capitalismo informacional – BaixaCultura https://baixacultura.org Cultura livre & (contra) cultura digital Fri, 21 Jul 2023 12:57:48 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.0.9 https://baixacultura.org/wp-content/uploads/2022/09/cropped-adesivo1-32x32.jpeg capitalismo informacional – BaixaCultura https://baixacultura.org 32 32 McKenzie Wark e a morte do “capital” https://baixacultura.org/2023/02/15/mckenzie-wark-e-a-morte-do-capital/ https://baixacultura.org/2023/02/15/mckenzie-wark-e-a-morte-do-capital/#comments Wed, 15 Feb 2023 22:17:52 +0000 https://baixacultura.org/?p=15183  

A publicação de “O Capital Está Morto”, de McKenzie Wark, no Brasil, em parcerias das editoras Sob Influência e Funilaria, é um acontecimento importante nos estudos críticos sobre o neoliberalismo, especialmente nas discussões sobre comunicação, cultura digital e política. Por dois motivos principais: um por ser o primeiro livro lançado no país de McKenzie, intelectual importante no mundo anglo-saxão há pelo menos 20 anos, especialmente a partir de “A Hacker Manifesto” (2004 – aqui em PDF), uma potente crítica à mercantilização da informação da informação na era digital, que ecoa (e em alguns casos, remixa) diretamente Guy Debord e seu “A Sociedade do Espetáculo” (PDF Edições Antipáticas, 2005), inclusive na forma de escrita e na estrutura da obra.

Intelectual nascida na Austrália, professora de Mídia e Estudos Culturais na criativa New School for Social Research, em Nova York, McKenzie (@chicamarx) estuda mídia, cultura e tecnologia desde os anos 1990, com textos que vão desde o legado dos situacionistas franceses da década de 1950 e 1960 (como em The Beach Beneath the Street: The Everyday Like and Glorious Times of the Situationist International, de 2011) à teorização da cultura gamer (Gamer Theory, de 2006), passando também pela discussão sobre história da mídia, percepção e classe (Telesthesia: Communication, Culture and Class, de 2012). Seus trabalhos analisam as mudanças sociais pela inserção das tecnologias na sociedade (como em Excommunication: Three Inquiries in Media and Mediation, com Alexander R. Galloway and Eugene Thacker, de 2013) a partir de referenciais marxistas, que bebem principalmente nos estudos culturais ingleses e nos pós-estruturalistas franceses, mas também dos teóricos de crítica de mídia alemã e dos autonomistas italianos. Aliado a essa ampla bagagem teórica, a autora mescla em seus livros as referências e a profunda vivência no mundo cultural, especialmente como DJ na cultura da música techno, a forte noção de corporeidade – relatada sobretudo em “Reverse Cowgirl” (2020, PDF), em que McKenzie faz uma “polibiografia” de sua transição de gênero, como comenta Paul Preciado no prefácio – e uma escrita que, informal e direta, mas também rigorosa e densa, almeja a teoria como uma forma de literatura.

 

Foto: Jessica Dunn Rovinelli

O segundo motivo para a publicação de “O Capital Está Morto” ser importante no Brasil, claro, é o próprio livro. Aqui, ela aprofunda alguns os argumentos em “A Hacker Manifesto” (talvez seu livro mais influente, publicado também em espanhol) para anunciar o que seria um novo modo de produção, não mais capitalista, mas pior, que não se baseia mais seu poder na propriedade privada dos meios de produção, mas sim no controle do “vetor de informação”, formado por aquelas tecnologias que não apenas coletam grandes quantidades de dados, mas também os ordenam, gerenciam e processam para extrair seu valor. A tese central do livro, exposta desde seu início e trazida do “A Hacker Manifesto”, é de que a ascensão deste modo de produção (que podemos aproximar ao conceito de “Capitalismo de Vigilância, proposto por Shoshana Zuboff no já clássico “A Era do Capitalismo de Vigilânciaaqui PDF grátis ptbr ) tem produzido uma contradição no centro daqueles que almejam a ostentar o poder. Se antes, tradicionalmente, as classes dominantes controlavam algum tipo de bem escasso (a propriedade, os meios de produção, etc), agora essa classe necessita controlar algo que é extremamente abundante: a informação. Esta contradição, hoje sem resolução alguma, encaminharia para um novo meio de produção ainda mais selvagem que o capitalismo, em que o domínio se daria na posse e no controle da informação, manifestado na excelência e no constante aperfeiçoamento da coleta, do processamento, da visualização e da distribuição (ultra) personalizada dessa informação no mundo digital. O que, por sua vez, não implica que os modos de produção anteriores tenham sido apagados: eles coexistem e se sobrepõem, mas agora há uma classe emergente que, dominando a informação, controla também o trabalho e o capital – pelo menos do jeito que tradicionalmente o entendemos.

É fácil de ver alguns dos principais integrantes desta nova classe emergente: Amazon, Google, Meta (Facebook), Microsoft. Mas não só; há também empresas que, oriundas da produção de bens escassos tradicionais, adentram a esta nova classe buscando controlar a informação logística, caso da Nike e da Walmart. Maior empregadora dos Estados Unidos, a empresa varejista é mostrada por McKenzie como uma empresa que conseguiu, através do uso massivo de dados, tanto organizar os fluxos de mercadorias e seu sistema de distribuição quanto criar um modelo preditivo de consumo a partir das informações geradas por quem compra em suas lojas. Ao adotar a abordagem “orientada por dados”, baseada na extração de dados dos compradores, a Walmart potencializa um processo de exploração não apenas dos corpos e dos direitos dos trabalhadores, mas também de seus rastros digitais, um passo importante para a indução de desejos e a construção de formas ainda não vistas de controle. “Talvez haja novas formas de exploração, desigualdade e assimetria como uma camada sobre as antigas com as quais estamos mais acostumados”, diz a autora (p.9).

McKenzie desenvolve sua tese de modo fluído, com usos da tática de desvio do détournement de Debord (no primeiro capítulo, principalmente) e também de referências culturais que vão de Kim Gordon (Sonic Youth) ao filme “O Jovem Marx”, também para tentar mostrar que criar uma nova linguagem (ou um estilo menos sóbrio e chato), como Marx fez em sua época, pode ser vital para analisar o hoje e encontrar saídas para esse algo ainda pior que está vindo.

Confira essa ótima entrevista com Mckenzie na Revista Rosa;

[Leonardo Foletto]

 

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Estamos lendo (1): Asfixia, Franco Berardi https://baixacultura.org/2022/01/29/estamos-lendo-1-asfixia-franco-berardi/ https://baixacultura.org/2022/01/29/estamos-lendo-1-asfixia-franco-berardi/#respond Sat, 29 Jan 2022 14:30:20 +0000 https://baixacultura.org/?p=13896

Já faz mais de ano que alternamos a leitura de “Asfixia: Capitalismo Financeiro e a Insurreição da Linguagem” com outros livros de Bifo (“Depois do Futuro”, que comentamos nessa BaixaCharla #3, ainda em 2019; e “Extremo: Crônicas da psicodeflação”, todos publicados pela Ubu no Brasil). “Asfixia” é o mais denso e cheio de “food for thinking” – também por isso ainda não terminamos. Trata-se de dois textos: em Insurreição, escrito em 2011, o italiano de Bolonha realiza uma espécie de manifesto para tempos precários, um chamado para a ação diante da crise catastrófica que o capitalismo financeiro impõe a todos. Para Berardi, a sociedade ou pode seguir as prescrições e “resgates” exigidos pelos setores econômico e financeiro às custas da felicidade pública, da cultura e do bem comum; ou pode arriscar formular uma alternativa.

Não está claro qual seria a alternativa, mas a pista de Bifo passa pela reconstituição do corpo erótico e social pelo intelecto geral (p.112).

O principal instrumento para essa reconstrução seria a poesia, esse “excesso de linguagem” que ativa a nossa sensibilidade – a capacidade do ser humano de interpretar signos que não são, nem podem ser, verbalizados”. A poesia (usada como metáfora) poderia corroer a lógica do automatismo tecnofinanceiro dos algoritmos, que tem eliminado a ambiguidade das relações humanas.

“A sensibilidade, a capacidade de entender o que não pode ser verbalizado, tem sido uma das vítimas da precarização e da fractalização do tempo. Para que possamos reativá-la, a arte, a terapia e a ação política terão que unir forças” (p.113).

