Direito Autoral – BaixaCultura https://baixacultura.org Cultura livre & (contra) cultura digital Fri, 07 Mar 2025 21:01:59 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.0.9 https://baixacultura.org/wp-content/uploads/2022/09/cropped-adesivo1-32x32.jpeg Direito Autoral – BaixaCultura https://baixacultura.org 32 32 Conhecimento é direito https://baixacultura.org/2025/03/07/conhecimento-e-direito/ https://baixacultura.org/2025/03/07/conhecimento-e-direito/#respond Fri, 07 Mar 2025 21:01:59 +0000 https://baixacultura.org/?p=15798 A Wikimedia Brasil, Coalizão Direitos na Rede e diversas outras organizações lançaram manifesto por uma reforma da Lei de Direitos Autorais (LDA) no Brasil em defesa da ciência aberta e cultura livre. O documento defende que a legislação nacional acompanhe os desafios e oportunidades da era digital, equilibrando a proteção dos direitos dos criadores com o direito da sociedade ao acesso à cultura, à ciência e à informação.

Promulgada em 1998, a LDA está, como vocês devem imaginar, desatualizada frente à realidade digital e às novas formas de produção e compartilhamento de conhecimento, seja por Inteligência Artificial ou (ainda) pela difusão via Plataformas. O manifesto aponta que o Brasil, ao assinar o Pacto Digital Global da ONU, se comprometeu a adotar políticas públicas mais inclusivas e alinhadas aos chamados bens públicos digitais – como softwares livres e plataformas de conteúdo aberto, dados abertos e inclusive modelos de inteligência artificial abertos que beneficiem a sociedade como um todo, e não apenas poucos grupos.

“A atual LDA, da forma como é aplicada, restringe o acesso ao conhecimento e coloca o Brasil em desvantagem no cenário global. Precisamos de uma legislação que proteja os autores, mas que também garanta à sociedade o direito à informação, fundamental para o desenvolvimento social, econômico e cultural”, disse Chico Venâncio, vice-presidente da Wikimedia Brasil e integrante da Coalizão Direitos na Rede.

O manifesto segue o lançamento da campanha “ConhecimentoÉDireito”, que a Wikimedia Brasil e a CDR lançaram com o objetivo de também estimular o debate sobre a necessidade de atualização da LDA no Brasil e promover um amplo acesso ao conhecimento e à cultura no contexto da era digital. A campanha parte da premissa de que o conhecimento é essencial para o desenvolvimento de qualquer sociedade, deve ser tratado como um direito fundamental, e que é possível utilizar mecanismos em políticas públicas com este objetivo, defendendo uma legislação que proteja os direitos dos autores, mas que também permita que o conhecimento circule livremente, incentivando a criatividade e o desenvolvimento social.

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Todo(s) ouvidos: 25 anos do Napster https://baixacultura.org/2024/08/09/todos-ouvidos-25-anos-do-napster/ https://baixacultura.org/2024/08/09/todos-ouvidos-25-anos-do-napster/#respond Fri, 09 Aug 2024 18:59:23 +0000 https://baixacultura.org/?p=15695 Há 25 anos, o Napster transformou a forma como ouvimos, consumimos e experimentamos entretenimento, tornando-se um dos serviços de compartilhamento de música mais icônicos e disruptivos da internet

Por Andressa Soilo*

Criado em 1999 por Shawn Fanning, um estudante de 19 anos insatisfeito com o modelo de distribuição musical da indústria fonográfica, e pelo igualmente jovem Sean Parker, que anos depois seria também o primeiro presidente do Facebook, o Napster rapidamente se tornou um instrumento de transformação cultural. A disponibilização de downloads gratuitos de músicas em MP3 não era uma novidade, mas os programas existentes naquele momento (IRC, Hotline e Usenet, por exemplo) não eram tão bons e fáceis de usar como o software criado principalmente por Fanning, programador autodidata – Parker entraria também com o investimento dos primeiros U$50 mil da empresa.

Menos de um ano depois do lançamento, o Napster já era um sucesso: registrava cerca de 14 mil músicas baixadas por minuto e contava com aproximadamente 75 milhões de usuários registrados, segundo Corey Rayburn. Sua base de usuários crescia cerca de 25% ao dia. Naquela época, o termo mais pesquisado nos sites de busca era “MP3”, e o programa de compartilhamento chegou a entrar para o Guinness Book of World Records como o empreendimento com o crescimento mais rápido de todos os tempos – até aquele momento. Em outubro de 2000, Fanning estampou uma icônica capa da revista Time, que considerou seu programa uma das maiores inovações da Internet, ao lado do e-mail e das mensagens instantâneas.

O programa transformou a forma de circulação e compartilhamento da música à época sobretudo por três aspectos: desafiava as normas de direitos autorais, ao promover abertamente a pirataria; apresentava um jovem que enfrentava o domínio da indústria musical; e incentivava um senso de coletividade e solidariedade entre seus usuários. A mensagem era: a música é livre! Acabou a obrigação financeira para acessar a música. O usuário apenas precisava se cadastrar, instalar o aplicativo do Napster no computador, buscar a música desejada e baixá-la. Não era mais necessário ir a uma loja física ou comprar um álbum inteiro apenas para ouvir uma ou duas faixas de um artista. E claro, não havia mais a necessidade de pagar os elevados preços impostos pelo mercado.

Embora a inovação tenha proporcionado a milhares de usuários de música na internet maior economia e autonomia no consumo, o Napster teve uma vida útil curta em seu formato de programa de downloads à margem da lei. Em 2001, após uma série de processos movidos pelas grandes gravadoras e pela Recording Industry Association of America (RIAA), que alegavam que o serviço facilitava a violação de direitos autorais, uma ordem judicial determinou que o Napster deveria interromper suas atividades.

No entanto, o breve período de atividade foi suficiente para abalar o status quo da indústria fonográfica. A popularidade do programa e sua capacidade de expressar insatisfações de consumidores em relação à indústria musical foram suficientes para forçar uma reinvenção na distribuição do entretenimento. O professor Kartik Hosanagar  da School of the University of Pennsylvania em entrevista para Knowledge at Warthon, reforça essa ideia:

“Com os downloads, o segmento mais baixo do mercado não vai pagar por isso porque a música pode ser obtida gratuitamente [por meio de pirataria]. O segmento mais alto do mercado achará o streaming mais conveniente porque tem acesso à música ‘a qualquer hora e em qualquer lugar’, em vez de comprar a música em um dispositivo e não ter acesso em outro (Knowledge at Wharton, disponível em: https://knowledge.wharton.upenn.edu/faculty/kartik-hosanagar/).”

Compartilhando sensos de justiça

As mudanças trazidas pelo Napster não foram apenas de ordem econômica, embora esse aspecto seja crucial para entender o impacto disruptivo do serviço. O software ajudou a formar novas percepções sobre o que é (in)tolerável no comportamento da indústria da música e fortaleceu sensos de justiça entre os consumidores, como escrevi em minha tese de doutorado sobre o tema***. A plataforma deu voz a um público que via desvantagens no modelo tradicional de distribuição da música. Os preços elevados, a possibilidade de conhecer artistas sem um comprometimento financeiro prévio e a falta de opções de compra “à la carte” deixaram de ser apenas desconfortos e se tornaram protestos.

A consolidação da percepção coletiva sobre a falta de atenção da indústria em relação ao seu público-alvo foi bem-sucedida. Noções e termos relacionados à “ganância” eram amplamente difundidos para desaprovar e contestar métodos e ações do setor fonográfico. Piadas, sátiras, sarcasmo e ironias se tornaram formas comuns para deslegitimar as práticas legais destinadas a combater a pirataria. Essas expressões têm relevância porque funcionam como instrumentos de atração e carisma, reforçando a moral dos críticos, ao mesmo tempo em que deslegitimam e desmoralizam a indústria do entretenimento e o Estado e suas leis.

Mas os agentes do status quo revidaram. Nos anos 2000, comparações entre pirataria e crimes como furto e roubo foram frequentes. Em 2007 a gravadora Universal Music Group promoveu uma campanha de publicidade anti-pirataria que envolvia imagens de partes desmembradas do corpo humano – como olhos, dedos, e orelhas – sugerindo que o download irregular de músicas suscitava na perda de partes dos corpos de músicos, como relatou Mike Masnik na Techdirt. Aqui mesmo no BaixaCultura há uma série dessas imagens compiladas, com frases como “Se você baixa MP3, você está baixando o comunismo” ou imagens como a de artistas consagrados (Elvis Presley, Jimi Hendrix, Jim Morrison) formada a partir de Cds virgens.

Essas comparações eram dirigidas não apenas a programadores e softwares de compartilhamento, mas também aos usuários desses serviços. Além de não oferecer condições de consumo atraentes para muitos usuários, organizações representativas de estúdios e gravadoras passaram a tratar o público – e não apenas os programadores – como moralmente suspeitos, rotulando-os de ladrões de dinheiro, carreiras e sonhos de artistas.

É possível entender essa disputa narrativa como um dos principais coveiros do formato tradicional de distribuição de música. Não foram apenas o Napster, como ferramenta de compartilhamento, nem os altos preços e as restrições de acesso que provocaram essa transformação. Emoções, sentimentos, percepções e interpretações do público consumidor — que o Napster, como ferramenta sociotécnica, conseguiu amplificar — desempenharam um papel determinante na necessidade de reestruturar o mercado.

