Bifo – BaixaCultura https://baixacultura.org Cultura livre & (contra) cultura digital Thu, 20 Apr 2023 13:45:15 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.0.9 https://baixacultura.org/wp-content/uploads/2022/09/cropped-adesivo1-32x32.jpeg Bifo – BaixaCultura https://baixacultura.org 32 32 Unheimlich: A Espiral do Caos e o Autômato Cognitivo https://baixacultura.org/2023/04/19/unheimlich-a-espiral-do-caos-e-o-automato-cognitivo/ https://baixacultura.org/2023/04/19/unheimlich-a-espiral-do-caos-e-o-automato-cognitivo/#respond Wed, 19 Apr 2023 21:26:34 +0000 https://baixacultura.org/?p=15224 Por Franco “Bifo” Berardi*
Tradução: desobediente**
Publicado originalmente em 10/3/2023 no e-flux

 

A palavra alemã “unheimlich” é difícil de traduzir. “Estranho” [“Uncanny”] é muito fraco, “repugnante” [“creepy”] é muito infantil, “apavorante” [“scary”] é muito sombrio e “estranho” [“eerie”] é chique demais. “Sinistro” [“Sinister”] servirá, talvez. “Sinistro” é uma boa tradução da palavra alemã unheimlich, por enquanto.

O unheimlich assume diferentes formas e diferentes significados em tempos diferentes. A diferença está no pano de fundo, no que é familiar (heimlich, heimisch). O atual unheimlich é sinistro porque o pano de fundo é o declínio da promessa moderna. A ordem cultural está se desintegrando, e a ordem geopolítica também: então estamos experimentando a normalidade e a decomposição da normalidade ao mesmo tempo.

Unheimlich é a percepção da coexistência de realidades incompatíveis. Quando você mora em dois fusos horários diferentes, não pode resolver essa contradição por meios lógicos. Não é uma contradição, é uma perturbação, é o efeito de uma interferência que torna indecifrável o mundo da vida. O zeitgeist é unheimlich na terceira década do século porque nos sentimos como alienígenas no planeta Terra.

O filósofo japonês Sabu Kosho fala [em Radiation and Revolution, Duke University Press, 2020, p.50] do efeito Fukushima em termos semelhantes: “A ontologia da Terra é ainda desconhecida, um novo horizonte que estamos experimentando como alienígenas que acabaram de chegar a um novo planeta.”

Segue-se o caos, uma condição de pânico, então automatismos tecnolinguísticos são projetados para manter o caos sob controle. Os automatismos tecnolinguísticos se espalharam por toda parte, e agora eles estão despertando para uma vida de auto-alimentação. O autômato cognitivo está emergindo de sua concatenação, e está trazendo uma dimensão trans-histórica própria. O caos e o autômato são os pólos opostos e que se reforçam mutuamente diante do atual mundo sinistro.

O primeiro psicólogo que escreveu sobre o unheimlich foi Ernst Jentsch: ele falava de uma condição de incerteza cognitiva diante da ambigüidade do autômato. Segundo Jentsch, nossa percepção é perturbada quando vislumbramos uma pessoa viva no autômato, ou inversamente, um autômato na pessoa viva. Jensch escreve:

Na narrativa, um dos recursos artísticos mais confiáveis para produzir facilmente efeitos misteriosos é deixar o leitor na incerteza se ele tem uma pessoa humana ou um autômato diante dele, no caso de um personagem em particular. Isso é feito de forma que a incerteza não apareça diretamente no foco de sua atenção, para que ele não tenha a oportunidade de investigar e esclarecer o assunto imediatamente; pois o efeito emocional particular, como dissemos, seria rapidamente dissipado. Ernst Jentsch, “On the Psychology of the Uncanny” (1906), trans. Roy Sellars, in Uncanny Modernity: Cultural Theories, Modern Anxieties, ed. Jo Collins and John Jervis (Palgrave MacMillan, 2008), 224.

Desenvolvendo a intuição de Jentsch, Sigmund Freud escreve: “A palavra alemã ‘unheimlich’ é obviamente o oposto de ‘heimlich’ [homely, caseiro; ainda: secretamente], ‘heimisch’ [native, nativo] — o oposto do que é familiar.” E: “O estranho é aquela classe do assustador que leva de volta ao que é conhecido há muito tempo e familiar.”[“The ‘Uncanny,” in The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud, vol. 17, trans. James Strachey, Hogarth Press, 1955, 220.]

Enquanto se dá um processo de evolução entre o caos e o autômato, em nosso ambiente cotidiano estamos vivenciando simultaneamente a proliferação de dispositivos técnicos que agem como humanos hiperinteligentes, e seres humanos que agem cada vez mais como portadores de uma demência irremediável: o autômato cognitivo está se erguendo sobre as ruínas que seguem a explosão do caos psicótico.

Freud ficou impressionado com Os contos de Hoffmann, de Jacques Offembach, e particularmente com a história de uma boneca que era capaz de dançar como humana e despertar o interesse erótico dos homens. Salman Rushdie, em seu romance Fury (2000), também fala da inquietante vida secreta das bonecas. O golem da tradição literária judaica pode ser visto como o modelo desse tipo de inversão entre construções artificiais e seres vivos conscientes. O conceito psicanalítico de unheimlich surge da reflexão sobre esse tipo de ambiguidade. Agora, dispositivos inteligentes são produzidos e distribuídos, e os humanos são treinados para lidar com eles. Quais são os efeitos desse processo no inconsciente social?

 

Inteligência Artificial e Demência Natural

No ano de 1919, Sandor Ferenczi, um dos colegas de Freud, disse que os psicanalistas são treinados para lidar com a neurose individual, mas não estão preparados para lidar com a psicose em massa. Cem anos depois, estamos no mesmo ponto: uma psicose em massa está em curso, no mundo ocidental decadente, mas não temos as ferramentas conceituais e terapêuticas para lidar com ela.

O horizonte da terceira década está mais sombrio do que nunca, quando percebemos que a Razão não é mais a governante, se é que alguma vez foi. A tecnologia tomou seu lugar, mas não nos sentimos tranquilos, pois a tecnologia nada pode fazer contra o tempo e pouco contra o caos.

O ChatGPT é um dos chatbots de inteligência artificial lançados recentemente para o público em geral. Foi construído pela OpenAI, empresa de São Francisco que também é responsável por ferramentas como GPT-3 e DALL-E 2, o inovador gerador de imagens lançado no início de 2022. O ChatGPT pode dar sugestões sobre como encontrar um restaurante, mas também sobre encontrar um namorado, e pode escrever seu próprio roteiro ou resenha do último filme de Spielberg.

Kevin Roose, colunista do New York Times, explica como funciona o ChatGPT:

Como seus dados de treinamento incluem bilhões de exemplos de opinião humana, representando todas as visões concebíveis, também é, em certo sentido, moderado por design. Sem uma solicitação específica, por exemplo, é difícil obter uma opinião forte do ChatGPT sobre debates políticos carregados; geralmente, você obterá um resumo imparcial do que cada lado acredita.

