Entrevista – BaixaCultura https://baixacultura.org Cultura livre & (contra) cultura digital Wed, 10 Sep 2025 14:34:06 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.0.10 https://baixacultura.org/wp-content/uploads/2022/09/cropped-adesivo1-32x32.jpeg Entrevista – BaixaCultura https://baixacultura.org 32 32 Capitalismo, semiótica e as subjetividades do fim: entrevista com Alessandro Sbordoni https://baixacultura.org/2025/09/10/capitalismo-semiotica-e-as-subjetividades-do-fim-entrevista-com-alessandro-sbordoni/ https://baixacultura.org/2025/09/10/capitalismo-semiotica-e-as-subjetividades-do-fim-entrevista-com-alessandro-sbordoni/#respond Wed, 10 Sep 2025 14:25:14 +0000 https://baixacultura.org/?p=15913 Em julho de 2025, o italiano radicado em Londres Alessandro Sbordoni esteve no Brasil para o lançamento de “Semiótica do Fim – Capitalismo e Apocalipse”, pela editora SobInfluencia. O livro, como já comentamos no texto de apresentação, é uma coletânea de 13 ensaios que investiga como o fim do mundo se tornou apenas mais um signo do “semiocapitalismo”. A tese – se podemos assim chamá-la num texto tão aberto a provocações e leituras distintas – é que o fim do mundo é “apenas mais um signo” do semiocapitalismo: o apocalipse, tal como tradicionalmente concebido, não ocorrerá porque já está em curso permanente. Não há mais diferença entre o fim do mundo e o próprio capitalismo: ambos se reproduzem incessantemente segundo a lógica semiótica do capital, diz Sbordoni. Seu livro, então, se apresenta como um manifesto que nos convida a pensar sobre o que significa “fim” hoje.

Em 17 de julho de 2025, um dia antes do primeiro lançamento do livro [na sede da editora SobInfluencia, na Galeria Metrópole, referência cultural e artística do centro de São Paulo; veja íntegra do evento aqui], conversamos com Alessandro num restaurante amazônico dentro da galeria. Pelo BaixaCultura, Leonardo Foletto e Rafael Bresciani, com participação de Rodrigo Côrrea, editor e designer da SobInfluencia. Entre Cupuaçú amigo (a versão local do drink “Caju Amigo”) e Tacacás (a famosa “sopa” amazônica, com jambu e tucupi), a conversa foi de “Semiótica do Fim” às relação entre cultura alta e baixa, anti-assombrologia, revistas digitais como espaços de encontro intelectual, underground, tecnologia, teoria contemporânea. Abaixo uma versão editada da conversa. Originalmente em inglês, também foi publicada no Institute of Network Cultures (INC) de Amsterdam.

BaixaCultura: Para começar: como surgiu a ideia do livro? Em que contexto foi produzido? Conte um pouco mais sobre sua trajetória na escrita do livro.

Alessandro: Em 2020/2021, li “Fenomenologia do Fim” de Franco Berardi. Ao lê-la, achei a abordagem sobre o capital e o capitalismo muito intrigante, algo que ficou na minha cabeça por um tempo. Eu tinha acabado de escrever outro livro sobre algo completamente diferente, mas sabia que queria fazer algo assim. Alguns meses depois, escrevi um ensaio, que é o primeiro do livro, com um subtítulo diferente, mas o título principal era “Semiótica do Fim”. Eu não sabia o que sairia daquilo; era sobre tédio e o fim do mundo. Publiquei no Blue Labyrinths, a primeira vez que publiquei lá. Alguns meses depois, publiquei outro ensaio, novamente com o mesmo título e um subtítulo diferente, e depois o terceiro ensaio. Assim, pouco a pouco, tudo começou a se encaixar. Obviamente, o título “Semiótica do Fim” é uma referência a “Fenomenologia do Fim”, e pensei que faria algo similar.

Então, o livro surgiu organicamente. Pouco a pouco, comecei a perceber que queria misturar a ideia de semio-capitalismo como uma forma de analisar, criticar e ir além da ideia de realismo capitalista em Mark Fisher, que é o núcleo do livro.

BaixaCultura: Você é filósofo?

Alessandro: Eu não me consideraria… Há uma citação muito engraçada de Guy Debord, que disse: “Não sou filósofo, sou estrategista”. Me vejo assim: não sou filósofo, com certeza. Talvez seja estrategista, mas definitivamente me considero mais um teórico. A filosofia carrega toda essa bagagem cultural ocidental com a qual discordo totalmente em me identificar. Então me vejo como teórico, o que também traz certas questões, como: não estou buscando a verdade no que escrevo. Vejo mais como um empreendimento político ou cultural, se preferir, mas não buscando verdade ou conhecimento. Tudo isso é nonsense.

BaixaCultura: Gostaria de perguntar sobre Blue Labyrinths e Charta Sporca, duas revistas digitais nas quais você está envolvido. Quando começaram?

Alessandro: Com Blue Labyrinths, tudo começou quando li os ensaios anti-assombrologia (anti-hauntology) do fundador do Blue Labyrinths, Matt Bleumink, sobre os quais queria falar, e eles formaram o último capítulo do livro. Depois de publicar alguns outros ensaios no Blue Labyrinths, nos tornamos bons amigos e, pouco a pouco, comecei a desempenhar um papel no conselho editorial do Blue Labyrinths junto com outra pessoa.

Para Charta Sporca, eu realmente queria publicar e fazer algo com eles. Os encontrei quando estava na Itália, fazendo minha graduação, e sempre apreciei a mistura de política, literatura e filosofia, tudo junto, que eles fazem.

BaixaCultura: Sobre Blue Labyrinths: que tipo de contribuições vocês buscam? E como a revista se posiciona dentro do panorama atual de publicações culturais e filosóficas?

Alessandro: Aceitamos qualquer submissão que consideremos interessante para nós. Se você ler a descrição, diz algo muito geral: “Uma revista online focada em filosofia, cultura e uma coleção de ideias interessantes.” E essa parte das “ideias interessantes” é o principal, porque todas as revistas e editoras tendem a admitir que focam em uma coisa, talvez porque seja mais fácil ou porque as pessoas têm entendimento limitado. Mas sempre publicamos coisas que esticam um pouco, e até publicamos algumas coisas com as quais tendemos a discordar em certa medida, até mesmo no nível político. Nada muito louco – nunca publicaria um texto fascista, tenho certeza. Mas houve discordâncias, e isso é interessante. Por exemplo, foi uma política muito boa porque atraímos todos aqueles escritores que não sabem onde mais publicar, porque todas as outras revistas são muito específicas, e se você não se encaixa, dane-se. Então, foi muito interessante. E não foi minha ideia; foi Matt, o fundador, que sempre teve essa mentalidade, e sempre gostei disso. E acho que fui atraído porque também na minha escrita faço isso: trago muitas coisas diferentes todas juntas.

BaixaCultura: E por que revistas? Você gosta de revistas digitais?

Alessandro: Pessoalmente, as vejo como uma espécie de “academia cultural”. É quase como um campo de testes ou, se quiser, um treinamento no sentido militar. É uma forma de treinar uma teoria para, então, expandi-la e desenvolvê-la em outros espaços.

BaixaCultura: Charta Sporca, para mim, parece engajar com teoria e cultura italiana contemporânea, incluindo seu próprio trabalho e figuras como Mark Fisher e Deleuze. Como editar essa revista influenciou seu próprio desenvolvimento teórico? E que papel você vê as revistas intelectuais e digitais desempenhando hoje, especialmente no seu caso? A história intelectual italiana tem uma enorme histórico, com Quaderni Rossi, Classe Operaia e A/Traverso, por exemplo, nos anos 1960 e 1970.

Alessandro: Imagine que a revista fosse um espaço com o qual você interage. Você vai lá frequentemente e vê o que as pessoas estão fazendo. E o que sai disso não é teoria ou ideia. Sim, você lê textos interessantes, e eles podem despertar algo, mas essa não é a coisa principal e mais importante. A coisa mais importante é que você conhece as pessoas e cria relacionamentos, como os que também estamos fazendo agora. Isso é algo que percebi nos últimos anos: a coisa mais interessante sobre escrever não é escrever, é conhecer as pessoas. É fazer parte de uma “comunidade”, por falta de palavra melhor – e não gosto da palavra “comunidade” porque quase exige ser definida. São encontros. Encontros com as pessoas que você conhece informam sua teoria, mas é eventual de certa forma. A teoria é secundária à realidade de encontrar alguém. Essas revistas são uma potencialidade em direção aos encontros.

BaixaCultura: E por que sites de revistas e não, por exemplo, redes sociais?

Alessandro: Bem, porque há uma certa autonomia na revista. E isso volta ao que eu estava dizendo sobre essas “ideias interessantes”. Você simplesmente recebe qualquer uma. Fico feliz em conhecer qualquer um que tenha algo interessante a dizer, especialmente se discordam.

BaixaCultura: Voltando ao livro. Ele abre com a declaração provocativa de que “o fim do mundo é apenas outro signo do semiocapitalismo.” Pode explicar o que o levou a essa conclusão e como desenvolve o conceito de semiocapitalismo como distinto das tradições de crítica do capital, como nos livros do Bifo, por exemplo? Se há diferenças ou não.

Alessandro: Definitivamente há diferenças. E sempre tomo todas essas ideias como pontos de partida. E, em certa medida, não estou tentando desenvolver o conceito de semiocapitalismo, mas acho que é um terreno interessante. E, na minha visão, o que aconteceu foi que, em algum momento, a diferença entre materialidade e imaterialidade, entre uma cultura baseada na produção e commodities reais – a dicotomia entre produção e reprodução, nos termos que coloco – foi abolida. E o mundo se tornou mais efêmero e imaterial,  apenas uma estrutura de signos. O interessante é que o capitalismo conseguiu se vincular à reprodução de signos e se reproduzir através de signos, independentemente do que os signos significam. Isso poderia ter sido um problema no passado. Por exemplo, o capitalismo entrando em um discurso radical e obtendo lucro disso, isso poderia ter sido uma contradição no sentido marxista. Acho que agora o discurso foi nivelado e qualquer coisa pode se transformar em capital; qualquer coisa pode ser uma forma de reproduzir capital. E a forma mais extrema disso é o fim do mundo. Porque o capitalismo se alimenta da reprodução até mesmo do seu próprio fim, o que achei que era um ponto de partida interessante por causa da ironia intrínseca. Não acho que haja contradição, mas há uma forte ironia e um forte sentimento de que deveria ser o ponto de partida para algo diferente. E estou tentando encontrar uma forma de abrir para esse novo começo, mas acho que temos que realmente pensar fora da caixa, porque tudo que está dentro da caixa é capital.

