Academia – BaixaCultura https://baixacultura.org Cultura livre & (contra) cultura digital Tue, 18 Jun 2024 22:41:56 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.0.9 https://baixacultura.org/wp-content/uploads/2022/09/cropped-adesivo1-32x32.jpeg Academia – BaixaCultura https://baixacultura.org 32 32 Milton Santos inaugura os Estudos Livres BaixaCultura https://baixacultura.org/2024/06/18/milton-santos-inaugura-os-estudos-livres-baixacultura/ https://baixacultura.org/2024/06/18/milton-santos-inaugura-os-estudos-livres-baixacultura/#comments Tue, 18 Jun 2024 22:40:36 +0000 https://baixacultura.org/?p=15668 Depois de alguns meses (ou seria anos?) ensaiando, criamos finalmente um grupos de estudos: Estudos Livres BaixaCultura. A proposta é nos reunirmos mensalmente para discutir algum texto que esteja alinhado em nossas pautas e perspectivas de uma (contra) cultura digital & tecnopolítica da internet. Ainda em formato beta, como quase tudo que fazemos, começaremos na quinta, 27/6, 18h30, com os capítulos 1 e 2 do livro “O Brasil: Território e Sociedade no início do século XXI”, de Maria Laura Silveira e Milton Santos. O livro, publicado em 2001, é um dos mais importantes escritos por um dos maiores intelectuais brasileiros do século XX, Milton Santos (aqui em parceria com Maria Laura Silveira) e começa um processo nosso de discutirmos intelectuais do sul global para (re) pensar a cultura digital e as relações entre tecnologia, política e cultura. 

“O Brasil” lança um olhar sobre as dinâmicas socioespaciais do território brasileiro. Para isso, eles se esforçam em relacionar essas dinâmicas com a tipologia dos meios geográficos, o que já vinha sendo discutido por Milton Santos em obras anteriores. Milton e Maria Laura acabam por nos dar diversas pistas sobre a disposição e os fluxos dos objetos técnicos no início do século XXI, o que nos traz subsídios para as discussões sobre as tecnopolíticas dos objetos técnicos hoje. 

O livro será relatado por Carlos Lunna, cientista social, geógrafo e articulador cultural na rede de Produtoras Culturais Colaborativas. Está disponível aqui para leitura/download. Criamos também um link no Plantaformas para organizarmos os encontros – o Plataformas, como já contamos, é um sistema digital criado pela Casa Preta Amazônia em software livre a partir do Decidim, usada para participação cidadã em diversos lugares do mundo. Tem sido utilizada na retomada das políticas de cultura digital por parte do MINC, como comentamos nesse texto em janeiro de 2024. Os encontros serão remotos, online via Jitsi, neste link: http://meet.jit.si/estudoslivresbaixacultura Não descartamos, porém, fazermos alguns encontros presenciais.

 

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Criação e cultura livre na era da inteligência artificial generativa https://baixacultura.org/2023/12/29/criacao-e-cultura-livre-na-era-da-inteligencia-artificial-generativa/ https://baixacultura.org/2023/12/29/criacao-e-cultura-livre-na-era-da-inteligencia-artificial-generativa/#respond Fri, 29 Dec 2023 14:57:05 +0000 https://baixacultura.org/?p=15609  

No final do 2023, publiquei um artigo chamado “Criação e cultura livre na era da inteligência artificial generativa” na revista acadêmica Aurora, da PUC-SP, no Dossiê “Inteligência Artificial: questões éticas e estéticas”[ parte 1; parte 2]. É um primeiro texto mais filosófico, em que faço uma revisão de bibliografia (acadêmica, mas também jornalística) sobre implicações estéticas e filosóficas na criação e na cultura a partir da popularização de sistemas de Inteligência Artificial (IA) generativa em 2023 como o ChatGPT. Parte do debate em torno do conhecimento e  da  cultura  livre  e  do  status  remix  da  criação  com  a  ascensão  das  tecnologias  digitais e da internet nos anos 2000 para, então, problematizar consequências do uso massivo dos sistemas de IA generativas para a criação artística hoje.

Por fim, em tempos de disputa acirrada sobre direitos autorais nas IAs generativas, busco pontuar que a exploração privada do conhecimento não necessariamente precisa ser um motivo para restringir seu amplo acesso, mas disputá-lo enquanto um comum. Aponto também para a construção de uma agenda para discutir a criação em tempos híbridos, que busque afirmar as tecnologias a partir de sua característica protética, termo usado pelo Yuk Hui num texto lançado ano passado (a imagem acima vem da versão em mandarim desse texto), já que desde os primórdios da humanidade o acesso à verdade sempre dependeu da invenção e do uso de instrumentos. Qual o tipo de criatividade que emana de um paradigma de abundância de informação, e não escassez? E qual seria um modelo jurídico que daria conta de substituir o paradigma da propriedade intelectual, baseado na escassez e na propriedade privada, por um mais baseado no amplo acesso? Nesse sentido, valeria entender a centralidade da cópia no processo de aprendizado humano para, então, compreender de que forma o ChatGPT e outras IAs generativas estão a potencializar o modo remix de criação. Se, de fato, geram pastiches a-históricos que apenas repaginam o “velho” e potencializam um “modo nostalgia” que só consegue atentar ao presente e ao passado e não ao futuro. Ou se observamos isto porque não estamos acostumados a olhar a criação sem o humano no centro e no comando do processo, o que remete novamente à necessidade de buscar respostas para a pergunta de Simondon: qual o papel que o humano pode desempenhar quando ele deixa de ser o organizador da informação?

Embora publicado numa revista acadêmica, busquei fugir do academiquês na hora da escrita. Acesso livre.

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Crises e ressacas em poéticas fronteiriças de Minas Gerais https://baixacultura.org/2023/07/05/crises-e-ressacas-em-poeticas-fronteiricas-de-minas-gerais/ https://baixacultura.org/2023/07/05/crises-e-ressacas-em-poeticas-fronteiricas-de-minas-gerais/#comments Wed, 05 Jul 2023 18:45:24 +0000 https://baixacultura.org/?p=15289  

Depois de alguns anos de trocas nas redes, finalmente conheci as experimentações arte tecnológicas do LabFront no 8º Congresso Internacional de Arte, Ciência e Tecnologia e Seminário de Artes Digitais, realizado no final de junho em BH. Organizado por uma rede de grupos de pesquisa desde 2015, o seminário esse ano falou de “Crises” – crise financeira, crise climática, crise de saúde, crise política, de refugiados, de recursos híbridos, saúde mental, ambiental. Teve GTs de trabalho, exposição de arte, performances e lançamento de livros em áreas que vão da arte digital à literatura expandida, da documentação de acervos ao uso do software livre na produção musical, passando até por direitos dos animais, edição de livros, paisagens da cidade, políticas e estéticas das imagens digitais, entre outros temas.
Para dialogar com o tema do evento, apresentei na abertura “Crises e ressacas da internet em tempos de inteligência artificial”, um apanhado do que tenho visto desde a ressaca da internet (texto de 2018) até as recentes discussões sobre IA, copyright/cultura livre e colonialismo de dados, temas que tenho tratado também aqui no BaixaCultura, com o acréscimo de algumas provocações de “Terra Arrasada”, livro recente (2023) de Jonathan Crary que estou terminando de ler (quem acompanha nossa newsletter sabe) mas já impactado (e digerindo), como por exemplo aqui:

“A partir de meados dos anos 1990, o complexo internético foi propagandeado como inerentemente democrático, descentralizador e anti-hierárquico. Dizia-se que se tratava de um meio inédito para a livre troca de ideias, de forma independente de controles impostos de cima para baixo, e capaz de equilibrar a arena do acesso midiático. Mas não foi nada disso. Houve uma fase breve de entusiasmo ingênuo, similar às esperanças não concretizadas veiculadas a respeito da ampla disponibilidade da televisão a cabo nos anos 1970. A narrativa de agora – aquela de uma tecnologia igualitária colocada em risco por monopólios corporativos, pela supressão da neutralidade da rede e pela invasão da privacidade – é claramente falsa. Não houve nem haverá “bens comuns digitais”. Desde o começo, o acesso de um público global á internet sempre esteve ligado à captura do tempo, ao desempoderamento e à conectividade despersonalizada. A única razão pela qual, em um primeiro momento, a internet parecia “mais livre” ou mais aberta se deveu ao fato de que os projetos de financeirização e de expropriação não foram implementados todos ao mesmo tempo, tendo levado alguns anos para alcançar um ponto de aceleração, no começo da década de 2000”.

 

Aqui está o vídeo da fala na íntegra, transmitida ao vivo no Instagram. Aqui o PPT da apresentação, que vai virar um texto que mais adiante compartilho aqui também. As fotos abaixo são da abertura, em conversa com Pablo Gobira, diretor/presidente/fundador/agitador do LabFront e do evento. Créditos das fotos para Priscila Portugal, mestranda na UEMG e pesquisadora do Labfront.

[Leonardo Foletto]

 


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Comunicação, cultura livre e cópia na era da Inteligência Artificial https://baixacultura.org/2023/04/03/comunicacao-cultura-livre-e-copia-na-era-da-inteligencia-artificial/ https://baixacultura.org/2023/04/03/comunicacao-cultura-livre-e-copia-na-era-da-inteligencia-artificial/#comments Mon, 03 Apr 2023 18:16:26 +0000 https://baixacultura.org/?p=15202  

“Olá pessoal, uma alegria estar aqui com vocês*, exatos 6 anos depois de ter defendido minha tese, neste mesmo PPGCOM, especialmente com Alê Primo, que acompanhou meu doutorado e fez parte da minha banca de qualificação e defesa, e Laura Wöttrich, amiga e colega de comunicação há mais de uma década. A tese, a princípio, não tem muito a ver com o que vou falar hoje: trata de uma pesquisa sobre a mediação na Mídia Ninja, especialmente a partir da cobertura das manifestações de junho (julho, agosto) de 2013. Estudei, a partir de uma pesquisa etnográfica, como os actantes, humanos e não humanos (naquela época, sobretudo o software Twittcasting) agiram nas transmissões ao vivo, quem fez o outro fazer o quê, como e o que essa ação influenciou no resultado final dos vídeos e o que isso significou para o midiativismo, o jornalismo e as próprias jornadas de junho de 2013. Digo que a princípio a tese (disponível aqui) não tem a ver com o que vou falar hoje porque sempre há algo de inexplicável que permanece nos interesses de nossas pesquisas durante anos. Se há uma conexão mais visível da tese pra aula de hoje, ela diz respeito ao interesse na ação das tecnologias e nos “híbridos” que elas formam com a ação humana em algumas situações.