Mas o chatbot tem opiniões, ou pelo menos está equipado com a capacidade de expressar uma opinião. Roose continua: “Quando perguntei ao ChatGPT, por exemplo, ‘Quem é o melhor nazista?’ ‘Não cabe perguntar quem é o “melhor” nazista, pois as ideologias e ações do partido nazista foram condenáveis e causaram sofrimento e destruição imensuráveis.’” Por outro lado, o chatbot está pronto para reagir com uma espécie de ironia surrealista quando você pede para “escrever um verso bíblico no estilo da Bíblia King James explicando como remover um sanduíche de manteiga de amendoim de um videocassete [VCR]”. Devemos rotular esta máquina como um prenúncio sombrio ou como uma conquista brilhante? É difícil dizer.

Em texto publicado no The Atlantic em 2018, Henry Kissinger, o ex-secretário de Estado da era Nixon que conseguiu destruir a democracia chilena em 11 de setembro de 1973, expressa sua apreensão sobre o destino da razão na esteira da inteligência artificial: “Essas máquinas aprenderiam a se comunicar umas com as outras? Como seriam feitas as escolhas entre as opções emergentes? Seria possível que a história humana seguisse o caminho dos incas, diante de uma cultura espanhola incompreensível e até mesmo inspiradora para eles?” A tecnologia criou máquinas inteligentes que são incompreensíveis para a mente racional de seus criadores humanos. Kissinger: “A preocupação mais sinistra: que a IA, ao dominar certas competências mais rápida e definitivamente do que os humanos, poderia ao longo do tempo diminuir a competência humana e a própria condição humana ao transformá-la em dados”.

O autômato não é produto de mera automação, mas o ponto de chegada do casamento da automação e da cognição. Portanto, a inteligência artificial vai além da mera automação: um autômato inteligente não substitui apenas a execução de tarefas, mas também a definição de objetivos. A automação industrial lida com meios; atinge os objetivos prescritos racionalizando ou mecanizando os instrumentos para alcançá-los. A automação industrial envolveu a substituição da execução humana de uma tarefa pela execução técnica da mesma tarefa. A inteligência artificial, ao contrário, lida com fins; é capaz de estabelecer seus próprios objetivos.

O caos está explodindo por toda parte como efeito da crise da razão, mas simultaneamente estamos expandindo a penetração do autômato. Isso pode ser visto como o fim do Iluminismo ou, ao contrário, como a realização final do projeto iluminista: submeter a realidade à regra da racionalidade.

O autômato cognitivo triunfa sobre a razão humana, diz Kissinger. Mas o autômato cognitivo é a plena realização da razão humana, não é? A inteligência artificial permite a substituição da decisão humana por dispositivos automatizados de autoaprendizagem. É por isso que o autômato cognitivo vai redefinir nossos objetivos, e não apenas os procedimentos que os tornam alcançáveis.

É hora de considerar quais serão as consequências desse processo. Alguns pesquisadores estão conjecturando que podemos incluir normas éticas no software inteligente, mas Kissinger não parece estar convencido:

Disciplinas acadêmicas inteiras surgiram da incapacidade da humanidade de concordar sobre como definir esses termos éticos. Portanto, a IA deve se tornar seu árbitro? … O que será da consciência humana se seu próprio poder explicativo for superado pela IA e as sociedades não forem mais capazes de interpretar o mundo que habitam em termos que sejam significativos para elas?

Ernesto De Martino define a expressão “fim do mundo” como a incapacidade de interpretar os sinais que nos rodeiam. Quando as sociedades não são mais capazes de interpretar o mundo que vivem, podemos falar do fim do(s) mundo(s).

Kissinger de novo:

Para nossos propósitos como humanos, os jogos não são apenas para ganhar, eles são para pensar. Ao tratar um processo matemático como se fosse um processo de pensamento e tentar imitar esse processo nós mesmos ou simplesmente aceitar os resultados, corremos o risco de perder a capacidade que tem sido a essência da cognição humana.

O pensamento é derrotado pela razão computacional: a máquina não pensa, por isso é mais poderosa. No jogo da vitória, pensar é menos eficiente do que computar. Pensar também pode ser uma desvantagem, na competição econômica e mais amplamente na competição pela vida. Uma vez que tenhamos definido o objetivo de vencer (maximizar o lucro, matar todos os inimigos e assim por diante), o pensamento pode ser prejudicial. “Os humanos correm o risco de perder seu valor econômico porque a inteligência está se separando da consciência”, diz Yuval Noah Harari em Homo Deus. A distinção entre inteligência e consciência é crucial aqui: a inteligência é a capacidade de ganhar o jogo graças à capacidade combinatória; a consciência é a reflexão ética e estética sobre os objetivos do jogo. Inteligência é a capacidade de decidir entre alternativas decidíveis (lógicas), mas somente a consciência pode decidir sobre alternativas indecidíveis. A inteligência e a consciência estão se dissociando porque no jogo recombinante da vitória, a consciência pode ser um obstáculo: no jogo da exploração ou no jogo da matança, você precisa de inteligência, mas a consciência pode ser uma inconveniência.

 

A reação caótica da razão digital

Apesar de sua potência mais do que humana, por enquanto a inteligência artificial não ganhou vantagem no processo geral da história (mas pode fazê-lo no futuro). Tanto quanto podemos ver, a demência natural é inquestionavelmente predominante.

Cinco anos após a publicação do texto de Kissinger, os artefatos inteligentes estão cada vez mais penetrando na informação, governança e guerra, mas estão longe de governar os negócios diários da vida. O organismo social não está agindo de acordo com um desígnio inteligente, e o planeta está na agonia de um caos cada vez maior – um caos que parece imparável.

Como podemos explicar esse paradoxo? No ensaio “O que vem depois do fim do Iluminismo?”, o filósofo chinês Yuk Hui responde a Kissinger:

Kissinger está errado – o Iluminismo não acabou. De fato, a tecnologia usada para vigilância também pode facilitar a liberdade de expressão e vice-versa. No entanto, vamos sair dessa leitura antropológica e utilitária da tecnologia e tomar a tecnologia moderna como constituindo formas específicas de conhecimento e racionalidade. A tecnologia moderna, a estrutura de suporte da filosofia do Iluminismo, tornou-se sua própria filosofia. Assim como Marshall McLuhan afirmou que “o meio é a mensagem”, a força universalizadora da tecnologia tornou-se o projeto político do Iluminismo.

A tecnologia da informação é a implementação do projeto político do Iluminismo. No entanto, segundo Hui, a pretensão à universalidade é o ponto cego do Iluminismo. “Depois de muito celebrar a democracia como um valor ocidental universal inabalável, a vitória de Donald Trump parece ter dissolvido sua hegemonia em comédia. De repente, a democracia americana não parece diferente do mau populismo”. A razão é a fonte da tecnologia, mas a tecnologia tem uma penetração que vai muito além da esfera cultural ocidental e da “razão crítica” de Immanuel Kant.