“A premissa do dogmatismo neoliberal é a redução da vida social às conclusões matemáticas de algoritmos financeiros. O que é bom para as finanças também deve ser bom para a sociedade, e se a sociedade não aceitar essa identificação e essa submissão, então é porque ela é incompetente e precisa ser reformatada por alguma autoridade técnica”. p. 31

Na segunda parte, Respiração – Caos e Poesia, escrito em 2018, ele retoma a metáfora da poesia como rota de fuga contra os fluxos que paralisam o corpo social. “Como podemos lidar com a falta de ar que a abstração produziu na história da humanidade? Como podemos nos desvencilhar do cadáver do capitalismo financeirizado?”. Para ele, a resposta, novamente, pode estar na potência infinita de uma linguagem não coagida pelos limites do significado ou, em outras palavras, na poesia como invenção coletiva.

Aqui dá pra baixar o livro online, mas (não) espalha. E se puder compre que o livro é bonito e vale bastante a leitura.

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De quem, afinal, é a cultura? https://baixacultura.org/2022/01/20/de-quem-afinal-e-a-cultura/ https://baixacultura.org/2022/01/20/de-quem-afinal-e-a-cultura/#respond Thu, 20 Jan 2022 15:51:40 +0000 https://baixacultura.org/?p=13880

Imagem de Ж, Filme-designer, educador e programador.

 

Victor Barcellos, doutorando em Comunicação e Cultura na ECO/UFRJ e pesquisador no Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS), escreveu uma resenha sobre o “A Cultura é Livre” na revista da Eco-Pós. A resenha tem o título de “De quem é a Cultura? Obras Culturais entre o privado, o público e o comum” e faz um ótimo panorama do livro – inclusive permitindo novas interpretações do tema e diálogos com outros pensadores/as, como McKenzie Wark e Maurízio Lazaratto, o que é sempre um sinal positivo quando se fala de resenha e construção de conhecimento crítico.

Abaixo, reproduzo alguns trechos, com algumas edições, comentários e supressões, para seguir fomentando o debate sempre necessário (achamos) sobre propriedade e cultura. Vale a pena ler todo a edição, um Dossiê sobre Apropriações e Ressignificações na arte e no pensamento, editado por Ciro Lubiner e Lucas Murari.

“A história da liberdade da cultura tem a potência de nos lembrar que a cultura, uma vez produzida e usufruída coletivamente como um bem comum, transmitida livremente de geração em geração, circula hoje majoritariamente em forma de mercadoria. Justamente no momento em que as possibilidades técnicas permitiram à cultura que circulasse rapidamente, sem barreiras e com baixo custo –é exatamente o momento em que ela se encontra mais limitada. Percebeu-se o potencial de lucratividade da criação de escassez artificial precisamente neste tempo de abundância informacional que é como o presente.

Em uma paráfrase a Jean-Jacques Rousseau, Mckenzie Wark afirma sobre a informação o mesmo que se poderia afirmar a respeito da cultura: “A informação quer ser livre mas por toda parte se vê acorrentada“. [Em “A Hacker Manifesto“, ótimo livro de McKenzie Wark que reflete sobre tecnologia, propriedade intelectual e filosofia em um texto que remete, principalmente na forma, ao clássico “A Sociedade do Espetáculo“, de Guy Debord – sem tradução para o português ainda]

O capitalismo, sabidamente estruturado sobre contradições, encontrou formas de modular essa relação entre liberdade e privação de forma a rentabilizar o processo. Para compreendê-lo, é útil a distinção feita por Maurizio Lazzarato entre “criação” e “produção”. De acordo com o autor, o primeiro está mais ligado à criação de novos mundos, enquanto o segundo diz respeito à replicação de cópias desses mundos efetuados para sua monetização na forma de mercadoria. Assim, afirma: o “nascimento do capitalismo é sobretudo uma luta contra a infinidade de mundos possíveis que o precederam e o ultrapassaram” (Lazzarato em  “As revoluções no Capitalismo“, p. 188, PDF). E qual a melhor forma de falar dessa liberdade da cultura, senão demonstrando que historicamente, apesar das diversas tentativas de seu enclausuramento, sempre houve movimentos contrários que advogaram sua liberdade?

A afirmação categórica e precisa do título deixa evidente sua posição: a cultura é livre, e essa característica quase ontológica, ainda que negada de tempos em tempos, não se deixa sucumbir por completo.

A cultura pode ser compreendida como o último limite adentrado pelo crescente processo de commoditização da vida. A gradativa transformação dos diversos aspectos da experiência em propriedade privada se iniciou na terra, passou pelo capital e hoje encontra na cultura sua commodity central. Isso porque, em um processo de crescente abstração da forma-mercadoria, nota-se o incrível potencial de extração de valor em uma cooptação parasitaria da produção de cultura. Ao invés de precisar investir na produção, agora se torna possível capturar a cultura, que é produzida naturalmente pelo intelecto geral (general intellect) e lucrar com sua circulação. “Seu poder reside no monopólio da propriedade intelectual –patentes, direitos autorais e marcas registradas –e os meios de reproduzir seu valor –os vetores de comunicação. A privatização da informação se tornou o aspecto dominante, e não subsidiário, da vida ‘commoditizada’ (Wark, 2004, p. 25, tradução nossa)”.

Capa do Livro de McKenzie Wark, de 2004

Por meio de uma série de exemplos, Foletto nos mostra como boa parte daqueles que até hoje são reconhecidos como gênios inventores das maiores tecnologias não foram os responsáveis propriamente pelas invenções, mas apenas tiveram o capital financeiro e político para obter sua patente para produção em escala. Logo, deve-se desmistificar a visão de gênios solitários trabalhando em suas oficinas quando, por iluminação sobrenatural, obtiveram êxito na criação de invenções. A história real é menos solitária e muito mais social, tem pouco de inspiração espiritual e muito mais de disputas materiais.

A China, em especial até a modernidade e por influência do confucionismo, valorizava-se a tradição que incentivava, na educação infantil, a memorização e a cópia, o que colocou em contradição os direitos de propriedade intelectual com os valores morais tradicionais. Por essa valorização maior da transmissão do que da inovação, chegava-se a atribuir a ausência da percepção de uma cópia não pela ausência de atribuição da autoria, mas por ignorância daquele que consome a obra.

Em outras culturas, como algumas ameríndias estudadas por antropólogos como Marcel Mauss e Eduardo Viveiros de Castro, também se pode encontrar cosmovisões que se colocam radicalmente em oposição às concepções de direitos autorais. Como proteger obras em contextos em que a criação é entendida como um processo que envolve inclusive agentes não-humanos? E em que a concepção de que as transações não se esgotam na troca física de moedas ou mercadorias, mas representam apenas uma etapa de uma relação duradoura entre os agentes? Essa diferença radical apresentada por Foletto nos ajuda a tomar consciência do quão arbitrárias e contingentes são as concepções que sustentam os direitos autorais tradicionais.

 

]]> https://baixacultura.org/2022/01/20/de-quem-afinal-e-a-cultura/feed/ 0 Como funciona (e lucra) o capitalismo de vacinação na pandemia https://baixacultura.org/2021/04/14/como-funciona-e-lucra-o-capitalismo-de-vacinacao-na-pandemia/ https://baixacultura.org/2021/04/14/como-funciona-e-lucra-o-capitalismo-de-vacinacao-na-pandemia/#comments Wed, 14 Apr 2021 20:02:49 +0000 https://baixacultura.org/?p=13606

As empresas farmacêuticas, seus chefes e acionistas já estão ganhando bilhões com as vacinas contra COVID, em um dos exemplos mais nefastos de como lucrar a partir de uma doença. Isso se deve em grande parte a um sistema, perverso em sua origem, que concentra a capacidade de produção na mão de poucos – sejam empresas ou Estados – o que intensifica e produz novas desigualdades na distribuição e consumo desses produtos. Nesse sistema, a indústria farmacêutica age em parceria com os Estados: primeiro, recebe subsídios governamentais para desenvolver medicamentos; em seguida, na combinação de preços geralmente muito acima dos custos, o que gera lucros exorbitantes para além dos que são considerados “necessários”, dentro desse sistema, para investimentos de risco como vacinas. Enquanto isso, os países mais pobres são deixados para trás novamente: 90% da produção das vacinas está sendo distribuída em países considerados desenvolvidos, enquanto que o restante pode demorar anos para ter vacinas suficientes para dar conta de suas populações. Pior: com a defesa ferrenha, por parte dos governos destes países, dos direitos de propriedade intelectual das empresas, evita-se (ou dificulta) que os países mais pobres possam produzir vacinas de modo mais rápido e barato. 

