particulares, mas que nos remete para uma dimensão social e coletiva. É a partir daqui que a noção de liberdade negativa fica aquém, ao passo que a liberdade positiva permite alargar o horizonte e nos conduzir a uma noção de cultura livre que acompanha a proteção e o reforço dos bens comuns, juntamente com uma expansão dos direitos sociais.

A cultura livre, em termos de liberdade positiva, é a ideia de que deve haver recursos culturais abundantes, acessíveis e plurais, para que todos os indivíduos e coletivos possam participar livre e igualmente na vida cultural. O ativismo da cultura livre não é apenas a defesa da propriedade e da liberdade individual, mas a procura ativa do alargamento do direito de acesso, utilização e participação na cultura a toda a sociedade. Isto inclui a democratização radical da criatividade, do pensamento crítico, do conhecimento prático, do prazer estético, do entretenimento, da identidade e do patrimônio cultural.

Se persistem condições sociais que excluem muitas pessoas de usufruir efetivamente dos bens culturais, mesmo que formalmente não exista qualquer impedimento, então não podemos falar de liberdade. A falta de recursos econômicos, de acesso a infraestruturas culturais, de conetividade significativa, de educação pública de qualidade, de diversidade de propostas culturais, ou de obras acessíveis, reutilizáveis e partilháveis, limitam a liberdade positiva das pessoas. Pode não haver censura ou controle estatal autoritário sobre os conteúdos que circulam – e, no entanto, ainda pode não haver liberdade cultural.

Por isso, a nossa militância pela cultura livre não se resume à afirmação da soberania individual de dar e receber recursos culturais, num cenário de propriedade intelectual garantida pelo Estado. A nossa militância é o alargamento da fruição e da participação na cultura a nível coletivo através da defesa dos bens culturais comuns. As licenças livres são, neste quadro, uma estratégia coletiva e não apenas uma opção individual, porque entendemos que, num contexto de crescente privatização da cultura, elas ajudam a construir, proteger e reforçar os bens culturais comuns para que cheguem a toda a comunidade. Queremos construir uma cultura livre para uma sociedade livre. Mas uma sociedade livre não é uma sociedade de proprietários livres, mas uma sociedade emancipada das estruturas de poder econômico e de privilégio social que obstruem este potencial coletivo.

 

BREVE COMENTÁRIOS À CULTURA LIVRE COMO LIBERDADE POSITIVA

Leonardo Foletto

Alguns comentários para dialogar e apontar discussões futuras para uma pensmento filosófico sobre a cultura livre. O argumento principal do curto e importante texto de Mariana é detalhado pela própria nos comentários ao post no blog. Para ela, as quatro liberdades da cultura e do software livre não podem ser vistas somente na perspectiva de liberdades negativas, a partir da diferenciação entre liberdade positiva e negativa trabalhada no texto. Isso ocorre por duas razões principais: a primeira é porque, na prática, ao libertar a cultura do direito autoral, geramos um bem comum e, normalmente, uma comunidade à sua volta, passando então para o nível do coletivo. A segunda é porque entendemos que “compartilhar é bom” não só para os indivíduos, mas para a comunidade, já que o acesso ao conhecimento é um direito básico para se poder exercer qualquer liberdade criativa – e há necessidades humanas, de ligação e de cultivo da uma cultura comum que são de ordem coletiva, e que são condicionantes para a autorrealização das pessoas. É uma visão que reitera a necessidade do progresso técnico e científico não ser exclusivo para poucos, mas sim generalizado.

Faço a ressalva que um tema crucial hoje na discussão sobre cultura livre não é trabalhado com ênfase no texto de Mariana: as assimetrias de poder envolvidas na questão do acesso à informação e aos bens comuns digitais. Não foi abordado porque não era intenção inicial, e também porque certamente renderia um texto muito mais longo – ou vários. O argumento central aqui, que discutimos também a partir do prefácio de Mckenzie Wark ao seu “Um Manifesto Hacker”, é de que a liberdade de acesso não tem se mostrado suficiente para garantir que todos os indivíduos e coletivos possam participar livre e igualmente na vida cultural, como defende Mariana no texto.

É uma situação parecida com a discussão em torno da inclusão digital: qual inclusão queremos? a das plataformas das big techs, baseada em sugar nossa atenção para extrair lucro a partir da produção contínua de dados? Aqui vale se perguntar também: qual acesso queremos? o acesso a lixo informacional e cultural, que entope e cansam nossas mentes e dificultam nossa percepção de uma realidade e ação comum? Se não é esse tipo, qual é? Existe alguma forma de se trabalhar os limites de ações de acesso sem tocar em questões mais complexas como a do tempo gasto e a da organização coletiva? Como me lembrou o Alexandre Abdo, quando falamos dos Pontos de Cultura e do programa Cultura Viva no Brasil, seu sucesso enquanto política pública e ação transformadora de pessoas e locais se deu mais com a capacidade de criar condições mínimas – financeiras, sociais e humanas – para as pessoas terem tempo e organização de usar, aperfeiçoar e cuidar do que foi produzido, do que somente a questão de se ter acesso a computadores com software livre instalados. Quando se desestruturou as condições mínimas citadas, o acesso aos computadores com software livre e a cultura livre criada em torno disso se tornou uma questão gradativamente menor, a ponto de ser abandonada por muitos pontos depois.

Mais acesso à informação, à tecnologias digitais ou a bens culturais não necessariamente significa consciência crítica, como escrevi em A Cultura é Livre. Lembro da crítica que César Rendueles [em Sociofobia] fez ao copyleft: romper as barreiras de livre circulação da informação e do acesso aos bens culturais não é suficiente para uma melhoria geral das condições de vida global sem tocar nas condições sociais de produção desses bens culturais e da informação. A enorme importância hoje do tema do trabalho digital, dada à proliferação do trabalho precário a partir da plataformização, confirma isso.

Um passo aqui, talvez, seja mais em direção a uma política do cuidado do que do acesso: como criar e pôr em prática protocolos de cuidado dentro das comunidades de bens comuns livres para que estes bens não sejam apropriados sem critérios, desrespeitando as indicações das licenças (livres) e usados para o enriquecimento de ainda menos pessoas, como no caso do uso de dados sem consentimento para treinamento e sistemas de Inteligência Artificial Generativa de empresas como Meta e Open IA? Como estabelecer condições sociais dignas de produção e fruição desses bens culturais e informativos alocados dentro da perspectiva da cultura livre?

Não há resposta clara aqui, mas talvez se fazer esta pergunta nos leve a repensar a cultura livre mais em termos de cuidado do que de acesso. Organização da abundância (de informação e bens culturais) que não seja baseada em restrição econômica e técnica como a promovida pela propriedade intelectual. O que nos leva a um outro ponto de reflexão não novo, mas cada vez mais pertinente: a reinvenção do sistema de direito autoral, agora baseado na idade de uma liberdade positiva, como Mariana aponta no texto, mas que não deixa de garantir a proteção e o cuidado com os abusos e as condições sociais de produção desses bens culturais. A cultura livre, enquanto movimento, representou de alguma forma uma “reforma cidadã” do direito autoral, com as licenças produzindo um espaço de “lei alternativa” que levou a descentralizar o controle e potencializar a inteligência e experiência humana. Será ainda possível pensar numa reforma de direito autoral que potencialize esses aspectos, sem descuidar da proteção e das assimetrias de poder típicas do capitalismo? Ou é mais provável que, com a popularização das IAs generativas, vejamos uma reforma imposta pelo capital que vá na linha de permitir a livre concentração, materializada nos modelos gigantes das big techs, a fim de cada vez mais potencializar uma (pseudo) inteligência artificial desregulada sob controle dessas grandes empresas e destinada a gerar renda (cada vez mais) para esse capital?