BaixaCultura: Você afirma que o apocalipse, como tal, não ocorrerá porque já aconteceu. Isso parece desafiar tanto narrativas religiosas quanto seculares de fim. Como situa essa afirmação em relação às nossas crises ecológicas e sociais que estamos vivenciando? E como podemos pensar sobre outras relações com o fim?

Alessandro: Há, novamente, uma piada triste sobre a catástrofe climática e o “fim sem fim” do capitalismo. Conforme a catástrofe continua, reproduz mais e mais capital, e porque reproduz mais e mais capital, continuará mais e mais rápido. E, paradoxalmente, as poucas imagens que agora temos – por exemplo, os incêndios florestais acontecendo ao redor do mundo – vão aumentar porque o capital vai aumentar, e o capital são essas imagens. E então, conforme o capital aumenta, o fim do mundo se aproxima. Não vejo, seguindo essa linha de raciocínio, um fim para o capital. Mas conforme começamos a nos relacionar com a cultura de forma diferente e começamos a ver que essas imagens não são nada além de capital, que a reprodução é o problema do que representam, essa será uma forma antiga de pensar. O problema é que, se o fim do mundo está se aproximando, ainda estamos produzindo conteúdo e ainda estamos produzindo de forma capitalista. Então, por um lado, uma solução poderia ser encontrar novas formas de produção, mas entramos em um novo paradigma, que chamo de re-produção. Muitos dos diferentes modos de produção-reprodução foram neutralizados.

Então, a única coisa que resta fazer é repensar onde estamos agora. E isso é algo a que Geert Lovink se refere em “Extinção da Internet“: temos que olhar para o abismo para superá-lo. E para mim, também é olhar para como isso nos faz sentir. E, paradoxalmente, falo sobre isso em termos de tédio em vez de ansiedade, porque estamos fartos disso. São 50, 60 anos de predições apocalípticas que não se concretizaram, porque o capital, como disse antes, continua se reproduzindo. Mas se redirecionarmos o conceito de fim e começo de uma forma metafísica – e é por isso que também estamos falando sobre filosofia. Podemos repensar o que significa estar no fim do mundo e o que significa o fim e o começo sempre coexistirem. Uma vez que entendemos isso, abrimos novos caminhos – e, em uma palavra simples, uma nova imaginação.

BaixaCultura: Seguindo essa ideia de fim e começo: geralmente pensamos sobre o progresso humano como marcos de sucesso. Quando as coisas acontecem positivamente, as marcamos. E um desses exemplos é quando, em nível pessoal, nos apresentamos como profissionais, usamos um Curriculum Vitae, que significa as coisas que fizemos na vida, os bons marcos de nossas vidas. Mas uma vez ouvi um psicólogo que defendia a ideia de um Curriculum Mortis, que é a ideia de que, quando reconhecemos os marcos do fracasso, somos capazes de superar esses fracassos. Então, essa visão é algo em que podemos confiar neste momento do Antropoceno e do capitalismo tardio? Usar um Curriculum Mortis da história humana como forma de abordar esse momento.

Alessandro: Há um artigo publicado recentemente em uma revista italiana por Christian Damato que fala sobre como o fracasso foi reintegrado no discurso do sucesso dentro de uma ideologia corporativa. E acho que é uma declaração muito sombria, mas acredito que meramente inverter o problema não o resolve, porque na minha forma de pensar, é uma questão de estruturas. Apenas reverter a estrutura não está criando uma nova estrutura, mas pode ser um meio para uma nova estrutura. Então, até mesmo enfatizar o fracasso poderia potencialmente ser um caminho para algo, mas não é suficiente.

Eu diria que o progresso só existe de acordo com um certo conjunto de critérios estabelecidos por uma cultura. E, de fato, a ideia de progresso no Ocidente foi muito criticada (por exemplo, por Jacques Derrida). Você sempre encontra um progresso constante se apenas decidir sobre os parâmetros certos para avaliá-lo. E acho, portanto, que a solução para esse problema é mudar as regras da questão. Não há como responder à pergunta “melhor ou pior” se é avaliada de acordo com os critérios do problema. Você precisa descobrir quais são as suposições metafísicas que precisam mudar. Talvez nos tornemos cínicos sobre isso. Mas acredito em algo que Tiqqun diz no primeiro ensaio de sua primeira edição: que política é metafísica, e uma nova política demanda uma nova metafísica; não deveríamos ter vergonha de falar em metafísica só porque as ideias de algum metafísico nazista se tornaram muito influentes.

BaixaCultura: Em diálogo com essa questão, você às vezes posiciona seu trabalho em contraste com o realismo capitalista de Mark Fisher. Propõe, em seu livro, um manifesto para a imaginação de outra relação com o fim. Como seu conceito de anti-assombrologia difere do dele? E como essa outra relação se parece na prática?

Alessandro: A ideia original de anti-assombrologia foi desenvolvida por Matt Bluemink antes de eu conhecê-lo. Depois, continuei o que ele fez tomando como seu texto como ponto de partida e depois construindo minha própria direção. E temos algumas discordâncias sobre como os conceitos poderiam ser aplicados. Sobre a diferença entre assombrologia e antiassombrologia, isso foi discutido no debate entre Matt Bluemink e Matt Colquhoun, que Matt Bluemink publicou seu primeiro ensaio. Matt Colquhoun respondeu, e então houve um vai e vem que aconteceu em 2021. Matt Colquhoun criticou a ideia de fazer essa distinção entre assombrologia e anti-assombrologia porque ela mesma é “assombrológica”. E acho que essa é uma crítica, digamos, injusta.

[Nota da edição: “Assombrologia” – nos termos de Mark Fisher desenvolvido sobretudo em “Fantasmas da Minha Vida” (2014, no Brasil publicado em 2022) – seria o estudo da persistência de elementos do passado que “assombram” o presente, não numa visão nostálgica, mas sim como a manifestação de futuros perdidos ou potenciais não realizados, especialmente no contexto do capitalismo tardio . A anti-assombrologia proposta por Bluemink e Sbordoni seria uma ideia de pensar para além dos fantasmas que assombram o presente. Como Bluemink escreveu em 2021, “Se a assombrologia é a lógica do desespero, então a antiassombrologia pode ser vista como a lógica da esperança”.]

Essa crítica segue uma lógica pós-estruturalista típica: toda oposição não pode ser claramente estabelecida como oposição, porque todo conceito contém dentro de si sua negação e assim por diante. Mas esse é precisamente o tipo de problema que tentei superar. Por isso, decidi simplesmente impor a distinção entre assombrologia e antiassombrologia, mesmo que isso signifique fazer uma certa violência teórica ao abandonar a filosofia em favor da teoria. Às vezes você precisa defender uma posição sabendo que ela não pode ser “provada” no sentido filosófico clássico – o importante é que existe uma potencialidade real para o novo, e meu trabalho é tentar tornar essa potencialidade concreta na realidade.

Na prática, o que a antiassombrologia faz- e isso é algo que Matt Colquhoun diz – é usar a cultura para recuperar a esperança de que o novo ainda pode acontecer. Mais do que isso: o novo já está acontecendo através do nosso próprio trabalho teórico e cultural. Essa mudança pode se espalhar para qualquer área da experiência humana – você só precisa estabelecer as bases metafísicas adequadas.No primeiro capítulo do livro, escrevo que “hoje, nada é possível porque nada é impossível” – ou seja, vivemos numa paralisia onde tudo parece ao mesmo tempo bloqueado e em aberto. Mas essa frase também pode ser invertida: se nada é impossível, então tudo volta a ser possível. Não se trata de inventar soluções mágicas do nada, mas de transformar a forma como as pessoas percebem e se relacionam com o mundo. É uma mudança de subjetividade que pode emergir aparentemente “do nada”, mas que tem efeitos muito concretos.

A aplicação prática da antiassombrologia funciona similar à arte, que tem esse paradoxo interessante: ela transforma nossa visão de mundo sem alterar diretamente as condições materiais do mundo. Quando você vê uma obra de arte poderosa, sua visão de mundo muda e novas possibilidades se abrem – mas aparentemente “nada” mudou no mundo físico. Ao mesmo tempo, “tudo” mudou, porque sua subjetividade foi transformada.

Esse é o ponto central: o problema não é fundamentalmente material, é subjetivo. Quando pensamos que enfrentamos apenas problemas materiais na verdade estamos lidando com uma crise mais profunda de subjetividade. É nossa forma coletiva de perceber e se relacionar com o mundo que determina como interpretamos esses problemas “materiais”. Os problemas concretos podem ser resolvidos, mas primeiro precisamos recuperar, como coletivo, nossa capacidade de controlar e dar sentido à realidade.

BaixaCultura: Guattari, em 1993, em seu livro “Caosmose“, fala de estética como forma de ressignificar a subjetividade diante de questões sociopolíticas. Citando-o: “Não se pode conceber uma disciplina internacional neste domínio sem trazer uma solução aos problemas da fome mundial e hiperinflação no terceiro mundo”. “A única finalidade aceitável das atividades humanas é a produção de uma subjetividade que enriqueça o modo de continuidade e suas relações com o mundo”. Então, ele está tentando dizer que a estética cria influência nessa visão de mundo comum que se torna material.

Você acha que a contaminação da internet e das tecnologias digitais em nossa noção de estética, e a relação entre isso e o tecido sociopolítico, é uma forma de recriar e ressignificar esse canal, essa visão de mundo do contemporâneo? A arte é uma forma de alcançar essas mudanças?

Alessandro: Sempre penso que a subjetividade, em certa medida, pode ser vista como um fim em si mesma. A questão não é: “Que tipo de mundo queremos?” ou “Que tipo de futuro queremos?”. Na verdade, deveríamos pensar na subjetividade como o meio para chegar a um fim. Mas ainda não sabemos qual é esse fim, porque ainda não chegamos ao verdadeiro começo. E isso é algo, a propósito, que Baudrillard faz e é criticado por isso, porque nunca apresentou uma visão de como poderíamos superar o capital, nunca oferecia soluções concretas. Mas a solução é exatamente a subjetividade. Não no sentido de que uma nova subjetividade surge e o mundo se transforma imediatamente, mas porque o problema é fundamentalmente uma questão de potencialidade. Uma vez que essa potencialidade está disponível, tudo pode se desdobrar – ou não.