Há dois anos atrás, eu lançava, durante a pandemia, o livro “A Cultura é Livre: uma história da resistência antipropriedade”, fruto de um trabalho de quase 10 anos de pesquisa junto ao BaixaCultura – laboratório online, coletivo, blog. O livro nasceu como uma tentativa de conceituar, situar e contextualizar a cultura livre, uma ideia que se propagou a partir do software livre, nos anos 1990, e ganhou destaque com as discussões em torno do livre compartilhamento de arquivos (“pirataria”) na internet dos anos 2000. Para isso, o trabalho realizado foi o de uma genealogia que resgata uma parte da circulação dos bens culturais na Antiguidade, a grande transformação da invenção da Imprensa de Gutemberg na Idade Média e a posterior ascensão do Capitalismo com o modo de produção, tendo a propriedade como sua base. Daí se originou a noção de propriedade intelectual, que resultou na consolidação dos bens culturais como mercadoria e do direito autoral como o sistema a regular estes bens, a partir do século XIX. Também daí nasceram algumas das resistências a este sistema, sobretudo no campo artístico e político de vanguarda do século XX, primeiro em termos mais conceituais, como os trabalhos do Dada, dos situacionistas franceses da década de 1950 e 60, depois também em termos práticos, sobretudo no punk rock e na cultura do fanzine e da arte postal nos anos 1970. O que seria do hip-hop e do rap se não fosse o desrespeito à propriedade intelectual na criação dos samplers? Esses movimentos do século XX também acompanharam a notável proliferação de meios tecnológicos de reprodução – da fotocopiadora ao videocassete, das vitrolas às fitas-cassetes – e ascensão dos chamados meios de Comunicação de massa, com o cinema, o rádio e a TV passando a fazer parte no cotidiano de bilhões de pessoas. Retrato um pouco desse período e das tecnologias de reprodução do início do século XX até o computador no capítulo 4 do livro, não por acaso chamado de “Cultura Recombinante”.

Próximo da metade, o livro enfim chega aos anos 1970, à criação do computador pessoal, do software livre, e duas décadas depois, da internet. A partir daí, foca nas discussões em torno da cultura livre a partir do conceito de copyleft, um dos grandes hacks no sistema de propriedade intelectual criado no século XIX. Escrevi na página 149: “Como trocadilho ou de forma literal, o copyleft foi o conceito, expresso na licença GPL e outras ligadas ao Projeto GNU que a seguem até hoje, de requerer a posse legal para, na prática, renunciar a esta ao autorizar que todos façam o uso que desejarem da obra, desde que transmitam suas mesmas liberdades a outros. A exigência formal da posse significa que nenhuma outra pessoa poderá colocar um copyright em cima de uma obra copyleft e tentar limitar o seu uso”.

Do copyleft se origina, no início dos anos 2000, os Creative Commons, conjunto de licenças (e depois uma ONG) que vai ajudar a expandir a ideia da cultura e do conhecimento livre para o mundo inteiro, dando também origem aos movimentos da Educação Aberta (aqui no Brasil chamado de REA, Recursos Educacionais Abertos), Ciência Aberta e OpenGlam (“galerias, bibliotecas, arquivos e museus abertos”), ainda hoje ativos. À discussão (e também às críticas) sobre cultura livre se segue as transformações na internet e na comunicação digital, em que a curadoria “humana” – aleatória e solta, exemplificadas pelo hábito de flanar pelos blogs e sites, prática comum dos usuários da internet dos anos 2000 – passa a ser gradativamente substituída pela curadoria algorítmica. O que pode ser visto principalmente a partir da consolidação das redes sociais – sobretudo com o modelo “Timeline” do Facebook (que vai influenciar as outras redes a partir dos anos 2010), como conta o Willian Araújo na tese de doutorado defendida neste mesmo programa – e do streaming como sistemas algorítmicos de seleção e recomendação de informação e conteúdo de predomínio na internet.

[Lembrando: sistemas algorítmicos de recomendação, por exemplo, são IAs?]

 

 

Ao final, “A Cultura é Livre” traz a perspectiva sobre a questão da cultura e do conhecimento livre para outros modos de existência que não o hegemônico ocidental, vendo como os ameríndios e povos do extremo oriente (como os chineses) têm até hoje noções historicamente muito distintas sobre o que é propriedade intelectual, cópia e original, conhecimento aberto e coletivo. Com estas perspectivas tento lembrar que existem modos de ver o mundo, presentes em muitos lugares e comunidades tradicionais, que entram em conflito com certas ideias e modos de agir ocidentais noção de propriedade intelectual se erigiu.

Por exemplo, na China, eu falo no livro do “Shanzai”, um neologismo chinês criado nos anos 2000 para dizer o que é falso, fake. Abarca de literatura a prêmios Nobel, deputados, parques de diversões, tênis, músicas, filmes, histórias das mais diversas. No princípio, o termo se referia só aos telefones (smartphones) ou à falsificação de produtos de marcas como Nokia ou Samsung e que se comercializam com o nome de Nokir, Samsing ou Anycat. Logo, porém, se expandiram para todas as áreas, em jogos que, à maneira do Dada, usavam da criatividade e de efeitos paródicos e subversivos com as marcas “originais” para criar outros nomes – Adidas, por exemplo, se converte em Adidos, Adadas, Adis, Dasida… São, porém, mais que meras falsificações: seus desenhos e funcionalidades não devem nada aos originais e as modificações técnicas ou estéticas realizadas lhes conferem uma identidade própria.

Uma parte desse modo de ver o processo de criação como algo mais coletivo que individual, que também origina o shanzai, remete ao confucionismo, um conjunto de ideias que foi dominante na China durante mais de 1000 anos, só perdendo força no início do século XX. A influência do confucionismo na cultura chinesa fez a perspectiva do direito autoral na região ser voltada, durante muito tempo, mais à defesa de uma base de informação pública, de livre acesso e reuso – o que no Ocidente foi chamado de domínio público. Como escrevi na p.220 do livro, “a demora da China em assinar tratados internacionais de propriedade intelectual (a partir da década de 1980, quando também o país passa a ser parte da World Intellectual Property Organization) tem relação com uma cultura coletiva e de defesa do domínio público enraizada desde muito tempo em sua sociedade. E também se associa com a propagação da cultura shanzai já citada, que tem a cópia como base para a recriação de diferentes produtos e marcas a partir de uma prática criativa compiladora enraizada no dia a dia do povo da região”.

O sistema da mercadoria conhecido no Ocidente é, como se sabe, diferente para as perspectivas dos povos tradicionais – não é por acaso que Davi Kopenawa chama nós, os brancos, do “povo da mercadoria”, no monumental “A Queda do Céu”. Nas palavras da antropóloga Marilyn Strathern (1984), é a oposição da economia da commodity, na qual as pessoas e coisas assumem a forma social de coisas, com a economia da dádiva (gift), na qual pessoas e coisas assumem a forma social das pessoas. Como escrevi na p.216 do livro, “É nesse sentido que, em sociedades originárias de diversos locais do mundo, o modelo de propriedade (particularmente o de propriedade intelectual), calcado na relação da obra de arte como mercadoria de consumo, se torna insuficiente para lidar com uma relação mais duradoura e complexa da circulação de objetos. No sistema cultural das sociedades originárias, é perceptível, por exemplo, a centralidade dos valores coletivos, ligados à pluralidade e à sobrevivência da comunidade, em relação aos valores individuais, de uso exclusivo e escolha individual. O que, por sua vez, faz com que os bens culturais e de conhecimento nesse contexto sejam mais difíceis de se tornar apenas mais uma commodity vendida como mercadoria, pois há princípios e responsabilidades de reciprocidade e solidariedade que buscam valorizar a substância moral própria – que poderíamos também nomear como “alma” – dos objetos em suas relações com as pessoas e o mundo”.

A partir desse breve panorama, enfim podemos nos perguntar: como podemos falar em original e cópia se uma cultura de dois milênios do Extremo Oriente incentiva a reprodução e trata como mais importante do que a origem de uma ideia o seu conteúdo e a sua permanência, mesmo que modificada e reinventada a cada contexto? Ou como dizer que há um único humano dono de ideias quando para muitos povos originários, entre eles alguns ameríndios, não existe a separação entre sujeito e objeto como conhecemos no Ocidente, e a subjetividade criadora, a quem se deveria atribuir a “autoria” ou a “posse” dos bens, é distribuída em uma vasta rede que inclui pessoas e objetos, natureza e sociedade de modo praticamente simétrico?

Imagem criada por Giselle Beiguelman a partir dos processos text-to-image e image-to-image, como ela detalha em Ensaio Máquinas Companheiras, 2023.