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De quem, afinal, é a cultura? https://baixacultura.org/2022/01/20/de-quem-afinal-e-a-cultura/ https://baixacultura.org/2022/01/20/de-quem-afinal-e-a-cultura/#respond Thu, 20 Jan 2022 15:51:40 +0000 https://baixacultura.org/?p=13880

Imagem de Ж, Filme-designer, educador e programador.

 

Victor Barcellos, doutorando em Comunicação e Cultura na ECO/UFRJ e pesquisador no Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS), escreveu uma resenha sobre o “A Cultura é Livre” na revista da Eco-Pós. A resenha tem o título de “De quem é a Cultura? Obras Culturais entre o privado, o público e o comum” e faz um ótimo panorama do livro – inclusive permitindo novas interpretações do tema e diálogos com outros pensadores/as, como McKenzie Wark e Maurízio Lazaratto, o que é sempre um sinal positivo quando se fala de resenha e construção de conhecimento crítico.

Abaixo, reproduzo alguns trechos, com algumas edições, comentários e supressões, para seguir fomentando o debate sempre necessário (achamos) sobre propriedade e cultura. Vale a pena ler todo a edição, um Dossiê sobre Apropriações e Ressignificações na arte e no pensamento, editado por Ciro Lubiner e Lucas Murari.

“A história da liberdade da cultura tem a potência de nos lembrar que a cultura, uma vez produzida e usufruída coletivamente como um bem comum, transmitida livremente de geração em geração, circula hoje majoritariamente em forma de mercadoria. Justamente no momento em que as possibilidades técnicas permitiram à cultura que circulasse rapidamente, sem barreiras e com baixo custo –é exatamente o momento em que ela se encontra mais limitada. Percebeu-se o potencial de lucratividade da criação de escassez artificial precisamente neste tempo de abundância informacional que é como o presente.

Em uma paráfrase a Jean-Jacques Rousseau, Mckenzie Wark afirma sobre a informação o mesmo que se poderia afirmar a respeito da cultura: “A informação quer ser livre mas por toda parte se vê acorrentada“. [Em “A Hacker Manifesto“, ótimo livro de McKenzie Wark que reflete sobre tecnologia, propriedade intelectual e filosofia em um texto que remete, principalmente na forma, ao clássico “A Sociedade do Espetáculo“, de Guy Debord – sem tradução para o português ainda]

O capitalismo, sabidamente estruturado sobre contradições, encontrou formas de modular essa relação entre liberdade e privação de forma a rentabilizar o processo. Para compreendê-lo, é útil a distinção feita por Maurizio Lazzarato entre “criação” e “produção”. De acordo com o autor, o primeiro está mais ligado à criação de novos mundos, enquanto o segundo diz respeito à replicação de cópias desses mundos efetuados para sua monetização na forma de mercadoria. Assim, afirma: o “nascimento do capitalismo é sobretudo uma luta contra a infinidade de mundos possíveis que o precederam e o ultrapassaram” (Lazzarato em  “As revoluções no Capitalismo“, p. 188, PDF). E qual a melhor forma de falar dessa liberdade da cultura, senão demonstrando que historicamente, apesar das diversas tentativas de seu enclausuramento, sempre houve movimentos contrários que advogaram sua liberdade?

A afirmação categórica e precisa do título deixa evidente sua posição: a cultura é livre, e essa característica quase ontológica, ainda que negada de tempos em tempos, não se deixa sucumbir por completo.

A cultura pode ser compreendida como o último limite adentrado pelo crescente processo de commoditização da vida. A gradativa transformação dos diversos aspectos da experiência em propriedade privada se iniciou na terra, passou pelo capital e hoje encontra na cultura sua commodity central. Isso porque, em um processo de crescente abstração da forma-mercadoria, nota-se o incrível potencial de extração de valor em uma cooptação parasitaria da produção de cultura. Ao invés de precisar investir na produção, agora se torna possível capturar a cultura, que é produzida naturalmente pelo intelecto geral (general intellect) e lucrar com sua circulação. “Seu poder reside no monopólio da propriedade intelectual –patentes, direitos autorais e marcas registradas –e os meios de reproduzir seu valor –os vetores de comunicação. A privatização da informação se tornou o aspecto dominante, e não subsidiário, da vida ‘commoditizada’ (Wark, 2004, p. 25, tradução nossa)”.

Capa do Livro de McKenzie Wark, de 2004

Por meio de uma série de exemplos, Foletto nos mostra como boa parte daqueles que até hoje são reconhecidos como gênios inventores das maiores tecnologias não foram os responsáveis propriamente pelas invenções, mas apenas tiveram o capital financeiro e político para obter sua patente para produção em escala. Logo, deve-se desmistificar a visão de gênios solitários trabalhando em suas oficinas quando, por iluminação sobrenatural, obtiveram êxito na criação de invenções. A história real é menos solitária e muito mais social, tem pouco de inspiração espiritual e muito mais de disputas materiais.

A China, em especial até a modernidade e por influência do confucionismo, valorizava-se a tradição que incentivava, na educação infantil, a memorização e a cópia, o que colocou em contradição os direitos de propriedade intelectual com os valores morais tradicionais. Por essa valorização maior da transmissão do que da inovação, chegava-se a atribuir a ausência da percepção de uma cópia não pela ausência de atribuição da autoria, mas por ignorância daquele que consome a obra.

Em outras culturas, como algumas ameríndias estudadas por antropólogos como Marcel Mauss e Eduardo Viveiros de Castro, também se pode encontrar cosmovisões que se colocam radicalmente em oposição às concepções de direitos autorais. Como proteger obras em contextos em que a criação é entendida como um processo que envolve inclusive agentes não-humanos? E em que a concepção de que as transações não se esgotam na troca física de moedas ou mercadorias, mas representam apenas uma etapa de uma relação duradoura entre os agentes? Essa diferença radical apresentada por Foletto nos ajuda a tomar consciência do quão arbitrárias e contingentes são as concepções que sustentam os direitos autorais tradicionais.