O Napster ainda existe em 2024 – como streaming pago

 

Legados do Napster

Mas de quais transformações estamos falando? Em última análise, as mudanças ocorridas nos últimos 25 anos podem ser entendidas como uma reavaliação da indústria em resposta às percepções e interesses levantados pela pirataria e seus agentes. Como resultado, houve um esforço significativo em confluir lógicas coletivas e lógicas corporativas em um mesmo espaço a fim de reconquistar consumidores e direcioná-los de volta para o mercado legalizado do entretenimento.

Na prática, o legado do Napster pode ser percebido em diversas de nossas relações cotidianas com o consumo de música, mas destaco uma herança marcada por três movimentos: a consistente presença da música no espaço online; o acesso mais barato em comparação a décadas passadas; e o surgimento dos serviços de streaming.

Talvez a resposta mais notável da indústria neste momento seja o desenvolvimento e aprimoramento de plataformas de streaming, tendo o Spotify como o principal exemplo, mas também o próprio Napster, que hoje ainda existe como um serviço de streaming pago. Como já dito aqui no BaixaCultura, a indústria soube ouvir uma demanda de quem usava o Napster e os torrents para ter acesso à diversas produções culturais mundiais: faça melhor que eu pago. Mesmo envoltas por regulações de propriedade intelectual, as plataformas de streaming assimilam alguns dos princípios de justiça promovidos pela pirataria – pelo menos no que diz respeito aos usuários, já que os artistas continuam sendo remunerados de forma confusa, pra não dizer injusta.

Algumas dessas similaridades entre plataformas de streaming e softwares como o Napster são o (relativo) baixo custo do acesso à música (pelo menos em comparação aos CDs e LPs), o que dá a sensação de “gratuidade”; a praticidade destes serviços – basta assinar e já é possível ter acesso a um universo de músicas, um modo mais fácil e passivo de consumo musical que a busca ativa em serviços como o Napster e os torrents; a maior interatividade com o público, propiciada (e estimulada) pelos algoritmos dos serviços de streaming também como forma de manter mais tempo o usuário conectado “preso” aos domínios das plataformas. Essas características não estão limitadas a seus aspectos técnicos; descendem de uma cadeia de eventos em que percepções, valores e emoções foram (e são) constantemente negociados.

É pertinente pensarmos que a indústria musical de hoje é produzida a partir de relações coprodutivas entre pirataria e sistemas orientados por direitos autorais. A pirataria segue, como sempre ocorre, às margens do universo legalizado, mas a habita de modo central e constante. Nesse diálogo, os sistemas de direitos autorais, por sua vez, precisam constantemente se adaptar a essa dinâmica, buscando formas de integrar e regular essas práticas em um cenário em constante evolução. A interdependência entre esses dois elementos destaca a complexidade do mercado atual e a necessidade de atualizações de abordagens para equilibrar acesso, proteção e remuneração no setor musical. A pirataria, longe de ser uma força periférica, desempenha um papel crucial no setor musical, moldando não apenas o consumo, mas também a forma como as estratégias comerciais são elaboradas.

É interessante percebermos como as categorias do legal e ilegal não são completamente dissociadas quando tratamos de indústria fonográfica. Pelo contrário, estão em constante diálogo traçando e redefinindo fronteiras sociais do aceitável e do inaceitável. E se hoje muitos desfrutam de músicas através de plataformas de streaming legalizadas, não há espaço para pensar que nos distanciamos tanto da pirataria.

Muitos dos princípios, demandas e inovações de um quarto de século atrás continuam presentes tanto em tecnologias mainstream, quanto em plataformas como o Streamio e demais sobreviventes de buscas de torrents – mas isso é papo para outro texto.

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*: Andressa é Doutora e mestra em Antropologia Social pela UFRGS, atualmente professora da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), campus Erechim.
**: Como está registrado em BRUENGER, David. 2016. Making Money, Making Music: History and Core Concepts. University of California Press. Disponível em: https://archive.org/details/isbn_2900520292597
***: SOILO, Andressa Nunes. Habitando a distribuição do entretenimento : regime de propriedade intelectual, a tecnologia streaming e a “pirataria” digital em coautoria. 2019. 290f. Tese (Doutorado em Antropologia Social), Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2019. Disponível em: https://lume.ufrgs.br/handle/10183/200183

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Como o ChatGPT está influenciando na disputa pelo controle do conhecimento https://baixacultura.org/2023/05/29/como-o-chatgpt-esta-influenciando-na-disputa-pelo-controle-do-conhecimento/ https://baixacultura.org/2023/05/29/como-o-chatgpt-esta-influenciando-na-disputa-pelo-controle-do-conhecimento/#respond Mon, 29 May 2023 22:40:00 +0000 https://baixacultura.org/?p=15255 É quase impossível identificar retroativamente as fontes e autorias retiradas sem autorização de bases de dados pelos bots. Apropriação do saber comum pode estar mais ameaçada – abrindo uma disputa sobre os direitos do autor

Por Leonardo Foletto*

O ano de 2023 tem sido permeado pelo tema de Inteligência Artificial (IA) quando se fala sobre tecnologias digitais e internet. Isso se deve em grande parte ao sucesso estrondoso do ChatGPT, uma IA generativa desenvolvida pela OpenAI, uma empresa dos Estados Unidos fundada em 2015 com um investimento inicial de U$ 1 bilhão, cerca de R$ 4,9 bilhões na cotação atual.

Seus sócios incluem personalidades notáveis como Sam Altman, CEO da empresa. Elon Musk, o bilionário excêntrico e segundo homem mais rico do mundo de acordo com a Bloomberg, foi um dos co-fundadores da empresa em 2015, mas abandonou o projeto após discordâncias com princípios éticos e modelos de financiamento da empresa.

O ChatGPT foi disponibilizado publicamente gratuitamente em 30 de novembro de 2022 e, em janeiro de 2023, já havia alcançado 100 milhões de usuários. Isso o torna a tecnologia de crescimento mais rápido da história até o momento. É importante ressaltar que essa IA generativa consegue gerar textos e imagens de forma automatizada, baseada no aprendizado de máquina.

Direito autoral e propriedade intelectual

Há inúmeras formas de abordar a discussão acerca dos impactos da Inteligência Artificial (IA) no cotidiano global. Podemos falar sobre as questões éticas que envolvem a adoção desses sistemas em salas de aula, por exemplo, assim como sobre mecanismos possíveis para regulamentar IAs e assegurar que evitem a disseminação de racismo algorítmico, discursos de ódio e desinformação;

Podemos falar também da precarização do trabalho digital, agora também o trabalho criativo (designers, ilustradores, produção de “conteúdos” em geral) às implicações políticas no extrativismo desigual de dados norte-sul global, a partir da acentuação do colonialismo de dados (Couldry e Mejías, 2019; Lippold e Faustino, 2022), o que pode nos levar a um modo de produção ainda pior que o capitalismo (Mckenzie Wark, 2023), agora baseado também no controle do “vetor da informação”, aquelas tecnologias que coletam grandes quantidades de dados, os ordenam, gerenciam e processam para extrair valor – como as IAs generativas.

Podemos, ainda, discutir como as IAs são utilizadas em trabalhos criativos de texto e imagem, ou refletir sobre as questões filosóficas que envolvem a simbiose entre a realidade humana e a realidade das máquinas — incluindo a possibilidade de uma superação da inteligência humana pela maquínica.

Contudo, eu opto por abordar a questão sob uma perspectiva diferente: a discussão sobre criação, cópia e propriedade intelectual na internet. O fato é que nem todo mundo está satisfeito com que as IAs generativas, como o ChatGPT e o Midjourney (usado para geração de imagens), consigam escrever livros infantis, ganhar competições de arte ou produzir artigos acadêmicos. Isso levanta uma série de questões sobre a autoria, a originalidade e a propriedade intelectual, que ainda carecem de respostas claras.

Cópia da cópia da cópia

A importância da cultura livre e dos movimentos que a promovem se torna ainda mais relevante em tempos de avanço das IAs generativas. Como mencionado anteriormente, essas tecnologias são capazes de criar obras artísticas, textos e outros tipos de conteúdo de forma automatizada, o que levanta questionamentos sobre a autoria e a propriedade dessas obras.

O copyleft e as licenças Creative Commons poderiam se mostrar, nesse contexto, ferramentas poderosas para garantir que as obras geradas pelas IAs generativas possam ser utilizadas e compartilhadas livremente, sem restrições ou limitações impostas pelos detentores de direitos autorais.

No entanto, é importante lembrar que a cultura livre não é apenas uma questão de licenciamento. Ela envolve uma transformação mais ampla na forma como a sociedade entende a cultura, o conhecimento e a criatividade, e busca colocá-los ao alcance de todos, promovendo a participação e a colaboração em vez da exclusão e da monopolização.

Nesse sentido, a cultura livre se apresenta como uma alternativa à lógica mercantilista que rege a indústria cultural e as políticas de propriedade intelectual, permitindo o florescimento de novas formas de criação, expressão e compartilhamento que fogem do controle das grandes corporações e das elites intelectuais.