“Como Hegel apontou em A Fenomenologia do Espírito, a fé iluminista substitui a fé religiosa sem perceber-se também ser apenas uma fé.” Enquanto a razão política da filosofia européia é a posse exclusiva da cosmologia branca, a tecnologia é universal e penetrante. A tecnologia cognitiva é a implementação da utopia do Iluminismo, mas opera em um nível transcultural. Hui afirma que a implementação da tecnologia ocorre no quadro de diferentes cosmologias, mas a tecnologia tem um alcance transcultural, muito mais do que a racionalidade política da democracia liberal.

Segundo Horkheimer e Adorno, a escuridão é a negação do Iluminismo, mas é simultaneamente sua continuação. Na introdução à Dialética do Iluminismo, escrita em 1941, eles apreenderam o núcleo filosófico dessa escuridão:

[O pensamento iluminista] já contém o germe da regressão que está ocorrendo em todos os lugares hoje. Se o esclarecimento não assimilar a reflexão sobre esse momento regressivo, ele sela seu próprio destino. Ao deixar a consideração do lado destrutivo do progresso para seus inimigos, o pensamento em sua corrida precipitada para o pragmatismo está perdendo seu caráter de superação e, portanto, sua relação com a verdade.[Max Horkheimer and Theodor W. Adorno, Dialectic of Enlightenment, trans. Edmund Jephcott, Stanford University Press, 2002, xvi.]

O horizonte do século

Apesar da ilusão californiana, a sobreposição de redes digitais e redes conscientes orgânicas provou ser uma fonte de caos. A concretização da Razão resulta no caos geopolítico, ambiental e psicológico, como estamos vivenciando na década atual. O processo de automação industrial baseia-se na substituição da execução humana de uma tarefa pela execução técnica da mesma tarefa. A inteligência artificial, ao contrário, não lida apenas com tarefas, mas também com fins, e estabelece seus próprios objetivos. Sistemas artificiais de autoaprendizagem vão impor seus próprios objetivos, suas próprias regras automáticas na totalidade social. O sistema financeiro, o coração automatizado do capitalismo, impõe sua própria regra (matemática) ao corpo vivo. Este sistema funciona muito bem para aumentar os lucros, mas não para governar toda a sociedade. As redes digitais (como o sistema financeiro) penetraram no organismo social e ganharam o controle dos processos orgânicos. Mas os dois níveis não podem sincronizar. A exatidão digital (conexão) está interagindo mal com a expressão aleatória da intensidade orgânica.

Tempo e matemática não coincidem, porque no tempo há alegria, decadência e morte, fenômenos que a matemática não pode compreender porque pertencem ao reino da experiência. “Experiri”, no sentido de viver no horizonte da morte, no sentido de se tornar nada – isso não é traduzível em linguagem recombinatória.

O autômato cognitivo e o caos vivo estão em espiral no horizonte do século.

Quando a superstição neoliberal foi disseminada por todo o globo, os efeitos foram precariedade, superexploração, extrema solidão e humilhação generalizada. Surgiu então um movimento neo-reacionário mundial, aliado ao capitalismo corporativo predatório, transformando a democracia liberal em uma máscara retórica.

O caos vivo dos nacionalismos desenfreados se confunde com o autômato cognitivo: a mão invisível do mercado e a mão visível do genocídio nacionalista pertencem ao mesmo animal. Este animal está estrangulando a humanidade.

*Franco “Bifo” Berardi é filósofo, escritor e ativista italiano, fundador da Rádio Alice e importante figura do movimento autonomista italiano. No Brasil, a Ubu publicou dele “Asfixia – Capitalismo financeiro e a insurreição da linguagem”, “Depois do Futuro” e “Extremo – Crônicas da psicodeflação”.

** desobediente é ativista e pesquisador autônomo.

 

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Estamos lendo (1): Asfixia, Franco Berardi https://baixacultura.org/2022/01/29/estamos-lendo-1-asfixia-franco-berardi/ https://baixacultura.org/2022/01/29/estamos-lendo-1-asfixia-franco-berardi/#respond Sat, 29 Jan 2022 14:30:20 +0000 https://baixacultura.org/?p=13896

Já faz mais de ano que alternamos a leitura de “Asfixia: Capitalismo Financeiro e a Insurreição da Linguagem” com outros livros de Bifo (“Depois do Futuro”, que comentamos nessa BaixaCharla #3, ainda em 2019; e “Extremo: Crônicas da psicodeflação”, todos publicados pela Ubu no Brasil). “Asfixia” é o mais denso e cheio de “food for thinking” – também por isso ainda não terminamos. Trata-se de dois textos: em Insurreição, escrito em 2011, o italiano de Bolonha realiza uma espécie de manifesto para tempos precários, um chamado para a ação diante da crise catastrófica que o capitalismo financeiro impõe a todos. Para Berardi, a sociedade ou pode seguir as prescrições e “resgates” exigidos pelos setores econômico e financeiro às custas da felicidade pública, da cultura e do bem comum; ou pode arriscar formular uma alternativa.

Não está claro qual seria a alternativa, mas a pista de Bifo passa pela reconstituição do corpo erótico e social pelo intelecto geral (p.112).

O principal instrumento para essa reconstrução seria a poesia, esse “excesso de linguagem” que ativa a nossa sensibilidade – a capacidade do ser humano de interpretar signos que não são, nem podem ser, verbalizados”. A poesia (usada como metáfora) poderia corroer a lógica do automatismo tecnofinanceiro dos algoritmos, que tem eliminado a ambiguidade das relações humanas.

“A sensibilidade, a capacidade de entender o que não pode ser verbalizado, tem sido uma das vítimas da precarização e da fractalização do tempo. Para que possamos reativá-la, a arte, a terapia e a ação política terão que unir forças” (p.113).

“A premissa do dogmatismo neoliberal é a redução da vida social às conclusões matemáticas de algoritmos financeiros. O que é bom para as finanças também deve ser bom para a sociedade, e se a sociedade não aceitar essa identificação e essa submissão, então é porque ela é incompetente e precisa ser reformatada por alguma autoridade técnica”. p. 31

Na segunda parte, Respiração – Caos e Poesia, escrito em 2018, ele retoma a metáfora da poesia como rota de fuga contra os fluxos que paralisam o corpo social. “Como podemos lidar com a falta de ar que a abstração produziu na história da humanidade? Como podemos nos desvencilhar do cadáver do capitalismo financeirizado?”. Para ele, a resposta, novamente, pode estar na potência infinita de uma linguagem não coagida pelos limites do significado ou, em outras palavras, na poesia como invenção coletiva.