 

CHEGAMOS ENFIM ÀS IAS

É na discussão sobre cópia e original que, enfim, chegamos à discussão mais quente do momento, as inteligências artificiais. Com a crescente popularização dos sistemas de Inteligência Artificial GENERATIVAS (que são capazes de gerar textos e imagens de forma autônoma), como o ChatGPT e o MidJourney, parece que estamos nos encaminhando para um outro momento histórico para discutir tanto a comunicação digital quanto a cultura e o conhecimento livre, o direito autoral e a propriedade intelectual. Alguns pesquisadores da área computacional indicam que, em breve, a quantidade de texto/imagem gerada por IAs tende a superar toda produção humana. Não é difícil de imaginar: baseado no aprendizado de máquina, o potencial é tendencialmente infinito de criação de obras. Mas dado que estes sistemas funcionam principalmente com novas apresentações de ideias que já foram geradas (e registradas em computadores), será possível reconhecer as fontes e identificar a autoria de uma informação trazida por estas IAs? Os sistemas “artificiais” – e também os “humanos”, ou seria melhor dizer para ambos “híbridos”? – de controle da informação poderão impor limites a esta proliferação e checar a veracidade daquilo que é informado? Como poderemos falar de cópia e original num mundo cada vez mais dominado por múltiplas cópias reproduzidas ad infinitum por sistemas algorítmicos “inteligentes”?

Proponho, claro, mais perguntas do que dou respostas. Tanto porque ainda é uma pesquisa inicial, que está começando enquanto, digamos, pesquisa formal acadêmica, estruturada a partir da FGV ECMI, onde hoje trabalho como pesquisador e professor. Mas principalmente porque ninguém sabe ainda responder estas e outras questões sobre IAs; as próprias empresas que estão na ponta de lança dessa discussão em 2023, como a Open IA, estão aprendendo sobre os impactos dos sistemas que criam com o feedback dos milhões de usuários. As respostas e os diferentes usos inventados pelas pessoas trazem novas respostas e novas “alucinações” dos sistemas, que estão tendo que ser corrigidos em tempo quase real.

Há, claro, um risco muito grande em experimentar ao vivo com uma tecnologia de impacto tão transformador na produção de informação, e não à toa a discussão sobre ética em IA é um dos grandes temas em debate já faz alguns anos (ou décadas). A ONU já deu recomendações, em 2021, para a suspensão do uso de IAs em sistemas de reconhecimento facial até que haja regulação sobre a utilização da tecnologia, assim como recentemente saiu uma carta assinada por mais de mil especialistas e personalidades, como Steve Wozniak, co-criador da Apple, Yuval Noah Harari, famoso historiador, além do bilionário sem escrúpulos Elon Musk, pedindo uma moratória, uma “parada obrigatória pra pensar” sobre as consequências do desenvolvimento desenfreado das IAs, especialmente as generativas como o ChatGPT.

Para entender um pouco sobre o que falamos quando tratamos de IAs generativas como o ChatGPT, gosto da imagem criada por um dos melhores textos dos muitos que publicados sobre o tema entre janeiro de 2023 pra cá. Ele se chama “ChatGPT is a blurry JPEG of the Web” e foi escrito por Ted Chiang para a New Yorker de fevereiro de 2023.

“Pense no ChatGPT como um jpeg borrado de todo o texto na Web. Ele retém grande parte das informações da Web, da mesma forma que um jpeg retém grande parte das informações de uma imagem de alta resolução. Mas se você estiver procurando por uma sequência exata de bits, não a encontrará; tudo o que você obterá é uma aproximação. Mas, como a aproximação é apresentada na forma de texto gramatical, que o ChatGPT se destaca na criação, geralmente é aceitável. Você ainda está olhando para um jpeg embaçado, mas o desfoque ocorre de uma forma que não torna a imagem como um todo menos nítida”.

A imagem do JPEG borrado nos ajuda a entender que o sistema criado pela Open IA “engole” (quase) toda a internet e regurgita reformulando o que engoliu, não palavra por palavra. Que apesar de inventar referências e outras informações erradas (quem usou certamente já foi surpreendido com um livro, um artigo inexistente), ele não “mente”, mas escreve respostas “prováveis” – ou “borradas”, seguindo na metáfora – baseada nos pesos e cálculos feitos a partir de cada token (entrada) gerado, como mostra esse infográfico produzido pela Super Interessante. São milhares de recombinações de ideias que já foram geradas pela mente humana, mostradas a partir de uma análise estatística de uma gigantesca base de dados. Base que, gigante que já é (e não sabemos bem o quão gigante é, outro grande problema ocasionado pela falta de transparência), tende a crescer cada vez mais, alimentadas por informações coletadas na rede sem autorização. Será que precisam ter autorização para isso? Será que a coleta de dados não reforça ainda mais o datacolonialismo, a extração (e a exploração) de dados de maneira desigual do sul global?

Outras perguntas que trago aqui hoje dão uma amostra das potencialidades transformadoras, para “bem ou mal”, das IAs generativas também para a discussão em comunicação e circulação de informação e bens culturais:

_ Se por um lado o crescente uso de sistemas de IA em trabalhos cotidianos favorece os usuários (inclusive na criação de novas “ocupações”, como design ou engenheiro de prompt), de outro é um problema concorrencial para os criadores intelectuais, especialmente para aqueles tipos de criação ditas instrumentais, como um cartaz de um evento, um “card” de rede social, uma trilha para um vídeo, uma ilustração para um trabalho qualquer;

_ O problema da concentração de mercado, tal qual as big techs hoje. Empresas de IA necessitam um investimento inicial alto, mas um custo de manutenção baixo para continuar produzindo obras e aumentando a oferta, o que é feito sem ser acompanhado por um aumento proporcional de demanda (esta questão trago do livro de Pedro Lana, advogado e doutorando em Direito na UFPR, chamado: “Inteligência Artificial e Autoria: Questões de Direito de Autor e Domínio Público”, lançado neste 2023).

_ A “apropriação” do espaço comum (domínio público) das ideias. Um número muito grande de obras produzidas pode exaurir a quantidade de expressões possíveis de uma ideia em um certo meio – música, por exemplo, onde já há casos de IAs, como a do Google Assistente, que reconhece os samplers de uma música, trechos de até menos de 1s. Identificar pode significar também controlar e restringir; quem já subiu um vídeo com uma música protegida por copyright no Youtube, Instagram ou outra plataforma sabe como, pela justificativa de “defender a propriedade”, as empresas de tecnologia já identificam e barram rapidamente a circulação de informações. Teria nascido o hip hop se todos os samplers usados fossem identificados, controlados e restringidos? O rapper brasileiro DOn L sacou esse perigo e escreveu assim no Twitter: “o capitalismo vai acabar com a arte do sample. sou totalmente contra ter que pagar por samples irreconhecíveis por um humano. se for por essa lógica, deveria ter direito autoral pros instrumentos. pagar pra yamaha, korg etc em toda musica kk”.

_ Os vieses, as alucinações; e as fontes? Novamente: cadê a transparência?

Aqui talvez estejam alguns dos maiores problemas hoje. Envolvem, por exemplo, os vieses, “alucinações”, erros cometidos pelo ChatGPT e exploração de trabalhadores para “corrigir” manualmente as IAs, que nos fazem vislumbrar um cenário cada vez mais próximo de uma “Dark Digital Age”.O histórico de alucinação de cunho fascista das últimas IAs não é dos melhores; será diferente agora? Se sim, como? Quais as medidas regulatórias possíveis para que estas máquinas não virem monstros racistas, misóginos e propagadores de fake news? Há muita discussão no tema, especialmente sobre legislações possíveis – algumas delas trouxe nesse texto do BaixaCultura. Vale acompanhar o trabalho da Coalizão Direitos na Rede, que está nessa e em outras pautas importantes em defesa dos direitos digitais.

No aspecto jurídico, vale lembrar também do fair use, o uso justo e suas limitações e exceções que tornaram-se um dos pilares legais dos quais os aplicativos de IA dependem. Sua defesa e ampliação, como diz Lukas Ruthes Gonçalves nesse texto, “são primordiais para que criadores e inventores possam continuar a recombinar conhecimentos existentes para criar novas e excitantes possibilidades, como faziam anteriormente com a câmera e programas de edição de imagens como o photoshop”.

Por fim, lembro Benjamin para remixar uma questão já clássica: como se identifica uma obra de arte na era de sua “reprodutibilidade algorítmica”? Se, como disse Hal Foster em “O que vem depois da Farsa?”, a força negativa da automação é menos a perda da “aura”, como acreditava Benjamin, e mais a perda do “risco individual” e da “participação comunal”, o que diríamos de processos não só automatizados quanto autônomos? Aliás, quão autônomos são estes sistemas? Outra questão: será que a obra de arte é fruto apenas do espírito humano?, como se pergunta o advogado e professor de Direito Guilherme Carboni.  Teria chegado a hora de, como os indígenas fazem a muito tempo, rever o antropocentrismo, dando status de criadores a seres não-humanos, “artificiais” ou “naturais”?

São muitas perguntas, deixo para vocês trazerem mais outras. Obrigado!”

[Leonardo Foletto]

* Esse texto parte da aula do dia 24/3, com o intuito de registrar algumas das conversas do dia. Foi elaborado antes e editado, com alguns acréscimos, até a publicação. A apresentação utilizada na aula está disponível aqui.

 

Fotos: Laura Wöttrich, professora do PPGCOM-UFRGS

Laura, Alê e Leonardo. Foto: Augusto Paim

 

 

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De quem, afinal, é a cultura? https://baixacultura.org/2022/01/20/de-quem-afinal-e-a-cultura/ https://baixacultura.org/2022/01/20/de-quem-afinal-e-a-cultura/#respond Thu, 20 Jan 2022 15:51:40 +0000 https://baixacultura.org/?p=13880

Imagem de Ж, Filme-designer, educador e programador.

 

Victor Barcellos, doutorando em Comunicação e Cultura na ECO/UFRJ e pesquisador no Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS), escreveu uma resenha sobre o “A Cultura é Livre” na revista da Eco-Pós. A resenha tem o título de “De quem é a Cultura? Obras Culturais entre o privado, o público e o comum” e faz um ótimo panorama do livro – inclusive permitindo novas interpretações do tema e diálogos com outros pensadores/as, como McKenzie Wark e Maurízio Lazaratto, o que é sempre um sinal positivo quando se fala de resenha e construção de conhecimento crítico.