Do copyleft emergiram, no início dos anos 2000, os Creative Commons: um conjunto de licenças e, posteriormente, uma ONG presente em mais de cinquenta países. A partir daí, expandiu-se a ideia de cultura e conhecimento livre, e potencializados movimentos como a Educação Aberta (Recursos Educacionais Abertos no Brasil), Ciência Aberta e OpenGlam (galerias, bibliotecas, arquivos e museus abertos), ainda em plena atividade globalmente.

Esses movimentos promovem o acesso a conhecimentos de interesse público, tais como produções científicas, livros didáticos e obras presentes em museus e bibliotecas públicas, frente às restrições impostas pelas empresas detentoras de direitos autorais em obras culturais e educacionais. Nesse sentido, a defesa da cultura livre e dos movimentos que a promovem se torna ainda mais urgente em um mundo cada vez mais dominado pelas IAs generativas e pela lógica da propriedade intelectual restritiva, garantindo que a criatividade e o conhecimento possam ser compartilhados e apropriados por todos, e não apenas por uma elite privilegiada.

O livre direito a cultura para IAs?

A partir desse panorama sobre a cultura livre, discutido em “A Cultura é Livre: uma história da resistência antipropriedade”, é possível estabelecer uma conexão com a Inteligência Artificial (IA). A popularização de sistemas como o ChatGPT coloca a propriedade intelectual em um momento histórico importante, já que vivemos em um mundo cada vez mais dominado por múltiplas cópias reproduzidas por sistemas algorítmicos “inteligentes”.

Nesse contexto, torna-se difícil reconhecer as fontes e identificar a autoria. É praticamente impossível fazer isso retroativamente, pois muitos sistemas de IA já extraíram informações de bases de dados da internet sem autorização e seguem produzindo novas ideias a partir do que aprenderam.

No âmbito jurídico, já há denúncias que questionam essa apropriação; três artistas iniciaram uma ação coletiva contra Stability.ai e Midjourney alegando violação direta e indireta de direitos autorais, uma vez que “estes sistemas pegaram bilhões de imagens de treinamento extraídas de sites públicos” e as usaram “para produzir imagens aparentemente novas por meio de um processo de software matemático”.

Entre especialistas em direito autoral, muitos se perguntam se a extração de conteúdo de terceiros por estas IAs generativas pode ser considerado “fair use” (uso justo), mecanismo da Lei dos Estados Unidos que estabelece como uso justo a reprodução de trechos para fins como crítica, comentário, notícias, ensino ou pesquisa.

Esse tipo de mecanismo de exceção, que sempre foi uma defesa do movimento da cultura livre para que grandes empresas da cultura não impedissem práticas como as pequenas citações musicais e de vídeo para fins de estudo ou paródia, por exemplo, agora tem sido estabelecido como a interpretação usada pelos tribunais dos Estados Unidos para permitir alguns usos de mineração de dados necessários para estes sistemas de IA funcionarem.

Pesquisadores da área indicam que, em breve, a quantidade de texto e imagem gerada por IAs tende a superar toda produção humana. Esse fato levanta a discussão sobre a apropriação do espaço comum (domínio público) das ideias.

Apropriação do espaço comum de ideias

Um número muito grande de obras produzidas pode exaurir a quantidade de expressões possíveis de uma ideia em um certo meio — música, por exemplo, onde já há casos de IAs, como a do Google Assistente, que reconhece amostras de uma música, trechos de até menos de um segundo.

Identificar pode significar também controlar e restringir; empresas de tecnologia já identificam e barram rapidamente a circulação de informações para defender a propriedade.

O rapper brasileiro Don L reconheceu o perigo e expressou sua opinião no Twitter: “O capitalismo vai acabar com a arte do sample. Sou totalmente contra ter que pagar por samples irreconhecíveis por um humano. Se for por essa lógica, deveria ter direito autoral pros instrumentos. Pagar pra Yamaha, Korg etc em toda música”.

Se todos os samples usados no hip hop fossem identificados, controlados e restritos, teria sido possível o nascimento do gênero musical? Quantos novos estilos literários, expressões artísticas e gêneros musicais deixariam de surgir se houvesse barreiras econômicas como essa?

Diante dessas questões, que surgem diante das dúvidas sobre como regular processos tecnológicos ainda em pleno desenvolvimento, parece ser importante discutir novamente o uso justo.

Manter a exceção de uso justo no direito autoral pode permitir que criadores e inventores continuem a combinar conhecimentos existentes para criar novas possibilidades, como faziam antes com a câmera e o sampler. Porém, é importante considerar as consequências do colonialismo de dados caso a mineração de milhares de textos e dados necessários para o funcionamento de sistemas de Inteligência Artificial privados e fechados seja considerada uso justo.

Seria possível invocar o copyleft novamente para equilibrar a discussão, garantindo que obras geradas por Inteligência Artificial (a partir de comandos humanos) sejam licenciadas abertamente apenas para determinados usos? Seria tecnicamente possível licenciar e controlar o copyleft, dada a dificuldade de distinguir cópia e original nesse contexto e o número crescente de obras geradas?

Seria também possível questionar se a obra de arte é realmente fruto apenas do espírito humano, como proposto no final de “A Cultura é Livre”. Se não for, seria hora de, assim como os povos indígenas já fazem há muito tempo, rever o antropocentrismo e dar a classificação de criadores a seres não-humanos, “artificiais” ou “naturais”?

As muitas perguntas sem resposta apenas reforçam o desafio que a popularização das IAs generativas nos apresenta ao pensar sobre o futuro da criação e da cultura livre.

* Texto publicado originalmente na revista Jacobin, por sua vez adaptado de outro, chamado “Cultura e conhecimento livre em tempos de IAs”, que pode ser visto no site da Fundação Rosa Luxemburgo Brasil-Paraguai.

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Uma nova primavera para o direito Autoral das IAs https://baixacultura.org/2023/04/24/uma-nova-primavera-para-o-direito-autoral-das-ias/ https://baixacultura.org/2023/04/24/uma-nova-primavera-para-o-direito-autoral-das-ias/#respond Mon, 24 Apr 2023 13:00:57 +0000 https://baixacultura.org/?p=15230  

As tecnologias de IA atingiram um nível de popularidade nunca antes visto. Como essa nova onipresença afeta o uso justo e a criação de novas obras?

Por Lukas Ruthes Gonçalves*

O primeiro inverno da IA ​​aconteceu em 1974, depois que um relatório encomendado pelo Conselho de Pesquisa Científica do Reino Unido criticou como a IA não conseguiu atingir seus objetivos na época e observou que “em nenhuma parte do campo as descobertas feitas até agora produziram o grande impacto que então se prometia**.”O que se seguiu foi uma queda na popularidade das tecnologias relacionadas ao campo que durou até 1980, após uma empolgação inicial com criações feitas pelo próprio computador.

Voltando aos conceitos fundamentais: um aplicativo de IA, não diferente de qualquer computador, precisa de 3 elementos-chave para funcionar corretamente: hardware, que roda um software que depende de dados para produzir resultados. A principal diferença é que a inteligência artificial executa “tarefas que normalmente exigiriam inteligência humana, como percepção visual, reconhecimento de fala, tomada de decisão e tradução de idiomas”. Essa é uma definição de John McCarthy, um dos principais pesquisadores da área, durante a Conferência de Dartmouth de 1956, que buscava unificar os diversos esforços de pesquisa da época sob uma única bandeira. Até Alan Turing faria a pergunta se as máquinas podem pensar em sua obra seminal “Computing Machinery and Intelligence”, de 1950.

A principal razão para aquele primeiro inverno de IA foi a falta de capacidade de processamento do hardware na época. Pesquisadores de IA durante a década de 1970 perceberam que era muito mais fácil ensinar um aplicativo a jogar xadrez do que levantar uma caneta, em um fenômeno apelidado de Paradoxo de Moravec. Habilidades mentais que são tidas como certas (como andar ou reconhecer um rosto) acabam exigindo um poder computacional muito maior do que calcular o pi, por exemplo. Isso torna os problemas difíceis fáceis e os fáceis difíceis. É por isso que a pesquisa em visão computacional e robótica fez pouco progresso durante a década de 1970.

Na década de 1980, o hardware havia melhorado, com sistemas como máquinas LISP se tornando mais populares e sendo anunciados como capazes de simular as capacidades de tomada de decisão dos humanos. No entanto, computadores pessoais menores de empresas como Apple e IBM começaram a ganhar força entre a população, pois hardware especializado como as máquinas LISP eram muito caros para manter e incapazes de lidar adequadamente com entradas incomuns. Isso trouxe o segundo inverno de IA em 1993, com a popularidade na área atingindo um novo ponto baixo.

Desde então muita coisa mudou. O hardware continuou a melhorar (de acordo com a Lei de Moore), com os computadores ficando menores e mais potentes a cada geração. E com o crescimento da internet toda a capacidade computacional não precisava mais estar localizada em um único lugar. Em vez disso, para empresas como o Google, ele pode ser distribuído em todo o mundo. Além disso, o aumento da popularidade da internet com o público em geral criou a oportunidade para mais pontos de dados do que nunca. Os aplicativos de IA mais recentes começaram a utilizar o hardware em rápido desenvolvimento, o software em evolução e o aumento dos dados para florescer.