Mas também acho que a filosofia, especialmente, tem uma certa arrogância ao tentar moldar o mundo diretamente, e isso faz parte do problema. Porque é exatamente isso que a ciência faz, que o Estado faz, e não quero me envolver com essa lógica. Por isso, pode parecer que permaneço no abstrato, mas na verdade penso no sentido mais material possível: a partir da subjetividade.

Então concordo com tudo que você disse. Talvez a crítica seja que o que estou propondo é muito simples. Se você observar a arte, ela não muda as coisas diretamente, mas faz as pessoas olharem para o mundo de forma diferente. A arte reformula o problema, e reformular o problema já é parte da solução.

BaixaCultura: Sim, Guattari falou isso em 93, você disse antes, certo? Faz 40 anos que estamos discutindo isso e não está terminando. Há uma saída?

Alessandro: Acho que a coisa mais importante que mudou é como podemos ativar novas subjetividades mais rapidamente, em uma escala muito mais ampla e global. Sempre penso no que faço nesses termos: quantas pessoas posso alcançar de uma só vez e como elas podem ser imediatamente transformadas.E também como isso é perigoso para o sistema, podendo tanto facilitar mudanças quanto impedi-las mais facilmente. Isso é o que mudou nos últimos trinta anos – pelo menos uma das coisas mais importantes que mudaram.

BaixaCultura: Você fala sobre cultura, música, arte. Sua análise vai de Britney Spears ao K-pop e a internet. Como você conecta objetos culturais tão diversos e, na sua opinião, o que eles revelam sobre nosso momento contemporâneo?

Alessandro: Estou muito interessado na conexão entre o que no mundo anglófono chamamos de “cultura erudita” (alta cultura) e “cultura popular” (baixa cultura). E em como, especialmente no mundo anglófono, essa conexão é frequentemente cortada, criando uma divisão entre elas. Existe uma separação entre Heidegger e Britney Spears. Mas me interesso por Britney Spears e frequentemente penso sobre ela de forma talvez “hiperintelectual”.  Porém, não acho que as duas coisas sejam realmente distintas por causa da estrutura do semiocapital. Tudo está no mercado ao mesmo tempo, e essas distinções antiquadas entre cultura alta e baixa estão sendo abolidas. E creio que estão sendo abolidas pelo que chamo de “cultura trash”.

Se nos séculos 19 e 20, o kitsch tentou fazer a ponte entre a cultura da classe trabalhadora e a cultura da classe média, agora temos cultura trash. A internet, em particular, tem sido a tecnologia do trash. E trash, por definição, é aquilo que destrói a distinção entre o alto e o baixo, o bom e o ruim, e assim por diante…

Pessoalmente, acho que restabelecer essa conexão – que ainda está bastante aberta a várias “assemblages” – é um terreno fértil para novas formas de imaginação. Aqui, imaginação é algo que defino especificamente como a reconstrução de conexões entre subjetividades e cultura. Então, ao fazer uma piada conectando Kanye West e Hegel, digamos, você pode encontrar novas formas de refazer a assemblagem que constitui a cultura e descobrir novas expressões de subjetividades. Estou sendo muito otimista sobre isso, mas acho que ainda é algo que permanece aberto para teorização e politização.

Alessandro tomando um Tacacá

BaixaCultura: Queríamos perguntar sobre as diferentes perspectivas da geração de Mark Fisher e sua geração, nascida no final dos 1990 e início dos 2000. A percepção do fim ou da simulação do apocalipse, por exemplo: é diferente para nós? É interessante ou uma simulação?

Alessandro: Há uma citação de Grafton Tanner – que talvez faça parte de uma geração mais jovem de escritores – que fala que nos anos 2010, Mark Fisher e Simon Reynolds pensavam que havia uma crise para imaginar o passado e o futuro. Isso estava acontecendo nos anos 2010, mas agora a crise é para imaginar o presente. Então, acho que se tornou abrangente, e a crise da imaginação, que de alguma forma ainda era parcial na época de Mark Fisher, se generalizou, e muitas de suas afirmações se tornaram ainda mais fortes.

Mas o que mudou é que as pessoas não podem mais ignorar isso. E ainda é muito relevante que Mark Fisher continuse sendo o filósofo mais conhecido dos últimos 20 anos. Mas, ao mesmo tempo, também acho que a nova geração – e sim, talvez me inclua nesse grupo – está começando a entender que as regras foram mudadas pelo próprio problema. Pessoalmente, penso que a questão é sobre reinventar a imaginação, o que parece algo muito ambicioso. Mas também vejo que no uso da tecnologia se cria novas relações entre si mesmas e a cultura e, portanto, criando novos imaginários. O que não significa novas realidades, novos futuros, novas visões de mundo, mas novas práticas. E a velocidade com que isso está acontecendo está aumentando.

E acho que, após a morte de Mark Fisher em 2007, isso começou a acelerar além do controle do que poderia ter sido o capitalismo tardio antiquado. Agora vivemos no capitalismo tardio demais. Isso também significa que a temporalidade está encolhendo, e a imediatez está cada vez mais assumindo a liderança na relação com o capital. E isso é de certa forma benéfico.  Então, mesmo se você pensar sobre para que a inteligência artificial é realmente usada, é para fazer transações mais rápidas. Esta é a aplicação principal: encontrar formas de fazer a economia funcionar ainda mais rapidamente do que já funciona. Mas isso também está afetando nossa relação com a tecnologia, e está se afastando do controle biopolítico antiquado, acho, em certa medida, porque o número de relações, nós e circuitos está apenas aumentando agora. E as potencialidades também estão aumentando. Em geral, diria que sou mais otimista, e não vejo muito desse otimismo por aí, mas prevejo que continuará aumentando.

BaixaCultura: Você tem alguma relação com o aceleracionismo, em especial, Nick Land? Há um artigo sobre ele em Blue Labyrinths.

Alessandro: Nick Land é um caso estranho. Estou interessado nele tanto quanto alguém pode estar interessado no diabo. O que quero dizer é que o Diabo realmente foi um argumento cultural importante no que poderia ter sido o ideal na Idade Média, e Nick Land é o Diabo no capitalismo. Há algo muito interessante para mim na mudança que aconteceu no pensamento entre os escritos da primeira fase de Nick Land e a segunda fase, na qual ele se inclinou cada vez mais para a direita e novas direções, novos movimentos reacionários, e assim por diante. E estudando isso, estou começando a perceber que o que tenho definido como subjetividade também traz consigo uma certa ética – ética, que é uma palavra que você nunca encontra em Semiótica do Fim. Mas Nick Land é definitivamente alguém que não pensa em termos de ética ou moral, porque pensa no capital como uma agência inorgânica anônima. Pelo contrário, vê o ser humano como uma “ficção” ética e biológica produzida pelo capital.

Mas ele não pensa, nem por um momento, que isso poderia ser parte de uma “ideologia”, porque “ideologia” não é o termo certo a usar – uma palavra mais correta aqui seria paradigma. De qualquer forma, ele vê o capital como metafísica, mas metafísica é um paradigma, mesmo na conotação científica do termo. Então, é uma mudança de paradigma; é uma revolução metafísica no mundo. Quando o Sol não está mais no centro do universo, o mundo é completamente diferente, mas nada realmente mudou; quando o capital não está mais no centro de nossas relações, tudo é igual, mas tudo é diferente. Então, Nick Land nunca considera a possibilidade – e o critico por não levar o nível semiótico a sério, o que significa que o nível semiótico é manipulável, mas pode ser construído diferentemente. Então, estou interessado nisso, mas acho que seu ponto de vista é limitado.

BaixaCultura: Então você não é satanista? Se ele é o diabo…

Alessandro: Sou como um teórico do satanismo haha

BaixaCultura: Outro autor, Andrea Colamedici, o autor por trás de “Hipocracia”, identificado como de Jianwei Xun [veja esse texto para entender a polêmica].  Ele parece acreditar que estamos em um momento de fragmentação de nossa presença online em tantas camadas de presença online e offline e tudo mais… E ele meio que aponta na direção de que devemos aprender a coexistir em todas essas camadas, como uma presença viva aqui, mas também uma presença viva na rede social ou no grupo do WhatsApp ou no avatar, e em todas essas esferas de relações.

Então, como você conceitua a fragmentação como uma forma de prosperar neste momento de incerteza? No livro, ele tenta vender a ideia de que devemos saber que estamos em todos os lugares ao mesmo tempo. Por exemplo, quando fala sobre isso, ele traz a ideia de simulação real. Hoje, é tudo simulado e tudo é real ao mesmo tempo: isso é real e seu avatar é real e seu Instagram é real – tudo é real e, ainda assim, é uma simulação ao mesmo tempo. Mas não podemos nos perder.

Alessandro: Entendo. Acho fascinante, mas a escala na qual essas suposições são feitas é uma escala que, politicamente, não é muito operacional. Existem diferentes escalas. Então, em escala microscópica, na escala mineral – tomemos um computador como exemplo. Um computador tem várias escalas. Então, na escala microscópica, há luz passando pelos cabos, e na escala da partícula, não há política. Há muito pouco que você poderia fazer além de teorias sobre o que é luz e física quântica, e assim por diante; é muito difícil fazer uma mudança significativa nesse nível. Em um nível mais alto, há mais ou menos o que você está falando: um nível do habitus social que você assume na interação com o computador; esta é a escala social. E acho que, embora seja uma escala muito real, não é muito operacional. Agora, entre a luz na fibra óptica e o habitus social, há uma relação. O que media essa relação é o capital, porque é o capital que está pagando pelos cabos que conectam as luzes; por meio dele, você pode se ver no computador e tentar aprender com ele. Aqui, estou interessado no que chamo de medium, segundo minha própria interpretação: trata-se do que está acontecendo no meio. Certamente, o que está acontecendo no meio é muito real, mas também é o que reproduz a simulação.

Então, talvez aqui eu inverta as regras: em suas circunstâncias imediatas, você pode reconceituar sua relação e interagir com o computador de forma diferente, e até mesmo mudar o tipo de fibras ópticas que usa, afetando a relação agindo do nível mais alto para o mais baixo, e vice-versa. Em Semiótica do Fim, frequentemente faço esse tipo de salto das alturas. No capítulo sobre teoria da informação do livro – “Overdrive e significado” – um dos capítulos centrais do livro, escrevo sobre a estrutura da informação, que é uma teoria muito abstrata, mas como elemento político. Mas não há nada intrinsecamente político nos bits de informação. Há algo político apenas na relação. Mas se você foca apenas em um nível…

Para resumir, poderíamos dizer que o elemento interescalar é muito político, e tento atuar sobre ele. Mas se você pensa apenas em uma escala, pode ser complexo. Para acrescentar outra coisa, há uma tendência nas teorias da mídias que é interessante discutir: a pura materialidade dos recursos sendo usados. Por exemplo, Atlas da IA, de Kate Crawford, fala sobre os recursos, a materialidade do mapeamento do mundo e assim por diante. Mas ela conceitua isso como algo intraescalar. O que acho interessante é o elemento interescalar, onde ela também escreve sobre o que o software está fazendo; ela tenta conectar tudo, mas falando de apenas um nível. E há uma série de ações que podem ser muito locais, enquanto o global acontece entre as escalas. Isso poderia ser algo que percebi depois de escrever o livro – você também não encontrará a palavra “escala” nele, mas isso é o que acontece com os livros: você retrospectivamente chega a boas ideias que não escreveu.