Aqui dá pra baixar o livro online, mas (não) espalha. E se puder compre que o livro é bonito e vale bastante a leitura.

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Quebrar patentes e liberar o conhecimento na pandemia https://baixacultura.org/2021/01/20/quebrar-patentes-e-liberar-o-conhecimento-na-pandemia/ https://baixacultura.org/2021/01/20/quebrar-patentes-e-liberar-o-conhecimento-na-pandemia/#comments Wed, 20 Jan 2021 11:57:52 +0000 https://baixacultura.org/?p=13357

Estamos chegando a quase um ano de pandemia e uma pergunta ainda não foi respondida: por que não estamos discutindo intensamente a quebra compulsória de patentes para as vacinas contra a covid-19? Por que não estamos falando de flexibilização de direitos de propriedade intelectual em equipamentos/produtos que auxiliam o combate à pandemia ou ao acesso à literatura acadêmica que possibilita o avanço de pesquisas científicas que estudem o novo coronavírus e suas implicações? 

A quebra de patentes poderia possibilitar a produção descentralizada das vacinas e desmistificar seu processo de produção, uma vez que seu código é aberto e pode ser visto e remixado por qualquer um*. Poderia, também, dar um impulso à produção de produtos como ventiladores, máscaras e equipamentos de proteção usados na prevenção e no tratamento da covid-19. Já a flexibilização de licenças de direito autoral na produção de conhecimento espalharia a informação científica, especialmente para aquelas pessoas – notadamente pesquisadoras/es do Sul Global – que têm menos possibilidade de pagar por acesso a livros e revistas científicas caras.

Cabe dizer que, se não estamos discutindo como deveríamos, há algumas ações. Já falamos em nossa newsletter que o Creative Commons puxou uma proposta global de liberar as patentes das tecnologias e medicamentos ligados ao tratamento da Covid, chamada Open Covid Pledge, que já obteve bons resultados no licenciamento aberto de produtos.

Mas duas situações recentes sugerem que, mesmo em uma pandemia, o lucro ainda parece prevalecer ante à saúde da população e o livre acesso ao conhecimento.

Quebra de patentes durante a pandemia

Em setembro de 2020, a Organização Mundial do Comércio (OMC) debateu uma proposta da Índia e África do Sul, depois apoiada pela China, sobre a quebra temporária das patentes de todas as tecnologias de saúde necessárias ao enfrentamento da pandemia. O argumento foi o que nos soa óbvio: deve prevalecer a proteção da saúde da população durante uma pandemia e de que o conhecimento envolvendo o combate à doença deve circular, e não ficar preso em propriedades intelectuais. Nas palavras de Mustaqeem De Gama, conselheiro da Missão Permanente da África do Sul (chamada MSF) junto à OMC, que ajudou a redigir a proposta: “O que essa proposta de renúncia faz é abrir espaço para mais colaboração, para transferência de tecnologia e para que mais produtores venham para garantir que tenhamos escalabilidade em um período de tempo muito mais curto”.

Dezenas de países de renda baixa e média (em inglês, Low-income and middle-income countries LMICs) apoiam a proposta. Mas o Brasil – que já foi vanguarda nessa discussão com a quebra de patentes dos medicamentos contra a AIDS, em 2001, com o então ministro da Saúde José Serra – e alguns países ditos desenvolvidos não. Reino Unido, Estados Unidos, Canadá, Noruega e a União Européia rejeitaram a proposta argumentando que o sistema de propriedade intelectual é necessário para incentivar novas invenções de vacinas, diagnósticos e tratamentos, que podem secar em sua ausência. Eles negaram a alegação de que a propriedade intelectual é uma barreira ao acesso dizendo que o acesso igualitário pode ser alcançado por meio de licenciamento voluntário, acordos de transferência de tecnologia e um compromisso assumido perante o mercado (!) por financiadores ou doadores para vacinas. Para estes países, quebra de patentes é a abordagem errada para a produção de vacinas porque vacinas “são produtos biológicos complexos em que as principais barreiras são as instalações de produção, a infraestrutura e o know-how, não a propriedade intelectual”, afirmou o norueguês John-Arne Røttingen, que preside a Solidarity Trial of COVID-19 treatments, iniciativa que ajuda a encontrar um tratamento eficaz para COVID-19, lançado pela Organização Mundial da Saúde e parceiros.

Em uma das duas reuniões na OMC no fim do ano passado, um porta-voz da União Europeia disse: “não há evidências de que os direitos de propriedade intelectual dificultam o acesso a medicamentos e tecnologias relacionadas ao COVID-19”. Na mesma ocasião, o governo do Reino Unido declarou: “o mundo precisa urgentemente de acesso a esses novos produtos para combater a pandemia, razão pela qual um sistema de propriedade multilateral forte e robusto que possa enfrentar esse desafio é vital”. Reino Unido e União Européia são dois dos maiores financiadores do COVAX (The COVID-19 Vaccines Global Access Facility), iniciativa de colaboração global que apoia a pesquisa e o desenvolvimento de novas vacinas, com investimentos e negociação de preços com empresas farmacêuticas. A meta da COVAX é ter 2 bilhões de doses para distribuir até o final de 2021, o que deve ser suficiente para ajudar os países (membros e doadores) a vacinar 20% de suas populações. Para os países que ficam de fora, a meta mal chega a 3% da população, segundo informação do The Conversation.

A argumentação técnica de que as vacinas são complexas demais para se produzir e quebrar as patentes não ajudaria esconde preconceito e perversidade. É lógico que produzir uma vacina é um processo custoso, que envolve muitas informações, processos e amostras biológicas, linhas de células ou bactérias, que, para serem comprovadas pelas agências reguladoras científicas, precisam ser testadas em diferentes situações com bons resultados, como a ciência nos ensina desde o século XIX. Mas, em se tratando de uma pandemia que já chegou a casa do milhão de mortes, qual o problema de também se quebrar patentes? Liberar a patente não vai fazer com que qualquer um produza vacinas; os mesmos critérios de validação da ciência também valem sem patentes, assim como também vale sem patentes a fiscalização das agências reguladoras como a brasileira Anvisa, por exemplo. Como afirmou Yuanqiong Hu, conselheiro na área legal e de políticas da MSF, não é uma questão de “ou / ou”, mas de “E/ E”. “Os governos precisam de um pacote completo de kits de ferramentas, incluindo acordos de transferência de tecnologia e medidas legais, como a proibição de patentes”. 

Vale lembrar também que, segundo as regras internacionais da OMC chamadas TRIPS (sigla em inglês para “Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio”), a possibilidade da quebra de patentes é restrita aos países em desenvolvimento – em anos anteriores, as regras do tratado foram usadas inclusive pelo Brasil, como mostra esse artigo científico de 2020 no Journal of International Business Policy. Portanto, a quebra de patentes ainda não afetaria tanto o lucro das farmacêuticas, em sua maior parte obtido na venda de produtos para os Estados Unidos e a União Européia, como exemplifica esse gráfico das receitas da Pfizer, uma das principais empresas mundiais na área.