Traduzimos (melhor dizendo: adaptamos) dois textos do site britânico Corporate Watch [este e este], que desde 1996 cobre e pesquisa corporações, para dar mais detalhes dos abusivos lucros que a indústria farmacêutica obtém a partir da exploração das patentes de medicamentos produzidos, em sua maior parte, a partir de dinheiro público. A tradução é de Victor Wolffenbüttel e a adaptação de Leonardo Foletto (colaboraram Tatiana Dias e Alexandre Abdo). 

Fonte: Médicos Sem Fronteiras

Cinco maneiras pelas quais as grandes empresas farmacêuticas ganham tanto dinheiro*

A indústria farmacêutica é lucrativa: as gigantes da área têm taxas de lucro de até 20% – mais do que o dobro de outros setores. Mas como elas ganham tanto dinheiro? 

1) Persiga o lucro, e não as demandas 

Um dos maiores problemas com um sistema que direciona a pesquisa médica mais para obtenção de lucros em vez das necessidades de saúde da população é que o investimento em P&D (Pesquisa e Desenvolvimento) é canalizado para os produtos que podem gerar mais dinheiro para as empresas farmacêuticas. Os melhores negócios são os medicamentos para pacientes que precisam de  medicações caras (como câncer) e os que vão ser usados por muito tempo. Os melhores pacientes são os dos EUA, onde os preços dos remédios são mais altos e certas condições crônicas do sistema de saúde local exigem prescrições repetidas. Ou onde as drogas são altamente viciantes, como no caso de opióides como o Oxycontin, indicado para o tratamento de dores moderadas a severas por período de tempo prolongado.

Por outro lado, as vacinas de dose única contra epidemias que afetam principalmente os países mais pobres são o exemplo clássico de um mau negócio. Assim, a pesquisa sobre vacinas foi relativamente negligenciada até o ano passado – quando a COVID-19 se tornou um problema global e o financiamento do Estado entrou em ação. 

2) Patentear tudo 

As empresas farmacêuticas detêm patentes – licenças que garantem seus direitos de “propriedade intelectual” – de novos medicamentos. Isso significa que ninguém mais pode produzir o mesmo medicamento sem sua permissão durante a vigência da patente, que é de 20 anos na maioria dos países. 

A ideia do livre mercado é que, se uma empresa obtém altos lucros, novos participantes poderão entrar fazendo a mesma coisa (produto, medicamento, etc), mas mais barato, puxando então para baixo os preços e os lucros de todo esse mercado. As patentes significam que as empresas farmacêuticas têm monopólios legais sobre medicamentos específicos: como nenhuma outra empresa pode baixar os preços, elas podem estabelecê-los e obter grandes lucros. 

O sistema de propriedade intelectual é imposto por governos em todo o mundo sob o acordo TRIPS, que é um dos principais documentos da Organização Mundial do Comércio (OMC). Alguns estados são apoiadores mais fervorosos do que outros; os EUA são particularmente conhecidos como um forte defensor da propriedade intelectual das empresas; a UE não está muito atrás (como mostra este relatório recente do Corporate Europe Observatory). 

Governos como da Índia e África do Sul, juntamente com ONGs como a Médicos Sem Fronteiras, pediram que as patentes de vacinas fossem canceladas durante a pandemia da COVID-19. Isso poderia permitir que os países mais pobres comecem a fabricar suas próprias vacinas a preço de custo – em vez de esperar até 2023 para que as empresas farmacêuticas atendam aos seus pedidos. A ideia sofreu forte oposição dos EUA, UE, Reino Unido e outros países ricos, como contamos aqui no BaixaCultura em janeiro

3) Preços muito, muito mais altos do que os custos 

Como os apoiadores da indústria farmacêutica justificam um sistema que nega medicamentos a preços acessíveis para bilhões de pessoas? O argumento é que essa é a única maneira de cobrir os custos de pesquisa e desenvolvimento (P&D) de novos medicamentos. O principal grupo de lobby da indústria dos EUA, a Pharmaceutical Research and Manufacturers of America (PHRMA), afirma: “Em média, leva de 10 a 15 anos e custa US $ 2,6 bilhões para desenvolver um novo medicamento, incluindo o custo de muitas falhas”. Sem patentes, dizem, os “rivais” (atenção ao vocabulário) poderiam simplesmente copiar suas receitas e ninguém se daria ao trabalho de desenvolver novos medicamentos. 

As empresas farmacêuticas gastam, em média, cerca de 20% de toda a receita de vendas em P&D. Isso é realmente alto em comparação com outras indústrias: apenas a aviação e a indústria espacial têm percentual maior em P&D. Mesmo assim, as vendas cobrem os custos muitas vezes. Uma vez que os medicamentos estão na linha de produção, os custos reais de fabricação são minúsculos em comparação com os preços frequentemente altos (ao contrário das naves espaciais e de aviões, que são muito caros de produzir por unidade). Essa diferença é o que explica aquela já citada margem de lucro de 20% que a indústria farmacêutica obtém com seus produtos.

A insulina custa em média menos de 6 dólares por frasco para produzir, mas é vendida por até 275 dólares nos Estados Unidos – um exemplo dado pelo grupo da campanha Pacientes por Drogas Acessíveis (Patients for Affordable Drugs). Na Europa, a gigante farmacêutica Gilead cobrou uma média de 55.000 euros por um tratamento de 12 semanas contra a hepatite C – quando os remédios custam menos de 1 euro por comprimido para fabricar [fonte]. Esses exemplos extremos ilustram um padrão; um estudo acadêmico da Universidade do Sul da Califórnia descobriu que as empresas farmacêuticas dos EUA têm uma margem média de lucro bruto de 71% nas vendas de medicamentos – ou seja, o dinheiro que ganham com um medicamento após descontado o custo de produção, mas antes das despesas de toda a empresa, como marketing, impostos ou bônus executivos. 

4) Minimize o risco 

As empresas farmacêuticas argumentam que têm de assumir o risco de desenvolver medicamentos experimentais que nunca chegam ao mercado. Por exemplo, o custo médio de um novo medicamento contra o câncer foi estimado em 648 bilhões de dólares. A cifra de 2,6 bilhões de dólares citada no PHRMA acima é, na verdade, uma estimativa de “risco ponderado” que “inclui o custo de muitas falhas”. Se uma empresa farmacêutica inventar 10 medicamentos que custam 260 milhões de dólares cada, mas apenas um for aprovado, então a empresa teve o custo de 2,6 bilhões de dólares no total para produzir um remédio que possa ser vendido. 

Só que, na realidade, as grandes empresas farmacêuticas “inventam” apenas alguns dos medicamentos que patenteiam e vendem.Uma análise de dois gigantes da “Big Pharma” mostra que a Pfizer desenvolveu apenas 10 dos 44 medicamentos mais vendidos “da casa” (23%) – e a Johnson & Johnson desenvolveu apenas 2 de 18 (11%). A “inovação” ocorre em grande parte em laboratórios universitários e governamentais, ou em empresas de pesquisa menores. 

E muito disso é financiado pelo estado. Os Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos, o principal (mas não o único) órgão governamental de pesquisa médica do país, doam 39,2 bilhões de dólares por ano para universidades, escolas médicas e outras organizações de pesquisa. 

Uma vez que os medicamentos foram descobertos, os gigantes farmacêuticos intervêm – para comprar uma licença, ou uma empresa inteira – uma vez que o medicamento já se provou por meio de testes iniciais. (Veja um relatório recente dos EUA sobre esse tema.) As vacinas contra COVID-19 são exemplos clássicos. 

5) Lobby, lobby, lobby

A indústria farmacêutica é poderosa, com muitos amigos influentes. Nos Estados Unidos, o país com os preços de medicamentos mais altos do mundo, o setor farmacêutico gasta mais do que qualquer outro setor em lobby. Ao longo de 22 anos, as empresas farmacêuticas e grupos da indústria gastaram 4,45 bilhões de dólares em lobby com políticos dos EUA – quase o dobro do valor do segundo mais gastador, o mercado de seguros. De acordo com a OpenSecrets, a indústria tem mais de 1.450 lobistas trabalhando para ela, dentre os quais 66% são ex-funcionários do governo. E esta é apenas a face mais publicamente conhecida, oficialmente declarada, da influência política da indústria farmacêutica – ela apenas arranha a superfície de um mundo de doações políticas, cargos de diretoria, “portas giratórias” e muito mais. 