 

]]> https://baixacultura.org/2022/01/20/de-quem-afinal-e-a-cultura/feed/ 0 Para reativar a Biblioteca do Comum https://baixacultura.org/2021/05/31/para-reativar-a-biblioteca-do-comum/ https://baixacultura.org/2021/05/31/para-reativar-a-biblioteca-do-comum/#respond Mon, 31 May 2021 14:03:20 +0000 https://baixacultura.org/?p=13669

Biblioteca Zhongshuge, em Chongqing

Criada em 2017 das junções dos acervos online do Intersaber e do BaixaCultura, a Biblioteca do Comum é uma biblioteca digital temática e de livre acesso dedicada à divulgação de obras intelectuais, autores e assuntos transdisciplinares, voltados à educação científica cidadã e ao fomento da imaginação social para o enfrentamento e superação das crises de nosso tempo. Reativamos ela para estes tempos de pandemia com um acervo enorme e de livre acesso (para download também) porque acreditamos que o conhecimento é um bem comum que, sendo abundante, nunca se esgota pelo uso, mas ao contrário: se multiplica quanto mais compartilhado é. Mensalmente teremos novos livros e conteúdos sobre eles nas redes.

As bibliotecas constituem os primeiros centros de informação das sociedades humanas. Desde os tabletes de argila até a atual era digital, elas vêm se adaptando continuamente aos novos meios para cumprir seu mandato de preservar e fornecer acesso à informação e ao conhecimento. O meio digital oferece uma acessibilidade impensável ao livro impresso, sobretudo com a rede mundial de computadores, permitindo o intercâmbio instantâneo ou quase instantâneo desse bem cultural em escala mundial. Neste contexto, o livro digital provocou uma reestruturação do consumo e do mercado de livros. As bibliotecas digitais dispensam a visita presencial nas bibliotecas físicas de modo que estas também tiveram que readaptar sua função para além do armazenamento e disponibilização de livros, propiciando acesso à internet e múltiplos encontros culturais.

Durante esse período de pandemia, também marcado no Brasil pela crise econômica e inflação que encarece o ainda mais o livro, e o distanciamento social que impôs o fechamento e restrições de bibliotecas e livrarias físicas, o acesso ao livro, no entanto, nunca foi tão facilitado pela multiplicação de bibliotecas e livrarias online e tendo em vista a ampliação do grau de conectividade das pessoas.

Os dados do mercado editorial brasileiro levantados pela pesquisa do Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL) mostram a resiliência do hábito de leitura no país, apesar da queda de 6% das vendas do setor em 2020, em relação a 2019. A pesquisa revela que ao mesmo tempo em que as livrarias físicas apresentaram uma queda nas vendas na ordem de 32%, as livrarias exclusivamente virtuais ampliaram sua participação em 84% no mesmo período. Como afirmou o presidente da Câmara Brasileira do Livro (CBL), Vitor Tavares, muitos brasileiros encontraram por meio da leitura uma maneira de enfrentar esse período difícil e explorar o mundo. Já o ano de 2021, ainda inserido no contexto pandêmico, vem apresentando um cenário mais feliz ao mercado livreiro. O 4º painel SNEL/Nielsen aponta um salto expressivo em relação a 2020. Até aqui, o crescimento em volume foi de 131,27%, o que, segundo a análise, se dá em razão tanto da reabertura do comércio quanto dos esforços comerciais do segmento para enfrentar a crise, como um maior investimento em canais de venda online.

A Biblioteca do Comum se inscreve neste cenário incerto tendo como objetivo a ampliação do alcance às obras literárias livres das restrições de direitos autorais, pelo copyleft, e daquelas que já estão fora dos catálogos das editoras e por isso são difíceis de encontrar. 

Trata-se de uma biblioteca de humanidades digital e temática, isto é, focada em materiais voltados à pesquisa acadêmica e à educação científica, não apenas da ciência ocidental, mas de uma multiplicidade de cosmovisões, por meio de assuntos que debatem os problemas contemporâneos e prezam pelo fortalecimento dos bens comuns, da diversidade cultural e ecológica.

Para realizar seu objetivo de mediar o contato entre livros e leitores, a Biblioteca do Comum quer incidir positivamente na problemática conjuntura em que nos encontramos. Mesmo com toda a vantagem da acessibilidade que a internet oferece aos bens culturais, como o livro, este meio está longe de ser o paraíso idílico do conhecimento que muitos otimistas da tecnologia previram anos atrás. A internet não distingue entre o verdadeiro e o falso, o importante e o trivial, o duradouro e o efêmero. Para os desavisados, cada fonte que aparece na tela tem o mesmo peso e credibilidade que todas as outras. Desse modo, enfrentamos graves problemas políticos da desinformação planejada que provoca  descrença na ciência. Uma descrença que vem custando caro à coletividade nestes tempos de vacinação. As informações postadas na rede se misturam com assuntos diferentes e se perdem num amálgama caótico que os internautas digerem diariamente. Nesse sentido, as experiências de bibliotecas digitais e divulgação científica para serem efetivas devem ser realizadas com certos métodos e cuidados.

Assim, o trabalho da Biblioteca do Comum, além da curadoria de seu conteúdo que visa coletar o que tem de mais relevante em cada assunto, também envolve um compartilhamento contextualizado. Consideramos importante munir os leitores de informações sobre os/as autores, o contexto sociopolítico e cultural em que a obra ou o pensamento foi produzido, sua influência. Para tanto, a Biblioteca do Comum conta com recursos de coleções e exposições.

Ao facilitar o acesso ao livro digital, não estamos desestimulando a aquisição do livro impresso, pelo contrário. O livro digital não substitui a beleza e o conforto da leitura do livro impresso. A sensação de tocar as páginas, sentir o cheiro do papel, tanto do livro novo quanto do velho, apreciar os detalhes da lombada e da contracapa ou decorar as estantes são experiências que o livro digital não pode proporcionar. Mesmo com acesso ao digital, o livro impresso continua a ser o preferido entre os leitores. Por isso, ao contribuir com a formação de ávidos leitores, estamos atuando em sinergia com o mercado de livros impresso.

 

Por fim, um problema que nos aflige neste momento é a ameaça da taxação dos livros no Brasil pela proposta de reforma tributária do governo Bolsonaro. Este mesmo governo que zerou impostos sobre a importação de armas de fogo quer tributar em 12% os livros, o que na prática poderá provocar um aumento na casa dos 20% no preço do livro, que é um bem isento de impostos desde a Constituição Federal de 1946. Em 2003, foi instituída a Política Nacional do Livro com o objetivo de garantir acesso e uso do livro a todos os cidadãos. Em 2021, o ministro da economia Paulo Guedes afirmou que este é um produto de elite que poderá pagar a diferença.

A Biblioteca do Comum defende o acesso universal ao conhecimento, por isso nos somamos à campanha #Defendaolivro: diga não à taxação de livros, lançada pela Associação Brasileira de Editores e Produtores de Conteúdo e Tecnologia Educacional (Abrelivros), a CBL e o SNEL, em conjunto com outras entidades ligadas ao mercado editorial.

Leia o manifesto e assine a petição.

[Luis Eduardo Tavares e Leonardo Foletto]

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Commons desde o sul global https://baixacultura.org/2019/04/26/commons-desde-o-sul-global/ https://baixacultura.org/2019/04/26/commons-desde-o-sul-global/#comments Fri, 26 Apr 2019 12:54:41 +0000 https://baixacultura.org/?p=12792

As fotos são da equipe da Tapera Taperá

O Creative Commons é um projeto que administra o principal conjunto de licenças livres no mundo, criado ainda em 2001 por iniciativa de algumas pessoas, entre elas Lawrence Lessig. Como você que acompanha o nosso trabalho nesses últimos 10 anos sabe, as licenças CC são hoje as principais licenças livres do planeta (não as únicas, como vocẽ também sabe se frequenta este sítio) e uma das principais responsáveis pela propagação do que chamamos hoje de cultura livre, um caldeirão de ideia/pessoas e movimentos que já foi apresentado por nós nesta postagem, embora de lá pra cá continue em mutação.