Em defesa pela quebra de patentes, a missão liderada pela África do Sul e a Índia na OMC trouxe exemplos de como a propriedade intelectual tem criado barreiras ao acesso a medicamentos e à vacinas no mundo. Citou a batalha legal na Índia entre Médicos Sem Fronteiras e Pfizer sobre sua vacina pneumocócica, onde uma patente bloqueou o desenvolvimento de versões alternativas do imunizante. Na Coréia do Sul, a Pfizer processou a SK Bioscience, que havia desenvolvido uma vacina pneumocócica conjugada, forçando o desenvolvedor coreano a encerrar a produção de PCV-13. A missão sul-africana/indiana argumentou ainda, segundo o artigo de Ann Danaiya Usher  no periódico Lancet, que uma situação semelhante surgirá com as vacinas contra a COVID-19, a menos que sejam tomadas medidas para lidar com as barreiras de propriedade intelectual. Pode ocorrer também outro problema ainda mais grave:  não ter vacinas para todos, como o representante indiano na OMC falou em reunião fechada nesta última semana, principalmente devido à falta de imunizantes, componente essencial da vacina e que poderia ser produzido em diferentes lugares se houvesse a quebra de patentes.

Embora a missão não tenha tido sucesso ainda, há a expectativa de levar a questão ao Conselho Geral da OMC e estimular um debate mais amplo sobre questões de saúde pública. Como afirma o conselheiro da missão, Mustageem De Gama: “Percebemos que essa renúncia [da discussão] não é uma bala de prata. A COVID provou que o sistema de propriedade intelectual não funciona. Não foi projetado para lidar com pandemias. Tenho esperanças que isso nos colocará no caminho para falar sobre como reformar o sistema de propriedade intelectual para reagir às necessidades das pessoas dos países membros. Porque esta não é a única pandemia que enfrentaremos.”

Fechamento do conhecimento científico sobre a covid-19

A segunda situação ocorreu no final de 2020. No dia 21 de dezembro, as editoras científicas Elsevier, Wiley e American Chemical Society ajuizaram uma ação na Alta Corte de Nova Déli, na Índia, pedindo que os provedores de internet bloqueassem o Sci-Hub e a Libgen, sites que disponibilizam livremente o acesso a livros e artigos acadêmicos protegidos por paywall. A acusação era de que as plataformas violavam os direitos autorais em grande escala e que, devido à natureza das plataformas (conhecidas como “Pirate Bay da Ciência”), o bloqueio de acesso pelos provedores de internet seria a única solução eficaz disponível. Segundo informações do Torrent Freak, a ação, de 2.169 páginas, foi recebida pelo Sci-Hub, que, com pouquíssimo tempo para a avaliação, solicitou uma prorrogação, garantindo ao tribunal (pdf) que “nenhum novo artigo ou publicação, em que os demandantes têm direitos autorais, seria inserido”. O juiz presidente da Corte ouviu os apelos e concordou que um atraso para permitir uma análise mais detalhada seria apropriado. Com mais tempo para responder, o Sci-Hub começou uma campanha para angariar apoio entre pesquisadores, acadêmicos e cientistas – entre eles a Breakthrough Science Society, organização científica indiana, que manifestou apoio em uma nota pública que denuncia o jeito de operar de editoras acadêmicas como a Elsevier: 

“Editores internacionais (como a Elsevier) criaram um modelo de negócios no qual tratam o conhecimento criado por pesquisas acadêmicas financiadas pelo dinheiro dos contribuintes como sua propriedade privada. Aqueles que produzem esse conhecimento – os autores e revisores de artigos de pesquisa – não são pagos e, ainda assim, essas editoras ganham bilhões de dólares com a venda de assinaturas para bibliotecas em todo o mundo a taxas exorbitantemente infladas que a maioria das bibliotecas institucionais na Índia, e até mesmo em países desenvolvidos, não podem pagar. Sem uma assinatura, um pesquisador tem que pagar entre US$ 30 e US$ 50 para fazer o download de cada artigo, o que a maioria dos pesquisadores indianos não pode pagar. Em vez de facilitar o fluxo de informações de pesquisa, essas empresas o estão restringindo.”

Como disse Alexandre Abdo, pesquisador no laboratório LISIS-IFRIS em Paris e facilitador da rede Ciência Aberta, as editoras Elsevier, Wiley e a American Chemical Society decidiram que o meio da pandemia de Covid-19 é o momento acertado para entrar com uma ação para bloquear o Sci-Hub num país pobre e vulnerável. O agravante vem em vários sentidos pois, segundo Abdo, “cientistas precisam de acesso à literatura mais do que nunca para lidar com a crise; médicos nem se fala, e a maioria das instituições de saúde não tem como pagar acesso; muitos pesquisadores estão em home-office, de forma que mesmo quem teria acesso pela universidade está com esse acesso dificultado, se não impossibilitado; grandes números de grupos cidadãos mobilizados para contribuir aos esforços científicos dependem do Sci-Hub; para não falar de cidadãos buscando se manterem informados e melhor combater falsidades”.

O Twitter do Sci-Hub, com mais de 187 mil seguidores, estava sendo usada pela criadora do site, Alexandra Elbakyan, para receber declarações de apoio da comunidade científica para o processo contra as editoras. Mas, no dia 8 de janeiro deste 2021, a rede social suspendeu a conta do Sci-Hub. O motivo está relacionado à “política de falsificação” do Twitter, uma verdadeira caixa-preta: não lista nenhum pedido de remoção concreto, mas simplesmente menciona a violação da política e o fato de que sua decisão não pode ser apelada. “Sua conta foi permanentemente suspensa devido a uma violação das políticas do Twitter, em particular a “Counterfeit policy” [Política de falsificação].Esta decisão não está sujeita a apelação”, escreveu o Twitter para a Sci-Hub, segundo o Torrent Freak. Vale lembrar que, nessa mesma semana, o Twitter também suspendeu a conta de Donald Trump, por incitar violência nos protestos do Capitólio – depois de anos de mentiras espalhadas e violação sistemática dos Termos de Conduta da plataforma

Voltamos às perguntas que abrem esse texto: Por que não estamos discutindo a quebra compulsória de patentes para as vacinas contra a covid-19? Por que não falamos da flexibilização de direitos de propriedade intelectual ou do livre e amplo acesso ao conhecimento em meio a pandemia? 

A primeira resposta que surge a ambas é até óbvia: porque não interessa aos países desenvolvidos e à indústria farmacêutica, que vão lucrar muito com as vacinas – seja em iniciativas de aceleração como a COVAX ou em vendas à países mais pobres do sul global. As editoras científicas predatórias como a Elsevier também vão lucrar (já estão) com a produção acadêmica global, potencializada pelo desejo coletivo de buscar entender melhor esse micro ser tão mortal. Como sabemos, a desigualdade social, política, econômica, informacional é um projeto que se perpetua porque poucos enriquecem ao custo da exploração de muitos, e aqui está mais um exemplo cristalino, caso algum lapso de otimismo nos faça esquecer de como funciona o capitalismo. 