Em uma nova primavera para aplicativos de IA, podemos encontrar hoje aqueles que podem gerar arte (Dall-E 2), criar textos de vários tipos (ChatGPT) e traduzir com mais precisão, entre outros inúmeros usos. No entanto, a rápida implantação dessas ferramentas de IA está atraindo novos desafios. Existem preocupações sobre o uso de obras protegidas por direitos autorais para treinar IA; nem todo mundo está feliz com o fato de que esses aplicativos podem repentinamente escrever livros infantis ou ganhar competições de arte. Com o escrutínio dessas aplicações cada vez maiores, os legisladores e o público em todo o mundo começaram a olhar para essas caixas misteriosas com maior interesse.

Gerado usando ChatGPT com o seguinte prompt: “Como você escreveria ‘A Dream of Spring for AI Copyright’ no estilo de George R. R. Martin?”

Enquanto alguns recepcionam com entusiasmo esses desenvolvimentos de IA, outros vêem isso com ceticismo, já entrando com ações judiciais contra aplicações de IA de geração de obras de arte nos EUA e no Reino Unido. O cerne da questão é se esses sistemas infringiram os direitos autorais dos artistas para gerar suas criações. Um caso iniciado em solo americano tem como autores três artistas que iniciaram uma ação coletiva contra os aplicativos de IA Stability.ai e Midjourney, e contra o repositório de imagens DeviantArt alegando violação direta e indireta de direitos autorais, violações de DMCA e concorrência desleal. A denúncia pode ser encontrada aqui. Especificamente, os artistas afirmam que os réus “pegaram bilhões de imagens de treinamento extraídas de sites públicos” e as usaram “para produzir imagens aparentemente novas por meio de um processo de software matemático”.

O caso do Reino Unido segue na mesma linha, com a Getty Images processando a Stability.ai alegando que esta “violou direitos de propriedade intelectual, incluindo direitos autorais em conteúdo de propriedade ou representado pela Getty Images”. O argumento é semelhante ao caso dos EUA, em que o réu “copiou e processou ilegalmente milhões de imagens protegidas por direitos autorais e os metadados associados pertencentes ou representados pela Getty Images, sem uma licença, para beneficiar os interesses comerciais da Stability AI e em detrimento dos criadores de conteúdo”.

Deixando de lado os aspectos técnicos de como é feito o treinamento de uma aplicação de IA (veja aqui uma ótima explicação sobre o assunto), o cerne não só dessas duas ações, mas do funcionamento dos aplicativos de IA como um todo, é se a extração de conteúdo de terceiros para ser utilizado como dados de treinamento de uma aplicação do tipo pode ser considerada fair use (uso justo). Conceitualmente, a mineração de dados é a digitalização de grandes quantidades de dados para uso em um software com o objetivo de analisar e extrair informações dessas bases.

Nos EUA, este tópico é regulado pelo §107 da Lei de Direitos Autorais, que estabelece como uso justo de uma obra protegida por direitos autorais – portanto, não violação – a reprodução para fins como crítica, comentário, notícias, ensino, bolsa de estudos ou pesquisa. A lei estabelece quatro fatores para determinar se um uso seria considerado “justo”: a finalidade e o caráter do uso; a natureza da obra protegida por direitos autorais; a quantidade que foi copiada; e seu efeito potencial no mercado dessa obra. Esse tipo de exceção flexível estabelecida pelo fair use tem sido a interpretação usada pelos tribunais dos Estados Unidos para permitir alguns usos de mineração de textos e dados (em inglês, TDM) necessários para aplicativos de IA poderem gerar imagens, como aponta Jonathan Band.

Um caso marcante para o tópico, Authors Guild, Inc. v. Google, Inc., ouvido pelo Tribunal de Apelações do Segundo Circuito (Court of Appeals for the Second Circuit) entre 2005 e 2015, chegou à conclusão de que a tentativa do Google de digitalizar livros para uso em seu buscador foi vista como um passo transformador para as bibliotecas – mesmo que a empresa não tenha solicitado autorização para este uso. Com este julgamento, que considerou tais práticas de TDM como uso justo, abriu-se um precedente chave que atualmente é invocado pelos fabricantes de aplicativos de IA para apoiar legalmente suas práticas.

No entanto, essa decisão é cada vez mais questionada, com os veículos de notícia agora mais cautelosos com a “dieta de mídia” dos chatbots do Bing e o governo do Reino Unido restringindo a expansão das exceções do TDM. Os casos mencionados acima desafiarão esse entendimento? O entendimento de como essa tecnologia funciona é incipiente e levará tempo até que os advogados consigam entender completamente o conceito para considerar propostas que não freiam o avanço de tecnologias inovadoras como a IA.

Este é apenas mais um exemplo de como o uso justo e as limitações e exceções são importantes para o avanço de novas tecnologias. A doutrina de uso justo tornou-se um dos pilares legais dos quais os aplicativos de IA dependem. Sua defesa e ampliação são primordiais para que criadores e inventores possam continuar a recombinar conhecimentos existentes para criar novas e excitantes possibilidades, como faziam anteriormente com a câmera e programas de edição de imagens como o Photoshop. Isso garantirá uma longa primavera para as ferramentas de IA e as novas obras de arte e inovações que artistas, músicos, pesquisadores e o público em geral criarão utilizando-as.

*: Lukas Ruthes Gonçalves é Mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), apresentando dissertação sobre Autoria de IA orientada pelo Professor Marcos Wachowicz e é agora Doutorando pela mesma instituição. É também membro do Grupo de Estudos em Direito Autoral e Industrial (GEDAI/UFPR), liderado pelo Professor Marcos Wachowicz e LLM em Propriedade Intelectual e Tecnologia pela American University Washington College of Law.  Texto originalmente publicado em inglês no Projeto Disco. Tradução: Leonardo Foletto

**: Lighthill, J. (1973), “Artificial intelligence: a general survey”, Artificial intelligence: a paper symposium

A imagem de capa do post foi gerada usando DALL-E com o seguinte prompt: “Um desenho realista de uma paisagem de primavera com um pequeno robô no meio olhando para o horizonte”.

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Alguns argumentos em defesa da cultura livre https://baixacultura.org/2021/11/30/os-argumentos-em-defesa-da-cultura-livre-no-nexo/ https://baixacultura.org/2021/11/30/os-argumentos-em-defesa-da-cultura-livre-no-nexo/#respond Tue, 30 Nov 2021 20:49:27 +0000 https://baixacultura.org/?p=13856

Para diretor (sic*) do braço brasileiro da ONG Creative Commons, compartilhamento de obras intelectuais constrói uma sociedade mais igualitária. Título está disponível para download gratuito**

Criar um ambiente em que a cultura é compartilhada livremente é essencial para a construção de uma sociedade mais justa, na visão do jornalista Leonardo Foletto, autor do recém-lançado livro “A cultura é livre: Uma história da resistência antipropriedade”, da editora Autonomia Literária, em parceria com a Fundação Rosa Luxemburgo.

Foletto é um dos diretores do braço brasileiro do Creative Commons, ONG internacional que estabelece regras para o livre compartilhamento de textos, vídeos e imagens na internet. Com uma versão impressa vendida pela editora, “A cultura é livre” também está disponível gratuitamente para download em formato digital neste link.

Neste texto, o Nexo fala sobre os principais argumentos do livro, que também tem prefácio do compositor e ex-ministro da Cultura Gilberto Gil, e como eles se encaixam na história da internet.


A ideologia californiana

Quando a internet surgiu, na década de 1990, havia entre os usuários um senso rebelde, beirando o revolucionário, com a ideia de que a rede poderia ser a ferramenta mais transformadora da história da humanidade – uma forma dos países e seus cidadãos romperem com modelos tradicionais de vida e construírem novas formas de existência.

Esse espírito, muito inspirado pelos hippies dos anos 1960 e pelos punks dos anos 1970, acabou se perdendo com a chegada da chamada “ideologia californiana”.

O termo foi criado em um ensaio de 1995 pelos pesquisadores de mídia Richard Barbrook e Andy Cameron, da Universidade de Westminster, no Reino Unido, e designa a absorção dos rebeldes e hippies dos primórdios da indústria tecnológica pelos lemas do capitalismo tradicional em meio à costa da Califórnia. O texto completo pode ser lido em português gratuitamente.

“A ideologia californiana, simultaneamente, reflete as disciplinas da economia de mercado e as liberdades do artesanato hippie”, definiram os autores.

O mundo pensado pela ideologia californiana, de acordo com os pesquisadores, é um mundo de “surfe, comida saudável, espiritualidade ‘nova era’, música pop, drogas recreativas, mídia comunitária e a tradição da boemia cultural”, tudo catapultado por empresas privadas que, dentro de um livre mercado liberal, podem operar sem restrições e burocracias dos “antiquados” sistemas de controle estatal.

Duas figuras são centrais para o pensamento da ideologia californiana: Thomas Jefferson, um dos “pais fundadores dos EUA”, e a escritora russo-americana Ayn Rand. Jefferson, na Declaração de Independência americana de 1776, chamou os cidadãos (brancos, dado que os EUA mantinham o sistema escravocrata) à liberdade e à democracia, afirmando que esses dois fenômenos dependiam de uma liberdade de expressão irrestrita.