Um relatório do Corporate Europe Observatory detalha como a União Europeia se tornou um instrumento cúmplice na defesa dos direitos de propriedade farmacêutica. As dez maiores empresas farmacêuticas gastaram até 16 milhões de euros em lobby lá em 2019. No Reino Unido, surgiram histórias sobre como a indústria financia grupos de pacientes para que eles ajudem a fazer lobby por novos tratamentos medicamentosos; ou sobre como o sistema público de saúde encomenda pesquisas como estratégia de compra de um grupo de lobby financiado pela indústria. 

Vale salientar que governos, como o inglês, o dos países da União Europeia e os Estados Unidos, também são grandes (os maiores) clientes farmacêuticos, que pegam bilhões de seus contribuintes para comprar os medicamentos das empresas. 

Fonte: Corporate Watch

Vacinas contra a covid-19: quanto estas empresas irão lucrar este ano? 

O Corporate Watch examinou três das quatro principais vacinas que têm circulado no mundo: BioNTech e Pfizer, Astra Zeneca e Oxford University, e Moderna. Quanto dinheiro as empresas por trás delas vão ganhar? Como eles têm sido apoiados pelo setor público? E onde o dinheiro vai parar? 

BioNTech / Pfizer: lucro estimado de 4 bilhões de dólares, após vendas de 15 bilhões. A Pfizer diz que já tem pedidos acumulados de 15 bilhões de dólares em vacinas, onde cada dose está precificada em 19 dólares. Segundo o Financial Times, a margem de lucro pode ficar perto de 30% neste ano. Trabalhando sem nenhum melindre para maximizar o lucro, a empresa está sendo uma negociante dura com países mais ricos e também com os mais pobres. 

Moderna: lucro estimado de US $ 8 bilhões de dólares, após vendas de 18,4 bilhões. A Moderna diz que está a caminho de produzir pelo menos 700 milhões de vacinas pré-encomendadas em 2021. As injeções da Moderna são as mais caras, entre 25 e 37 dólares a dose, e a empresa diz que o custo de produção de suas vacinas será de apenas 20% do preço de venda. 

Oxford / AstraZeneca: lucro desconhecido, após vendas previstas de 6,4 bilhões de dólares em 2021. Está vendendo pelo preço mais barato (por enquanto) e prometeram produzir a preço de custo sem obter lucro durante a pandemia. Mas o que isso realmente significa? Um contrato visto pelo Financial Times sugere que eles poderiam declarar o fim da pandemia e aumentar os preços a qualquer momento a partir de julho de 2021. E o contrato da AstraZeneca com a Universidade de Oxford permite que a empresa ganhe até 20% além do custo de fabricação das injeções. Em outro indício dos limites da promessa de vender “a preço de custo”, alguns países mais pobres, incluindo Bangladesh, África do Sul e Uganda, podem ter que pagar mais pela vacina do que a União Europeia porque têm menos poder de barganha do que os grandes, que estão pegando a primeiro parte da produção das vacinas.

Vale destacar que as vacinas estão sendo compradas por governos em todo o mundo em encomendas antecipadas por atacado. Esses números de lucro, portanto, vêm predominantemente das vendas a autoridades públicas. Como vemos abaixo, os governos também subsidiaram maciçamente o desenvolvimento das vacinas. Portanto, o setor público está pagando duas vezes: primeiro financiando a pesquisa e depois comprando os resultados a preços inflacionados. 

E nos próximos anos? 

Isso é uma incógnita. Dada a quantidade de vacinas em desenvolvimento, a competição pode manter os custos baixos. Mas se algumas se mostrarem mais eficazes do que outras, e a vacinação contra covid-19 se tornar um evento anual como as vacinas contra gripe, os lucros podem continuar acumulando nos próximos anos. E uma vez que a intensidade da pandemia diminua, todas as empresas podem se sentir livres para aumentar ainda mais os preços.O diretor financeiro da Pfizer, por exemplo, disse a analistas que o preço atual “não é um preço normal, que é de 150, 175 dólares por dose. Depois da pandemia, obviamente vamos conseguir vendê-las por um maior preço ”. As empresas/consórcios responsáveis pelas três principais vacinas em planos declarados de aumentar os preços das vacinas contra o coronavírus em um futuro próximo e capitalizar a presença duradoura do vírus.

Posições dos países em relação às patentes das vacinas. Fonte: Médicos Sem Fronteiras

Quanto custou o desenvolvimento das vacinas? 

Os números exatos são segredos corporativos, mas parece provável que cada uma tenha custado cerca de 1 bilhão de dólares para serem desenvolvidas. A pesquisa inicial para uma nova vacina epidêmica pode custar em média 68 milhões de dólares – embora as injeções contra COVID-19 tenham sido desenvolvidas muito mais rápido. Mas o principal custo é a execução de testes de “Fase 3” em grande escala – para as vacinas contra a COVID-19, eles foram maiores do que o normal, com dezenas de milhares de voluntários

De que outra forma as empresas irão se beneficiar? 

As vacinas são um grande golpe de relações públicas. As empresas se tornaram nomes conhecidos, e no bom sentido. Isso é uma reviravolta para uma indústria que foi insultada como poucas outras após décadas de especulação. Só agora está começando a ser questionado no debate público se as vacinas poderiam ter sido produzidas de uma forma mais acessível e justa – pelo menos no Reino Unido. 

A ciência que sustenta as vacinas contra covid-19 também pode ser usada pelas empresas para tratar – e lucrar com – outras doenças. A Moderna espera que sua tecnologia de mRNA possa ser usada para tratar o câncer, o “mercado” farmacêutico mais lucrativo. A Vaccitech, mencionada acima, está arrecadando grandes somas de investidores, na esperança de que sua tecnologia contra covid-19 possa ser usada para tratar hepatite e MERS (Síndrome Respiratória do Oriente Médio).O desenvolvimento da ciência provavelmente foi ajudado por “testes de estrada” durante a preparação da vacina. 

Quem inventou as vacinas? 

BionNTech / Pfizer: A pesquisa foi realizada pela BioNTech, uma empresa alemã de pesquisa farmacêutica. A Pfizer  entrou como parceira assim que a vacina estava pronta para os testes. 

Moderna: a vacina foi co-desenvolvida pela Moderna e cientistas do governo dos EUA que trabalham para o National Institute of Health (NIH) (Instituto Nacional de Saúde). Há algum mistério sobre os papéis exatos do NIH e da Moderna, quem possui a propriedade intelectual e por que o governo dos EUA, aparentemente, permitiu que a Moderna ficasse com todos os lucros

Oxford / AstraZeneca: Cientistas da Oxford University no seu Instituto Jenner e Oxford Vaccines Group, liderados pelos professores Sarah Gilbert e Adrian Hill. 

As empresas apresentam as vacinas contra COVID-19 como um triunfo para a ciência corporativa. Mas na verdade apenas uma das vacinas analisadas, a BionNTech/Pfizer, foi desenvolvida pelo setor privado (ganhar dinheiro com as invenções dos outros é uma jogada farmacêutica clássica – leia nossa explicação aqui). Além disso, todas as equipes se beneficiaram da pesquisa inicial do Shanghai Public Health Clinical Center (Centro Clínico de Saúde Pública de Xangai), que publicou o primeiro sequenciamento genômico do vírus da COVID-19 gratuitamente no site de código aberto virological.org

Havia algum plano para produzir vacinas sem as Big Pharma lucrarem? 

Inicialmente, a Oxford considerou permitir que uma série de fabricantes produzissem sua vacina sem vender direitos exclusivos a nenhuma corporação. Mas, de acordo com o Wall Street Journal, executivos seniores da universidade, junto com seu principal financiador –  a Fundação Bill e Melinda Gates – argumentaram que não poderiam administrar uma “implantação global” sem a ajuda de uma grande indústria farmacêutica. A universidade inicialmente entrou em negociações com a gigante farmacêutica americana Merck, antes de finalmente assinar com a AstraZeneca em abril de 2020. O negócio firmado envolve uma licença completa para produzir e vender a vacina em troca de 90 milhões de dólares e 6% de participação nos royalties futuros, que, segundo a universidade, serão reinvestidos em pesquisas médicas. A Vaccitech Ltd, uma empresa privada derivada cujos diretores incluem os professores Gilbert e Hill, receberá 24% da receita da universidade. 