Abaixo, reproduzo alguns trechos, com algumas edições, comentários e supressões, para seguir fomentando o debate sempre necessário (achamos) sobre propriedade e cultura. Vale a pena ler todo a edição, um Dossiê sobre Apropriações e Ressignificações na arte e no pensamento, editado por Ciro Lubiner e Lucas Murari.

“A história da liberdade da cultura tem a potência de nos lembrar que a cultura, uma vez produzida e usufruída coletivamente como um bem comum, transmitida livremente de geração em geração, circula hoje majoritariamente em forma de mercadoria. Justamente no momento em que as possibilidades técnicas permitiram à cultura que circulasse rapidamente, sem barreiras e com baixo custo –é exatamente o momento em que ela se encontra mais limitada. Percebeu-se o potencial de lucratividade da criação de escassez artificial precisamente neste tempo de abundância informacional que é como o presente.

Em uma paráfrase a Jean-Jacques Rousseau, Mckenzie Wark afirma sobre a informação o mesmo que se poderia afirmar a respeito da cultura: “A informação quer ser livre mas por toda parte se vê acorrentada“. [Em “A Hacker Manifesto“, ótimo livro de McKenzie Wark que reflete sobre tecnologia, propriedade intelectual e filosofia em um texto que remete, principalmente na forma, ao clássico “A Sociedade do Espetáculo“, de Guy Debord – sem tradução para o português ainda]

O capitalismo, sabidamente estruturado sobre contradições, encontrou formas de modular essa relação entre liberdade e privação de forma a rentabilizar o processo. Para compreendê-lo, é útil a distinção feita por Maurizio Lazzarato entre “criação” e “produção”. De acordo com o autor, o primeiro está mais ligado à criação de novos mundos, enquanto o segundo diz respeito à replicação de cópias desses mundos efetuados para sua monetização na forma de mercadoria. Assim, afirma: o “nascimento do capitalismo é sobretudo uma luta contra a infinidade de mundos possíveis que o precederam e o ultrapassaram” (Lazzarato em  “As revoluções no Capitalismo“, p. 188, PDF). E qual a melhor forma de falar dessa liberdade da cultura, senão demonstrando que historicamente, apesar das diversas tentativas de seu enclausuramento, sempre houve movimentos contrários que advogaram sua liberdade?

A afirmação categórica e precisa do título deixa evidente sua posição: a cultura é livre, e essa característica quase ontológica, ainda que negada de tempos em tempos, não se deixa sucumbir por completo.

A cultura pode ser compreendida como o último limite adentrado pelo crescente processo de commoditização da vida. A gradativa transformação dos diversos aspectos da experiência em propriedade privada se iniciou na terra, passou pelo capital e hoje encontra na cultura sua commodity central. Isso porque, em um processo de crescente abstração da forma-mercadoria, nota-se o incrível potencial de extração de valor em uma cooptação parasitaria da produção de cultura. Ao invés de precisar investir na produção, agora se torna possível capturar a cultura, que é produzida naturalmente pelo intelecto geral (general intellect) e lucrar com sua circulação. “Seu poder reside no monopólio da propriedade intelectual –patentes, direitos autorais e marcas registradas –e os meios de reproduzir seu valor –os vetores de comunicação. A privatização da informação se tornou o aspecto dominante, e não subsidiário, da vida ‘commoditizada’ (Wark, 2004, p. 25, tradução nossa)”.

Capa do Livro de McKenzie Wark, de 2004

Por meio de uma série de exemplos, Foletto nos mostra como boa parte daqueles que até hoje são reconhecidos como gênios inventores das maiores tecnologias não foram os responsáveis propriamente pelas invenções, mas apenas tiveram o capital financeiro e político para obter sua patente para produção em escala. Logo, deve-se desmistificar a visão de gênios solitários trabalhando em suas oficinas quando, por iluminação sobrenatural, obtiveram êxito na criação de invenções. A história real é menos solitária e muito mais social, tem pouco de inspiração espiritual e muito mais de disputas materiais.

A China, em especial até a modernidade e por influência do confucionismo, valorizava-se a tradição que incentivava, na educação infantil, a memorização e a cópia, o que colocou em contradição os direitos de propriedade intelectual com os valores morais tradicionais. Por essa valorização maior da transmissão do que da inovação, chegava-se a atribuir a ausência da percepção de uma cópia não pela ausência de atribuição da autoria, mas por ignorância daquele que consome a obra.

Em outras culturas, como algumas ameríndias estudadas por antropólogos como Marcel Mauss e Eduardo Viveiros de Castro, também se pode encontrar cosmovisões que se colocam radicalmente em oposição às concepções de direitos autorais. Como proteger obras em contextos em que a criação é entendida como um processo que envolve inclusive agentes não-humanos? E em que a concepção de que as transações não se esgotam na troca física de moedas ou mercadorias, mas representam apenas uma etapa de uma relação duradoura entre os agentes? Essa diferença radical apresentada por Foletto nos ajuda a tomar consciência do quão arbitrárias e contingentes são as concepções que sustentam os direitos autorais tradicionais.

 

]]> https://baixacultura.org/2022/01/20/de-quem-afinal-e-a-cultura/feed/ 0 BaixaCharla ao vivo #7: Ciberfeminismos 3.0 https://baixacultura.org/2021/04/30/baixacharla-7-ciberfeminismos-3-0/ https://baixacultura.org/2021/04/30/baixacharla-7-ciberfeminismos-3-0/#respond Fri, 30 Apr 2021 21:08:23 +0000 https://baixacultura.org/?p=13641  

A sétima BaixaCharla ao vivo, terceira de 2021, vai falar sobre Ciberfeminismos 3.0, obra recém publicada pelo Grupo de Pesquisa em Gênero, Tecnologias Digitais e Cultura (Gig@/UFBA) da UFBA, com organização da professora Graciela Natansohn (Facom/PosCom/UFBA), nossa convidada da conversa.

A obra, publicada em e-book pela Editora LabCom de Portugal [baixe grátis], reúne pesquisadoras e pesquisadores trazendo novos olhares sobre a interface entre o gênero e as tecnologias digitais. Alguns dos temas da publicação são os usos e apropriações das tecnologias de informação e comunicação: o ativismo realizado por mulheres e outros grupos em vulnerabilidade social, sobretudo em prol de uma internet feminista e antirracista; a questão das brechas e violências digitais de gênero; a dataficação, algoritmização e plataformização das tecnologias e mídias digitais e seus impactos nos usos e apropriações por mulheres e pessoas LGBTQIA +.

A proposta do “3.0” do título dialoga com a perspectiva de uma internet mais “madura”, que questiona e perde a inocência da neutralidade da tecnologia, compreende as brechas e violências digitais e elucida a episteme colonial dominante, que se datatificou a partir de algoritmos que arquitetam a criptografia do poder, como Graciela descreve na apresentação do livro:

“A internet institui ainda cenários privilegiados e tensos para a ação política e as resistências e lutas feministas, antirracistas, de mulheres cis e trans, hetero, lésbicas, bissexuais e pessoas queer e não binárias e de­mandam, ao mundo acadêmico, balizar teorizações e práticas alternativas críticas, descolonizadoras, isto é, dar visibilidade e, mais do que nada, le­gitimidade epistêmica a outras formas de imaginar internet, que não se limitem apenas ao uso das plataformas corporativas, à exploração do tra­balho humano via tecnologias sob o nome de empreendedorismo, ao uso exaustivo de ferramentas desenhadas pelas lógicas do capital” 

Fonte:CartelUrbano, el clitoris de la red.

Os ciberfeminismos, hackativismos feministas e transhackativistas estão ‘parindo’ como, segue Graciela, não mais por princípios liberais, extrativistas, brancos e masculinistas, mas por princípios éticos feministas inspirados em ideais emancipacionistas. Ela considera que há uma terceira geração de ciberfeministas nos quais os discursos acerca do feminismo mudaram; interpeladas pelas lutas antirracistas e ambientalistas, reivindicam um mundo e uma internet sustentável, contestam armadilhas da colonialidade digital dominante sem abrir mão do termo “ciber”. 

A proposta da charla é apresentar, ao menos em caráter inicial, conceitos teóricos presentes no livro e compartilhados com autoras como Donna Haraway (o corpo ciborgue), Diana Maffía (dimensão simbólica do corpo e suas fronteiras), Dianna Boyd (Affordances em ambientes digitais e colapso de contexto) e autores transfeministas e dos estudos queer como Judith Butler (performatividade de gênero), Jon Preciado (corpo como um texto sexualmente construído), Foucault (biopoder) nas questões da digitalização de si em ambientes digitais. Também traremos as narrativas históricas da palavra “ciberfeminismo” e  “hackfeminismo” para uma abordagem prática a partir das primeiras iniciativas de coletivos ativistas e as extensões dos conceitos sob o contexto da hiperconexão global. 

 “Nesta década, novas expressões do ciberativismo feminista reaparecem sob o nome hackfeminista, que repensa o lugar do ativismo de outras manei­ras, não se limitando à camada da Internet que produz e divulga conteúdo, mas analisa o campo das infraestruturas lógicas e físicas, responsável pe­las condições de existência da internet. Também autodenominado como transhackfeminista, com todas as suas variações, aderem ao feminismo queer e trans, enfatizam e promovem processos de autonomia tecnológi­ca, comunitarismo, redes alternativas e rejeita as cumplicidades do big data com o modelo de negócios na Internet. Apesar de serem poucos, esses coletivos têm assimilado os princípios hackers relacionados ao software li­vre, mas com uma forte crítica ao androcentrismo típico da cultura hacker.”

Fonte: Ilustração Leonard Beard.