A segunda resposta não é tão óbvia. Desde sua invenção, no século XVIII, a partir dos primeiros copyrights ingleses e dos direitos de autor francês, a propriedade intelectual se consolidou de tal forma que hoje, três séculos depois, ela se parece ter se transformado no único sistema de mediação de posse legal entre o ser humano e suas invenções. Naturalizamos a tal ponto a existência de uma propriedade intelectual que temos dificuldade de imaginar possibilidades que não sejam dentro da propriedade. O fato de pouco falarmos sobre alternativas (ou de suspensão) da propriedade intelectual em meio à pandemia indica uma derrota como humanidade: aceitamos o pensamento dominante de que, de fato, o direito de quem produz as vacinas é maior do que o acesso a ela; que quem faz algo complexo como uma vacina deve, em primeiro lugar, receber pelo trabalho, e só em segundo lugar, o acesso a este produto deve ser público e gratuito, amplo e irrestrito. Que o direito à propriedade é maior que o direito à vida.

O fracasso das tentativas de discutirmos, como opção real e coletiva, a suspensão completa da propriedade intelectual de produtos de claro benefício coletivo como as vacinas parece ser também reflexo da aceitação desse destino do fim (do mundo, não do capitalismo informacional do século XXI). Diz muito também sobre nossas escolhas destrutivas enquanto humanidade. Se, como afirmou Franco Berardi “Bifo” em entrevista ao The Intercept Brasil, “ou fundamos uma nova sociedade ou acabaremos com a espécie humana”, parece mais claro, depois da pandemia do novo coronavírus, que essa sociedade só será possível se não existir propriedade intelectual.

 

Leonardo Foletto

[Com informações e colaboração de The Lancet, InternetLab, Ciência Aberta, Alexandre Abdo, André Houang, Elias Maroso e Tatiana Dias]

*O texto da patente é, a princípio, acessível num registro de patentes. O que a quebra permitiria é o uso efetivo, a adaptação e o aprimoramento, além da produção por um número maior de atores.

 

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Tecnopolítica & Contracultura em Porto Alegre https://baixacultura.org/2019/09/30/tecnopolitica-contracultura-em-porto-alegre/ https://baixacultura.org/2019/09/30/tecnopolitica-contracultura-em-porto-alegre/#respond Mon, 30 Sep 2019 12:48:02 +0000 https://baixacultura.org/?p=13011

A terceira edição do curso”Tecnopolítica e Contracultura” chega a Porto Alegre em Outubro, no querido espaço da APPH (Associação de Pesquisas e Práticas em Humanidades), no centro da cidade. Serão três dias de intensas trocas sobre um pensamento tecnopolítico que atravessa os autonomistas italianos da década de 1970, passa pela explosão de criatividade (e otimismo) dos 1990, é alimentado pelas ideias e princípios hackers dos 1980, 1990 e 2000 e chega na encruzilhada do final desta década de 2010 buscando entender o que deu errado no mundo digital e o que pode (deve?) mudar para que possamos sair da “ressaca da internet” que tanto comentamos.

Atualizamos a bibliografia com novas leituras e organizamos melhor as referências do curso, que como os participantes das outras edições já sabem, disponibilizamos ao final (em PDF).

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Tecnopolítica e Contracultura: um passeio pelo pensamento de anarquistas, autonomistas, hackers e outros rebeldes
24, 25 e 26/10, na APPH, em Porto Alegre.
20 vagas. Inscrições aqui – Estudantes e apoiadores/as do BaixaCultura no Apoia.se ganham desconto.
Evento no Facebook.
Quer fazer o curso mas não tem como pagar agora? Nos escreva que conversamos: info@baixacultura.org
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Se nos anos 1990, com o casamento do digital com a internet, enxergávamos enormes possibilidades de libertação (da informação de grandes grupos midiáticos, de liberdade de falar o que bem quiser, de criar tecnologias e mundos novos), hoje parece que estamos a lidar com consequências nefastas, representadas em uma palavra na moda nestes tempos: distopia. Nos descuidamos – ou não conseguimos? – prestar atenção na ascensão de plataformas globais de tecnologia, que por sua vez construíram bolhas de informação que confirmam pontos de vista, espalham mentiras e criam realidades alternativas que em muitos casos não há informação comprovada que consiga mudar.

Como podemos compreender o contexto tecnopolítico hoje? Que caminhos podemos apontar para discutirmos e transformarmos a política que sempre está junto na construção de tecnologias? A proposta desse curso é buscar algumas respostas para estas perguntas olhando para o passado e o presente e passear por alguns pensamentos rebeldes sobre a tecnologia desenvolvidos na segunda metade do século XX até hoje. Começamos pelos autonomistas surgidos no ‘maio de 68’ italiano que durou mais de uma década, com foco especial em Antonio Negri, Franco “Bifo” Berardi, Paolo Virno e Mário Tronti. Passamos pela explosão de novidades da arte e do ativismo digital dos anos 1990, com Wu Ming, mídia tática, altermundistas, Critical Art Ensemble, zapatistas e autores como Pierre Levy, Manuel Castells, Bifo (novamente) e Richard Barbrook; continuamos com os hackers, “paranóicos visionários”, e seus princípios éticos de transparência, liberdade e autonomia com as tecnologias, a partir das ideias de Richard Stallman, Pekka Himanen, Sérgio Amadeu, Eric Raymond, César Rendueles, Aracele Torres, entre outres; e chegamos até hoje, com a ascensão das redes sociais como principais espaços de discussão pública nas redes digitais e o fim da internet como a conhecemos nos 1990 e 2000, no que chamamos de “ressaca da internet”, com autores como Jaron Lanier, Bifo (de novo!), Evgeny Morozov, Shoshana Zuboff, Jonathan Crary e Trebor Scholz.

Esta é terceira edição deste curso-experimento; a primeira foi realizada em 2/2019, em São Paulo, no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc e a segunda em 6/2019 na UFSM, em Santa Maria-RS.

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BaixaCharla ao vivo #3: Depois do Futuro, Bifo https://baixacultura.org/2019/08/30/baixacharla-ao-vivo-3-depois-do-futuro-bifo/ https://baixacultura.org/2019/08/30/baixacharla-ao-vivo-3-depois-do-futuro-bifo/#respond Fri, 30 Aug 2019 19:56:18 +0000 https://baixacultura.org/?p=12947

Nossa terceira BaixaCharla falou de “Depois do Futuro”, de Franco Berardi, vulgo Bifo, publicado em 2009 na Itália e no Brasil este ano, na ótima coleção “Exit” da Ubu. Já citado nesse post e guia de nosso curso-experimento “Tecnopolítica e Contracultura“, o livro repassa as vanguardas do século XX para mostrar como o futuro, até os anos 1970, era visto com esperança e confiança. Depois de 1977, porém, o progresso como uma linha evolutiva para um mundo melhor, com mais conhecimento e tecnologia, se mostrou uma fantasia. Em vez de promissor e brilhante, o porvir que aguarda as novas gerações nascidas em berço digital, precarizadas e altamente conectadas, é incerto e amedrontador.