Quanto subsídio público eles receberam?

BioNTech / Pfizer: 465 milhões de euros (cerca de 550 milhões de dólares). A pesquisa foi financiada de forma privada, mas receberam um empréstimo de desenvolvimento de 100 milhões de euros do Banco Europeu de Investimento e uma doação de 365 milhões de euros do governo alemão para ajudar na manufatura. 

Oxford / AstraZeneca: cerca de 1,3 bilhões de dólares. A vacina veio de uma pesquisa de longo prazo na Universidade de Oxford, financiada pelo governo do Reino Unido e diversas outras fontes. O governo contribuiu com mais de 87 milhões de libras esterlinas para desenvolver a nova vacina no início de 2020. Os EUA adicionaram 1,2 bilhões de dólares a mais como parte de sua “Operação Warp Speed”. 

Moderna: mais de 955 milhões de dólares. O financiamento do governo dos EUA incluiu: uma quantia não divulgada para os testes da Fase 1 em março de 2020; 483 milhões de dólares em abril para Fase 2 e o início dos testes da Fase 3; e outros 472 milhões de dólares para expandir os testes de fase 3 em julho. A Moderna também recebeu uma doação de 1 milhão de dólares de Dolly Parton. 

Além desses subsídios para pesquisa, as empresas receberam enormes encomendas de governos antes mesmo de suas vacinas serem aprovadas para uso. O governo dos Estados Unidos, por exemplo, fez pré-encomendas massivas, de 1,95 e 1,53 bilhões de dólares das vacinas da BioNTech / Pfizer e Moderna por meio de sua chamada “Operação Warp Speed”. 

Quem receberá o dinheiro? 

Pfizer / BioNTech: Os lucros são divididos igualmente entre as duas empresas. Os acionistas receberão “dividendos” – dinheiro pago a partir dos lucros das empresas. Os principais acionistas da Pfizer são fundos de investimento globais: especialmente Vanguard Group (7,6%), State Street Global Advisors (5%) e BlackRock (4,9%). Administrado por algumas das pessoas mais ricas e poderosas do mundo, como o CEO da Blackrock, Larry Fink, estes três fundos controlam aproximadamente 20 trilhões de dólares dos ativos mundiais. Enquanto isso, o CEO da Pfizer, Albert Bourla, ganhou as manchetes vendendo 4,2 milhões de libras esterlinas em ações da Pfizer no dia em que anunciou que sua vacina funcionava. 

A BioNTech é geralmente apresentada como uma história de sucesso da pobreza à riqueza para dois médicos imigrantes, o casal Uğur Şahin e Özlem Türeci. A vacina os tornou bilionários. Mas os principais proprietários da empresa, que detinham cerca de 50% no ano passado, são os gêmeos investidores em biotecnologia Thomas e Andreas Struengmann. Eles ganharam seus primeiros bilhões com a empresa de medicamentos genéricos Hexal, que fundaram na década de 1980 e depois venderam para a Novartis em 2005. 

Moderna: Os acionistas incluem o presidente Noubar Afeyan (14% de participação no início da pandemia), o CEO Stéphane Bancel (9%) e os professores Timothy Springer (Harvard) e Robert Langer (MIT) – que, de repente, passaram de diretores de uma empresa deficitária a multimilionários. As ações da Moderna aumentaram enormemente de valor durante a pandemia e Bancel, em particular, vendeu parte de suas participações da empresa nos últimos meses, arrecadando milhões em dinheiro. A Moderna passou a ser listada na bolsa de valores em 2018; seu maior investidor institucional é o fundo de investimento escocês Baillie Gifford, que tem em torno de 11% das ações. As gigantes americanas Vanguard e BlackRock vêm em seguida, com 5,7% e 4,1% cada. Um mistério ainda não claramente respondido sobre a vacina Moderna é se algum dinheiro vai voltar para o governo dos EUA, que a “co-desenvolveu” e financiou. 

Oxford / AstraZeneca: AstraZeneca, com sede em Londres, é uma megacorporação global pertencente aos mesmos grandes fundos de investimento da Pfizer e outros. No final de 2020, seus três maiores proprietários eram BlackRock (7,5%), Wellington Management (5,2%) e Capital Group (4,3%). De acordo com o Wall Street Journal, a Universidade de Oxford receberá 6% dos pagamentos futuros de royalties. 24% deles serão repassados ​​para a Vaccitech Ltd, uma empresa privada derivada cujos diretores incluem os pesquisadores de vacinas, professores Gilbert e Hill. Cada um deles possui cerca de 5% das ações da Vaccitech. O principal acionista (46%) é uma empresa de investimentos chamada Oxford Sciences Innovation (OSI), criada pela universidade para canalizar capital para seus negócios derivados. A OSI tem vários acionistas além da própria universidade – incluindo Google Ventures, Huawei, a empresa farmacêutica chinesa Fosum (que também possui ações da Moderna), o sultanato de Omã, bem como bancos e fundos de private equity. 

Poderia ter sido diferente? 

A pesquisa inicial que sequenciou o genoma COVID-19 e deu início à corrida das vacinas foi publicada com código aberto, de uso gratuito para todos. Imagine se a pesquisa de vacinas também fosse publicada abertamente e sem patentes, para que todos os fabricantes, inclusive no sul global, pudessem produzir o que necessitam a preço de custo? Haveria, claro, ainda outros problemas, como a escassez de material para a produção dos imunizantes. Mas como afirmou Yuanqiong Hu, conselheiro na área legal e de políticas da MSF, não é uma questão de “ou / ou”, mas de “E/ E”. “Os governos precisam de um pacote completo de kits de ferramentas, incluindo acordos de transferência de tecnologia e medidas legais, como a proibição de patentes”. 

As três vacinas analisadas aqui poderiam também, ao menos, ter processos de produção um pouco mais parecidos com os que os fabricantes chineses e russos fizeram com suas respectivas vacinas, a Sinovac e a Sputnik V, que tiveram compartilhados seu licenciamento, “know-how” e sua tecnologia com diferentes países. É o caso do Brasil (via Instituto Butantan), Turquia e Indonésia, que estão produzindo a Sinovac em processo de colaboração, assim como nos Emirados Árabes Unidos, onde a Sinopharm (produtora da vacina chinesa) montou uma grande unidade para atender não só o país árabe mas diversos países aliados na região. Já a vacina russa tem acordos de produção com pelo menos cinco empresas farmacêuticas diferentes na Índia para fornecer algo como 500 milhões de doses este ano, assim como acordos semelhantes com a Coréia do Sul e outros locais. 

Vale ressaltar, entretanto, que estamos ainda falando de capitalismo; as empresas destes países adotam estratégias mais flexíveis para a celebração de acordos, mas ainda com cifras de milhões e propriedades intelectuais. O governo do Estado de São Paulo, por exemplo, comprou 46 milhões de doses da Sinovac por 90 milhões de dólares, um valor que é 10 vezes menor do que os Estados Unidos estão pagando para a Pfizer/Biotech e Moderna. 

Por fim, os governos poderiam usar de sua atribuição de representar o interesse público para organizar esforços de fato coletivos contra um inimigo comum que é mundial. Trata-se de um jogo onde a vitória só é completa quando todos ganham e onde o preço de perder é a morte. Diante disso, o simples fato destes governos não estarem articulando uma vasta rede de cooperação internacional também pode ser considerado um crime. Especialmente aqueles em que, além de não fazer o que como representantes de interesse público se esperaria, ainda atrapalham; caso hoje do Brasil, pária mundial, incentivador de tratamento preventivo não comprovado e boicotador de ações que já demonstraram funcionar, como os Lockdows e o uso de máscaras seguras.

Algumas leituras adicionais:

_ Bad Pharma – Ben Goldacre. Um levantamento muito detalhado da má prática da indústria farmacêutica, particularmente olhando para a questão de quem os resultados dos testes são sistematicamente manipulados.

_ Pharma – Gerald Posner (2020). Uma história jornalística da indústria farmacêutica (principalmente dos EUA) e seus crimes.