BaixaCultura: Então, você meio que pensa que essa visão é “enganar a máquina”?

Alessandro: A solução deve estar na relação. Mas se você pensa sobre a pura materialidade, parece que o social é uma materialidade, como gestos e práticas, e essas coisas podem ser mudadas, mas não em um nível muito individual e mínimo local. Então, não é a melhor forma de abordar, acho.

Queria falar mais sobre o contexto de Charta Sporca. Vivendo na Itália e vindo do exterior, faz cerca de onze anos que estou aqui [Londres]. Tenho a impressão de que a cultura italiana cria uma materialidade diferente para a cultura underground. Não tenho certeza se essa é a palavra certa. Deixe-me seguir o que escrevi. Viver na Itália me dá a impressão de que muito do que é criado em diferentes realidades nas diferentes cidades italianas permanece, porque há uma espécie de resistência ao sistema e à sistematização. É como se o underground resistisse a se tornar mainstream por muito tempo. Se você vai a Bolonha, vê lojas que vendem quadrinhos há quarenta anos e não querem crescer. Então, você tem uma cultura de cenas espalhadas por todo o país, e as pessoas ainda as fazem e não querem publicá-las.

BaixaCultura: Como italiano que vive no exterior, você vê isso da mesma forma? E se sim, como a Charta se envolve com essa dimensão de conhecimento não institucionalizado que continua emergindo por toda a Itália? Ela se envolve ou não?

Alessandro: Sim. E mais em geral sobre a Itália, acho que a questão é sobre a economia dos corpos. A economia capitalista não é um padrão da economia: pense, por exemplo, em uma cidade antiga na Itália, como Trieste ou Bolonha. Mas conforme você se aproxima da metrópole, até Milão, e conforme vai subindo e vai para Paris, então a economia dos corpos e a economia real começam a se fundir uma na outra. Há um certo grau de hipnose acontecendo ali.

E acho que as pessoas só conseguem resistir quando não nascem dentro disso. É muito difícil recuar da metrópole se essa é a única realidade que você viu. Da mesma forma que vamos a uma floresta e, se não nascemos na floresta, não olhamos para a floresta de uma forma “natural”. Nossa visão é moldada pelo ambiente artificial da cidade, e por isso perdemos a capacidade de ver a natureza como ela realmente é – diferentemente de quem cresceu em contato direto com ela. O mesmo acontece com quem nasce e vive sempre na metrópole: essa pessoa desenvolve uma percepção distorcida do tempo e dos relacionamentos humanos. Para ela, as formas mais naturais de viver – aquelas que existem fora do ambiente metropolitano – parecem estranhas ou até impossíveis.

O coletivo francês Tiqqun tem uma distinção muito interessante e radical sobre a vida fora da metrópole: eles dizem que a metrópole é irrecuperável. Não há mais nada para salvar da metrópole. Você deveria apenas convencer as pessoas na metrópole a se afastarem dela e nunca voltarem. Não há como mudar o capital e o capitalista, mas você pode permitir que as pessoas vejam que há uma saída, se quiserem.

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https://baixacultura.org/2025/09/10/capitalismo-semiotica-e-as-subjetividades-do-fim-entrevista-com-alessandro-sbordoni/feed/ 0
A sutileza poético-ativista PORO https://baixacultura.org/2014/02/26/a-sutileza-poetico-ativista-poro/ https://baixacultura.org/2014/02/26/a-sutileza-poetico-ativista-poro/#respond Wed, 26 Feb 2014 16:00:11 +0000 https://baixacultura.org/?p=9818 perca-tempo-panfleto

Fazia tempo que queríamos conversar um pouco com PORO e eis que neste fevereiro de 2014 isso foi possível. Por quê?

Bem, vamos por partes. A primeira coisa a dizer sobre eles, antes de qualquer explicação, e caso você não os conheça, é: vá ao site e flaneie pelas intervenções urbanas e ações efêmeras, projetos, publicações, vídeos, fontes (sim, eles produzem fontes!). Não se esqueça de ir na seção de downloads, cheia de material para baixar e espalhar por aí.

Foi?

Então a segunda coisa que vamos dizer aqui é que eles são uma dupla mineira – Brígida Campbell e Marcelo Terça-Nada. A terceira é que eles atuam desde 2002 em “trabalhos que buscam apontar sutilezas, criar imagens poéticas, trazer à tona aspectos da cidade que se tornam invisíveis pela vida acelerada nos grandes centros urbanos, refletir sobre as possibilidades de relação entre os trabalhos em espaço público e os espaços “institucionais”, lançar mão de meios de comunicação popular para realizar trabalhos, reivindicar a cidade como espaço para a arte”, segundo a explicação que eles apresentam no site.

Este belo doc aqui abaixo conta um pouco da trajetória do PORO.

 

A quarta é que lembramos deles neste fevereiro de 2014 por conta do lançamento do ebook do livro deles “Intervalo, respiro, pequenos deslocamentos“. No trabalho, disponível pra download gratuito, está um panorama da produção do grupo nos 14 anos de vida até hoje, relacionando a produção do Poro a uma discussão sobre ações artísticas que promovem a percepção sobre o espaço público, cidade, patrimônio, memória, trabalho colaborativo, inserções artísticas e relações entre arte e política.

Desde já, é uma obra de referência sobre a produção contemporânea de arte pública (public art) e suas conexões com a mídia tática, apropriações midiáticas, culture jamming, site specific, entre outros temas que volte e meia também tratamos por aqui. Recomendamos a compra do exemplar impresso (R$35), mas caso você não queira ou possa no momento, leia aqui abaixo, no Issuu:

*

O papo rolou por e-mail, com alguns complementos por chat. No final da entrevista, publicamos alguns cartazes e as capas dos panfletos de algumas intervenções do PORO – que, lembrando sempre, você pode (e deve) baixar e sair espalhando por sua cidade.

B: Vcs começaram em 2002 a trabalhar com uma arte que não deixa de ser ativista (ou um ativismo que é arte), e fazem isso até hoje. Como vcs chegaram a este modelo/estratégia de “ativismo poético”? veio de um processo natural de inquietação com as formas de arte ditas tradicionais?

Sim, podemos dizer que isso veio naturalmente a partir da soma natural de vários desejos: ocupar o espaço público de forma crítica e poética; refletir sobre as questões das cidades contemporâneas; atuar na esfera do simbólico e do imaginário urbano; investigar o aspecto gráfico das formas de comunicação popular; criar pequenos intervalos de silêncio e encantamento na malha urbana; experimentar possibilidades de uma arte expandida, para além do sistema institucional da arte (às vezes criando diálogos e transbordamentos com esse sistema).

Nunca tivemos nada contra as formas de arte mais “tradicionais” pelo contrário a gente se interessa do mesmo jeito, mas desde o início de nossa trajetória sentimos uma espécie de mal estar com as relações institucionais que de alguma maneira burocratizam a arte. Daí foi que caminhamos para fazer uma trilha mais livre, mais solta, buscando experimentações plásticas/gráficas, buscando espaços para ocupar/atuar, tentando tecer redes de pessoas e grupos de várias partes do Brasil e buscando uma rede de produção paralela às instituições, baseada na amizade e no contato com pessoas que têm os mesmos desejos.

E a cidade veio como um lugar também natural, onde era possível sentir a pulsão na nossa frente, e a nossa poética foi se estabelecendo a partir da vontade de interferir, mesmo que numa escala do sutil, nos modos como as cidades estão se transformando. Talvez chegamos às nossas táticas de atuação tentando responder à pergunta: Como discutir a cidade de uma maneira poética e próxima aos contextos onde os problemas urbanos acontecem?

B: Quais as principais dificuldades que vcs encontram pro trabalho? polícia, financiamento, não-entendimento/fruição do público?

Tem dificuldade não! O trabalho de arte para nós não deve ser algo difícil, complicado. Pelo contrário deve ser prazeroso, fácil de produzir e de circular. Talvez por sua simplicidade, o trabalho do Poro consegue estabelecer diálogos com diversas pessoas com os mais diferentes backgrounds, o que tem proporcionado circular nosso trabalho também fora do campo específico das Artes (com A maiúsculo) e está por aí, na cidade, nas casas das pessoas, nas festas, nas prateleiras… Gostamos disso: das diversas formas de fruição e compreensão do trabalho. Inclusive quando ele se mistura com outras coisas e às vezes se torna “não-arte”, isso é ótimo!

Acreditamos muito na filosofia do “faça-você-mesmo” e sempre produzimos com o que temos à mão. A questão é fazer!
Já ganhamos alguns editais e prêmios onde foi possível produzir os trabalhos de maneira mais estruturada. Mas achamos que o artista não deve ficar dependendo disso, até porque quem tem a pulsão criativa não aguenta esperar!

B: As ações de vcs são estão muito ligadas a rua, ao espaço urbano tomado como possível expressão poética da cidade. Já pensaram em usar a internet como palco/plataforma para apontar sutilezas e criar imagens poéticas também no mundo digital?

Desde o início da nossa atuação, usamos a web como canal de difusão de nossas ações, seja através da veiculação de registros das intervenções, seja distribuindo as matrizes digitais dos panfletos/adesivos/carimbos, seja circulando proposições para que as pessoas experimentassem realizar as intervenções em suas cidades. Para isso já usamos as mais diversas táticas, como o que chamávamos de panfletagem eletrônica (via email) ou os convites para imprimir, xerocar e distribuir os trabalhos (a partir de nosso site).

No caso da circulação dos registros das intervenções, a produção e edição dos vídeos e fotos dos trabalhos passa pela criação de novas narrativas sobre aquela intervenção. Pois os registros vão ressaltar determinados aspectos do trabalho e vão ser fruídos em locais totalmente diferentes daqueles onde as intervenções foram feitas. Isso cria novas camadas de percepção sobre os trabalhos e sobre o espaço público.