Rand, na ficção científica “A revolta de Atlas” (1957), afirma que o único sistema econômico que está alinhado com o objetivo moral dos seres humanos – a busca incessante pela felicidade, apresentada por ela como “egoísmo racional” – é o capitalismo liberal, com pouca participação pública, capitaneado pela iniciativa privada.

É a ideologia californiana que estava, na época do ensaio, por trás da Apple e da Microsoft, e que, posteriormente, guiaria Google, Facebook e todas as grandes empresas do Vale do Silício, localizado na Califórnia – a ideia de que o progresso tecnológico é inevitável, mesmo quando há consequências negativas, e que o mercado capitalista sempre vai conseguir administrar a vida cotidiana melhor do que qualquer Estado, mesmo que isso signifique condições precárias de trabalho, perda de direitos e acentuamento de desigualdades.

“Por todo o mundo, a ideologia californiana foi aceita como uma forma otimista e emancipadora de determinismo tecnológico”, afirma. “Porém, esta fantasia utópica da costa oeste [americana] depende de sua cegueira frente à – e dependência de – polarização social e racial da sociedade em que nasceu. Apesar de sua retórica radical, a ideologia californiana é totalmente pessimista a respeito de mudanças sociais estruturais.”

“Se apenas algumas pessoas podem ter acesso às novas tecnologias da informação, a democracia jeffersoniana pode se tornar uma versão de alta tecnologia da economia de latifúndios do Velho Sul. Refletindo esta profunda ambiguidade, o determinismo tecnológico da ideologia californiana não é simplesmente otimista e emancipador. É simultaneamente, também, uma visão profundamente pessimista e repressiva do futuro”, diz o texto.


A defesa da livre circulação

A defesa da cultura livre capitaneada por grupos na internet como o Creative Commons é uma forma de combater as raízes capitalistas da ideologia californiana que se emaranhou no meio digital. Em “A cultura é livre”, Leonardo Foletto argumenta que o livre compartilhamento não necessariamente antagoniza com a ideia de lucro e remuneração pelo trabalho intelectual.

O cerne do argumento está no fato de que não existe escassez nos arquivos digitais, como existiria em um livro físico, que precisa de materiais como papel e tinta e processos como impressão, armazenamento e distribuição. No digital, um mesmo arquivo pode ser copiado milhões ou bilhões de vezes sem precisar de um material finito para existir.

“Este livro investiga a cultura livre também entre dois lados conhecidos: o da remuneração aos criadores, que deveria garantir a continuidade na produção de suas obras, e o do acesso, (re)uso e circulação das obras, que prometeria à humanidade o direito de fruí-las e recriá-las. Nesses dois pólos, muitas vezes colocados como antagônicos, há nuances e questionamentos”, escreve.

Para ele, um modelo ideal que conciliaria a reprodução livre de criações intelectuais e a remuneração de seus autores envolve o estabelecimento de um contrato social entre autores e público.

“Nos casos de obras estéticas e que informam o pensamento de alguém, ter a liberdade de fazer cópias já seria suficiente para que qualquer pessoa pudesse compartilhar como e onde bem quisesse, vetando o uso comercial e certas possibilidades de modificação da obra que pudessem alterar ou deturpar a visão proposta pelo seu autor.”

Nele, o pagamento seria espontâneo pelo público, como uma doação, ou obrigatório, em circunstâncias como a exibição de um filme dentro de uma empresa privada, por exemplo. “Aos trabalhadoras/es, por exemplo, seria permitido o uso, inclusive comercial, da obra cultural, mas não àqueles que explorem o trabalho assalariado, que seriam obrigados a negociar o acesso”, diz o livro.

O modelo se aproxima ao que é defendido pelo sistema Creative Commons, que dá ao responsável por textos, imagens e obras a possibilidade de escolher entre algumas opções que permitem a reprodução, comercial ou não, da obra intelectual.

A organização não governamental criadora do sistema foi criada nos EUA em 2001. As licenças surgiram como uma maneira de adaptar e discutir as legislações já existentes sobre direitos autorais de forma a abraçar as mudanças impostas pela popularização da internet. Por meio de uma licença tradicional, um titular de direitos “entra em uma relação específica com outra pessoa para autorizar determinados usos”, segundo cartilha da ONG. Elas se baseiam na legislação do país. Já com as licenças Creative Commons, que são públicas, é o proprietário da obra que estabelece os termos de autorização de utilização de uma criação pelo público geral. No mundo, mais de 1,4 bilhão de arquivos como fotos, músicas, textos e vídeos possuem licenças Creative Commons.

No Brasil, os direitos autorais são protegidos pela lei 9.610, sancionada pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso em 1998. Defensores das leis do direito autoral consideram a distribuição livre de obras culturais uma forma de pirataria. Janaína Costa, advogada especializada em direito digital e pesquisadora do ITS (Instituto de Tecnologia e Sociedade) do Rio de Janeiro, considera no entanto que a prática de tentar criminalizar o download de obras protegidas por direitos autorais é ineficaz.

“O fomento da inovação e de novos modelos de negócios é a estratégia mais promissora de combate à pirataria. Conforme fartamente demonstrado, facilitar o acesso para aqueles que buscam o consumo parece ser o método mais eficiente”, disse ao Nexo em agosto de 2021.

A afirmação dela já foi demonstrada com evidências no estudo “Media Piracy in Emerging Countries”, do qual participou a Fundação Getulio Vargas. Na pesquisa, seis países foram estudados, e em nenhum deles houve diminuição expressiva no número de downloads de obras protegidas por direitos autorais após a criação de novas leis ou modificações em textos vigentes.

“O estudo demonstra que a batalha contra a pirataria será vencida não no campo da repressão, mas sim no campo econômico, com a oferta de produtos cujos preços sejam compatíveis com a renda e o poder de compra local”, afirmou o advogado Ronaldo Lemos, parte do estudo, à época do lançamento da pesquisa.

*Coordenador geral é o nome correto.
** Reprodução de Matéria publicada no site Nexo.

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A Cultura é Livre para baixar (com extras) https://baixacultura.org/2021/03/23/a-cultura-e-livre-para-baixar-com-extras/ https://baixacultura.org/2021/03/23/a-cultura-e-livre-para-baixar-com-extras/#respond Tue, 23 Mar 2021 18:56:42 +0000 https://baixacultura.org/?p=13572

Depois do primeiro lançamento do “A Cultura é Livre: Uma história de Resistência Antipropriedade” na Flipei, liberamos o PDF para baixar, de forma gratuita, nesta página especial que fizemos para o livro. Além do arquivo digital, também temos material extra: em cada capítulo vamos publicar alguma história, vídeo ou imagem que não entrou no livro, de modo a complementar a narrativa e dialogar com outras referências que funcionam melhor aqui do que no papel impresso.

“A Cultura é Livre”, como vocês sabem, é orgulhoso fruto de uma pesquisa de quase 10 anos realizada aqui neste espaço. Publicado pela Autonomia Literária, em parceria com a Fundação Rosa Luxemburgo, ele está à venda no site da editora E TAMBÉM no site para baixar porque acreditamos que a circulação de um bem imaterial (arquivo PDF do livro) não é necessariamente rival de um bem material (livro impresso) – especialmente nesse caso, onde a livre circulação de ideias é tema e motivo do livro existir.

Vale falar um pouco mais sobre esse tema. Depois de tanto falar em criação, reapropriação, propriedade, cópia, comum, copyleft e copyright através de tempos, de lugares e de visões de mundo diferentes, optamos pela licença que representa o copyleft, a Creative Commons CC BY SA (a copyleft primeira, a mesma de todo o conteúdo do BaixaCultura). Ela diz que este trabalho pode ser compartilhado – copiado e redistribuído – por qualquer meio ou formato e adaptado – remixado, transformado – para qualquer propósito. Desde que haja atribuição de autoria, o que significa que qualquer uso deve mencionar quem escreveu este trabalho e onde ele foi modificado – partimos do ponto de que quem quiser compartilhar, usar e adaptar este livro o fará de maneira razoável. E que qualquer obra derivada desta seja compartilhada pela mesma licença descrita aqui, uma garantia que não permite o fechamento deste trabalho em uma licença que restrinja todas as indicações citadas acima.

A abrangência dessa licença é aplicada às formas materiais com que esta obra circula: impressa como livro, em formato de um arquivo digital E-book e disponibilizada em partes dentro de plataformas na internet. A escolha por ela parte do pressuposto de que este trabalho só existe porque muitos outros existiram; e que fomentar outras obras será um elogio às ideias que aqui circulam. Sabemos das possibilidades de apropriação indevida e preguiçosa que muitos já fizeram de obras semelhantes, mas optamos por esse risco para garantir que este livro será livre para diferentes fins, inclusive o comercial.

Nesse aspecto, estimulamos o uso, a reapropriação e a (re)venda deste trabalho para fortalecer pequenas editoras e selos alternativos, desde que respeitadas as orientações já indicadas; caso você queira fazer isso, ficaríamos felizes se nos avisassem. Recordamos, porém, que o trabalho de editoras independentes como esta precisa ser remunerado para que continue existindo. Por isso, considere comprá-lo impresso e, assim, valorizar as escolhas editoriais e gráficas feitas aqui, assim como o investimento financeiro realizado – é isso que fará com que outras obras como esta sejam publicadas.