As licenças CC são também a infraestrutura jurídica para a criação de conhecimento na Wikipedia, o compartilhamento de ciência no Scielo, a produção e disseminação de jornalismo alternativo, e a disponibilização online de importantíssimos acervos de museus e arquivos por todo o mundo.

O CC existe já há 17 anos, mas nos últimos dois vem passando por algumas transformações importantes. Uma delas é que as licenças 4.0 são a primeira versão internacional das licenças CC – antes, cada país fazia sua própria versão, a partir da sua lei local, agora há uma licença única entre Brasil e Portugal, por exemplo.

E a outra é a rede global de voluntários e colaboradores: antes, em cada país havia uma única organização responsável pelo projeto; agora, há uma rede descentralizada de pessoas, e organizada em torno de temas (que são discutidos em plataformas temáticas, que são transnacionais). Em mais de 30 países ao redor do mundo já foram formados capítulos locais do CC, inclusive no Brasil, onde o 33º capítulo foi reestabelecido em janeiro de 2019. Em uma reunião de colaboradores locais, foram eleitas as lideranças pelo próximo ano e aprovado um documento de governança (aqui, na íntegra) para guiar as atividades e a representação do capítulo local no futuro.

Mariana Valente, diretora do InternetLab, advogada e pesquisadora na área de acesso ao conhecimento, foi escolhida como a Coordenadora Geral (“chapter lead”) e representante do CC Brasil no Global Network Council​, encontro anual que reúne pessoas de diversos capítulos ao redor do mundo e a equipe da sede da organização nos Estados Unidos. Os outros coordenadores são Juliana Monteiro, coordenadora de OpenGLAM (instituições de memória); Célio Costa, coordenador de projetos Wiki; Rodrigo Padula, coordenador de projetos de governo aberto; e este que cá edita o BaixaCultura, Leonardo Foletto, coordenador responsável pela comunicação, documentação e registros de atividades.

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Na quarta-feira 24 de abril de 2019 o CC realizou sua primeira reunião aberta na Tapera Taperá, livraria e espaço cultural do centro de São Paulo. A proposta foi (re) apresentar o Creative Commons Brasil para um público mais amplo, contar como ele está funcionando e também um pouco de sua história no Brasil. Vale lembrar: o CC existe há 10 anos por aqui, inicialmente ligado ao Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV-RJ e tendo o nome de Ronaldo Lemos à frente. Depois, após algumas trocas de liderança, as iniciativas do CC passaram a diminuir de intensidade, ficando restritas à manutenção das licenças CC, do site e de algumas iniciativas esparsas de diálogos com instituições de memória. Essa situação ocorreu um tanto devido ao próprio tema ter perdido espaço na discussão tecnopolítica para a vigilância e a economia gerada em torno de aplicativos como Uber, AirbnB, Rappi, entre vários outros, para citar dois tópicos que ganharam um espaço que já foi o do debate da cultura e das licenças livres na década passada e até cerca de 2012; e outro tanto devido à questões internas de disputas de foco e interesse nas atividades ligadas ao CC. Pedro Mizukami, integrante do CC ao longo desse tempo e hoje diretor de pesquisa cntr., contou um um pouco dessa história na reunião.

A proposta da conversa aberta foi, também, a de dialogar sobre outros temas que perpassam as licenças, como o comum, o movimento por cultura e conhecimento livre, a colaboração, os recursos educacionais abertos, o governo aberto e o acesso em instituições de memória (como museus, bibliotecas e arquivos). Licenciar em uma licença livre, seja ela alguma das CCs ou outras, é também tornar algo um bem comum, que não sendo nem privado nem estatal, deve ser gerido e mantido pela comunidade que a construiu e outras que queiram manter o comum. Também presente na Tapera Taperá, Rafael Zanatta, advogado e pesquisador na área dos direitos digitais e antivigilância , aproximou a discussão do CC com o comum, um diálogo que tem sido feito por boa parte do que costumamos chamar de “movimento” da cultura livre – quem acompanhou nosso Encontro de Cultura Livre do Sul em 2018 certamente viu essa questão lá discutida.

Também foi na linha de aproximar o CC do comum e da cultura livre minha contribuição na reunião aberta, assim como trazer a perspectiva do sul global para pensar a cultura livre hoje. Como escrevemos no Cultura Livre do Sul Global – um manifesto,  falar da questão das licenças, software e hardware livre são importantes, mas no sul global temos outras particularidades que não podemos deixar de lado: a desigualdade social, o acesso ao conhecimento, a criatividade gambiarrística dos que pouco tem, entre várias outras questões tornadas ainda mais urgentes no contexto proto (ou neo?) fascista que o Brasil (e uma parcela do mundo) se encontra hoje.

Como escrevemos no Manifesto: “Pensar e fazer a cultura livre desde o sul requer pensarmos na urgência das necessidades de sobrevivência do nosso povo. Requer nos aproximarmos da discussão sobre o comum, conceito chave que nos une na luta contra a privatização dos recursos naturais, como os oceanos e o ar, mas também dos softwares livres e dos protocolos abertos e gratuitos sob os quais se organiza a internet. Nos aproximar do comum amplia nosso campo de disputa no sul global e nos aproxima do cotidiano de comunidades, centrais e periféricas, que lutam no dia a dia pela preservação dos bens comuns.”

A questão de COMO fazer essa aproximação é o que nós, do BaixaCultura, e diversas outras pessoas e coletivos do sul global estamos pensando hoje. Inclusive esse tema é um dos focos no projeto de mentoria que estamos realizando, com o apoio da Mozilla Open Leaders, para a próxima edição do Encontro de Cultura Livre do Sul, também online, a ser realizado ainda neste 2019, e uma presencial para 2020. Nesse aspecto é importante lembrar que o comum, a partir do conceito-prática que nos relacionamos, é pensado como algo em processo, como um fazer comum (commoning em inglês). Isto é, não termos em vista somente o produto em si – livro, vídeo, música, hardware ou software livres – mas as nossas próprias práticas e dinâmicas através das quais juntos criarmos novas formas de viver, conviver e também produzir. Este é o fazer comum, e por isso o processo de construção aberta, transparente e colaborativa (de fato!) desse comum é tão ou mais importante que os produtos que por ventura possam ser gerados.

A reunião aberta do CC teve transmissão ao vivo, realizada via YouTube da Tapera Taperá, e está disponível aqui abaixo. Se você quiser fazer parte da discussão, que é aberta a todes e coletiva mesmo, há o canal de Telegram, além do site, com um blog contando o que o CC tem feito por aí nesses últimos tempos.