Vale ressaltar que a internet é nossa grande aliada na “permanência” de nossas obras. Explicando: como a maioria de nossos trabalhos são efêmeros, ou muito sutis, passam muitas vezes despercebidos no espaço urbano e os registro e sua circulação pela web provocam um outro tipo de duração e significados.

Inclusive convidamos os leitores para baixar um de nossos últimos trabalhos: a fonte digital PARKING.TTF (disponível em www.poro.redezero.org/fonte), uma fonte digital inspirada nos estacionamentos das grandes cidades. Bora fazer arte no editor de texto do seu computador!

B: Em ano de Copa, mil holofotes apontados para o Brasil e outros tantas manifestações previstas/necessárias, vocês planejam alguma ação específica? Uma pergunta/desafio: como usar esse fardo gigantesco da copa pra dar luz a lugares/pessoas esquecidas e fazer algo pra mudar essa relação?

Essa coisa toda é super complexa. As paisagens das cidades estão borradas, sem poesia. Temos participado deste processo todo de outras formas também, além da arte, participando das reuniões e debates, protestos e mobilizações.

Mas o movimento mais importante já está sendo feito: uma mudança na consciência simbólica das pessoas. Muita gente está manifestando, ou está em reuniões de assembléias populares, conversando sobre política, dormindo nas ocupações, pulando catraca pela primeira vez… Isso é incrível e é um aprendizado fantástico, para nós todos e especialmente para os mais jovens. A experiência fica impregnada em quem participa. E todo mundo passa a entender a cidade de outra forma. Ampliando o olhar sobre as formas de viver e fazer política. As pessoas estão ocupando as cidades e esse sempre foi o nosso sonho!

Ainda não realizamos um trabalho específico sobre a copa, mas temos algumas coisas em gestação… fiquem de olho no nosso site e no Facebook do Poro.

B: Como vocês perdem tempo?

Lemos artigos no Baixacultura (que a gente adora). E além daquelas 20 maneiras que publicamos nos panfletos da série Perca Tempo, a gente também: anda de bicicleta, percorre paisagens, encontra os amigos, cuida de plantas, faz sucos experimentais de frutas, joga conversa fora, desenha, fotografa, faz inúmeras anotações em caderninhos, inventa moda, arruma problema… na verdade a gente não para quieto…

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Benjamin Mako Hill e essa coisa chamada cultura livre https://baixacultura.org/2013/05/17/benjamin-mako-hill-e-essa-coisa-chamada-cultura-livre/ https://baixacultura.org/2013/05/17/benjamin-mako-hill-e-essa-coisa-chamada-cultura-livre/#respond Fri, 17 May 2013 14:14:33 +0000 https://baixacultura.org/?p=9713 cultura livre

Cultura livre. Quantas vezes você já ouviu falar disso por aqui e em outros lugares? Muitas, provavelmente. E você sabe do que se trata? como surgiu, o que é, e pra onde vai?

Te explicamos brevemente: cultura livre é uma visão da cultura baseada na liberdade de distribuir e modificar trabalhos e obras criativas livremente. O movimento da cultura livre envolve a produção e a defesa de diversas formas de conteúdo livre, como o software livre, conhecimento livre, música livre, entre outros.

É uma extensão lógica da filosofia do Software Livre aplicada a artefatos culturais. Baseia-se nas 4 liberdades trabalhadas por Richard Stallman, criador do Movimento do Software Livre:

1. A liberdade de executar a obra para qualquer propósito.
2. A liberdade de estudar como a obra funciona, e para isso o acesso ao código-fonte/processo é um pré-requisito básico.
3. A liberdade de redistribuir cópias de modo a beneficiar outras pessoas.
4. A liberdade de aperfeiçoar a obra e liberar suas melhorias.

O termo ganhou o mundo a partir do título do livro “Free Culture” escrito em 2004 por Lawrence Lessig (disponível em português numa tradução algo descuidada) – Lessig, tu sabe, é um dos “pais” das licenças Creative Commons.

Pois para conversar sobre essa tal cultura livre e desmistificar algumas coisas (livre não é grátis, como sempre lembra Richard Stallman) é que a Casa de Cultura Digital Porto Alegre, em parceria com o hackerspace Matehackers,vai organizar um Culture Freedom Day (ou dia da cultura) no próximo sábado, 18/5, das 10 às 19h, na Casa de Cultura Mário Quintana, um evento mundial que ocorre toda terceira semana de Maio e este ano vai ocorrer também em Porto Alegre.

Vai rolar desde oficinas de como licenciar sua obra em uma licença livre (para além do Creative Commons) até produção de música com ferramentas livres, passando por open design, mostra de zines (antes de existir internet, eles já eram anticopyright por excelência) e música ao vivo, com o pessoal do “Escuta – o som do compositor” a falar sobre criação compartilhada. A programação completa tá aqui neste site.

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mako

Não tire conclusões apressadas: Mako não é apenas um ratão de biblioteca

Inspirado pelo assunto, o post desta semana também trata de cultura livre. Talvez você ainda não o conheça, mas não se preocupe. Benjamin Mako Hill (foto acima) é um daqueles jovens brilhantes que não costumam aparecer na grande mídia. Às vezes, dão às caras numa notinha de rodapé do caderno de informática. Coisa pouca, de modo que não atrapalhe aquela matéria de duas páginas sobre a décima geração do iPhone, dez vezes melhor que a nona, um pouco mais cara, mas compre, vale a pena, a câmera têm cem megapixels e filma em HD.

Aaron Swartz, por exemplo. Quase nada foi publicado sobre ele antes de sua morte aqui no Brasil. Um pouco mais após o suicídio – tragédia dá ibope! -, porém só algumas coisas realmente relevantes (palmas para Tatiana de Mello Dias, do Link, que publicou dois ótimos textos – aqui e aqui – e para Eliane Brum, da Época, que escreveu um artigo/pedido de desculpas excelente. O Baixa também prestou uma homenagem). Mas, pensando bem, isso não se restringe apenas aos jovens. Quando foi a última vez que você leu alguma coisa sobre o Richard Stallman que não desse mais destaque ao seu caráter excêntrico do que aos avanços do software livre?

Por que Steve Jobs e não Richard Stallman? Por que Mark Zuckerberg e não Aaron Swartz? Não é preciso ser nenhum jovem brilhante para dar os primeiros passos em direção à resposta. A grande mídia não é livre. Publica o que interessa aos seus donos e que não ofenda os seus anunciantes. Para ela, portanto, o monopólio da informação é extremamente interessante. Quanto maior o monopólio, maior o poder (conte quantas famílias dominam a mídia brasileira e você nem precisará pedir auxílio aos dedos dos pés). Quanto maior o poder, maior a possibilidade de mexer os pauzinhos em Brasília de acordo com os seus interesses e maior o número de anunciantes. Poder e rios caudalosos de dinheiro os objetivos dos conglomerados midiáticos são. Swartz e companhia trabalham na contramão: lutam por uma sociedade descentralizada, por um acesso à informação democrático, por um mundo com menos restrições. Mas isso é pauta para um outro post.

Mako tem tantos empregos e está envolvido em tantos projetos que às vezes me pergunto se ele não desenvolveu algum programinha revolucionário de otimização temporal que ainda não caiu na rede. E a questão não é simplesmente quantitativa. A qualidade de seus trabalhos é reconhecida no mundo acadêmico. E não vá pensando que ele é um daqueles ratões de biblioteca que não abrem a janela para ver como anda o mundo lá fora. Mako tem um pé na academia e outro no ativismo político.

Talvez por essa falta de tempo ele não tenha respondido às perguntas com tanto, digamos, afinco. Levanto outra hipótese complementar: escrever respostas por e-mail não é das tarefas mais agradáveis. Algumas ele sequer respondeu, fornecendo apenas links para artigos seus. Outras, respondeu brevemente. De qualquer forma, a entrevista abaixo serve como uma pequena introdução às suas ideias. Se você quiser saber mais, dê uma fuçada no seu site e no Copyrighteous, seu blog.

BaixaCultura: Você diz no seu blog que é “um rebelde com causas até demais”. Quais são elas (ou, pelo menos, quais são as mais relevantes)?

Benjamin Mako Hill: Sou candidato ao PhD em um programa conjunto entre a MIT Sloan School of Management e o MIT Media Lab, e bolsista no Berkman Center for Internet and Society em Harvard. Em setembro de 2013 ingresso na faculdade do departamento de comunicação da Universidade de Washington. Sou desenvolvedor e contribuidor da comunidade de software livre há mais de uma década como participante dos projetos Debian e Ubuntu. Além disso, sou membro da diretoria da Free Software Foundation e conselheiro da Wikimedia Foundation. Também tenho contribuído bastante com a Wikipedia.

BC: O movimento pelo software livre parece funcionar melhor que o movimento pela cultura livre. As licenças são menos confusas, a comunidade parece crescer de forma mais rápida e os resultados alcançados até agora são mais consistentes. Você concorda? Se sim, por que isso ocorre?

BMH: Não acredito que essa comparação seja justa atualmente. O movimento pelo software livre é pelo menos 20-30 anos mais velho (depende de como você conta). Na minha opinião, a situação em torno das licenças é muito mais clara na cultura livre do que quando falamos de software livre. O movimento pela cultura livre está muito focado em número reduzido de licenças Creative Commons (BY, BY-SA, CC0). Por outro lado, a questão das licenças relacionadas ao software livre é bem mais confusa: a quantidade de licenças é bem maior e a compatibilidade entre elas, menor.

BC: Certo. Mas muitas pessoas pensam que Creative Commons é a mesma coisa que cultura livre e acham que pelo simples fato de utilizarem uma licença CC estão tornando livres seus trabalhos, o que, de acordo com a Definição de Trabalhos Culturais Livres, não é verdade. Você não acredita que as diversas possibilidades de licenciamento oferecidas pelo CC não são uma fonte de confusão?

BMH: Bom, eu acho que isso talvez resulte em menos liberdade. Eu já escrevi sobre isso antes (Towards a Standard of Freedom: Creative Commons and the Free Software Movement). Por que você não disponibiliza o link ou cita meu material em vez de me pedir para que eu faça um comentário que provavelmente será uma recapitulação pobre do assunto?

BC: Como você vê o futuro da cultura livre? Você acredita que o copyright é uma ferramenta indispensável ou deve ser abolida?

BMH: Estou muito otimista quanto ao futuro da cultura livre. Saímos praticamente do nada e construímos um movimento grande e vibrante. Estou realmente muito otimista em relação ao futuro.