_ relatório do Accountability Office do governo americano (2017) sobre a indústria farmacêutica dos EUA oferece uma visão geral útil das principais questões.

_ Pacientes por Drogas Acessíveis – grupo de campanha dos EUA

_ Corporate Europe Observatory – relatórios sobre a política da indústria farmacêutica na Europa

_ Campanha Vacinas Para Todos (Portugal);

_ Lab Procomum sobre a quebra de patentes;

_ Campanha Vacina para todas e “Todos pelas Vacinas” (Brasil);

* Diferente do restante do conteúdo do BaixaCultura, o texto abaixo está licenciado em CC BY NC; esta é a licença do conteúdo do site Corporate Watch.

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Quebrar patentes e liberar o conhecimento na pandemia https://baixacultura.org/2021/01/20/quebrar-patentes-e-liberar-o-conhecimento-na-pandemia/ https://baixacultura.org/2021/01/20/quebrar-patentes-e-liberar-o-conhecimento-na-pandemia/#comments Wed, 20 Jan 2021 11:57:52 +0000 https://baixacultura.org/?p=13357

Estamos chegando a quase um ano de pandemia e uma pergunta ainda não foi respondida: por que não estamos discutindo intensamente a quebra compulsória de patentes para as vacinas contra a covid-19? Por que não estamos falando de flexibilização de direitos de propriedade intelectual em equipamentos/produtos que auxiliam o combate à pandemia ou ao acesso à literatura acadêmica que possibilita o avanço de pesquisas científicas que estudem o novo coronavírus e suas implicações? 

A quebra de patentes poderia possibilitar a produção descentralizada das vacinas e desmistificar seu processo de produção, uma vez que seu código é aberto e pode ser visto e remixado por qualquer um*. Poderia, também, dar um impulso à produção de produtos como ventiladores, máscaras e equipamentos de proteção usados na prevenção e no tratamento da covid-19. Já a flexibilização de licenças de direito autoral na produção de conhecimento espalharia a informação científica, especialmente para aquelas pessoas – notadamente pesquisadoras/es do Sul Global – que têm menos possibilidade de pagar por acesso a livros e revistas científicas caras.

Cabe dizer que, se não estamos discutindo como deveríamos, há algumas ações. Já falamos em nossa newsletter que o Creative Commons puxou uma proposta global de liberar as patentes das tecnologias e medicamentos ligados ao tratamento da Covid, chamada Open Covid Pledge, que já obteve bons resultados no licenciamento aberto de produtos.

Mas duas situações recentes sugerem que, mesmo em uma pandemia, o lucro ainda parece prevalecer ante à saúde da população e o livre acesso ao conhecimento.

Quebra de patentes durante a pandemia

Em setembro de 2020, a Organização Mundial do Comércio (OMC) debateu uma proposta da Índia e África do Sul, depois apoiada pela China, sobre a quebra temporária das patentes de todas as tecnologias de saúde necessárias ao enfrentamento da pandemia. O argumento foi o que nos soa óbvio: deve prevalecer a proteção da saúde da população durante uma pandemia e de que o conhecimento envolvendo o combate à doença deve circular, e não ficar preso em propriedades intelectuais. Nas palavras de Mustaqeem De Gama, conselheiro da Missão Permanente da África do Sul (chamada MSF) junto à OMC, que ajudou a redigir a proposta: “O que essa proposta de renúncia faz é abrir espaço para mais colaboração, para transferência de tecnologia e para que mais produtores venham para garantir que tenhamos escalabilidade em um período de tempo muito mais curto”.

Dezenas de países de renda baixa e média (em inglês, Low-income and middle-income countries LMICs) apoiam a proposta. Mas o Brasil – que já foi vanguarda nessa discussão com a quebra de patentes dos medicamentos contra a AIDS, em 2001, com o então ministro da Saúde José Serra – e alguns países ditos desenvolvidos não. Reino Unido, Estados Unidos, Canadá, Noruega e a União Européia rejeitaram a proposta argumentando que o sistema de propriedade intelectual é necessário para incentivar novas invenções de vacinas, diagnósticos e tratamentos, que podem secar em sua ausência. Eles negaram a alegação de que a propriedade intelectual é uma barreira ao acesso dizendo que o acesso igualitário pode ser alcançado por meio de licenciamento voluntário, acordos de transferência de tecnologia e um compromisso assumido perante o mercado (!) por financiadores ou doadores para vacinas. Para estes países, quebra de patentes é a abordagem errada para a produção de vacinas porque vacinas “são produtos biológicos complexos em que as principais barreiras são as instalações de produção, a infraestrutura e o know-how, não a propriedade intelectual”, afirmou o norueguês John-Arne Røttingen, que preside a Solidarity Trial of COVID-19 treatments, iniciativa que ajuda a encontrar um tratamento eficaz para COVID-19, lançado pela Organização Mundial da Saúde e parceiros.

Em uma das duas reuniões na OMC no fim do ano passado, um porta-voz da União Europeia disse: “não há evidências de que os direitos de propriedade intelectual dificultam o acesso a medicamentos e tecnologias relacionadas ao COVID-19”. Na mesma ocasião, o governo do Reino Unido declarou: “o mundo precisa urgentemente de acesso a esses novos produtos para combater a pandemia, razão pela qual um sistema de propriedade multilateral forte e robusto que possa enfrentar esse desafio é vital”. Reino Unido e União Européia são dois dos maiores financiadores do COVAX (The COVID-19 Vaccines Global Access Facility), iniciativa de colaboração global que apoia a pesquisa e o desenvolvimento de novas vacinas, com investimentos e negociação de preços com empresas farmacêuticas. A meta da COVAX é ter 2 bilhões de doses para distribuir até o final de 2021, o que deve ser suficiente para ajudar os países (membros e doadores) a vacinar 20% de suas populações. Para os países que ficam de fora, a meta mal chega a 3% da população, segundo informação do The Conversation.

A argumentação técnica de que as vacinas são complexas demais para se produzir e quebrar as patentes não ajudaria esconde preconceito e perversidade. É lógico que produzir uma vacina é um processo custoso, que envolve muitas informações, processos e amostras biológicas, linhas de células ou bactérias, que, para serem comprovadas pelas agências reguladoras científicas, precisam ser testadas em diferentes situações com bons resultados, como a ciência nos ensina desde o século XIX. Mas, em se tratando de uma pandemia que já chegou a casa do milhão de mortes, qual o problema de também se quebrar patentes? Liberar a patente não vai fazer com que qualquer um produza vacinas; os mesmos critérios de validação da ciência também valem sem patentes, assim como também vale sem patentes a fiscalização das agências reguladoras como a brasileira Anvisa, por exemplo. Como afirmou Yuanqiong Hu, conselheiro na área legal e de políticas da MSF, não é uma questão de “ou / ou”, mas de “E/ E”. “Os governos precisam de um pacote completo de kits de ferramentas, incluindo acordos de transferência de tecnologia e medidas legais, como a proibição de patentes”. 

Vale lembrar também que, segundo as regras internacionais da OMC chamadas TRIPS (sigla em inglês para “Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio”), a possibilidade da quebra de patentes é restrita aos países em desenvolvimento – em anos anteriores, as regras do tratado foram usadas inclusive pelo Brasil, como mostra esse artigo científico de 2020 no Journal of International Business Policy. Portanto, a quebra de patentes ainda não afetaria tanto o lucro das farmacêuticas, em sua maior parte obtido na venda de produtos para os Estados Unidos e a União Européia, como exemplifica esse gráfico das receitas da Pfizer, uma das principais empresas mundiais na área.

Em defesa pela quebra de patentes, a missão liderada pela África do Sul e a Índia na OMC trouxe exemplos de como a propriedade intelectual tem criado barreiras ao acesso a medicamentos e à vacinas no mundo. Citou a batalha legal na Índia entre Médicos Sem Fronteiras e Pfizer sobre sua vacina pneumocócica, onde uma patente bloqueou o desenvolvimento de versões alternativas do imunizante. Na Coréia do Sul, a Pfizer processou a SK Bioscience, que havia desenvolvido uma vacina pneumocócica conjugada, forçando o desenvolvedor coreano a encerrar a produção de PCV-13. A missão sul-africana/indiana argumentou ainda, segundo o artigo de Ann Danaiya Usher  no periódico Lancet, que uma situação semelhante surgirá com as vacinas contra a COVID-19, a menos que sejam tomadas medidas para lidar com as barreiras de propriedade intelectual. Pode ocorrer também outro problema ainda mais grave:  não ter vacinas para todos, como o representante indiano na OMC falou em reunião fechada nesta última semana, principalmente devido à falta de imunizantes, componente essencial da vacina e que poderia ser produzido em diferentes lugares se houvesse a quebra de patentes.