[Leonardo Foletto]

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Cultura livre do sul global – um manifesto https://baixacultura.org/2018/12/21/cultura-livre-do-sul-global-um-manifesto/ https://baixacultura.org/2018/12/21/cultura-livre-do-sul-global-um-manifesto/#respond Fri, 21 Dec 2018 19:13:20 +0000 https://baixacultura.org/?p=12676

Nascido enquanto movimento mais ou menos organizado a partir da pauta anticopyright, a cultura livre é, para a maior parte da população do sul (e do norte também) global, uma incógnita. Cultura livre é compartilhar cultura nas redes para todes? É acesso livre e gratuito à bens culturais, em licenças que favorecem o compartilhamento? é buscar práticas alternativas ao copyright de remuneração para autorxs e produtorxs de conteúdo? uma crítica à propriedade intelectual que restringe e criminaliza o intercâmbio de cultura, potencializado ainda mais a partir da internet? um movimento social “digital” em prol do conhecimento aberto? uma cultura feita de forma “livre”, sem amarras com movimentos, organizações e quaisquer outros fatores que tornam a cultura presa e fechada?

No Encontro de Cultura Livre do Sul, realizado nos dias 21, 22 e 23 de novembro de 2018 na internet, discutimos e buscamos respostas para algumas destas questões acima descritas e outras mais. Durante as 6 mesas de debate do encontro, das discussões nas plataformas digitais e redes sociais, falamos sobre políticas públicas e marcos legais de direitos do autor; digitalização de acervos e acesso ao patrimônio cultural em repositórios livres; de laboratórios, produtoras colaborativas, hackerspaces, hacklabs e outras formas de organizações que defendem e praticam no dia a dia a cultura livre; de como nos inserimos em uma rede internacional e da questão da defesa dos bens comuns que a cultura livre também faz; das muitas formas de produção cultural – editorial, musical, audiovisual, encontros, fotográficas – que estão sendo realizadas no âmbito das licenças e da cultura livre; e das plataformas, conteúdos e práticas educacionais que tem o livre como paradigma de ação e propagação.

Com os mais de 200 participantes inscritos que tomaram parte desses três dias, pensamos sobre as especificidades da cultura livre no sul global em relação ao norte. A discussão sobre a liberdade de usos e produção de tecnologias livres tem sido fundamental para a cultura livre desde o princípio, mas acreditamos que, no sul, temos a urgência maior de nos perguntar para quê e quem servem nossas tecnologias livres. Não basta somente discutir se vamos usar ferramentas produzidas em softwares livres ou se vamos optar por licenças livres em nossas produções culturais: necessitamos pensar em tecnologias, ferramentas e processos livres que sejam usadas para dar espaço, autonomia e respeito aos menos favorecidos, financeira e tecnologicamente, de nossos continentes, e para diminuir as desigualdades sociais em nossos locais, desigualdades estas ainda mais visíveis no contexto de ascensão fascista global que vivemos nesse 2018.

Desde o sul, temos que pensar na cultura livre como um movimento e uma prática cultural que dialogue intensamente com as culturas populares de nossos continentes; que respeite e converse com os povos originários da América, que estão aqui em nosso continente vivendo em uma cultura livre muito antes da chegada dos “latinos”; que defenda o feminismo e os direitos iguais a todes, sem distinção de raça, cor, orientação sexual, identidade e expressão de gênero, deficiência, aparência física, tamanho corporal, idade ou religião; que dialogue com a criatividade recombinante das periferias dos nossos continentes, afeitas ao compartilhamento comunitário e sendo alvo principal do extermínio praticado por nossas polícias regionais; que busque resguardar nossa privacidade a partir de táticas antivigilância e na defesa do direito ao anonimato e à criptografia; e que lute pela propagação das fissuras no sistema capitalista, buscando, a partir de uma prática cultural e tecnológica anticopyright, formas alternativas e solidárias de vivermos em harmonia com Pachamama sem esgotar os recursos já escassos de nosso planeta.

Pensar e fazer a cultura livre desde o sul requer pensarmos na urgência das necessidades de sobrevivência do nosso povo. Requer nos aproximarmos da discussão sobre o comum, conceito chave que nos une na luta contra a privatização dos recursos naturais, como os oceanos e o ar, mas também dos softwares livres e dos protocolos abertos e gratuitos sob os quais se organiza a internet. Nos aproximar do comum amplia nosso campo de disputa no sul global e nos aproxima do cotidiano de comunidades, centrais e periféricas, que lutam no dia a dia pela preservação dos bens comuns.

Importante lembrar que o conceito de comum do qual buscamos nos aproximar deve ser pensado como algo em processo, como um fazer comum (commoning em inglês). Isto é, não termos em vista somente o produto em si – livro, vídeo, música, hardware ou software livres – mas a nossas próprias práticas e dinâmicas através das quais juntos criarmos novas formas de viver, conviver e também produzir. Este é o fazer comum. Por isso, é tão importante mantermos vivas essas redes que acabamos de ativar, essas conexões que percorreram todas as mesas e todas as plataformas nas quais mapeamos, escrevemos, registramos e gravamos.

Para os próximos anos, nos comprometemos a seguir os esforços de tornar a cultura livre um movimento que, além de lutar por tecnologias, produtos e práticas culturais não proprietárias, também batalhe pela redução da desigualdade social de nossos continentes a partir do ativismo pela liberdade do conhecimento em prol de comunidades mais justas, autônomas, igualitárias, respeitosas e livres. Temos, como objetivos para os próximos 5 anos (2019 – 2024):

_ Realizar encontros bianuais, online ou presencial, com o objetivo de desenvolver uma parceria global para o desenvolvimento e defesa da cultura livre e dos bens comuns;

_ Alimentar e divulgar mais amplamente as plataformas para o mapeamento e curadoria de iniciativas de cultura livre;

_ Criar e manter fóruns online para incentivar o debate e as trocas entre os diferentes projetos/atores de cultura livre do Sul, especialmente no intervalo dos encontros;

_ Propor formações contínuas em cultura livre, de modo a relacionar as práticas e conceitos trabalhados à pessoas e projetos do sul global;

_ Promover espaços seguros de inclusão e diversidade dentro dos debates sobre cultura livre, garantindo a igualdade de direitos. Em nossos espaços serão rejeitados todos os tipos de práticas e comportamentos homofóbicos, racistas, transfóbicos, sexistas ou excludentes de alguma forma;

_ Fortalecer a liberdade de expressão, acesso à informação e a criação de espaços democráticos de comunicação que garantam avanços nas discussões sobre cultura livre e na construção democrática das políticas sobre o tema;

Internet, Ibero-américa, sul-global, 23 de novembro de 2018

Assinam os coletivos:

BaixaCultura, Brasil
Casa da Cultura Digital Porto Alegre, Brasil
Ártica, Uruguay
Ediciones de La Terraza, Argentina
Em Rede, Brasil
Nodo Común, Iberoamérica
Rede das Produtoras Culturais Colaborativas, Brasil
Rede iTEIA.NET, Brasil
Libreflix, Brasil

Pad para aderir ao manifesto (adicione o nome da pessoa ou grupo no final)