Não tenho certeza sobre o que é melhor para o copyright. Acredito que a longo prazo ele vai ser deixado de lado. Antes da imprensa, os sistemas econômicos que apoiavam as publicações eram baseados principalmente no mecenato. Mudanças tecnológicas possibilitaram a criação de novos tipos de bens literários e novas formas de distribuição. A consequência disso foi a criação do copyright como alternativa aos velhos e decadentes sistemas econômicos. Mas isso levou duzentos anos! Imagino que na era da internet as coisas devam avançar mais rapidamente. Veremos. Assim como a mudança para o copyright, a mudança para a próxima etapa provavelmente será difícil e dolorosa, e levará algum tempo.

BC: Richard Stallman afirma frequentemente que todos os softwares deveriam ser livres, mas o mesmo raciocínio não se aplica à cultura. Em uma entrevista recente, ele deixou claro que trabalhos culturais não precisam ser necessariamente livres. Por que você aposta em um modelo de cultura livre? Você acredita que todos os trabalhos culturais deveriam ser livres?

BMH: O link que te enviei responde a essa pergunta também.

 * As respostas não foram encontradas no artigo enviado pelo autor.

BC: Do seu blog: “Como cientista social, minha pesquisa busca explicar por que algumas tentativas de criar softwares ou trabalhos culturais livres resultam em comunidades enormes de voluntários – como Wikipedia e Linux – enquanto a grande maioria jamais atrai um segundo contribuidor”. Você já tem uma ideia por que isso ocorre?

 Sim! Dê uma olhada nos meus trabalhos acadêmicos para ver o que estou fazendo. Esse espaço é muito pequeno para que eu possa te dar um resumo detalhado de toda a minha pesquisa. 🙂

BC: A FSF recomenda apenas distros de GNU/Linux 100% livres, mas isso nos leva a um problema prático: como elas não incluem drivers e software proprietários em seus repositórios, outras distros (como Ubuntu) gozam de uma maior popularidade, o que acaba por camuflar o lado ético da utilização de softwares livres. Como superar isso?

 BMH: Precisamos fazer duas coisas:

a. Melhorar os softwares livres para que eles tenham como competir com softwares proprietários, assim os usuários não teriam a necessidade de fazer uma escolha difícil entre um ou outro.

b. Ensinar aos usuários por que a liberdade de software é importante, assim eles poderão decidir utilizar softwares mesmo que não sejam melhores em termos práticos. Precisamos estimular desenvolvedores a trabalhar para melhorar os softwares livres. A menos que consigamos convencer as pessoas a utilizar e a trabalhar com softwares livres que não são melhores, nunca chegaremos ao x da questão!

BC: Qual distro você utiliza? Você recomendaria uma distro 100% livre para um amigo que está migrando do Windows para o GNU/Linux?

BMH: Eu uso Debian. Recomendo que as pessoas utilizem Debian apenas com softwares dos repositórios livres.

[André Solnik, Leonardo Foletto]

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https://baixacultura.org/2013/05/17/benjamin-mako-hill-e-essa-coisa-chamada-cultura-livre/feed/ 0
“Faça arte, não leis” – Entrevista com Nina Paley https://baixacultura.org/2013/03/11/faca-arte-nao-leis-entrevista-com-nina-paley/ https://baixacultura.org/2013/03/11/faca-arte-nao-leis-entrevista-com-nina-paley/#comments Mon, 11 Mar 2013 14:29:57 +0000 https://baixacultura.org/?p=9620 nina paley

Além de artista talentosa, Nina Paley é voz ativa na luta por uma cultura livre. A animação Sita Sings the Blues, seu primeiro trabalho lançado sob uma licença livre, foi um sucesso tremendo. Já foi vista e baixada centenas de milhares de vezes (veja e/ou baixe você também!) e abocanhou uns tantos prêmios. Sua tirinha mais recente, Mimi and Eunice, é uma deliciosa e provocativa incursão pelos problemas da propriedade intelectual. Desde 2009 é artista residente do site QuestionCopyright.org, onde escreve e desenvolve projetos ligados ao tema, e ainda tem um blog.

Nesta entrevista, concedida por e-mail, Nina fala ao nosso novo colaborador André Solnik – jornalista e fotógrafo formado pela PUCSP – sobre seu envolvimento com a cultura livre, dá suas impressões (negativas) sobre a lei de copyright e demonstra todo o seu desapontamento com as licenças Creative Commons. “Licenças são a solução errada. A arte é a solução. Faça arte, não leis”. O recado está dado.

*

BaixaCultura: Quando começou seu interesse por cultura livre?

Nina Paley: Por um bom tempo eu achei que os termos de copyright eram extensos demais e a lei deveria ser revista, mas não tinha entendido realmente o que era cultura livre até outubro de 2008, depois de meses no circuito de festivais com a minha então ilegal animação Sita Sings the Blues*.

Cultura livre me parecia um conceito muito audacioso para que eu pudesse pensar sobre. Numa manhã, eu finalmente saquei – tornar livre meu trabalho seria melhor para ele – e passei o semestre seguinte preparando o lançamento livre e legal de SSTB. Isso aconteceu em março de 2009, quando por fim eliminei todas as licenças necessárias (e estúpidas) por US$70.000 pagos do meu bolso.

* A animação Sita Sings the Blues era ilegal pois continha músicas protegidas por copyright. O assunto foi tratado aqui no BaixaCultura há quase três anos.

BC: Explique resumidamente por que os artistas deveriam tornar livres suas obras.

NP: Do meu artigo How To Free Your Work:

Por que os artistas deveriam tornar livre seu trabalho? Para tornar mais fácil possível o seu compartilhamento – o mais fácil possível para que atinja olhos, orelhas e mentes – de modo que ele alcance um público. Para tornar mais fácil possível que o apoio deste público – inclusive monetário – chegue até o artista.

Proteções anticópia colocam uma barreira entre o artista e a maioria das formas de apoio. Ao remover as barreiras de copyright, o artista torna possível o recebimento – tanto diretamente quanto por meio de distribuidores – de dinheiro e de outros tipos de apoio, aumentando assim suas chances de sucesso.

BC: O Creative Commons lançou recentemente o rascunho final da versão 4.0 de suas licenças. Que mudanças você gostaria de ver? Você acha que as licenças consideradas não livres devem continuar a ser apoiadas pelo CC?

NP: O Creative Commons deveria parar de apoiar as licenças não livres. Que tipo de commons* é esse?

* O termo commons ainda não tem uma tradução para o português amplamente aceita. É algumas vezes traduzido como “comum” ou, ainda, “bem comum”.

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Sita Sings the Blues foi lançado com CC em 2010

BC: Embora elas provavelmente sejam as licenças alternativas mais conhecidas, ainda não gozam de uma popularidade comparável ao “todos os direitos reservados”. Por que será? Você acha que as pessoas ficam confusas com as muitas possibilidades oferecidas pelas licenças CC?

NP: A maioria das pessoas que usa licenças CC não entende o que elas querem dizer. Chamam todas elas de Creative Commons, como se isso significasse alguma coisa. O sistema modular do CC era uma boa ideia, eu vejo isso como uma experiência que valeu a pena ser realizada. Mas os resultados estão aí: não funcionou. O que temos agora é uma mistura de licenças incompatíveis, a maioria das quais não contribui para qualquer commons real e ainda aumenta a confusão e a desinformação.

Mas não podemos culpar o Creative Commons – o problema é a lei de copyright. Nada pode corrigi-la neste momento. Até mesmo a licença CC-0, que é uma tentativa valiosa de pular fora do copyright, não funciona na prática, como a minha experiência com o Film Board of Canada mostrou: mesmo após colocar “Sita” sob CC-0, seus advogados se recusaram a aceitar que o filme realmente estava em domínio público e me fizeram assinar uma liberação para que um de seus cineastas se referisse ao meu filme. Eu estarei para sempre sobrecarregada com uma papelada de permissões mesmo utilizando CC-0. Provavelmente vou continuar utilizando-a, é claro, mas não tenho nenhuma expectativa de que vá funcionar como deveria.

BC: A licença BY-NC-SA, apesar de ser não livre, é bastante popular. Por que isso ocorre? Quais são os principais problemas em utilizá-la?

NP: As pessoas estão bem intencionadas quando escolhem a restrição –NC (uso não comercial), mas ela faz exatamente o oposto do que se deseja. Elas querem “proteger” seus trabalhos da exploração abusiva de grandes jogadores corporativos, mas não percebem que eles AMAM a cláusula -NC, porque ela representa um monopólio comercial. Os grandes jogadores corporativos estão todos prontos para lidar com os monopólios comerciais: eles dispõe de advogados e departamentos de licenciamento. São eles que podem pagar para licenciar suas obras não comerciais. Seus pares, os jogadores pequenos, sem departamentos jurídicos e com recursos limitados, não podem. A cláusula -NC ferra mais seus colegas artistas e jogadores pequenos, enquanto favorece as grandes corporações.

A maneira de evitar a exploração abusiva é usar a licença CC-BY-SA, que é do tipo share-alike* e não tem a restrição -NC. Isso permite que seus pares usem o trabalho sem medo, desde que o mantenham livre. Os grandes jogadores corporativos, no entanto, não estão dispostos a liberar qualquer coisa livremente: se quiserem usar o seu trabalho, eles vão ter que negociar a renúncia da cláusula -SA. E, para isso, vão pagar. Funciona como um acordo de licenciamento qualquer: por X reais você renuncia à restrição -SA e permite que eles reutilizem seu trabalho sem qualquer contribuição à comunidade. Muitos licenciadores corporativos já me ofereceram tais contratos embora eu não tenha assinado nenhum porque sempre fui incentivadora do uso de licenças livres.

A única razão pela qual a licença BY-NC-SA é popular é porque as pessoas realmente ainda não pensaram sobre isso.

BC: “Como ganhar dinheiro” parece ser umas das principais preocupações que os artistas têm quando escutam alguém dizendo “torne livre seu trabalho”. Esse medo é justificado? Você recuperou todo o dinheiro investido em Sita Sings the Blues?

NP: Não, esse medo não é justificado. Mas sua pergunta é certamente tendenciosa: “Você recuperou todo o dinheiro investido em Sita Sings the Blues?”. Como se com copyright eu teria recuperado! Eu ganhei mais dinheiro com meu trabalho livre do que com restrições de copyright. Ponto. De onde as pessoas tiram a ideia de que colocando um © em alguma coisa isso magicamente irá gerar dinheiro? Não acontece assim. Se acontecesse, eu apoiaria plenamente o copyright e seria rica.

Copyright é um “direito de excluir”, não um direito de ganhar dinheiro. Você é livre para ganhar dinheiro sem copyright e, além disso, suas chances são bem maiores.