 

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Por uma cultura livre no futuro do trabalho https://baixacultura.org/2020/09/28/por-uma-cultura-e-livre-no-futuro-do-trabalho/ https://baixacultura.org/2020/09/28/por-uma-cultura-e-livre-no-futuro-do-trabalho/#respond Mon, 28 Sep 2020 19:46:17 +0000 https://baixacultura.org/?p=13257

Cultura livre pelas ruas de Barcelona, projeto Enfrenta.org

Como equilibrar a balança entre o acesso à informação/conhecimento/bens culturais X remuneração dos autores? Pergunta sem resposta única e definitiva, que necessita ser vista em cada situação que se quer analisar, foi um dos temas debatido na mesa “Os serviços sofisticados: Cultura e Conhecimento”, do Outras Palavras.

[Leonardo Foletto, editor do BaixaCultura]

Semana passada, à convite do Outras Palavras, participei do ciclo de debate “O Futuro do Trabalho no Brasil” na mesa chamada “Os serviços sofisticados: Cultura e Conhecimento“. Ao lado de duas pessoas que admiro bastante: Tatiana Roque, professora do Instituto Matemática da UFRJ, ativista da Renda Básica e ativa pensadora feminista e das subjetividades na esquerda brasileira; e Célio Turino, historiador, escritor, agente cultural, esponsável pelo conceito e implantação dos Pontos de Cultura no Ministério da Cultura de GIlberto Gil nos anos 2000.

A ementa da mesa tinha três perguntas-provocações tão instigantes quanto (de respostas) complexas: como o Brasil pode aproveitar e estimular, numa requalificação de sua economia, traços socioculturais notáveis, como a criatividade, a irreverência, a versatilidade? Como construir uma Economia da Cultura, do Conhecimento, da Ciência e dos Afetos avançada, inclusiva e redistributiva? Como seus ritmos próprios, ligados à criação e à inventividade, podem abrir caminho para uma proposta essencial no século XXI: a redução geral das jornadas de trabalho?

Pensei em fazer uma fala que tratasse de cultura livre, claro, e de que fomentar o acesso ao conhecimento e a cultura num país como o Brasil é condição essencial para pensar em uma economia da cultura e do conhecimento inclusiva e redistribuitiva. Um pouco antes, porém, fui atravessado, por uma leitura recente que fala de utopia – e não distopia, palavra da moda e tão real pra esses tempos – e pensei que seria bom inserir alguns trechos dessa leitura para trazer um pouco de ideias que nos ajudem a repensar o futuro mesmo (ou principalmente) com as iminentes discussões sobre o fim do mundo, Antropoceno, Instrusão de Gaia, entre outros termos que falam da destruição do que chamamos de natureza de forma irreversível pela ação humana, ainda mais vísivel em 2020 no Brasil de Bolsonaro.

Por motivos diversos, acabei não usando na mesa o trecho resgatado da leitura em questão: “Utopia Brasil“, livro de Darcy Ribeiro, mais precisamente um texto desse livro chamado “IVY-MARAẼN, TERRA SEM MALES, 2997”, uma ficcão utópica do antropólogo (e também escritor de ficção) criador da Universidade de Brasília. Mesmo o debate indo para outros lugares, resolvi resgatar o que tinha pensado em falar a partir de “Ivy-Marãen” e editei para transformá-lo em outro texto, publicado aqui no meu blog pessoal. Talvez não dialogue muito com o restante da mesa e mesmo do que eu anotei e acabei falando, mas sigo achando importante lembrar do que nós, brasileiros e latino-americanos, somos capazes quando criamos entornos sociais que potencializem nosso modo de vida tradicional.

A conversa na mesa enveredou por caminhos mais pragmáticos na tentativa de responder as questões disparadoras da mesa – embora nem eu nem Tatiana e Célio nos atentamos em somente responder a elas, como vocês podem ver no vídeo ao findl do post, com a íntegra dos quase 2h de debate. Falamos sobre a desmercantilização dos chamados serviços sofisticados (cultura e conhecimento); a monetização crescente dos nossos desejos potencializado pelas cada vez mais vigilantes tecnologias digitais; a redução da jornada de trabalho (com a boa lembrança por Cèlio do livro “Direito à Preguiça“, de Paul Lafargue, publicado em 1880) e a referência à outras culturas que não tem o trabalho como eixo organizador da vida, como a de alguns povos ameríndios; a invisbilização daquele trabalho que é feito durante todos os outros (inclusive os sofisticados): o trabalho reprodutivo, que suscitou a boa ideia de Tatiana de submeter a produção à reprodução, na linha que dialoga com historiadoras como Silvia Federici; como o estado pode visibilizar a produção cultural, entre outros tópicos. Trago aqui o restante que anotei para minha fala na mesa, com alguns acréscimos de edição.

CULTURA LIVRE E A REMUNERAÇÃO DE ARTISTAS

Agradeço o convite de Antonio por participar do debate e por poder dialogar com duas pessoas que admiro e acompanho o trabalho há anos, que fizeram, ou estão fazendo, políticas públicas que são fundamentais para o Brasil, caso do Cultura Viva e dos pontos de cultura que Célio Turino foi um dos criadores; e da Renda Básica, que Tatiana é uma das principais articuladoras da Rede Brasileira de Renda Básica.

Bueno, queria começar por uma questão que Antônio e outras pessoas já colocaram quando falo de cultura livre: como remunerar os artistas na cultura livre? como licenciar de forma livre e pagar aos artistas por suas criações? Teria que começar com a explicação do que é cultura livre e do que são licenças livres, e de como elas buscam equilibrar a balança entre o acesso à informação/conhecimento/bens culturais X à remuneração dos autores – nesse caso, remuneração que acaba ficando mais com os intermediários, quem é quem mais abocanha no valor de venda de uma dada obra.

Eu terminei agora um livro sobre cultura livre e a resistência anti propriedade através dos tempos – dos gregos à tecnologia digital, passando pela invenção do copyright, do direito autoral e das vanguardas do século XX – que vai sair pela editora Autonomia Literária em co-edição com a Fundação Rosa Luxemburgo. Creio que final de novembro ou início de dezembro já estará pronto e vocês poderão, se quiserem, ter acesso com muito mais detalhes do que falo quando trato de cultura livre.

No livro, trabalho com uma definição de Cultura livre como uma cultura que posta em circulação a partir de certos bens culturais em um dado mercado, são de livre acesso, difusão, adaptação e valor. Parto da definição do software livre, claro, que inspirou a adoção do termo no final dos anos 1990 e sua propagação nos primeiros anos da internet, e adapto aos bens culturais, em diálogo com pessoas que discutiram e trabalham com esse termo, de Lawrence Lessig à Anna Nimus, de César Rendueles a Dimitry Klainer. Nesse sentido, a primeira questão que se fala é que, assim como o software livre, cultura livre nao é necessariamente grátis.

A liberdade aqui implica autonomia na escolha e, depois, circulação livre, sem barreiras – ou com barreiras que podem ser escolhidas, como o caso por exemplo da licença copyfarleft, que permite o reuso, inclusive comercial, desde que seja compartilhado pela mesma licença, como a ideia do copyleft original, e que seja um uso por coletivos, organizações cooperadas e outras próximas especificadas na licença. É uma forma de não garantir a privatização e apropriação completa de um bem cultural e também incentivar o uso e reuso por iniciativas que tem mais a ver com nossos valores e compromissos éticos.

Assim a primeira pergunta pode se desdobrar em outra: como remunerar trabalhadoras e trabalhadores da cultura de forma a também não restringir e privatizar de modo excessivo os bens culturais e a produção de conhecimento?

Aqui minha resposta – talvez fácil, não sei – é que não há uma resposta pronta, lacradora. Há respostas diversas, para cada contexto. Há muitas entradas nessa discussão. A primeira é que um bem digital – um arquivo PDF de um livro, um disco em MP3, um filme – não é um bem rival, ou seja; eu posso ter em minha casa e você também pode ter em sua casa e tá tudo bem, ambos temos e ninguém fica sem. Falo isso porque toda a discussão da invenção da propriedade intelectual, nos séculos XVIII e XIX e que ainda permanece nas leis e no nosso imaginário, por exemplo, está em equiparar um bem rival (um objeto, terras, veículos instrumentos de trabalho) de um bem não rival, coisas que são claramente de naturezas distintas.

Nos anos 2000, a campanha antipirataria da indústria da intermediação – estudios de cinema, gravadoras musicais, principalmente – buscava a todo momento fazer essa equiparação: quando você baixa um arquivo, você está tirando um emprego de uma cadeia produtiva. Não é isso. Sabemos que essas campanhas não funcionaram: continuamos baixando música, filme, a cada blog fechado por disponibilizar links pra download, outros surgiram, como também assim ocorreu com o The Pirate Bay, até hoje atuante e com diversos espelhos, em que pese seus criadores terem sido processados por ação da indústria da intermediação sediada nos EUA e, cumpridos suas penas, fazerem hoje outras coisas da vida (ou não).

Aqui tem dois pontos importantes: o primeiro (1) é que o fato de baixar um filme não significa necessariamente que eu nao vá no cinema, nem baixarum disco que eu não vá comprar um CD ou vá a um show. Houve pesquisas nos anos 2000 e 2010 que diziam que o que se chamava de pirataria não afetava tanto quanto o propagandiado pela produção cultural.