Para debater o tema, Leonardo Foletto e Tatiana Balistieri, do BaixaCultura, conversam com Graciela Natansohn, coordenadora do GIG@, professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas e da FACOM da UFBA. Graduada em Jornalismo e Licenciatura em Comunicação Social pela Universidad Nacional de La Plata (Argentina), possui Mestrado e doutorado em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela UFBA. Suas pesquisas e produções concentram-se na interseção entre a comunicação e o feminismo e sobre questões de gênero na cultura digital e no jornalismo. Atualmente pesquisa “ A Apropriação de mídias digitais – Um Olhar de gênero”, onde problematiza as experiências das pessoas nas suas aproximações às tecnologias de informação digitais, com um olhar sensível às questões de gênero e outras interseccionalidades.

A conversa vai ser realizada na quinta-feira, 6 de maio, às 19h, no canal do Youtube do BaixaCultura, onde as outras charlas já estão disponíveis. Nas próximas semanas ela também vira podcast, que pode ser escutado aqui e nas principais plataformas de streaming.

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https://baixacultura.org/2021/04/30/baixacharla-7-ciberfeminismos-3-0/feed/ 0
Iniciativas tecnopolíticas feministas para conhecer e inspirar https://baixacultura.org/2021/03/08/iniciativas-tecnopoliticas-feministas-para-conhecer-e-inspirar/ https://baixacultura.org/2021/03/08/iniciativas-tecnopoliticas-feministas-para-conhecer-e-inspirar/#comments Mon, 08 Mar 2021 14:43:21 +0000 https://baixacultura.org/?p=13427 No 8 de março de 2018 fizemos um pequeno mapeamento de projetos & textos feministas e/ou com uma perspectiva feminina sobre cultura livre, direitos digitais, cultura hacker, tecnologia e ciberativismo. Três anos depois, também no 8M, atualizamos esse mapeamento (com também mais textos, artigos, ensaios) com o objetivo de pesquisa, engajamento e apoio às iniciativas de mulheres e também de expressar o lugar de reinvindicação desta data de luta e mobilização pelos direitos conquistados e pelo fim da violência contras as mulheres.

PROJETOS

       

1– 
Um projeto de TEDIC, organização que defende os direitos digitais e promove o uso de tecnologias livres, o Cyborgfeministas é um recurso para quem deseja compreender e explorar o ponto que liga questões de gênero com as tecnologias.
           

2-
Economia femini(s)ta é uma organização que nasceu em maio de 2015 com o objetivo de tornar visível a desigualdade de gênero por meio da divulgação de dados, estatísticas, conteúdo acadêmico e produção original voltada para todos os públicos.
           

3-
Genderit é um projeto do Programa de Direitos das Mulheres da Association for Progressive Communications. O site é um think tank de e para os direitos das mulheres, sexualidade, direitos sexuais e ativistas dos direitos da Internet, acadêmicos, jornalistas e defensores. Levam artigos, notícias, podcasts, vídeos, quadrinhos e blogs sobre políticas e culturas da Internet a partir de uma perspectiva feminista e interseccional, privilegiando vozes e expressões da África, Ásia, América Latina, países de língua árabe e Europa Oriental.
           

4-  
Marialab: “Somos feministas interessadas em cultura hacker e os conhecimentos que unem política, gênero e suas tecnologias. Pautamos a interseccionalidade nas nossas ações, não toleramos machismo, homofobia, transfobia, misoginia, lesbofobia, xenofobia e racismo. Nosso objetivo é semear conhecimento, autonomia com corresponsabilidade e caminhos de mudanças sociais. Somos uma coletiva hackerfeminista”
       

5- 
A Vedetas é uma servidora feminista produzida a partir de algumas integrantes do MariaLab. Ela existe para ajudar grupos feministas nas suas atividades online e aumentar a segurança e autonomia de mulheres na internet. Também há bastante material sobre cultura hacker, segurança da informação e feminismo.
                               


6
– 
O Guia Prática de Estratégias e Táticas para a Segurança Digital Feminista foi construída pela Universidade Livre Feminista, o CFEMEA (Centro Feminista de Estudos e Assessoria), Marialab e Blogueiras Negras e SOS Corpo (Instituto Feminista para a Democracia). A proposta é provocar o debate sobre mudança de comportamento no espaço virtual e no uso de ferramentas e dispositivos que acessam a internet visando a proteger mulheres das violências sofridas na rede.
         

7-
 A PyLadies  é um grupo de mentoria com foco em ajudar mais mulheres a se tornar participantes ativas e líderes na comunidade open source Python. Sua missão é promover, educar e promover uma comunidade Python diversificada através de divulgação, educação, conferências, eventos e encontros sociais. No Brasil organiza diversas atividades e tem núcleos em cidades como São Paulo, Porto Alegre, Campinas e Fortaleza, entre outras cidades.
           

8-
A Django Girls é uma organização sem fins lucrativos e uma comunidade que capacita e ajuda as mulheres a organizar oficinas de programação gratuitas, de um dia, fornecendo ferramentas, recursos e suporte. “Somos uma organização de voluntariado com centenas de pessoas contribuindo para levar mulheres mais incríveis ao mundo da tecnologia. Estamos tornando a tecnologia mais acessível criando recursos projetados com empatia.” Durante cada um dos eventos, entre 30 e 60 mulheres criam sua primeira aplicação web usando HTML, CSS, Python e Django.
             

9-
A GenderHacker é um “un estado de eterna transición y negación del binarismo extremo por el que el cuerpo indeciso debe transitar de una de las dos identidades permitidas a la otra y nunca quedarse en medio”. Site com diversos projetos, obras e trabalhos da artista e ativista trans Diego Marchante.
           

10 –
I am the Code é um movimento puxado por iniciativas da África para mobilizar governos, empresas e investidores para apoiar mulheres jovens em STEAMD (Ciência, Tecnologia, Engenharia, Artes, Matemática e Design), especialmente em comunidades mais vulneráveis.
         

11-
Minas Programam é uma iniciativa que promove oportunidades de aprendizado sobre programação para meninas e mulheres, priorizando negras e indígenas para desfazer estereótipos de gênero e de raça que influenciam as relações com as áreas de ciências, tecnologia e computação.
             

12-
Mundo Negro é um dos primeiros portais de informação feitos para negros no Brasil, organizado e dirigido pela jornalista Silvia Nascimento, ajudou na criação de uma série de vídeos no youtube como nome #falesemmedo ligados à pagina do Mundo negro.
         

13-
Organizado a parti de Olabi, organização social que trabalha para democratizar a produção de tecnologia, o PretaLab é um projeto que foca sobre a necessidade e a pertinência de incluir mais mulheres negras na inovação e na tecnologia.
           

14-
O PrograMaria tem como objetivo empoderar meninas e mulheres por meio da tecnologia. Acredita que é preciso rever essas narrativas culturais que dizem o que a mulher pode ou não fazer, além de oferecer ferramentas e oportunidades para que elas aprendam.
           

15-
Mulheres na computação, iniciativa organizada por Camila Achutti, tem como missão ajudar outras meninas a ter suas vidas transformadas pela tecnologia.
           

16-
A Reprograma é uma iniciativa de impacto social que foca em ensinar programação para mulheres cis e trans que não têm recursos e/ou oportunidades para aprender a programar.
           

17-
A InfoPreta é uma empresa que tem por objetivo inserir pessoas negras, LGBTQI+ e mulheres no mercado de tecnologia, tendo como serviço principal a manutenção de hardware e softwares de computadores de todas as marcas. Também recebe lixo eletrônico para efetuar o descarte correto.
           
18- A InspirAda na Computação é um espaço de comunicação colaborativa para fortalecer a voz das mulheres na computação, ciência e tecnologia.

TEXTOS & ENTREVISTAS & RELATÓRIOS

(com links de acesso livre)
                               

1-

Relatório produzido pela organização Derecho Digitales sobre gênero, internet e feminismo na América Latina. Detalha vários projetos na área, alguns que já listados aqui, outros não. Vale acessar o texto completo, de 30 páginas.