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Cultura livre, comum e inovação cidadã em charla https://baixacultura.org/2018/04/27/cultura-comum-e-inovacao-cidada-em-charla/ https://baixacultura.org/2018/04/27/cultura-comum-e-inovacao-cidada-em-charla/#respond Fri, 27 Apr 2018 16:11:36 +0000 https://baixacultura.org/?p=12377 Primeiro de março, final de manhã quente em Santos. Da rodoviária até o Instituto Procomum nos disseram que levava nem 20 minutos a pé. Nos disseram também que a viagem de São Paulo até Santos é rápida, e foi: de descer em Jabaquara, entrar no terminal, comprar passagem, pegar a Imigrantes para descer a serra e chegar na maior cidade do litoral paulista não deu 2h. Baixamos do ônibus com mochilas nas costas e seguimos a pé por uma praça grande de nome muito encontrado Brasil afora, Andradas. Atravessamos pelo meio das arvores centenários, cruzamos com pessoas sentadas nos bancos, vendedores de livros usados, até chegarmos numa daquelas típicas ruas centrais de cidades brasileiras, de calçadas estreitas tomadas de decoração de lojas, muitas lojas, de móveis, eletrodomésticos, roupas, tecidos, ferragens, lancherias e trecos em geral. As nuvens fartas disfarçam a queimação dos raios de sol na pele, mas não aliviam o calor, abafado e úmido que prenuncia chuva. Pouca gente na rua comercial, pelo menos não o suficiente para atrapalhar a caminhada, que segue rápida, ritmada, queremos chegar, largar as mochilas, tomar uma água, secar o suor. Agora viramos a esquerda numa rua com mais prédios, menos comércio, uma igreja grande, uma praça que parece antiga à esquerda, um posto na esquina; nessa esquina dobramos à esquerda novamente. Estamos na rua Sete de Setembro, que ao final dá no mar, no porto, no Mercado Municipal, região de casas antigas, prédios baixos, lojas de todos os tipos. Calçadas estreitas, em alguns pontos irregulares,  passamos por um muro de um colégio, um restaurante-bistrô, pequenos comércios, paradas de ônibus. Da calçada olhamos para o o outro lado da rua: número 52, uma porta fechada, um pavilhão grande. Deve ser aqui. Antiga sede da Associação Prato de Sopa Monsenhor Moreira, agora sede do Laboratório Santista. É.

Principal projeto do Instituto Procomum, o LabxS é um laboratório cidadão em formação. Os 1200 m² estão sendo ocupados aos poucos, com mutirões para cuidar da horta, fazer móveis, grafitar as paredes, decorar o ambiente. Já há quartos e banheiros enormes com vários boxes, resquício do tempo que o espaço recebia dezenas de moradores de rua por dia e oferecia comida, banho e um pouco de cuidado para estes voltarem para a rua no mesmo dia. Um dos banheiros coletivos já foi reformado e, nos próximos meses, vai ser usado na Colaboradora, projeto com inscrições até o próximo dia 29/4: trata-se de um um ambiente onde artistas, produtores e a comunidade aprendem juntos a solucionar os complexos problemas contemporâneos por meio da arte e da cultura. Um residência artística, mas não só. Um grande salão, antigo refeitório, já tem sido usado como auditório e local de grupos de trabalho, inclusive na 2º edição do Circuito Labs, realizada no início deste 2018. O circuito é um festival de inovação cidadã feito via chamada pública para realização de ações que promovem os bens comuns e as soluções de problemas de baixo para cima.

Muitos dos projetos do LabxS e do Instituto Procomum precisam de mais do que duas palavras de explicação. Ficam naquela intersecção entre várias áreas: não se tratam, por exemplo, de iniciativas culturais, nem de tecnologia, de empoderamento, nem de inovação, mas de tudo isso junto e misturado com outras várias coisas. Fomentam a solução de problemas no espaço público a partir de tecnologias digitais, metodologias colaborativas, pessoas e coletivos da região da Baixada Santista. Inovação cidadã e cultura livre, dois termos que definem o trabalho realizado pelo Procomum, não são facilmente compreensíveis hoje no Brasil. Quer dizer: não são termos complexos, acadêmicos, mas simples, tão simples que a vezes permitem muitas interpretações. Polissemia pura, que para fins de comunicação entre diferentes precisam ser definidos. Descrições e explicações são facilmente encontradas em todo o site do Procomum e do LabxS não por acaso.

A BaixaCharla abaixo não foi tão descritiva ou explicativa, mas afetiva. Nos conhecemos, eu (Leonardo), Rodrigo e Geórgia faz oito anos, trabalhamos juntos na CCD São Paulo em projetos como o Produção Cultural no Brasil, Fórum da Cultura Digital, BaixoCentro, além do principal projeto, a própria casa, criativa e louca como costumam ser as coisas difíceis de definir. “A Casa me deu régua e compasso do que eu não quero fazer”: frase forte de Rodrigo, citando Gil e “Aquele Abraço“, dá uma amostra do porquê a CCD foi tema de alguns bons minutos do papo. Não é fácil criar um espaço onde a experimentação se dava sem forçar, ação cotidiana “naturalizada” em cafés e conversas paralelas na cozinha que resultavam em projetos meio de brincadeira, meio a sério, que poderiam ser levados adiante e bancados por articulações financeiras num cenário – hoje percebemos bem – favorável de políticas culturais e investimentos públicos. “Prioridade pra quem se desloca” era um lema daqueles tempos, que jamais seria escrito como missão, regra, mandamento, a não ser que fosse de brincadeira, aí sim poderia pintar um dia na parede escrito à caneta, fruto empolgado de “horas felizes” no fim de tarde regadas à truco e cachaça. A lembrança com alguma distância temporal soa romântica, mas há de se recordar que o espontâneo daquela época acontecia pela ação de muitos “kamikazes financeiros” que adquiriam dívidas e compravam brigas nada sustentáveis e que durariam anos para curar. Mas que, ao contrário dos kamikazes originais, não morreram, e cá está uma das muitas provas.

O Instituto Procomum, e o LabxS, é como um irmão mais velho da CCD. Mais organizado, sustentável, feminista, negro, LGBT, com protocolos claros de convívio, hierarquia reconhecida e disposição para enfrentar o desafio da organização. O que não significa caretice nem engessamento eterno, mas sim que cada um assuma a sua responsabilidade, que colabore sem esquecer que o afeto é importante, que cuidar de todxs e trazer as emoções para conversar é fator diferencial de sobrevivência nesse brasil hostil de 2018 – politização do mal-estar, como apontou Amadeu Fernandéz no relato que produzimos em Enfrenta. Rodrigo e Geórgia passaram por muita coisa em governo, empresas privadas e organizações da sociedade civil para, hoje, saber o que querem. E também para se articular local e internacionalmente e buscar recursos para sustentar seus experimentos: o espaço da rua Sete de Setembro e os projetos já tocados pelo Procomum atestam isso.

A BaixaCharla girou da cultura livre à CCD, da política ao comum, do cuidado à inovação. Foi mais um papo informal e tão espontâneo quanto uma câmera na mão (da Sheila Uberti, parceira de todas as horas) torna possível. O primeiro em São Paulo – ou melhor, em Santos, na Rua Sete de Setembro, 52, Vila Nova, um dia calor de final de verão. As fotos depois do vídeo são do e LabxS e dos arredores do Mercado Municipal.