O 2) é que em lugares em que o acesso à informação e a de bens culturais é mais escasso e de pouca qualidade, como o Brasil, ir contra às pessoas que baixam conteúdo, que compartilham suas cópias, que fazem xerox de textos, é um tiro no pé; você está criminalizando o elo mais fraco da cadeia, o usuário que não tem condições de pagar por cultura, e não o peixe grande que, esse sim, pode lucrar muito com pirataria – e provavelmente está ligado a outros negócios. Não sou punitivista, mas posso dizer: se tem alguém que poderia responder por crime são esses grandes, e não os usuários que baixam arquivos porque essa é a única opção de acesso que tem a certas obras.

Semanas atrás houve um debate nesse sentido no Twitter, daqueles que vão e vem e que quase só lá repercutem, feito a partir de postagens de uma editora de esquerda que começou a criticar publicamente quem baixava alguns de seus livros em PDF. Foi um tiro no pé, não? Vi muito mais esses arquivos circulando do que antes, inclusive como comentário aos posts da editora no Twitter. Eu mesmo só fiquei sabendo dos links depois da postagem da editora – aproveitei inclusive um link para baixar todos os livros, aliás.

É necessário dizer: é claro que devemos pensar na remuneração dos autores e da cadeia de produção de um livro. Mas esse pensamento não pode ser maior do que o acesso ao conhecimento e a cultura, não? Pelo menos é o que acho: dá pra conciliar ambos, tornar comum nossa produção, usar mecanismos que permitam a apropriação com fins que não exclusivamente o de retirar dinheiro dos autores, o que o copyleft e algumas licenças do creative commons, além da já citada copyfarleft, fazem há quase duas décadas.

No livro, ao final, eu trago outras perspectivas que não a ocidental para mostar como essa visão proprietária das ideias que temos hoje é também uma construção. No Extremo Oriente, por exemplo, a partir da influência do Confucionismo por mais de dois milênios, existe e permanece uma tradição diferente, que considera a cópia como algo básico, parte processo de aprendizado, o que remete até uma outra concepção de verdade e de processo criativo, mais marcado pela continuidade e por mudanças silenciosas do que pela ruptura que uma ideia genial trazida por um artista prmove, como consagrada na visão ocidental a partir do Romantismo do século XIX. Não se valoriza tanto a matriz da ideia, sua origem ou seu autor, mas como ela vai – ou precisa – ser continuada. Se a ideia permanece na cópia, então é como se a obra continuasse, sem ruptura, sem uma “nova obra”.

Em muitos povos originários, a perspectiva de propriedade intelectual também é diferente, muito mais comunitária e coletiva, mas um coletivo que não incorpora apenas os membros humanos de uma comunidade, mas outros seres animais, objetos, sem a separação habitual que fazemos entre sujeito e objeto. Nesse sentido, como é que se vai definir que uma obra é exclusivamente de alguém, que ninguém poderá usar sem pagamento de royalties a um determinado sujeito, se ela é fruto de um processo coletivo que também incorpora outros seres e se não há tão claro a seperação entre quem é sujeito e quem é objeto?

Enfim, trago aqui essas perspectivas pra gente pensar que não somos os únicos, que o ocidente nao é O mundo, mas que existem outras formas de ver as coisas, o mundo, as artes, a cultura, e que talvez temos que prestar atenção a esses outros jeitos para tentar encontrar formas de imaginar futuros e, então, buscar caminhos práticos para torná-lo nossa realidade – e, inclusive equilibrar a balança entre remuneração dos autores X acesso à cultura.

]]> https://baixacultura.org/2020/09/28/por-uma-cultura-e-livre-no-futuro-do-trabalho/feed/ 0 Todas as músicas em domínio público https://baixacultura.org/2020/05/11/todas-as-musicas-em-dominio-publico/ https://baixacultura.org/2020/05/11/todas-as-musicas-em-dominio-publico/#comments Mon, 11 May 2020 11:03:26 +0000 https://baixacultura.org/?p=13196

Em 1997, uma banda chamada The Verve lançou a música “Bittersweet Symphony“, hit dos anos noventa indicado e vencedor de vários prêmios de música pop. Um extremo sucesso, tanto que é executada em rádios do mundo até hoje. A música começa com uma orquestra tocando um riff que está na cabeça de todo mundo que já ouviu pelo menos uma vez.

Este riff foi feito pelos Rolling Stones em 1965, em uma música qualquer deles, chamada “The Last Time“. O The Verve usou um sample de uma versão orquestrada da música, feita em outra ocasião para um songbook dos Stones. A gravadora da banda, sabendo que usariam um sample na música, pediu e recebeu a autorização para usar o trecho da original no seu sucesso. No entanto, tendo em vista o desempenho comercial estrondoso do single, um executivo cresceu o olho.

O ex-empresário dos Stones, detentor dos direitos das músicas da banda (percebam, o cara não é nenhum artista) processou o The Verve, alegando que o sucesso do hit era devido aos Rolling Stones, e que a banda tinha usado “mais que o autorizado” na música. O empresário ganhou e todos os direitos sobre a música, independente de ela ser completamente nova, passaram a ser dos Rolling Stones. Somente em 2019 Richard Ascroft (foto acima), co-fundador e vocalista do Verve, teve o direito pela música recuperado.

A indústria da música, talvez por ser o meio artístico mais popular da sociedade, é terreno da maioria dos casos de processo por direito autoral que conhecemos. As limitações criativas que o próprio meio da arte impõe em melodia também propiciam argumentos: são doze notas na música, sete tons e cinco semitons, e a partir disso podemos imaginar que existe uma quantidade limitada de coisas novas que se pode criar em termos de canção e melodia. Por maiores que sejam as possibilidades, elas têm um limite – menor que na literatura, por exemplo, onde as letras e palavras permitem mais combinações.

Poderíamos estender essa argumentação por mais parágrafos. Parece meio estranho, pra dizer o mínimo, que um artista diga “ei, eu inventei este pedaço de sons nesta sequência e por isso ele é meu”, ou “ei, esta frequência e timbre são exatamente da minha guitarra e por isso esta música é toda minha”, mas é o que acontece.

Apesar de artistas buscarem expandir as barreiras impostas pela melodia através de novos recortes, ritmos e arranjos, mesmo assim a indústria consegue fechar novas criações em velhos modelos, como já reportamos em casos de “plágio” por aqui, o que incitou também rebeldia musical, caso da plunderfonia, um dos momentos ilustrados da história da recombinação trouxemos aqui.

E é uma luta unicamente econômica. Se eu tivesse feito uma música, ano passado, exatamente igual ao novo hit da Anitta desta semana, eu poderia processá-la? Sim, se eu fosse capaz de arcar com as despesas. Eu ganharia? Provavelmente não. Ou se sim, em uns 30 anos. Agora, se experimentarmos o contrário pra ver o que acontece: lançamos uma música que se parece com algum hit da Anitta. Em três minutos recebemos uma intimação da Sony Music, ou Disney, ou sei lá qual gravadora, mandando tirar do ar ou pagar os royalties, além da difamação por ter copiado outro artista.

Acontece que, por mais que algum dia quisermos ser originais em se tratando de música, esbarraríamos no número de notas limitado, no número de frequências audíveis limitado e nas regras harmônicas, que nos conduzem por caminhos pré determinados. Cientistas estudam sequências de acordes e por que algumas nos dão a sensação de inacabadas ou acabadas; por que uma nota menor parece triste, e outra maior parece alegre. A coisa é tão reativa para nossos sentidos que boa parte da música pop foi escrita a partir das mesmas sequências e nem por isso nós comparamos “In the Airplane Over the Sea” do Neutral Milk Hotel com Friday da Rebecca Black.

Foi pensando nestas limitações e neste cenário mercadológico predatório que dois programadores resolveram propor uma solução para evitar que qualquer músico seja inibido a compor pela possibilidade de ser processado por alguma gravadora ou artista oportunista. Damien Riehl e Noah Rubin se uniram para gerar um código que registrasse todas as possibildades de melodias. Eles tomaram as oito notas dentro de uma oitava (um intervalo de frequência definido) e todos os doze intervalos possíveis (a cada trecho do intervalo é marcado um tom ou semitom) para compô-las, e registraram estas melodias em arquivos .midi – um formato que registra todas as características das músicas (mas não como áudio), o equivalente digital a uma partitura.

Depois de gravar todos os arquivos em um HD externo, as músicas foram registradas pelos autores como sua propriedade sobre licença Creative Commons Zero – o que significa que elas estão em domínio público, e ninguém pode reinvidicar direitos patrimoniais (de exploração comercial) sobre a obra – e disponibilizadas no site All the Music.

Qualquer artista agora pode escrever qualquer música, e se for processado, alegar que na verdade estava sendo influenciado por Damien e Noah. É uma defesa válida. Ao mesmo tempo, a partir da data em que as melodias foram registradas, os dois passam a ser detentoras destas, e nenhuma música nova pode ser plagiada por outra mais nova ainda.