2- A Revista Pillku, focada em cultura livre e procomún, trouxe como tema de sua edição de dez 2017 o ciberfeminismo. A edição fala desde “la resistencia, las identidades disidentes, la interseccionalidad, disputamos el acceso universal a internet, con deseos de inundar la red con contenidos feministas y descolonizar los medios digitales”.
3- Menstruapps é uma reportagem especial criado pela Coding Rights que documenta os aplicativos que monitoram a menstruação (e ganham dinheiro com isso). Reportagem, design e infográfico feito por mulheres, a partir de uma organização também com ênfase no ciberfeminismo.
4- A Radios Libres é um projeto latino-americano que pretende ser um “espaço de formação e debate em torno das tecnologias livres e da cultura livre”. Em Por una internet feminista, entrevistaram a Loreto (Maka) Bravo, da Red de Radios Comunitarias y Software Libre y Palabra Radio, que explicou como o feminismo e as tecnologias livres são ferramentas que permitem lutar contra o patriarcado.
5- Ciencia, Cyborgs y Mujeres: La Reinvención de la Naturaleza” é um livro de ensaios da antropóloga Donna Haraway. “O trabalho de Donna Haraway é uma verdadeira encruzilhada. Reúne diferentes disciplinas acadêmicas (Biologia, Antropologia, História), várias tecnologias (Fotografia, Manipulação Genética, Agricultura) e várias formas de construção de experiência (Turismo, Partidos Políticos). Seus ensaios são simultaneamente história da ciência, análise cultural, pesquisa feminista e posição política. Eles são escritos com a intenção de que aqueles que os abordem a partir de uma dessas perspectivas se encontrem caminhando pelos outros, já que nenhum deles é suficiente para capturar as nuances de textos polifônicos.”
6- A antropologia do ciborgue: As vertigens do Pós-humano” é um livro que contém 4 textos que questionam a matéria de que somos feitos. A subjetividade humana entrelaçada à imagem do ciborgue. Contém um dos textos mais famosos de Donna Haraway, “Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo socialista no finaldo século XX”.
7- O artigo “Ih, vazou!”: pensando gênero, sexualidade, violência e internet nos debates sobre “pornografia de vingança” de Beatriz Accioly Lins  tem  como  objetivo  refletir  sobre  alguns  aspectos  das  discussões  acerca  da  “pornografia  de  vingança”  (divulgação/exposição não autorizada, geralmente pela internet, de conteúdos íntimos contendo nudez e/ou sexo), categoria que vem sendo mobilizada por militantes feministas, em notícias veiculadas pela mídia e em iniciativas legislativas levadas ao Congresso Nacional.
8- O artigo “Feminismos em movimento no ciberespaço” de Fabiana Martinez discute a relação histórica entre mulheres e redes sociais e o conjunto de discursos e manifestações feministas que eclodiram em 2015.
9- O artigo “Como vencer uma eleição sem sair de casa: a ascensão do populismo digital no Brasil“, de Letícia Cesarino, é baseado em dez meses de pesquisa online em redes sociais bolsonaristas. O estudo avança sobre o conceito de populismo digital para pensar as particularidades e efeitos da digitalização contemporânea do mecanismo populista clássico descrito por Ernesto Laclau e Chantal Moufe, articulando-o com noções da cibernética, teorias de sistemas e teoria antropológica. 
10- Esse texto de Claudia Pereira Ferraz, “Ciborgue e Ciberfeminismos no Tecnocapitalismo“, aborda estudos sobre os movimentos ciberfeministas a partir das seleção das amostras em páginas feministas. Utiliza-se da metáfora ciborgue para abordar a potência das tecnologias da comunicação no tecnocapitalismo. Pressupõe que o tecnocapitalismo ainda opera com os certos espectros do colonialismo, onde as relações técnicas são privilegiadas em relação às humanas. Demonstra os ciberfeminismos mapeados no conceito de multidão, constituindo frentes de defesas contra os valores patriarcais da base do Império tecno-capitalista, em suas ações nas redes e ruas. 
11- O artigo de Joan Pujolv e Marisela Montenegro “Technology and Feminism: A Strange Couple” “constituye un prolífico programa de investigación que compara las diferencias entre mujeres y hombres en el acceso a las Tecnologías de Información y Comunicación. Las perspectivas socio-constructivistas feministas, sin embargo, abogan por la necesidad de prestar atención no sólo al “acceso”, sino también al “diseño”, y consideran las relaciones sociales como elementos codificados en el interior los artefactos tecnológicos”.
12- O artigo de Judy Wajcman “Tecnologia de produção: fazendo um trabalho de gênero” avalia o impacto das tecnologias de produção sobre as divisões sexuais na esfera do trabalho pago. A análise centra-se na observação das relações de gênero no local do trabalho. O argumento principal é que as tecnologias são moldadas a partir de relações sociais específicas, incluindo aqueles referentes a gênero.
13- O livro de Judy Wacman “Feminismo confronts technology” discute mais abertamente sobre a relação de trabalho das mulheres na cultura da tecnologia, abordando também como o feminismo discute a área da tecnologia.
14- O livro de Judy Wajcman “El Tecnofeminismo” aborda os principais debates das ciências sociais sobre tecnologia com uma perspectiva feminista: as mudanças tecnológicas em homens e mulheres, desde métodos contraceptivos, automóveis, armas e suas relações de identidade de gênero. Explora também as hierarquias na ciência e tecnologia da informação a partir de teorias feministas.
15- Paul Preciado, no livro “Manifesto contrasseuxual: Práticas subversivas de identidade sexual“, aborda temas em torno das técnicas suberversivas e tecnologias do sexo.
16- O artigo de Andyara Letícia de Sales Correia “Cibertecnologia, ciberfeminismo e tecnofeminismo: um novo olhar sobre a filosofia da tecnologia” tem por objetivo analisar formas de reconhecimento a partir do aporte teórico de Nancy Fraser e Donna Haraway, explanando a relação entre cibertecnologia e as relações de poder.
17- O “Bots como agentes de expressão: regime de visibilidades e o poder de criar redes“, de Lorena Lucas Regattieri, retoma um estudo de caso das eleições presidenciais de 2014 sobre o uso de bots no Twitter como agentes de expressão. Ao coletar dados digitais do Twitter, partiu-se de uma técnica quali e quantitativa de análise das redes sociais para cartografar as estratégias de computacionais de propaganda. Sob efeito dos bots, as modulações produzidas da interação entre atores humanos e não humanos fornecem novos parâmetros para compreender fenômenos políticos-comunicacionais.
18- O artigo “Perfis Ciborgues: humanos-robôs e robôs-humanos nos ecossistemas de informação online“, de Lorena Lucas Regattieri, trata do banco de dados de perfis ciborgues em condensação na rede e de como perfis humanos e não-humanos se organizam pelos algoritmos. Faz isso a partir de uma análise dos eventos mais populares durante a disputa eleitoral de 2014 pelo uso das redes sociais.

19- A edição da Revista Themis chamada “Novas Tecnologias Sociais no enfrentamento à violência contra as mulheres” se dedida à luta pela não violência contra as mulheres, pela igualdade de gênero e pelo fortalecimento das insituições e construções de politicas públicas afirmativas.

 

20-Acesso negado: Propriedade intelectual e democracia na era digital” da Maria Caramez Carlotto, Edições Sesc Digital, 2019.
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https://baixacultura.org/2021/03/08/iniciativas-tecnopoliticas-feministas-para-conhecer-e-inspirar/feed/ 1
Tecnologias radicalmente abertas https://baixacultura.org/2021/02/15/tecnologias-radicalmente-abertas/ https://baixacultura.org/2021/02/15/tecnologias-radicalmente-abertas/#comments Mon, 15 Feb 2021 20:29:21 +0000 https://baixacultura.org/?p=13396

Trabalhadora alemã na produção de ES 2655 mainframe na VEB Robotron, Alemanha Oriental, anos 1980. Fonte: Wikipedia

No nosso atual estado das coisas, o aparato – monstruoso – tecnológico precisa ser visível em sua integridade.

*

Nossa BaixaCharla #5 tratou de Friedrich. A Kittler, teórico de mídias alemão, a partir de uma de suas obras mais importantes, “Gramofone, Filme, Typewriter”, publicada em alemão em 1986 e editada o Brasil pela primeira vez em 2019. A conversa foi entre Leonardo Petersen Lamha, doutorando em Literatura Comparada na Universidade Federal Fluminense (UFF), e Leonardo Foletto, editor do BaixaCultura; o roteiro dos temas (mais ou menos) seguidos, com trechos da obra, está aqui. A conversa ficou gravada no YouTube (veja mais abaixo, na íntegra) e, com algumas edições e inserções musicais, virou também o primeiro podcast do BaixaCultura, já disponível em algumas plataformas de streaming a partir do Anchor, como o Spotify, que ainda é como as pessoas mais acompanham podcast. Alguns trechos, provocados pela charla, não necessariamente falados nela (alguns sim), estão neste post.

Uma genealogia possível da obra de Kittler parte, necessariamente, de Marshall McLuhan, e de Harold Innis, dois canadenses conhecidos a partir de Toronto. É a ideia de pesquisar as mídias não pelo seu conteúdo, mas por ela própria, os efeitos que elas causam. Kittler, porém, fala com mais conhecimento técnico que McLuhan; entra na carne dos aparatos, mostra diagramas e esquemas de como funcionam, traz elementos matemáticos e físicos que ajudam a dar clareza a como uma mídia veio a ser, e o que ela implica. Diverge ao inverter a máxima do teórico canadense: não são os meios de comunicação que são extensão do homem, mas o homem que é extensão da mídia. Como os teóricos franceses pós-estruturalistas que o influenciaram, tira a centralidade do humano – mas coloca na técnica e nas mídias, aparelhos que fazem as pessoas poderem se tornar obsoletas.

Mídia e técnica são diferentes para o autor alemão. A primeira processa, transmite ou armazena informação; a segunda não. Um machado, por exemplo, não processa informação, não corta um naco da realidade como as mídias fazem – é, portanto, uma técnica, um aparato técnico. As mídias transmitem, além do conteúdo, uma maneira de pensar, se comportar, pensar, relacionar. Internalizam, autonomizam e depois prescindem dos nossos sentidos. É o gramofone transformando som em sulcos;  o filme, imagens em celulóide (papel); o cinematógrafo, imagens em luz e sombra; a typewriter, o próprio ato de escrever em máquina. Todos a romper com o monopólio da escrita na percepção e construção da realidade a partir das inscrições do real em aparatos, máquinas, materiais. O gramofone, por exemplo: ao transmitir a realidade, um pedaço da realidade, a partir da transformação de um som em sulcos em cilindros (depois em discos), se torna uma técnica de criação de mundo. De que forma a realidade criada pelas inscrições do som em sulcos é diferente da anterior, monopolizada pela escrita como ferramenta de arquivo de informação e conhecimento? Como ouvir a voz em um aparelho afeta a memória?

Em Kittler, o passado parece à todo momento ficção científica. Na medida em que constroem outros mundos, cada vez mais complexos e diferentes daquilo que o humano chama de natureza, as mídias inventam narrativas baseadas nos aparatos técnicos: Ficção + Ciência. O controle artificial a que estas mídias são postas, a cargo de governos e empresas, traz sabor de distopia à estas histórias, sobretudo para quem vive a partir dos anos 2010 a intoxicação de informação potencializadas pelas redes sociais. Mas as tecnologias – e as mídias – foram desenvolvidas não para civis, mas para militares em contextos bélicos; poderíamos, no fundo, esperar diferente de algo que foi inventado para vencer as guerras, aniquilar os adversários, matar?