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Mimi and Eunice, tira de Nina Paley

BC: Você anunciou recentemente que SSTB está agora em domínio público. Embora agora você esteja finalmente livre de burocracias legais envolvendo copyright e essa mudança possa dar mais visibilidade ao seu filme, por outro lado isso pode favorecer o aparecimento de obras derivadas com licenças restritivas (por exemplo, um livro baseado em SSTB publicado com todos os direitos reservados). Como você coloca na balança essas consequências?

NP: Bom, honestamente eu não me importo mais. Vamos apenas soltá-lo por aí e ver no que vai dar. Se alguma coisa terrível acontecer porque eu compartilhei meu filme livremente, irei aprender a partir disso. Mas eu acho besteira ficar se preocupando com o que as outras pessoas fazem e tentar controlá-las, especialmente com leis capengas. Até mesmo licenças livres do tipo share-alike necessitam das leis de copyright para serem aplicadas, e as leis de copyright estão irremediavelmente em frangalhos. Eu não quero validá-las ou apoiá-las de nenhuma forma.

Licenças não vão resolver nossos problemas. O que está resolvendo nossos problemas é o número crescente de pessoas que simplesmente vêm ignorando o copyright completamente. Em vez de tentar levar as pessoas a prestar mais atenção à lei, como o CC faz, eu prefiro encorajá-las a ignorar a lei e se concentrarem na arte. Licenças são a solução errada. A arte é a solução. Faça arte, não leis.

BC: Você também se interessa pelo movimento software livre? Algum de seus trabalhos foi realizado utilizando softwares livres?

NP: Eu estarei na 2013 Libre Graphics Meeting em Madri para discutir a construção de uma boa ferramenta de animação vetorial livre. Mais informações neste artigo: It’s 2013. Do You Know Where My Free Vector Animation Software Is?

BC: A sua próxima animação, “Seder Masochism“, também será colocada em domínio público?

NP: Estará sob CC-0 ou CC-BY-SA. Provavelmente sob CC-0, mas tudo depende do que vai acontecer com “Sita”. Se alguma coisa nos próximos anos me mostrar que não foi uma boa ideia tê-lo colocado em domínio público (o que eu duvido bastante), repenso a licença.

De qualquer forma, pouco importa qual licença eu vou (ou não vou) usar. Todo mundo deve ignorá-la e copiar o filme como quiser.

[André Solnik.]

 

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A literatura sampleada do mixlit https://baixacultura.org/2012/08/17/a-literatura-sampleada-do-mixlit/ https://baixacultura.org/2012/08/17/a-literatura-sampleada-do-mixlit/#respond Fri, 17 Aug 2012 16:01:01 +0000 https://baixacultura.org/?p=10647 12803293_10208040960156966_5977087546051905039_n

Psicólogo de formação e escritor e tradutor por profissão, Leonardo Villa-Forte é o cara por trás do blog. Escreve/remixa pequenos contos, publicados de forma periódica no MixLit, em que coloca para conversar diversos autores distintos, as vezes de gênero, nacionalidades e estilos completamente diferentes. Ao final, indica todas as referências dos trechos que usou, que depois são agrupados em tags no blog.

A aplicação dos princípios do remix na ficção literária ainda é uma prática rara, que tem paralelos recentes na escrita não-criativa de Kenneth Goldsmith e no Manifesto da Poesia Sampler, de Fred Coelho e Mauro Gaspar, e mais antigos no cut-up de William Burroughs e Brion Gysin. Coincidência ou não, em todos estes textos que publicamos aqui sobre o assunto mencionamos como um exemplo da ideia de samples na literatura o caso do MixLit. Chegou, então, a ver de falar dele.

A iniciativa tem tido boa cobertura da imprensa tradicional. Também por conta disso, Leonardo passou a dar oficinas sobre remix literário em alguns eventos, o que certamente tem contribuído para a reflexão inteligente sobre a prática (e tudo o mais) que ele mostra na entrevista abaixo.

mixlit

Segue abaixo a conversa na íntegra, realizada via rede:

Curiosidade: quanto tempo tu leva pra produzir um conto novo MixLIT? Muita gente diz que o “copiar e colar” é mais fácil do que criar, mas o copiar, colar E rearranjar de modo a fazer sentido não é ainda mais difícil do que “somente” criar?

O tempo que levo para produzir um novo conto MixLit pode variar desde duas horas horas a quatro ou cinco dias. Essa variação depende principalmente dos livros que utilizo para fazer o conto em questão: se são livros que conheço – que já li anteriormente – ou se são novos para mim. Dos livros que já li, sei qual é o universo, o tempo, a pessoa do narrador, o estilo da escrita, lembro de determinadas passagens ou cenas. Esse conhecimento prévio ajuda a encontrar mais rapidamente possíveis continuações entre os textos. Quando trabalho com livros que ainda não li, preciso de algum tempo para estabelecer familiaridade e intuir se funciona em ligação aos outros textos.

Quanto às diferenças de dificuldades, é um tipo de avaliação bastante difícil de se fazer. Estou certo de que não é fácil rearranjar fragmentos de modo a construir um sentido, e não só um sentido, mas um sentido com o qual eu me satisfaça. Parto da regra de que não posso escrever nada com minha própria mão e por isso às vezes é bastante angustiante ver que dois trechos poderiam se ligar e cair bem juntos, mas falta algo entre eles, algo que não estou encontrando nos livros. Nessa ocasião, é preciso repensar todo o texto. Por outro lado, existe a tranquilidade que vem da ideia de que tudo está em algum lugar, e que só é preciso encontrar – a ideia de que não será preciso partir do zero. Na criação de mão própria muitas dificuldades podem ser resolvidas com um planejamento prévio ou com o próprio aquecimento da mão, ir escrevendo e escrevendo, até a coisa acabar andando por si, a narrativa se desenhar.

Nenhuma das duas são saídas para o MixLit: não posso planejar previamente, nem posso ir aquecendo a mão. São dificuldades diferentes. O prazer também é diferente. Na criação de mão própria posso guiar a frase como bem entender, desde suas mínimas até as máximas unidades, estabelecer um ritmo e levar a narrativa para onde eu quiser. No MixLit, apesar da ideia de que posso levar para onde eu quiser, na verdade não posso, pois estou restrito àquilo que oferecem os livros que tenho. Assim, apesar de as duas ações resultarem em texto, sinto que a melhor resposta é dizer que as dificuldades são de naturezas diferentes.

Como você produz os contos remixados? Seleciona o que acha interessante num banco de dados, depois vai reconstruindo e misturando de forma algo aletatória? ou o método é mais caótico?

O método é mais artesanal. Não construo um banco de dados prévio. Tudo acontece na hora em que resolvo produzir um texto. Cerco-me de alguns livros escolhidos já intuindo que sejam possíveis de apresentarem conexões. Leio trechos de cada um, marco passagens que podem render ligações e assim vou passando de um livro a outro, enquanto transcrevo para o computador as passagens que seleciono. Nisso já tenho a noção de qual passagem pode ser um bom início, qual pode ser um bom final, qual pode preparar certa situação. Depois faço com elas um arranjo. Às vezes funciona de primeira. Às vezes não, e nessas horas tenho duas opções: mudar os livros, cercar-me de outros, ou avançar na (re)leitura dos que escolhi, ler páginas e páginas, até encontrar alguma passagem que pareça de fato encaixar com as outras, acrescentando algo ao texto. Quando vejo que a coisa não está caminhando bem, paro e vou terminar o texto no dia seguinte. Frequentemente misturo livros que venho lendo ou li recentemente com outros que estão há anos nas minhas estantes.

Como é produzir um trabalho em colaboração com textos novos ou clássicos da literatura? Dada a natureza normalmente solitária da literatura, seria esta forma uma “literatura colaborativa”?

É divertido. Sinto como se colocasse os livros para conversar e fosse, aos poucos, construindo um livro infinito, um livro que transborda suas páginas, como se certa linha de uma livro escapasse do limite do seu papel e fosse se esticando e esticando até repousar em outra linha, de uma outra página, de um outro livro. Uma linha infinita que poderia nunca acabar, e pela qual todos os livros pudessem dar as mãos. Gosto da imagem, do mapa que venho traçando. Por outro lado, menos mental, é uma ação bastante física, de um prazer quase infantil, entre o destruir e o construir. Retirar, recortar, picotar parágrafos estabelecidos e criar os meus, mudar o concreto de lugar e fazer dos textos impressos peças móveis, construir blocos que fiquem em pé, ver o texto quase como um Lego, um Tetris, uma conversa virtual onde sempre se está aberto à participação de um novo convidado, isso tudo me entusiasma.

Nas Oficinas de Remix Literário que dou, essa parte da ação física sobre os textos é uma das preferidas, as pessoas realmente parecem gostar e sentir o texto se construindo através delas pelo meio do recorte, arranjo e colagem. Além de divertido, é intrigante. Ainda consigo ter a sensação de que é algo esquisito. Por mais que tenha alguém teoricamente no controle, nunca sei onde a coisa vai dar. Preciso confiar na capacidade de tornar os fragmentos um texto integral, e entender que aquilo pode virar algo meu, que diga respeito a mim. Isso é o que geralmente acontece.

Quanto ao termo “literatura colaborativa”, parece-me que tem sido mais aplicado a iniciativas de coletivos de pessoas que se agrupam para escrever. Penso já ter ouvido falar de sites ou livros digitais que estão sendo ou foram escritos assim, com várias pessoas inserindo frases suas, sem a figura de um único cérebro no controle. Se você lembrar das comunidades no Orkut, as conversas se davam assim. Uma pessoa lançava um tópico e então abaixo dela assistíamos a uma crescente inserção de comentários vindos de conhecidos (se frequentávamos aquela comunidade) ou desconhecidos. Quem se prestasse a ler um tópico inteiro, poderia encontrar, quase ao vivo, a formação de sentido sendo operada coletivamente, a partir dos fragmentos inseridos. O MixLit tem alguma semelhança com esse formato. Se ele seria a forma mais aproximada da expressão “literatura colaborativa”, eu não sei. É uma boa questão, que me leva a pensar em diferenças de método, procedimento e resultado.

Não sei se o MixLit é mais ou menos “literatura colaborativa” do que esses sites ou artigos ou histórias que as pessoas escrevem em conjunto. O caso de Borges com Bioy Casares, por exemplo, com livros que escreviam sob um pseudônimo único, o recente O verão de Chibo, de Vanessa Barbara e Emilio Fraia, também escrevendo em dupla, o #24H de Bernardo Gutierrez, um livro que nunca termina e incorpora comentários de leitores… enfim, são muito variadas as iniciativas destes tempos que vivemos, inserir uma ou outra sob certo termo depende mais do quão precisa é a definição desse termo.