Juristas estão se perguntando se isso funcionaria em um caso real, mas a verdade é que o que os dois criadores do All the Music demonstraram é que não faz sentido nenhum alegar propriedade sobre uma sequência de sons. O projeto já está sendo expandido para uma quantidade maior de oitavas, até eventualmente zerar o problema.

Quantas músicas podem ser feitas sem uma lembrar a outra? Que artista pode escrever uma música sem ter ouvido outra antes? Como não se influenciar, nem mesmo de forma inconsciente? Registrar todas as músicas possíveis e caçar artistas de qualquer porte para coletar royalties só interessa a quem tem dinheiro para acessar um tribunal em cada caso destes. Música nenhuma é de alguém mais do que as fronteiras dela própria, e talvez nem neste caso, porque ela veio de alguma ideia antes disso.

O que Damien e Noah fizeram é uma provocação contra um mercado predatório e fadado a saturação. Esperamos que a reflexão se estenda para toda criação, e que a sua reprodução não seja tratada além da sua própria existência. Reprodução é obra nova, recombinação que o diga.

Ou você acha que esta música é responsável pelo sucesso desta música?

[Victor Wolffenbüttel]

 

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Encontro de Cultura Livre do Sul – todos os vídeos y relatos https://baixacultura.org/2018/11/30/encontro-de-cultura-livre-do-sul-todos-os-videos-y-relatos/ https://baixacultura.org/2018/11/30/encontro-de-cultura-livre-do-sul-todos-os-videos-y-relatos/#respond Fri, 30 Nov 2018 16:04:33 +0000 https://baixacultura.org/?p=12649

Terminou o Encontro de Cultura Livre do Sul. Ou só começou: as redes estão formadas, resta nos unir e manter por perto para enfrentar o que vem por aí. O debate continua em nosso grupo em Investigación Social e nas redes, o mapeo em Civics, a curadoria de produtos culturais livres em Ediciones de La Terraza e os relatos de cada uma das mesas será publicado até o dia 7/12 – vamos organizando os links por aqui assim que publicados.

Também estamos trabalhando nos desdobramentos do evento em um texto-manifesto que, por hora, está em rascunho, aberto para acreścimos, edições e assinaturas – individual ou de forma coletiva. São boas novidades em prol de uma continuidade do trabalho tão importante e que julgamos necessário: articular e conectar a cultura livre desde o sul global.

Acá abaixo estão todos os vídeos das 6 mesas do evento, da abertura e da pré-abertura com o lançamento da coletânea impressa da revista Pillku.

Presentación de la edición impresa de la revista “Pillku, amantes de la libertad”, en el marco del primer Encuentro Online de Cultura Libre. Se puede descargar en versión PDF en este enlace.  Participaram Anita Almada, Estrella Soria (MEX), Jorge Gemetto (URU) y San Hoerth (HON)

Abertura do encontro com os organizadores e coordenadores das mesas: Barbi Couto (Argentina), Bia Martins (BRA), Dani Cotillas (ES), Jorge Gemetto (UY), Leonardo Foletto (BRA) e Mariana Fossati (URU).

Mesa 1, Políticas públicas e reformas legais.
Participaram: María Juliana Soto y Lucía Camacho (COL), Diego Morales (ECU), Mariangela Petrizzo (VEN), Esteban Magnani (ARG), Daniel Cordones (URU), moderação de Jorge Gemetto (URU).

Mesa 2, Digitalização de acervos e acesso ao patrimônio cultural.
Participaram Fabs Balvedi (BRA), Gabriela Riera (ARG), Patrícia Peñafiel (EQU) e Pedro Jatobá BRA), com moderação de Carlos Lunna (BRA). Leia o relato da mesa, por Carlos Lunna.

Mesa 3, Laboratórios, hackerspaces e outros espaços de comunidades locais.
Participaram: Esaú Acosta (ES), HackLab Feminista La Chinampa + Insubordinadas (MEX), Karina Menezes (BRA), Carlos Diego (BRA), Illa_bekka (ARG-ES), moderação de Bia Martins (BRA) e Dani Cotillas (ES).

Mesa 4, Redes Internacionais. Como nos inserimos em um movimento global.
Participaram Constanza Belén Verón (ARG),  Juliana Guerra (MEX), Leonardo Sehn (BRA), Marcela Basch (ARG) e Rodrigo Savazoni (BRA), mediação de Leonardo Foletto e Janaína Spode (BRA).

Mesa 5, Produção cultural livre.
Participaram Gonzalo Miranda (ARG), Alex Appella (ARG), Andrés Bracony (ARG), Virginia Barré (ARG) e Salvador García (URU). Mediação de Barbi Couto (ARG).

Mesa 6, Educação Aberta e cultura livre.
Partiparam Fernando Daguano (BRA/CHI), Marianicer Figueroa (VEN), Jorge David García (MEX), Walter Lippold (BRA), Inés Martino y Fabricio Caiazza (ARG) e Sergio Rubio-Pizzorno (MEX). Mediação de Mariana Fossati (URU).

 

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Nina Paley e a “Pumpriedade Intelectual” https://baixacultura.org/2018/01/22/nina-paley-e-a-pumpriedade-intelectual/ https://baixacultura.org/2018/01/22/nina-paley-e-a-pumpriedade-intelectual/#comments Mon, 22 Jan 2018 12:47:56 +0000 https://baixacultura.org/?p=12123

Uma das principais dificuldades para quem atua na seara da cultura livre no Brasil é explicar o quê, afinal, é a cultura livre. Várias vezes já mencionamos aqui o quanto conceitos como o copyleft, criado cerca de 30 anos atrás, ainda suscita questionamentos do tipo “Mas na cultura livre tudo é de graça? Propriedade intelectual ajuda os artistas a sobreviverem!” “Copyleft é coisa de comunista, vai pra Cuba seu barbudo vermelho!”. Fizemos, inclusive, algumas falas por aí para explicar que muito do que se propaga por aí sobre a cultura livre é mito, causado por desinformação, em alguns casos deliberadamente difundida por defensores do copyright.

Mas em outros casos essa desfinformação também é fruto de uma dificuldade de entender a cultura livre como uma prática contracultural, anti status quo, num mundo ainda dominado pela ideia romântica de que criar é um ato individual e de que seu criador é um ser genial de ideias mirabolantes surgidas do nada. É certo que a internet ampliou o banco de dados da criação a números praticamente infinitos, e que práticas como o remix (e seus antepassados, que descrevemos aqui nos “Pequenos Grandes Momentos Ilustrados da História da Recombinação“) tem nos mostrado cada vez mais que nada se cria e tudo se copia, mas perante a maior parte das pessoas o ato de criar ainda é individual e proprietário. Para essa parte, portanto, a cultura livre ainda é difícil de compreender: como deixar “livre” (lembremos do mantra: livre não é grátis!) uma criação fruto de tanto esforço? Como não estocar num cofre uma ideia supostamente genial?

É nesse contexto que entra Nina Paley, artista nascida e atuante nos Estados Unidos e uma das mais talentosas vozes na defesa da cultura livre global. Com a animação “Sita Sings the Blues”, lançado sob uma licença livre (veja e/ou baixe você também), ela conseguiu mostrar, pra quem ainda não acredita, que é possível produzir produtos culturais de excelente qualidade (técnica, inclusive) utilizando-se dos princípios da cultura livre. E com o livro recém-lançado no Brasil, “Mimi e Eunice em Pumpriedade Intelectual”, pela Editora da UFBA, ela nos apresenta uma forma fácil, em tirinhas, de dialogar sobre propriedade intelectual, criação e cultura livre.

Com diálogos curtos e diretos, as personagens Mimi e Eunice convidam todos nós a pensar sobre o tema de forma inteligente e bem-humorada sobre o assunto. A tradução do jornalista André Solnik, colaborador deste site, consegue dar fluência ao texto. A entrevista com Paley que compõe o livro – primeiramente publicada aqui, em 2013 – esclarece algumas ideias que embasam a crítica da artista à propriedade intelectual. Por exemplo:

“Proteções anticópia colocam uma barreira entre o artista e a maioria das formas de apoio. Ao remover as barreiras de copyright, o artista torna possível o recebimento – tanto diretamente quanto por meio de distribuidores – de dinheiro e de outros tipos de apoio, aumentando assim suas chances de sucesso.

O prefácio é de autoria de Jorge Machado, professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP, e faz uma discussão histórica e conceitual sobre propriedade intelectual e suas armadilhas. Como neste trecho:

Com a “propriedade intelectual” surge a lógica de que todo conhecimento deve ter um “proprietário”. É como se a cultura herdada de nossos ancestrais não existisse como um bem coletivo. O resultado dessa lógica foi de que quanto maior a“propriedade intelectual”, mais restrito fica o conhecimento comum da humanidade. Mas o que mais chama a atenção é a aceitação de que bens intangíveis e inesgotáveis, como são as ideias, devem ter tratamento legal e moral equivalente a bens físicos, sujeitos às leis de escassez, como uma bicicleta ou um celular.”

O livro foi lançado no Brasil em licença CC BY SA e pode ser baixado aqui. Abaixo e no corpo desse post, algumas das tirinhas de Paley que estão no livre. Nina é desde 2009 é artista residente do site QuestionCopyright.org, onde escreve e desenvolve projetos ligados ao tema, e ainda tem um blog divertidíssimo na rede.

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