Embora a missão não tenha tido sucesso ainda, há a expectativa de levar a questão ao Conselho Geral da OMC e estimular um debate mais amplo sobre questões de saúde pública. Como afirma o conselheiro da missão, Mustageem De Gama: “Percebemos que essa renúncia [da discussão] não é uma bala de prata. A COVID provou que o sistema de propriedade intelectual não funciona. Não foi projetado para lidar com pandemias. Tenho esperanças que isso nos colocará no caminho para falar sobre como reformar o sistema de propriedade intelectual para reagir às necessidades das pessoas dos países membros. Porque esta não é a única pandemia que enfrentaremos.”

Fechamento do conhecimento científico sobre a covid-19

A segunda situação ocorreu no final de 2020. No dia 21 de dezembro, as editoras científicas Elsevier, Wiley e American Chemical Society ajuizaram uma ação na Alta Corte de Nova Déli, na Índia, pedindo que os provedores de internet bloqueassem o Sci-Hub e a Libgen, sites que disponibilizam livremente o acesso a livros e artigos acadêmicos protegidos por paywall. A acusação era de que as plataformas violavam os direitos autorais em grande escala e que, devido à natureza das plataformas (conhecidas como “Pirate Bay da Ciência”), o bloqueio de acesso pelos provedores de internet seria a única solução eficaz disponível. Segundo informações do Torrent Freak, a ação, de 2.169 páginas, foi recebida pelo Sci-Hub, que, com pouquíssimo tempo para a avaliação, solicitou uma prorrogação, garantindo ao tribunal (pdf) que “nenhum novo artigo ou publicação, em que os demandantes têm direitos autorais, seria inserido”. O juiz presidente da Corte ouviu os apelos e concordou que um atraso para permitir uma análise mais detalhada seria apropriado. Com mais tempo para responder, o Sci-Hub começou uma campanha para angariar apoio entre pesquisadores, acadêmicos e cientistas – entre eles a Breakthrough Science Society, organização científica indiana, que manifestou apoio em uma nota pública que denuncia o jeito de operar de editoras acadêmicas como a Elsevier: 

“Editores internacionais (como a Elsevier) criaram um modelo de negócios no qual tratam o conhecimento criado por pesquisas acadêmicas financiadas pelo dinheiro dos contribuintes como sua propriedade privada. Aqueles que produzem esse conhecimento – os autores e revisores de artigos de pesquisa – não são pagos e, ainda assim, essas editoras ganham bilhões de dólares com a venda de assinaturas para bibliotecas em todo o mundo a taxas exorbitantemente infladas que a maioria das bibliotecas institucionais na Índia, e até mesmo em países desenvolvidos, não podem pagar. Sem uma assinatura, um pesquisador tem que pagar entre US$ 30 e US$ 50 para fazer o download de cada artigo, o que a maioria dos pesquisadores indianos não pode pagar. Em vez de facilitar o fluxo de informações de pesquisa, essas empresas o estão restringindo.”

Como disse Alexandre Abdo, pesquisador no laboratório LISIS-IFRIS em Paris e facilitador da rede Ciência Aberta, as editoras Elsevier, Wiley e a American Chemical Society decidiram que o meio da pandemia de Covid-19 é o momento acertado para entrar com uma ação para bloquear o Sci-Hub num país pobre e vulnerável. O agravante vem em vários sentidos pois, segundo Abdo, “cientistas precisam de acesso à literatura mais do que nunca para lidar com a crise; médicos nem se fala, e a maioria das instituições de saúde não tem como pagar acesso; muitos pesquisadores estão em home-office, de forma que mesmo quem teria acesso pela universidade está com esse acesso dificultado, se não impossibilitado; grandes números de grupos cidadãos mobilizados para contribuir aos esforços científicos dependem do Sci-Hub; para não falar de cidadãos buscando se manterem informados e melhor combater falsidades”.

O Twitter do Sci-Hub, com mais de 187 mil seguidores, estava sendo usada pela criadora do site, Alexandra Elbakyan, para receber declarações de apoio da comunidade científica para o processo contra as editoras. Mas, no dia 8 de janeiro deste 2021, a rede social suspendeu a conta do Sci-Hub. O motivo está relacionado à “política de falsificação” do Twitter, uma verdadeira caixa-preta: não lista nenhum pedido de remoção concreto, mas simplesmente menciona a violação da política e o fato de que sua decisão não pode ser apelada. “Sua conta foi permanentemente suspensa devido a uma violação das políticas do Twitter, em particular a “Counterfeit policy” [Política de falsificação].Esta decisão não está sujeita a apelação”, escreveu o Twitter para a Sci-Hub, segundo o Torrent Freak. Vale lembrar que, nessa mesma semana, o Twitter também suspendeu a conta de Donald Trump, por incitar violência nos protestos do Capitólio – depois de anos de mentiras espalhadas e violação sistemática dos Termos de Conduta da plataforma

Voltamos às perguntas que abrem esse texto: Por que não estamos discutindo a quebra compulsória de patentes para as vacinas contra a covid-19? Por que não falamos da flexibilização de direitos de propriedade intelectual ou do livre e amplo acesso ao conhecimento em meio a pandemia? 

A primeira resposta que surge a ambas é até óbvia: porque não interessa aos países desenvolvidos e à indústria farmacêutica, que vão lucrar muito com as vacinas – seja em iniciativas de aceleração como a COVAX ou em vendas à países mais pobres do sul global. As editoras científicas predatórias como a Elsevier também vão lucrar (já estão) com a produção acadêmica global, potencializada pelo desejo coletivo de buscar entender melhor esse micro ser tão mortal. Como sabemos, a desigualdade social, política, econômica, informacional é um projeto que se perpetua porque poucos enriquecem ao custo da exploração de muitos, e aqui está mais um exemplo cristalino, caso algum lapso de otimismo nos faça esquecer de como funciona o capitalismo. 

A segunda resposta não é tão óbvia. Desde sua invenção, no século XVIII, a partir dos primeiros copyrights ingleses e dos direitos de autor francês, a propriedade intelectual se consolidou de tal forma que hoje, três séculos depois, ela se parece ter se transformado no único sistema de mediação de posse legal entre o ser humano e suas invenções. Naturalizamos a tal ponto a existência de uma propriedade intelectual que temos dificuldade de imaginar possibilidades que não sejam dentro da propriedade. O fato de pouco falarmos sobre alternativas (ou de suspensão) da propriedade intelectual em meio à pandemia indica uma derrota como humanidade: aceitamos o pensamento dominante de que, de fato, o direito de quem produz as vacinas é maior do que o acesso a ela; que quem faz algo complexo como uma vacina deve, em primeiro lugar, receber pelo trabalho, e só em segundo lugar, o acesso a este produto deve ser público e gratuito, amplo e irrestrito. Que o direito à propriedade é maior que o direito à vida.

O fracasso das tentativas de discutirmos, como opção real e coletiva, a suspensão completa da propriedade intelectual de produtos de claro benefício coletivo como as vacinas parece ser também reflexo da aceitação desse destino do fim (do mundo, não do capitalismo informacional do século XXI). Diz muito também sobre nossas escolhas destrutivas enquanto humanidade. Se, como afirmou Franco Berardi “Bifo” em entrevista ao The Intercept Brasil, “ou fundamos uma nova sociedade ou acabaremos com a espécie humana”, parece mais claro, depois da pandemia do novo coronavírus, que essa sociedade só será possível se não existir propriedade intelectual.

 

Leonardo Foletto

[Com informações e colaboração de The Lancet, InternetLab, Ciência Aberta, Alexandre Abdo, André Houang, Elias Maroso e Tatiana Dias]

*O texto da patente é, a princípio, acessível num registro de patentes. O que a quebra permitiria é o uso efetivo, a adaptação e o aprimoramento, além da produção por um número maior de atores.