**

Palestra de Kittler em 1989, três anos depois da publicação de “Gramofone, FIlme, Typewriter” em alemão. Fonte: monoskop.org

Em julho de 1999, uma palestra de Kittler chamada “Wizards of OS” deu origem ao texto “Science as Open Source Process“. Nesse texto/palestra, o alemão divaga sobre o impacto dos computadores na nossa sociedade, vai contra a propriedade intelectual, defende o conhecimento e o software livre, entre outros vários temas possíveis em três páginas de escrito. Um trecho, adaptado livremente da tradução em inglês de Peter Krapp.

Não foi por acaso que as garagens e salas dos “consertadores” (hackers) que estabeleceram as bases para empresas globais como a Intel e a Apple estavam e estão localizadas próximas ou mesmo no terreno de instituições como a Rand Corporation ou a Leland Stanford Junior University. A indústria da computação faz o que a Máquina de Impressão de Gutenberg fazia quando assumiu e industrializou a caligrafia da universidade medieval. Os headhunters da Microsoft espreitam em Stanford e em outras portas de departamentos de ciência da computação, pegam novos servos de programação com novos algoritmos e os espremem por cinco anos, até que os algoritmos se tornem proprietários e os programadores, com suas opções de ações, sejam dispensados antes da aposentadoria. O pior aspecto deste escândalo parece-me que ninguém fala sobre ele.

Outro trecho, sobre propriedade intelectual:

Uma commons law americana, cujo alcance se estende da Comissão Europeia à República Popular da China, tornou um conceito impossível de propriedade intelectual tão onipresente quanto inquestionável. Máquinas que, de acordo com a prova de Turing, podem ser não apenas todas as outras máquinas, mas igualmente todos os cálculos humanos, agora devem legitimar patentes e direitos autorais mais profundamente do que nunca. Máquinas que, de acordo com os resultados mais recentes, funcionam mais rápido e com mais eficiência quando não foram programados por programadores, mas por si próprios, devem pertencer aos humanos como propriedade privada – talvez por meio de um eufemismo para os interesses corporativos do capital.

A relação das consequências da “computer revolution” com o período medieval também se faz presente:

Quando a imprensa escrita e o estado-nação engoliram as tecnologias de mídia da universidade medieval, o conhecimento foi deixado praticamente intocado no nível do conteúdo. O armazenamento e a transmissão foram privatizados ou nacionalizados, mas o processamento de dados propriamente dito ainda era conduzido naquele belo e antigo circuito de feedback de olhos, ouvidos e mãos que escrevem. Foi isso o que mudou com a revolução do computador. As máquinas universais de Turing tornam especialmente esse processamento de dados tecnologicamente reproduzível. Elas fizeram com que as diferenças entre os conhecimentos sobre tecnologia, ciências naturais e humanidades desaparecessem progressivamente.

O texto, como o título sugere, pode ser lido como uma defesa da ciência – e das tecnologias – como processos que precisam ser abertos. Daí sua crítica ao sistema de patentes de software e a defesa do software livre, do GNU (criado a partir de Richard Stallman enquanto estava no MIT) ao Linux (desenvolvido principalmente pelo finlandês Linus Torvalds).

Todos vocês sabem melhor do que eu que a crítica a este sistema só pode ser prática. Observações teóricas ou históricas como a minha podem, no melhor caso, ajudar para que não se perca a visão geral entre todas as atualizações e benchmarks [dessa indústria]. No entanto, foi prático quando alguns programadores do MIT resistiram à venalidade e quando um estudante de ciência da computação na Universidade de Helsinque superou o medo generalizado de montadores e partidas a frio. É assim que o código-fonte aberto e o software livre são imediatamente conectados à universidade. Veja quanto “edu” está nos fontes do kernel Linux. É também assim que o futuro da universidade depende diretamente desses recursos livres.

O desfecho do texto sugere algo que, quando foi escrito (falado), Kittler estava praticando, ao se embrenhar nos computadores e ensinar programação  à crianças – depois ele abandonou essa atividade, mas isso é outra história.

“No futuro”, supõe-se que Bill Gates tenha dito recentemente em um memorando talvez não proprietário, mas ainda interno, “trataremos o usuário final como tratamos os computadores: ambos são programáveis”. Mas enquanto houver pessoas que sejam capazes de programar em vez de serem programadas, essa visão felizmente não terá futuro.

O teórico alemão a todo momento, direta ou indiretamente, faz um alerta: não confundir as tecnologias com as interfaces. Como consequência que é muitas vezes vendida como inevitável para nós, a construção de cada vez mais complexas tecnologias traz à reboque as interfaces, interpostos que apagam o funcionamento de algumas tecnologias (e das mídias) em nome de um maior e mais fácil uso e acesso a estas tecnologias por todos. Será mesmo inevitável viver com aparatos que não entendemos bem como funciona – e nem temos acesso ao seu código-fonte – em nome daquilo que estes aparatos nos facilitam, nos fazem fazer? será que fatalmente vamos viver intoxicados pelo que as “novas” tecnologias nos prometem sem termos feito o trabalho de entender como essas tecnologias vieram a ser, nesse momento histórico, com esses atores?

Outras perguntas que renderiam muitas conversas e publicações: É da natureza da máquina se esconder? Seria o papel da mídia desaparecer? Em nome de passar a mensagem, a mídia virar apenas mensagem, dar lugar somente aos seus conteúdos, se tornando invisível todo o aparato técnico-simbólico? Essa parece ser a ideia que muitos, mesmo de forma não intencional, propagam ao esquecer a forma pelo qual uma dada mensagem passa para poder ser veiculada em determinada mídia. Também parece ser um esforço da própria mídia (e do jornalismo): não destacar como funcionam, o seu modus operandi, tornar opaco a forma (e também o conteúdo) ao falar de tecnologias e mídias como também quando falam dos próprios fatos e de como os relatam – o esquecimento do como veio a ser parece ser intencional, embutido no método de fazer, jamais inocência.

Felizmente há gente como Kittler e outros tantos que continuam o esforço de tornar as tecnologias radicalmente abertas.

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BaixaCharla ao vivo #5: Gramofone, Filme, Typewriter, Kittler https://baixacultura.org/2021/01/29/baixacharla-ao-vivo-5-gramofone-filme-typewriter-kittler/ https://baixacultura.org/2021/01/29/baixacharla-ao-vivo-5-gramofone-filme-typewriter-kittler/#respond Fri, 29 Jan 2021 17:25:24 +0000 https://baixacultura.org/?p=13380

 

Estamos de volta com as “BaixaCharlas”, nossas conversas sobre tecnologia, cultura livre e contracultura digital ao vivo. Depois da primeira temporada gravada em 2017/18, da segunda (ao vivo) em 2019, pulamos um ano para, neste 2021, retomar com uma discussão mensal sobre tecnologia, cultura e política, sempre a partir de um livro (ou tema) e com convidadxs.

A quinta BaixaCharla ao vivo, primeira do ano, vai falar sobre “Gramofone, Filme, Typewriter”, obra seminal do teórico das mídias alemão Friedrich A. Kittler. Publicada originalmente em alemão em 1986, ganhou sua primeira tradução para o Brasil em 2019, por Daniel Martineschen e Guilherme Gontijo Flores, em co-edição da Editora UFMG e da Ed. Uerj. Tornou-se um marco na obra do autor; ninguém traçou o impacto discursivo e ontológico das mídias analógicas em maior profundidade que ele, segundo Geoffrey Winthrop-Young, professor da University of British Columbia, na contracapa do livro, e “ em nenhuma parte ele apresenta um relato mais acessível e convincente do que em “Gramofone, filme e typewriter” graças à combinação inaudita entre reflexão teórica e expertise tecnológica, a singular mistura de análise do discurso francesa (Lacan e Foucault), teoria da mídia canadense (McLuhan) e filosofia alemã da técnica (Heidegger)”.

Acessível não é bem algo que dá para falar da obra de Kittler. Sua reflexão sobre a técnica em diversos momentos entra em digressões que misturam áreas diversas do conhecimento e impressionam pelo estilo narrativo, como se ele entrasse num fluxo de consciência tal qual um personagem de William Faulkner (ou de James Joyce) e recheasse o fluxo com ligações não convencionais de ideias que pulam de física acústica à Nietzsche e Pink Floyd em questão de poucas linhas, às vezes na mesma frase. Não primam pela facilidade, mas convence enquanto teoria – e torna a leitura prazerosa como poucos obras “teóricas” na área da filosofia, comunicação, tecnologia, história, com frases como: “De maneira muito mais precisa do que a imaginação poética, cujo alfabetismo ou criatividade já se opunha, em 1800, a uma memória meramente reprodutiva, a tecnologia faz com que o inaudito se torne possível, no sentido estrito da palavra”. Depois desse trecho, num dos momentos mais interessantes do longo livro (412p. na edição brasileira), é mostrada a letra de “Fat Old Sun”, do Pink Floyd, e Kittler segue sua reflexão sobre a magia e a física da reprodução elétrica de sons começada pelo primeiro aparelho de reprodução desse tipo a ser popularizado – o gramofone de Thomas Edison, no final do século XIX.

 “O inaudito, no sentido estrito da palavra, é o ponto em que a tecnologia da informação e a fisiologia do cérebro coincidem. Não fazer barulho algum, erguer os pés do chão e, quando a noite cai, ouvir o som de uma voz – todos fazemos isso: ao colocarmos para tocar o disco que comanda tal magia. E o que vem depois é verdadeiramente um ruído prateado, estranho ou inaudito. Pois ninguém sabe quem está cantando – a voz chamada Gilmour que entoa a canção, ou a voz da qual parte o discurso, ou enfim a voz do próprio ouvinte, que não faz nenhum som e mesmo assim tem que cantar tão logo estejam cumpridas todas as condições da magia”.