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Recife, Olinda & arredores https://baixacultura.org/2017/08/14/recife-olinda-arredores/ https://baixacultura.org/2017/08/14/recife-olinda-arredores/#respond Mon, 14 Aug 2017 18:39:13 +0000 https://baixacultura.org/?p=11971

Caranguejo em homenagem à Chico Science, na Rua da Aurora

Passamos duas semanas de julho em Recife, Olinda e arredores e tivemos uma programação baixacultural de atividades.

A começar por uma fala/oficina/charla chamda “Visões de Cultura Livre no Brasil“, no espaço recém re-inaugurado CEÇA, no bairro Boa Vista em Recife. O (ou a) CEÇA é uma casa colaborativa que busca agregar diversas iniciativas relacionadas à cultura livre e a economia colaborativa na cidade, e promete ser um ponto de encontro importante para esses temas no centro do Recife.

A proposta da atividade lá foi fazer um panorama do que se identifica como cultura livre no Brasil hoje a partir de um recorrido por postagens deste BaixaCultura. A ideia de cultura livre – ou melhor, de um agrupamento de práticas culturais organizadas em torno desse nome – nasce inspirada pelo movimento do software livre e pela ideia de copyleft, que mudou as regras do que se produz, distribui e se pensa sobre software na década de 1980. No final dos anos 1990, a cultura livre se pauta como um movimento de resistência aos grandes monopólios dos direitos autorais no mundo, cuja consequência mais clara foi a privatização do conhecimento a partir da ideia de propriedade intelectual. Ideias e licenças, como o Creative Commons, surgem neste momento e se tornam chaves na perspectiva de trazer mais autonomia aos autores sobre suas próprias obras, enfrentando o status quo do copyright e buscando uma atualização das leis em face às mudanças trazidas pela tecnologia digital e a internet.

A partir dos anos 2000, a ideia de cultura livre se torna ainda mais heterogênea, um guarda-chuva a articular uma série de práticas e modos de fazer que se transformam ao longo dos anos. O software livre e as licenças livres continuam como tags centrais do movimento, mas temas como a produção de conhecimento aberto, a democratização da mídia, os recursos educacionais abertos, a transparência via dados abertos e inspirado pela ética hacker, as práticas artísticas em torno da recriação e do remix, as defesas da neutralidade da rede e da segurança da informação na internet, as políticas públicas culturais de Estado (em especial, a partir dos Pontos de Cultura no Brasil) e a economia colaborativa, entre outros, se tornam assuntos emergentes dentro do movimento. A partir da década dos 2010, a ideia do comum (procomún, em espanhol; commons, em inglês) ganha força na cultura livre como propulsora de modelos organizativos, econômicos e sociais mais justos, num diálogo constante com a economia solidária e o cooperativismo, também a partir das assembléias e Okupas espanholas pós 15M de 2011, até chegarmos aos laboratórios de inovação cidadã que se propagam na Ibero-américa neste 2017.

A fala percorreu um pouco desse histórico da cultura livre trazendo casos, situações e coletivos para o debate, dialogando também com novas perspectivas de transformação social em tempos de retrocessos no Brasil e no planeta. A chuva atrapalhou o lindo cenário da varanda da Casa, mas o debate seguiu noite adentro nas futuras intalações da oficina de marcenaria da CEÇA até 22h e tanto. Aqui um pad com os posts mostrados no dia e algumas fotos da turma que ficou até o final, já passado das 22h (fotos do pessoal do Ceça). Gracias a Arthur Braga, um dos quatro responsáveis pela casa, designer, produtor cultural e nosso articulador local da função.

Também visitamos a Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), orgão de pesquisa ligado ao Ministério da Educação, e especificamente a Villa Digital, espaço multiuso de pesquisa localizada em um casarão do século XIX e vinculada ao Centro de Documentação e de Estudos da História Brasileira Rodrigo Melo Franco de Andrade (Cehibra). A Villa Digital é um espaço físico muito interessante e versátil, embora ainda pouco ocupado pelos moradores da cidade. Como projeto, são responsáveis pelo processo de digitalização de uma parte do rico material da Fundaj – que, entre outras coisas, é responsável pelo Museu do Homem do Nordeste, um museu antropológico que organiza exposições contando a história do povo a partir de artefatos do dia a dia do nordestino, do sertão ao litoral, do catolicismo de Padre Cícero aos orixás do candomblé. Quando estivemos no espaço, estava lá sua exposição permanente do acervo e algumas temporárias, como as do grande xilogravurista J. Borges e uma chamada “Nordeste Mix”, literalmente uma curadoria remix entre tradição e novidade a partir do material do espaço. Desta última exposição vem o “Manifesto Regionalista”, texto provocador sobre a função dos museus hoje. Agradecimentos a Cristiano Borba, da Villa Digital, pelo convite à visita e pelo tour na Fundaj e no museu.

Na sexta-feira 28/7, fizemos um lançamento (o 3º!) do zine La Remezcla, desta vez em Olinda, no espaço Casa Azul, junto de uma roda de conversa sobre cultura livre. Articulado por Carlos Lunna, do coletivo Tear Audiovisual e da Produtora Colaborativa.PE, o evento foi uma ação da Rede de Produtoras Colaborativas, que une diversos coletivos Brasil afora, e do qual o Baixa faz parte na região sul. O sebo-livraria Casa Azul, local do evento, rende um capítulo a parte: criado faz poucos meses por Samarone Lima, jornalista e escritor, é situado na região do Carmo, Cidade Alta de Olinda. Tem uma seleção preciosa de livros de ficção e teoria, poucas e boas prateleiras que ocupam as duas salas da frente de um casarão típico daquela região da cidade, com uma estreita face virada para a rua que não sugere os diversos cômodos e o amplo pátio que se extendem ao longo da casa. Tem promovido alguns cursos, sediado algumas peças de teatro, tudo aos poucos, devagar como a vida em Olinda durante um inverno chuvoso sem (tantos) turistas. Samarone, inclusive, é poeta e cronista dos bons, e em sua página, Estuario, é possível ter uma amostra disso – das crônicas mais recentes, leia, em especial, “Anotações de um dono de sebo em Olinda“, relato de coisas simples que acontecem no seu dia a dia na Casa Azul.

A cobertura fotográfica do evento está nesta página do ITeia, site de acervo da produção multimidia cultural brasileira. A conversa teve a presença ilustre de Isabelita a vagar por cima dos zines e pelos colos das pessoas. E além de cultura livre e (re)criação, versou também sobre jornalismo alternativo – muito por conta da presença de integrantes do coletivo de comunicação Marco Zero – e futebol & política, esta puxada pelo pessoal do movimento Democracia Santa Cruz Futebol Clube. As fotos abaixo (as 2 últimas são de Samarone Lima, as outras nossas) ilustram um pouco de Olinda, da Casa Azul, do evento, nesta ordem.