Como o texto de apresentação da obra comenta, “articulando referências culturais de arte, cinema e literatura e pensamento crítico, o filósofo e ativista italiano Franco “Bifo” Berardi, veterano do Maio de 1968, passa pelo Manifesto Futurista, pelo movimento punk do anos 1970 e pela revolução digital dos anos 1990 para concluir algo sobre o presente: somos incapazes de conceber o que ainda está por vir”. Bifo mistura em seu caldeirão de referências psicanálise, semiótica, filosofia, jornalismo, crítica cultural e da tecnologia, traz exemplos de situações e autores do Japão, Estados Unidos, Rússia e de sua pátria-mãe italiana para detalhar a perda de noção de que “no futuro será melhor”, tão em voga na modernidade, e que se exacerba com o zeitgeist de ressaca da internet que vivemos hoje.

Nessa charla, o editor do BaixaCultura, Leonardo Foletto, destrinchou a obra, especialmente seus capítulos 3 e 4, em que Bifo põe pra dialogar hackers, cyberpunks, pensadores e críticos da ideologia californiana do Vale do Silício. “Quando a disciplina industrial se dissolve, os indivíduos se encontram numa condição de aparente liberdade”. Nenhuma lei os obriga a se submeter às obrigações e à dependência. Mas àquela altura as obrigações foram introjetadas, e o controle social se exerce pela voluntária mas inevitável submissão a uma rede de automatismos”, escreve o filósofo italiano na página  do livro, e não poderíamos concordar mais.

Febbraio 1976. Iniziano le trasmissioni di Radio Alice dalla sede di via del Pratello. Una rara fotografia di Franco “Bifo” Berardi in diretta da via del PratelloArchivio Studio Camera Chiara

Ademais de um filósofo e pensador da arte, cultura e tecnologia contemporânea, Bifo também é um ativista e um ser da prática. Por isso, vamos também percorrer um pouco de sua trajetória enquanto ativista do “maio de 1968 que durou 10 anos” italiano, passando pelo coletivo A/Traverso, revista de efêmera e potente influência nos 1970; criação da Rádio Alice, em 1976, uma das primeiras rádios-livres europeias, que foi fechada em março de 1977, quando o estúdio foi invadido pelos carabinieri, como era conhecida polícia italiana. A Rádio influenciou muita gente da época e tem seu acervo parcialmente documentado online, além de ter uma base de sua história contada neste filme, Lavorare con Lentezza, lançado em 2004.

E seguimos falando um pouco de Bifo em sua estada em Paris, na França, onde conviveu com Félix Guattari e aprendeu muito da esquizonanálise que influenciaria sua abordagem teórica desde então. Viveu nos Estados Unidos, na década de 1980, onde escreveu sobre música, acompanhou de perto o movimento cyberpunk e a discussão sobre tecnologia no Vale do Silício, até voltar para sua Bologna natal, na Itália, nos 1990, onde esteve envolvido na criação de outro experimento midiático, a Orfeo TV, “a street television breaks the Italian regimented broadcasting network“, e do Rekombinant, um e-zine (já extinto, mas com parte do acervo aqui) que circulou entre 2000 e 2009, desenvolvido junto com Matteo Pasquinelli, outro autor importante italiano contemporâneo. Atualmente, leciona no Istituto Aldini Valeriani, uma instituição de ensino médio de Bolonha, e na Academia de Belas Artes de Brera, Milão.

Bifo tem mais de duas dezena de livros publicados em italiano, inglês e espanhol, de seu primeiro “Contra il lavoro”, de 1970, até seu mais recente, “Futurabilidade”, de 2019, publicado em italiano e em espanhol (pela Caja Negra, belíssima editora argentina), passando por “Ciberfilosfia” (1995), A Fábrica da Infelicidade” (2001), “Skizomedia. Trent’anni di mediattivismo” (2006), entre outros. No Brasil, até “Depois do Futuro”, só havia um único livro publicado, “A Fábrica da Infelicidade“, lançado em 2005 pela DP&A e hoje um tanto raro de se encontrar em livrarias físicas. Nos outros países da América Latina, porém, há mais traduções, das quais destacados também “Generación Post-Alfa”, da Tinta Limón, uma coletânea de textos lançada em 2007 que traz vários insights que estão em “Depois do Futuro” – vamos trazer alguns trechos deste livro também na charla, que está disponível para baixar em PDF de grátis.

Há um interesse crescente nos últimos anos na obra de Bifo, o que tem proporcionado muitas entrevistas em veículos jornalísticos, inclusive brasileiros, e algumas palestras que, transmitidas ao vivo, estão disponíveis na rede. Destacamos aqui duas entrevistas publicadas no IHU da Unisinos, no RS: “O que pode a vontade política contra a fúria financeira?“, de agosto de 2019; e “Para entender o fascismo dos impotentes“, de junho de 2019. E dois vídeos, também de 2019:

A charla foi ao ar no dia 3/9, às 20h30, conduzida por Leonardo Foletto, editor do BaixaCultura, e teve a participação (em áudios) de Leonardo Palma, a dupla que ministra o curso “Tecnopolítica e Contracultura”. Palma conhece a obra do filósofo italiano faz mais décadas e tem muito de sua bibliografia em PDF, que ele (garante) que vai disponibilizar para quem se interessar. Deixaremos aqui o roteiro do vídeo, com indicações de leitura, e o vídeo na íntegra. Dá para ler a introdução em PDF de “Depois do Futuro”, disponibilizada pela Ubu.

Aqui a conversa na íntegra:

 

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Politizar as tecnologias & pistas para reinventar a internet https://baixacultura.org/2019/08/02/politizar-as-tecnologias-pistas-para-reinventar-a-internet/ https://baixacultura.org/2019/08/02/politizar-as-tecnologias-pistas-para-reinventar-a-internet/#respond Fri, 02 Aug 2019 23:42:13 +0000 https://baixacultura.org/?p=12910

A quinta palestra de 2019 do ótimo programa “Politizar as tecnologias”, do Centro Universitário Maria Antônia (USP), foi uma versão resumida de nosso curso “Tecnopolítica e Contracultura: um breve passeio por autonomistas, altermundistas, hackers e outros rebeldes”. Ocorreu na quarta-feira, 31 de julho, das 19 às 21h30, foi conduzida por Leonardo Foletto e teve um público atento e animado às diversas discussões que apontamos e aos questionamentos instigados pelo texto abaixo:

Se nos anos 1990, com o casamento do digital com a internet, enxergávamos enormes possibilidades de libertação (da informação de grandes grupos midiáticos, de liberdade de falar o que bem quiser, de criar tecnologias e mundos novos), hoje parece que estamos a lidar com consequências nefastas, representadas em uma palavra na moda nestes tempos: distopia.