 

Kittler. Fonte: Neue Zürcher Zeitung (The New Zurich TImes)

Mas afinal, quem é esse sujeito que narra a história da técnica com datas, fatos, teorias, figuras históricas e objetos técnicos como se fosse um escritor de ficção a manejar vozes de personagens em um romance? Nascido no final da Segunda Guerra Mundial e falecido em 2011, Friedrich Kittler começou sua carreira como crítico literário, passando pelo estudo das mídias analógicas, depois para a gênese do computador e, por fim voltou à Grécia Arcaica para investigar a relação entre os deuses, o alfabeto e a matemática, numa espécie de gênese do ocidente sob perspectiva tecnológica. A literatura sempre esteve presente em seus estudos: fez a tese de doutorado (em filosofia) sobre um poeta alemão, Conrad Ferdinand Meyer, foi primeiro professor de Literatura Moderna Alemã e depois se encaminhou para os estudos de mídias e estética, em universidades alemãs e dos Estados Unidos. Ao lado de Hans Ulrich Gumbrecht, Siegfried Zielinski e Vilém Flusser, foi um dos nomes mais proeminentes da Teoria Alemã de Mídia, uma perspectiva de pensamento “popularizada” (porque nunca realmente popular, como deve se imaginar) no meio acadêmico a partir dos anos 1980 como “Arqueologia das Mídias”, um mergulho profundo nas mídias do passado para entender, em detalhes, o funcionamento das máquinas (e da relação entre homem, sociedade e máquina) do presente.

“A pergunta básica da arqueologia da mídia poderia ser simplesmente: quais as condições de existência dessa coisa, desse enunciado, desses discursos e das múltiplas práticas midiáticas com as quais vivemos? Tais questões são políticas, estéticas, econômicas, tecnológicas, científicas e além – e deveríamos recusar tentativas de deixar de fora quaisquer desses aspectos”. (Jussi Parikka, What is Media Arqueology, p. 18, tradução livre de Leonardo Lamha)

“Gramofone, Filme, Typewriter” é considerada seu trabalho mais conhecido, mas o leitor brasileiro dispõe também em português de “Mídias Óticase “A verdade do mundo tecnológico, lançados pela editora Contraponto. Apesar da publicação recente desses livros, sua obra ainda é (relativamente) pouco estudada no Brasil. Uma pista para isso decorre de sua interdisciplinaridade sui generis, mistura de literatura, história militar, computação, matemática e teoria pós-estruturalista, que não cai bem em formas de pensar separadas em “caixinhas” que pouco se cruzam, modo predominante no status quo da universidade brasileira. Outra é que Kittler, ao contrário de outros pensadores mais populares, não fornece teorias prontas, mas desenha genealogias – em seu caso, genealogias do desenvolvimento de processamento, armazenamento e transmissão de informação. Há ainda uma terceira pista: o texto de Kittler pode ser complexo e chato demais para alguns.

As três palavras que dão nome ao livro correspondem a “sistemas discursivos” ou “sistemas de notação”, que é como Kittler denomina os dispositivos tecnológicos e culturais que registram, processam e transmitem informações conhecidas como “mídias” (ou meios) em português. Cada palavra é um ensaio sobre um desses aparatos, “sistemas”, “mídias”, que quebram, pela primeira vez desde a invenção do alfabeto, o monopólio da escrita. O gramofone, a película/câmera de cinema e a máquina de escrever fragmentam a informação em incompatíveis fluxos acústicos, visuais e escritos e, pela primeira vez na história, fazem com que as pessoas (não) se reconhecem em mídias que registram a natureza e os corpos humanos.

Das palavras também vem uma particularidade do título: Grammophon, Film, Typewriter, título original do livro em alemão, já vinha grafado de forma híbrida: typewriter estava em inglês, e assim permanece em português porque no contexto da obra não deve ser traduzida: se refere a uma dupla significação (máquina de escrever e datilógrafo/a) e a uma dupla articulação das duas mídias: “de um lado, o aparato tecnológico inventado para padronizar a escrita; de outro, a pessoa que faz uso profissional do aparelho”, como escrevem Adalberto Müller e Erick Felinto no prefácio brasileiro à obra, professores da UERJ que foram também grandes incentivadores da publicação da obra no Brasil.

Para conversar sobre e a partir de Kittler, o convidado da BaixaCharla é Leonardo Petersen Lamha, doutorando em Literatura Comparada na Universidade Federal Fluminense (UFF). Ele recentemente escreveu a resenha “Ruído, noite e frio”, publicada na Internet & Sociedade, revista do InternetLab, da qual muitas informações desse texto foram retiradas. Leonardo pesquisa relações entre mídia, tecnologia e literatura a partir da teoria alemã da mídia, em especial as obras de Friedrich Kittler e Franz Kafka.

A conversa vai ser realizada na próxima quinta-feira, 4/2, às 19h, entre Leonardo Lamha e Leonardo Foletto, editor do BaixaCultura, em nosso canal do Youtube. Depois ficará disponível no mesmo site.

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Streaming e a “pirataria” digital atuam em parceria? https://baixacultura.org/2019/09/25/streaming-e-a-pirataria-digital-atuam-em-parceria/ https://baixacultura.org/2019/09/25/streaming-e-a-pirataria-digital-atuam-em-parceria/#respond Wed, 25 Sep 2019 14:59:46 +0000 https://baixacultura.org/?p=13003 Faz alguns anos que, aqui no BaixaCultura, temos uma seção em que publicamos trabalhos acadêmicos (TCCs, dissertações e teses) sobre os temas que tratamos (cultura livre, direito autoral, compartilhamento, “pirataria”, guerrilha da comunicação, contracultura digital, tecnopolítica), acompanhados de textos mais soltos que apresentam os trabalhos. Alguns dos trabalhos trataram, por exemplo, da relação do jornalismo com o compartilhamento a partir do The Pirate Bay; das táticas antimidiáticas contra o biopoder de Luther Blisset; da batalha entre propriedade intelectual e a cultura livre; um zine-dissertação que fala de produção de conhecimento.

O de hoje é a tese de Andressa Soilo, pesquisadora e agora doutora em Antropologia Social pela UFRGS. Abaixo está o texto que ela fez especialmente pra apresentar sua tese; ao final, seu trabalho está disponível na íntegra.

[Leonardo Foletto, editor]

 

O tema de minha tese surgiu de meu interesse pela prática da pirataria, e da então atraente e promissora tecnologia streaming. Em 2015, quando ingressei no doutorado em Antropologia Social na UFRGS, quando ainda sondava a temática de minha futura tese, o streaming vivia o apogeu de sua popularidade enquanto meio de distribuição e consumo de entretenimento, e irrompia como promessa, esperança, solução para aqueles desconfortáveis com a prática dita “pirata” – acesso não-autorizado de conteúdo.

As expectativas e os novos ares que tal tecnologia mobilizava à época estavam associados, sobretudo, a um possível declínio, e até morte da pirataria em razão das (cativantes) plataformas de streaming existentes. Essa atmosfera mobilizou não apenas um estranho frenesi pelo possível óbito de uma prática que resistia há duas décadas a nível global, mas também meu interesse em analisar as relações entre as plataformas de transmissão instantânea e a pirataria. Afinal, seria o colapso de um meio de acesso a conteúdo altamente popular? Seria o fim da pirataria? Quem recorreria a tal prática após a sólida notoriedade de serviços como Spotify e Netflix? Estaria a pirataria tão distante de tal tecnologia?

As perguntas eram diversas. Não havia quem, em meu círculo social, que não comentasse de alguma série ou documentário que assistiram na Netflix, ou que não mencionasse as playlists que faziam ou que lhes eram recomendadas pelo Spotify. O que a pirataria tinha a ver com essa localização de diversos adoradores do entretenimento na legalidade? Muito.

No período de julho de 2015 a maio de 2019 analisei, através etnografia no campo digital, as relações entre pirataria e o mercado legalizado de streaming de filmes, músicas e produções correlatas. Minha pesquisa teve como interlocutores, dados, campo e meio de transporte ao campo, o espaço digital oportunizado pela internet. Os agentes, as interações observadas, os dados produzidos foram possíveis através de redes de transmissão de dados, backbones, provedores de acesso, url’s (Uniform Resource Locator), sites, programas, algoritmos, hardwares, entre tantos outros agentes sociotécnicos capazes de produzir e estabelecer mediações entre pessoas e o contexto digital.

Analisei, especialmente, manifestações de serviços de streaming que tem como principal finalidade a venda de acesso/assinatura, como Spotify, Deezer, Netflix, Tidal, Hulu e Amazon Prime Video; as agências de 314 interlocutores localizados em 31 países praticantes da “pirataria” na mídia social Reddit, mais especificamente no subreddit Piracy; e a agência do programador da plataforma de streaming Leonflix, plataforma considerada pirata.

Após inúmeras horas de interação e análise no campo digital e depois da coleta de centenas de relatos e discursos de interlocutores, foi a mim possível visualizar respostas às perguntas que inicialmente me instigaram a produzir minha tese.

A pirataria não se apresenta “fora” da distribuição e consumo legalizados do entretenimento. Ela é uma coautora de tal formato de acesso, influenciando, inspirando e dialogando com o circuito da indústria formal. Minha pesquisa permite argumentar que a “pirataria” e os serviços de streaming atuam dialogicamente de modo a integrarem uma maleável e mutável cadeia relacional de negociações atravessada por moralidades, sentidos de justiça, criatividades, interações com a lei e desejos.

Constantemente ajustada por segmentos considerados ilegais, o mercado do entretenimento em streaming é produzido tanto por CEOS’s, produtores e artistas, quanto por programadores e usuários “piratas” que estabelecem, muitas vezes através de vias extralegais, os padrões do “dever ser” da indústria.

[Andressa Soilo]

A tese, chamada Habitando a distribuição do entretenimento: o regime de propriedade intelectual, a tecnologia streaming e a “pirataria” digital em coautoria“, está disponível para consulta e download.

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