Casa de Alceu Valença, Olinda

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Biblioteca do comum https://baixacultura.org/2017/06/08/biblioteca-do-comum/ https://baixacultura.org/2017/06/08/biblioteca-do-comum/#respond Thu, 08 Jun 2017 19:35:10 +0000 https://baixacultura.org/?p=10958 bcomum divulga

Lançamos no início deste mês, a Biblioteca do Comum é uma biblioteca digital e de livre acesso sobre um conjunto de temas emergentes que apontam para novos paradigmas sociais, mais participativos, ecológicos e organizados de baixo para cima. Desenvolvida na plataforma livre Omeka, ela pode reunir materiais de diferentes formato de texto, áudio e vídeo como livros, revistas, fanzines, artigos, teses e dissertações, entrevistas, quadrinhos e filmes relacionados a Agricultura Urbana, Arte e Tecnologia, Bens Comuns, Ciência Cidadã, Cultura Livre, Economia Colaborativa, Educação Expandida, Participação Digital, Tecnologias Sociais, entre outros afins.

Ela nasce da fusão das bibliotecas do Instituto Intersaber e do Baixa Cultura com o objetivo de se constituir como um grande bem comum de conhecimentos para inspirar e fomentar a consciência pública para mudanças sociais e construção de novas institucionalidades, assim como praticar uma experiência de gestão coletiva de recursos compartilhados. Para tanto, ela mantém um chamamento permanente para organizações e pessoas que compartilham da generosidade intelectual e da defesa do livre acesso ao conhecimento a se juntarem com suas bibliotecas e materiais correspondentes a este escopo temático.

bcomumlogo

Bens Comuns de Conhecimento

Uma importante particularidade dos bens comuns de conhecimento é a de serem abundantes, isto é, nunca se esgotam pela quantidade de seu uso, mas, pelo contrário, podem ainda se multiplicar. Diferente dos bens comuns naturais que são escassos e necessitam de maior controle no seu uso para que não venham a faltar a quem deles extraia seu sustento. Se o material compartilhado é um arquivo digital, muitas pessoas podem acessá-lo, visualizá-lo e copiá-lo simultaneamente sem degrada-lo ou privar outros de fazer o mesmo. A Wikipédia é a maior realização nesse sentido e um produto da Internet. Por isso, defendemos o livre acesso ao conhecimento quando este trata de questões de interesse coletivo como o é o caso do conhecimento científico. O cercamento e bloqueio do acesso a esse bem comum por meio da propriedade intelectual cria uma escassez artificial que visa o oligopólio da capacidade de inovação àqueles que podem pagar.

Este oligopólio do conhecimento impõe pesadas sanções jurídicas para quem desafia seus propósitos como as que levou a morte o ativista do livre acesso ao conhecimento Aaron Swartz, autor do manifesto Guerrilla Open Access, após ele abrir na rede o acervo fechado da JSTOR, o maior sistema online de arquivamento de periódicos acadêmicos. Também não podemos esquecer o blog Livros de Humanas que compartilhava gratuitamente milhares de edições brasileiras de importantes livros de literatura, filosofia e ciências humanas e foi fechado em 2012 após ação movida pela ABDR – Associação Brasileira de Direitos Reprográficos.

Mas longe de conter tais iniciativas, estas censuras acabam por estimular a criação de novas experiências mais ousadas como é o caso da Sci-Hub e Library Genesis. Além disso, cresce mundialmente o movimento Open Access, reunindo inúmeros cientistas, pesquisadores, entidades e seus projetos de democratização do conhecimento. O conceito de Recursos Educacionais Abertos (REA) impulsionado pela UNESCO também faz parte desse movimento global. Importante também ressaltar como referência para nossa iniciativa a Digital Library Of the Commons, a maior biblioteca digital sobre bens comuns, criada ao longo de muitos anos por Elinor Ostrom e seu marido Vincent Ostrom em seu departamento de pesquisas na Universidade de Indiana.

A proposta da Biblioteca do Comum se insere no campo dessas iniciativas que visam remover essas barreiras de acesso para aprofundar uma comunidade de conhecimentos transdisciplinar, baseada numa interconectividade global sem hierarquias. Acreditamos que ela pode ser um meio fundamental para a resolução dos problemas de diversas matizes que consternam as sociedades e o planeta.

Diversidade de Pensamentos e Intercâmbios

Os conteúdos da Biblioteca do Comum concentram-se especialmente à uma produção iberoamericana, mas não exclusivamente. Com isso, visa possibilitar intercâmbios de trabalhos com distintas abordagens e enfoques sobre um mesmo assunto, conforme os variados contextos nacionais e culturais ou de grupos de pesquisa.

Ao mostrar as diferentes abordagens sobre estes assuntos em diferentes países, a partir dos contextos específicos existentes em cada um, queremos destacar que saberes e conhecimentos não são homogêneos e tampouco neutros e sublinhar as reciprocidades entre as preocupações teóricas e práticas dos cientistas e agentes sociais e suas condições de existência social.

Diferentes interpretações da realidade e dos fenômenos podem provir de uma multiplicidade de formas e se nutrirem de diferentes fontes. Há o conhecimento da ciência, da arte e da religião, todas elas subdivididas em muitos tipos como são as disciplinas científicas, as linguagens e movimento artísticos, e as crenças religiosas, cada uma com perspectivas e enfoques próprios. Além disso, se considerarmos que os saberes e conhecimentos partem da experiência, enquanto reconstrução mental dos estímulos que recebemos do mundo exterior, então reconhecemos que também são estruturados pelas condições locais, culturais, tecnológicas, de classe, de gênero, de época e mesmo subjetivas de indivíduos únicos que tem uma experiência única no mundo. Tudo isso forma uma pluralidade de camadas de saberes e conhecimentos que podem ser complementares ou antagônicas, que se ajustam reciprocamente, entram em conflitos e disputam hegemonia. Um tal entendimento deve servir para manter um pensamento crítico e ao mesmo tempo uma consciência ampliada da realidade.

Por meio da Biblioteca do Comum, alguém que tenha interesse ou esteja pesquisando sobre agricultura urbana ou economia colaborativa, por exemplo, pode encontrar o que se produz em diferentes países, sobretudo iberoamericanos, e por diferentes grupos de pesquisa. E, assim, conhecer as várias possibilidades de abordagens e tendências.

omeka

Plataforma e Licenças Livres

A Biblioteca do Comum utiliza a plataforma de código aberto Omeka, destinada ao desenvolvimento de bibliotecas virtuais, que funciona analogamente a um blog, dispõe de uma variedade de interfaces e pode ser facilmente manuseada.

Nossa plataforma utiliza o tema Avantgarde, que foi customizado pelo Instituto Intersaber. Adotamos como licença deste trabalho sobre a plataforma a Peer Production License, um tipo de licença Copyfair em que apenas comunitários, cooperativas e organizações sem-fins lucrativos podem compartilhar e reutilizar, não entidades comerciais com intenção de lucro.

Os materiais disponíveis podem apresentar diferentes licenças abertas. Desde o domínio público, totalmente livre, ou uma variedade de outras como as combinações entre permissões e restrições das licenças Creative Commons, entre tantas licenças existentes.

biblioteca digital e de livre acesso, organizada de forma coletiva. Ela está voltada para um conjunto de temas em torno do “comum” hoje: cultura livre, participação digital, agricultura urbana, ciência cidadã, bens comuns, educação expandida, tecnologias sociais.

(e aguarde que nas próximas semanas o BaixaCultura tem mais outras novidades!)

 

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