 

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A batalha entre propriedade intelectual e cultura livre https://baixacultura.org/2011/02/24/a-batalha-entre-propriedade-intelectual-e-cultura-livre/ https://baixacultura.org/2011/02/24/a-batalha-entre-propriedade-intelectual-e-cultura-livre/#comments Thu, 24 Feb 2011 14:08:06 +0000 https://baixacultura.org/?p=4440 

Depois de duas monografias, a primeira dissertação da nossa biblioteca foi colocada hoje. Trata-se de “Distúrbios da Era Informacional: os conflitos entre a propriedade intelectual e a cultura livre”, do sociólogo e mestre em ciências sociais pela PUC-SP Luis Eduardo Tavares, nascido e criado paulistano.

Como o título prenuncia, a pesquisa faz um balanço de atores (Free Software Foundation, Pirate Bay, Partido Pirata) e conceitos (cultura digital, commons, mídia tática, ética hacker, capitalismo informacional) da cultura livre atual e destaca a grande batalha dos nossos tempos que dá título à esse post.

Assim como nas monografias anteriores, convidamos o responsável pela pesquisa – no caso, Luís – para escrever sobre sua dissertação, e é esse texto que tu vai ler abaixo. Agradecemos a contribuição do sociólogo, que não satisfeito em falar sobre sua pesquisa fez uma interessente contextualização do seu tema de pesquisa com a atualidade desse 2011 já movimentado, de MinC à Egito, passando pelo Hadopi francês e pela Sinde recentemente aprovada na Espanha – e da qual, por sinal, falemos mais em breve. Ao fim do texto, a dissertação de Luís na íntegra.

Segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011, ADENTRAMOS NA SEGUNDA DÉCADA DO SÉCULO XXI! Diversos eventos que hoje presenciamos me fazem achar esse momento profundamente interessante e acredito que os leitores deste blog compartilham desta opinião, já que a temática aqui abordada é parte destes eventos a que me refiro. Vejamos uma rápida retrospectiva panorâmica apenas do final do ano passado para cá:

O que há de comum entre estes diferentes acontecimentos e porque eles tornam o momento em que vivemos interessante? Todos eles apontam para uma das questões mais cruciais do nosso tempo, as tensões entre as possibilidades da livre circulação da informação, criadas pelas tecnologias digitais, e as tentativas, por parte dos poderes, de privatizá-las e bloqueá-las. A importância dessas tensões reside no fato de que a informação é o elemento central da economia capitalista na sua etapa informacional. Por isso, elas expressam confrontos entre formas de rupturas e continuidades da ordem existente, entre a racionalidade dominante e racionalidades alternativas.

São estas tensões e como elas revelam importantes características do nosso tempo que constituem o tema de minha dissertação de mestrado pelo programa de pós-graduação em ciências sociais da PUC-SP, defendida em 17 de junho de 2010. A presente dissertação, intitulada “Distúrbios da Era Informacional: os conflitos entre a propriedade intelectual e a cultura livre”, postada aqui neste espaço, foi orientada pelo professor Miguel Chaia, do departamento de ciências políticas e coordenador do NEAMP – Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política. Na banca de defesa, estiveram presentes os professores Ladislau Dowbor, da casa, e Cláudio Penteado, convidado da UFABC.

De forma geral e a luz dos recente acontecimentos que não puderam ser abordados na dissertação, mas que corroboram suas conclusões, apresento abaixo um sintético resumo do que diversos fatos e leituras de diferentes autores me levaram a afirmar sobre o que está em jogo nos dias atuais.

Em primeiro lugar, não se trata ainda do fim do capitalismo, embora esta possibilidade encontre aí uma brecha. Mas, trata-se, principalmente, de uma disputa no interior do capitalismo, entre atores estabelecidos e atores emergentes, gerada pela transição de uma economia do tipo industrial para uma do tipo informacional e a consequente atualização histórica de suas instituições. O que define esta transição é emergência de um novo marco tecnológico do qual participam um novo instrumento de produção (as tecnologias de informação e comunicação) e uma nova organização do trabalho (a produção colaborativa em rede).

O capitalismo informacional é a etapa do sistema produtivo caracterizado pela produção de bens informacionais, que são aqueles bens de ordem imaterial, ao mesmo tempo produtos e insumos dos circuitos de produção baseados na informação. Bens culturais, obras artísticas, conhecimentos científicos, saberes subjetivos e intersubjetivos e até códigos genéticos podem ser capturados por estes circuitos produtivos, convertidos em informação pela codificação digital, tornando-se bens informacionais agregadores de valores de uso e troca. A informação torna-se a principal força produtiva dessa economia e o mundo pode tornar-se um gigantesco banco de dados apropriado e monopolizado pelo capital.

No entanto, a informação impõe grandes dificuldades em ser tratada como uma mercadoria industrial. Primeiro, porque ela é abundante, isto é, o seu uso não diminui seu estoque, mas o potencializa. E segundo, porque sua fluidez e reprodutibilidade nas redes digitais se faz sem custos. Portanto, por sua abundância, fluidez e reprodutibilidade, o valor monetário dessa força produtiva tende a zero, instaurando uma nova situação na economia capitalista.

Além disso, a organização do trabalho em redes de produção colaborativas e descentralizadas, no lugar da linha de montagem e do parcelamento de tarefas taylor-fordistas, permite a todos que estejam conectados participarem do processo de produção e da inovação tecnológica que, dessa forma, atinge um ritmo muito mais acelerado. Para se desenvolver, a produção colaborativa requer o compartilhamento de sua força produtiva, isto é, que o conjunto de informações, conhecimentos e saberes dos agentes envolvidos, sejam considerados bens comuns (os commons).

Trata-se de um de uma reapropriação das tecnologias de produção pelos trabalhadores num movimento reverso ao que aconteceu no início do capitalismo, quando os trabalhadores foram separados dos instrumentos de trabalho e obrigados a se entregar aos desígnios do capital. Agora, esse trabalho da multidão engendra uma produção social que excede às demandas do capital e escapa ao seu controle. Ele não cessa de criar alternativas de compartilhamento dessa força produtiva, pressionando pela distensão ou mesmo pela quebra da propriedade intelectual.

Os atores hegemônicos, por sua vez, precisam impedir esses commons de informação, bloqueando a livre circulação e o compartilhamento dessa força produtiva, por meio da lei e de aparatos repressivos, donde destacam-se os dispositivos da propriedade intelectual (copyrights e patentes), como forma de gerar valor monetário por sua escassez artificial e, assim, manter os lucros e o poder. São os novos “enclousures”. Quando não capturadas, as práticas de compartilhamento da informação e as dinâmicas de produção colaborativas são jogadas na ilegalidade, como “pirataria”. Assim, a propriedade intelectual apresenta-se como um dispositivo de controle e monopólio, pelo capital, da criação e inovação tecnológica.

Não somente o capital hegemônico, mas também os regimes autoritários se vem ameaçados pelo compartilhamento da informação. Tanto as ditaduras quanto as democracias assentadas na apatia política dos cidadãos, como os EUA, precisam controlar a internet. O cidadão informado empodera-se e participa, exercendo controle sobre os governantes e não apenas sendo controlados por estes. Nesse sentido, o Wikileaks talvez represente para os governos o que o Napster, e hoje o Pirate Bay, representam para as indústrias do entretenimento. Uma frase da mensagem do grupo Anonymous divulgada no vídeo abaixo em 09 de dezembro de 2010, expressa bem estas questões:

[youtube=http://www.youtube.com/watch?v=WpwVfl3m32w&feature=player_embedded]

Internet é o último bastião da liberdade neste mundo tecnológico em constante evolução. Internet é capaz de conectar-nos a todos. Quando estamos conectados somos fortes. Quando somos fortes temos poder. Quando temos poder somos capazes de fazer o impossível. Por isso é que o governo está atuando sobre o Wikileaks. Isto é o que temem. Tem medo de nosso poder quando estamos unidos.

Estes conflitos não estão solucionados, mas um movimento crescente de atores se forma na sociedade civil em prol da livre circulação de informações e conhecimentos como um novo paradigma econômico que vai pouco a pouco gerando novas institucionalidades. Uma ética que aponta para novos modelos sociais está sendo forjada no dia-a-dia do trabalho colaborativo em rede. O movimento da Cultura Livre é sua maior expressão.

[scribd id=49473953 key=key-2hwmauctca9gzsvn1lh0 mode=list]

Créditos: 1,2.

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