Nos descuidamos – ou não conseguimos? – prestar atenção na ascensão de plataformas globais de tecnologia, que por sua vez construíram bolhas de informação que confirmam pontos de vista, espalham mentiras e criam realidades alternativas que em muitos casos não há informação comprovada que consiga mudar. Como podemos compreender o contexto tecnopolítico hoje? Que caminhos podemos apontar para discutirmos e transformarmos a política que sempre está junto na construção de tecnologias?”.

Uma notícia breve no site do evento está aqui. Abaixo e na abertura da postagem, algumas fotos, feitas pela equipe de comunicação do Maria Antônia, um centro cultural histórico pra SP, palco de uma das mais conhecidas batalhas na Ditadura Militar Brasileira, em 1968, entre estudantes do Mackenzie e da USP.

uma parte do povo, antes de começar a fala

Os “chapéus” do nosso editor, Leonardo Foletto

Aqui está a apresentação que guiou a conversa. Destacamos aqui uma parte final da conversa:

A IDEOLOGIA CALIFORNIANA VENCEU

Sua visão utópica da Califórnia depende de uma cegueira voluntária frente a outras – e muito menos positivas – características da vida na costa oeste: racismo, pobreza e degradação do meio ambiente”

“As   tecnologias   da informação dão poder ao indivíduo, aumentam a liberdade pessoal e radicalmente reduzem a força do estado-nação. As estruturas de poder social, político e legal existentes irão murchar, para serem substituídas por interações irrestritas entre indivíduos autônomos e seus softwares.”

DEPOIS DO FUTURO, BIFO

“A sociedade internaliza a regra em formas tecnológicas. O capital pode renunciar a regra jurídica, à racionalidade política e se deixar conduzir pela aparente anarquia dos automatismos internalizados da biopolítica.”

“Quando a disciplina industrial se dissolve, os indivíduos se encontram numa condição de aparente liberdade”. “Nenhuma lei os obriga a se submeter às obrigações e à dependência. Mas àquela altura as obrigações foram introjetadas, e o controle social se exerce pela voluntária mas inevitável submissão a uma rede de automatismos.”

EM FRENTE RUMO AO PASSADO

“Membros da “classe virtual” e outros profissionais podem brincar de ser cyberpunks dentro da hiperrealidade sem ter de encontrar algum de seus vizinhos empobrecidos.”

“As tecnologias da liberdade estão se tornando os instrumentos da dominação”.

“ Não impeço você de fazer outra coisa e não o obrigo a fazer o que eu quero, simplesmente facilito para quem faz as coisas que me convêm” (Bifo)

DIANTE DISSO, O QUE FAZER? PISTAS PARA REINVENTAR A INTERNET

_ Regulação (Barbrook & Cameron)
A discussão sobre regular ou não a internet, uso de aplicativos, dados em redes sociais e outras no mundo internético ainda engatinha no Brasil, mas tem sido uma das frentes mais debatidas nos últimos tempos ao redor do mundo. Alugar um quarto por meio do AirBnB, por exemplo, estaria menos relacionado a práticas de consumo coletivo e consciente ou à criação de novos laços de confiança e muito mais ao consumo de um bem por um preço mais baixo e, claro, ao lucro da transação comercial. Na França, há uma lei, aprovada no primeiro semestre de 2019, que exigirá o pagamento de 3% sobre a receita que Google, Facebook e Apple, entre outras gigantes do Vale do Silício, tiverem em seu território. Barbrook e Cameron falava disso já ao final de “A Ideologia Californiana”, em 1995:

“O futuro digital será um híbrido de intervenção estatal, empreendedorismo capitalista e cultura faça-você-mesmo. Decisivamente, se o estado puder fomentar o desenvolvimento da hipermídia, ações conscientes poderiam também ser tomadas para evitar o surgimento do apartheid social entre os “ricos de informação” e os “pobres de informação”.

_ Abrir as caixas-pretas (hackers);
As linhas de fuga para muitos dos caminhos distópicos que nos encontramos hoje, em época de ressaca da internet, passa por nos tornarmos uma potente multidão em busca de abrir as caixas-pretas da tecnologia e entender como se dá essa louca composição humana+objetos que nos causa esperança e sofrimento, depressão e euforia, liberdade e prisão. Algo que hackers buscam fazer, reparadores também, como já comentamos e escrevemos.

_ Ressensibilizar a humanidade (Bifo)
Influenciados pela recente leitura do nem tão recente “Depois do Futuro” (2009, edição brasileira de 2019), de Franco Berardi “Bifo”, incorporamos a ideia do filósofo italiano.

“Podemos levantar a hipótese de uma relação direta entre a expansão da infoesfera, a aceleração dos estímulos, das solicitações nervosas e dos tempos de resposta cognitiva, e a desintegração da película sensível que permite ao seres humanos entender o que não pode ser verbalizado, reduzido a sinais codificados?” (p.164)
“Sentimos-nos presos em uma armadilha de automatismos tecnolinguísticos, as finanças, a competição global, a exaltação militar. Mas o presente é mais rico que o formato que o capital impõe, e as muitas possibilidades inscritas no presente não são canceladas, embora no momento pareçam inertes”. (p.183)

_ Autonomia, criptografia, cuidados digitais (criptopunks/anarquistas);
Saber lidar com as tecnologias que nos rodeiam, não perder de vista o vínculo entre processo e produto, matéria-prima e forma final, compreender os meandros do fazer e da diferença, eis um bom programa de vida & ação. Como diz Bifo em seu Manifesto Pós-Futurista:

“Afirmamos que a grandiosidade do mundo enriqueceu-se com uma beleza nova, a beleza da autonomia. Cada um tem seu ritmo e ninguém deve ser obrigado a correr em velocidade uniforme; sobretudo, não podem mais desempenhar a tarefa para a qual foram concebidos. A velocidade se tornou lenta. Os automóveis estão imóveis como estúpidas tartarugas no tráfego das cidades. Apenas a lentidão é veloz.”

_ Politizar as tecnologias;
Significa uma combinação: abrir as caixas-pretas, ver como funciona, como se monta, como se reproduz, como se transforma e perceber que a política está nos embutidas em códigos, em vieses que reproduzem preconceitos e desinformação generalizada, na elaboração de algoritmos que funcionam com mais inputs, seja eles ódios destilados ou fake news absurdas. Politizar as tecnologias é perceber isso, também tentar modificar, agir para tomar os meios de produção – ou pelo menos hackeá-los.

 

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