Como a criação artística influencia e tem sido influenciada pela cultura do compartilhamento das redes digitais?

Creio que os criadores da minha geração formam um terreno especialmente particular, pois devemos ser os últimos a lembrar de um tempo sem internet, ao mesmo tempo que entramos nela não muito tarde. De certa maneira, isso gera uma cisão interessantíssima entre os discursos, o físico e longevo, e o digital e passageiro.

No meu caso específico penso que a questão do compartilhamento me levou a ver mobilidade e movimento (físicos, não só mentais) em coisas que pareciam estanques. Mas esse tipo de atravessamento parece tão natural que é uma daquelas coisas que a gente não consegue determinar uma única fonte. A criação muda na medida em que o criador está em contato ou não com a nova cultura. Você pode pensar em alguns escritores, como Michel Laub, que em seu Diário da Queda usa parágrafos bem curtos e numerados, um forma de organizar o texto que, a meu ver, dialoga muito, e de maneira inteligente, com a cultura digital. Mas você pode ir até livros tempos pré-internet, como o Arcades Project, de Walter Benjamim, ou quadros cubistas de Picasso, e ver que a compartimentação, a fragmentação e a mobilidade já estavam no olhar do artista.

haroldo

Você pode pensar simplesmente que esses trabalhos prefiguraram e indicaram os tempos por vir, ou, o que acredito ser mais interessante, considerar que esses trabalhos não só indicaram, mas construíram e participaram ativamente da formação de um certo tipo de olhar contemporâneo. Isso pode ser sentido muito vivamente pela leitura/experimentação de alguns dos poemas concretistas de Haroldo de Campos ou Décio Pignatari. Ali, a maior construção não é só a obra, mas a construção de um próprio leitor, do qual se demanda procedimentos incomuns de leitura. Você pode pensar em livros de aforismos, como o de Karl Krauss, ou de poemas curtos, como o 1 de Gonçalo Tavares, ou o Rilke Shake, de Angélica Freitas, ou O silêncio como contorno da mão, de Elaine Pauvolid, e pensar que poderiam caber muito bem como posts de uma rede social, um Twitter. Mas os aforismos de Karl Krauss foram escritos muito antes disso tudo.

O que acontece é que nossa cultura, hoje, está muito propícia para que esse tipo de trabalho (textos breves) retorne. O romance com mais de mil páginas está de difícil apreciação, como bem fala Italo Calvino em seu “Se um viajante numa noite de inverno“, livro também muito adequado a entrar nessa conversa e temporalmente não muito distante de nós. O caldo que ferve a cultura privilegia, em tempos, certos tipos de expressão, e em outros tempos, outros tipos de expressão. O romance está vivo – há um prazer muito específico em imergir dentro de um universo, dentro de uma história, e acompanhar seus desdobramentos, um prazer pouco substituível, digamos assim – o que acontece é que um criador, hoje, precisa estar muito ciente do tempo que irá demandar do seu leitor. O que, fazendo uma revisão ao que falei acima, não necessariamente se mede em páginas, pois há livros que, com poucas páginas, pedem uma degustação concentrada, como os de Raduan Nassar, e outros que, com muitas páginas, são lidos rapidamente, como muitos romances policiais e de mistério.

Sinto que, na cultura de compartilhamento, você está sempre com muito material e pouco tempo. Quando você lê um livro, aquilo é tudo que você tem à sua frente. Ao computador, qualquer arquivo aberto é mais um entre milhares que estão atrás dele, logo ali no seu desktop e no seu navegador. Há uma sensação de acúmulo e variedade que dificulta a imersão e privilegia a circulação. Esse tipo de leitura é o que uso quando vou fazer um MixLit. Fico feliz em conseguir realizar mais de um modo de leitura.

A cultura do compartilhamento também interferiu, obviamente, na noção de autoria. Com o compartilhamento um certo documento ou arquivo adquire vida própria, independente do seu autor ou do formato original em que foi lançado ao mundo. A cerimônia, no sentido de um respeito excessivo perante um material ou uma ideia, vai-se extinguindo aos poucos nesse lastro. E, como o avesso dessa mudança, revelou-se ainda mais a alegria de se desenhar um trajeto, traçar um percurso de leitura, apresentar o passo-a-passo, inventoriar o ambiente, desvendar as peças do interior da máquina. Quando o caminho fica turvo, clareá-lo é um prazer. Daí surgem até mesmo poemas, como “Directory”, de Robert Fitterman, que traço o trajeto de uma pessoa dentro de um shopping. No caso do MixLit, que trabalha mais com prosa, tento desfrutar de procedimentos, visões e ideias próprios de uma época digital, sem que isso seja uma perda em termos de narrativa. Fazer com que a chamada “experimentação” seja uma aliada, e não um obstáculo.

O que sinto é que a cultura digital mudou o homem. E que aquele rio, onde o mesmo homem não conseguia se banhar, torna-se outro cada vez mais rapidamente. Ao menos em certa camada do homem, pois há definitivamente uma camada onde a mudança ocorre de maneira muito lenta, ou simplesmente não ocorre. Hoje podemos ter a diversidade de encontrar criadores em maior e menor diálogo com a estética da cultura digital, uma diversidade que, me parece, será cada vez menor, pois está acontecendo uma passagem, talvez análoga à passagem que sofreram os autores de televisão, meio em que a geração mais velha de roteiristas é mais afeita à influência do rádio e hoje há uma geração que viveu mais as séries e o cinema.

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Grandes Experimentais da Cultura Digital & Livre (1): Rubens Velloso https://baixacultura.org/2011/06/07/grandes-experimentais-da-cultura-digital-livre-1-rubens-velloso/ https://baixacultura.org/2011/06/07/grandes-experimentais-da-cultura-digital-livre-1-rubens-velloso/#comments Tue, 07 Jun 2011 18:18:29 +0000 https://baixacultura.org/?p=4927 Damos início hoje a mais uma nova seção especial (que não sabemos onde vai dar) por aqui: chama-se conforme o título do post acima e tem como resumo “Entrevistas remixadas com experimentais (pouco) compreendidos da cultura digital & livre“. A primeira é com Rubens Velloso, diretor da companhia Phila 7 – talvez o principal grupo brasileiro que  trabalha na pesquisa de novas linguagens cênicas que levam em conta a questão digital, telepresença, corpos biomecânicos, conceitos relativos de espaço, tempo e narrativa, dentre outras questões correlatas.

Foi por acaso que tivemos a ideia dessa nova seção do Baixa. Eu (Leonardo, que a partir de agora, nesse post, deixa o plural de lado para assumir a 1º pessoa) estava fazendo uma entrevista para a pesquisa sobre teatralidade digital que tem me ocupado nestes até agora 6 meses de 2011 e pensei: mas por que não usar esse conteúdo também no Baixa?
[A pesquisa é oriunda de uma bolsa da Funarte, Reflexão Crítica em Mídias Digitais 2010, e vai resultar num livro reportagem tendo por foco o grupo Teatro para Alguém; tenho mantido este blog aqui como uma espécie de making off de tudo isso.]

Fotos de Play On Earth, montagem do Phila 7 de 2006

Rubens me recebeu em sua casa, na Lapa, zona oeste de São Paulo, numa noite de segunda-feira. É um ótimo papo; daquelas raras pessoas que tu pode perceber que está pensando muitas coisas a frente de nós (eu, tu e a gigantesca maioria dos habitantes dessa Terra). Em 2006, com seu segundo espetáculo, “Play on Earth”, o Phila 7 – a companhia na qual é diretor – tornou-se pioneira no uso da internet para a criação e apresentação de uma peça teatral que uniu três elencos em três continentes simultaneamente: Phila 7 em São Paulo, Station House Opera em NewCastle na Inglaterra e Cia Theatreworks em Cingapura. Três audiências, cada uma em sua cidade, a assistir às atuações em tempo real, formaram um quarto espaço imaginário.

Dois anos depois, um experimento ainda mais radical: “What´s Wrong with the World?” da série Play on Earth, um espetáculo ao vivo entre Brasil (Rio de Janeiro) e Inglaterra (Londres). Linkados pela internet, os atores atuaram ao mesmo tempo e ao vivo, fazendo do “mundo” seu palco numa proposta marcada pelo ineditismo de linguagem e estrutura dramática.

"What's Wrong With the World", 2º experimento cênico-digital do Phila 7

Rubens e o Phila 7 avançaram e estão para lançar, no fim deste ano e no 1º semestre de 2012, três “espetáculos” que dão prosseguimento à essa busca. Um deles Rubens chama sabiamente de “superfície de eventos“, porque está longe do que estamos acostumados a entender como teatro, cinema, perfomance, dança  – é tudo isso, mas também um embrião de uma outra coisa ainda sem nome.

O papo a seguir é uma versão editada e remixada de nossa conversa. [Mas se você quer ouvir na íntegra e na sequência correta pode ir lá para o fim do post que o áudio está lá, em duas partes, com qualidade não muito boa mas audível]. Rubens falou muito de teatro, facebook, internet, direitos autorais e outras coisas inevitáveis desses tempos. Mostrou seu trabalho de invenção de linguagens – e de criação de uma gramática para falar dela, como o “MCs de fluxos reflexivos” para se referir ao trabalho dos atores com que vem trabalhando nos processos que prepara para o final deste ano e 2012.

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BaixaCultura: Como você começou com essas experimentações de linguagens?

Rubens: Nessa contemporaneidade, eu me senti muito confortável, muito mais do que me sentia quando jovem. Porque eu fazia estas coisas – eu já misturava super-8 com 35mm, fazia teatro depois filmava, etc. Isso pra te explicar um pouco do que estou fazendo agora. Vou partir de três montagens pra te explicar o que é que eu to fazendo. Dois já estão armados com certeza, o outro eu to armando, vai acontecer.

O primeiro chama On Ego, é um texto inglês contemporâneo [De Mick Gordon e Paul Broks] em que parte das questões da neurociência, da dissolução do eu e das redes neurais como expressão de você – você é uma narrativa de uma rede neural. Em On Eagle, eu trabalho com a ideia de que o cérebro – a rede neural que você tem – já te remete a uma visão muito radical e contemporânea do que é o indivíduo hoje. Muda para várias coisas, e uma questão que me interessa é que o eu já não é tão importante como manifestação, e sim como você se linka com o outro. Quer dizer, estamos falando aqui, mas existe uma outra coisa que está trabalhando aqui e que tá construindo uma ideia que aos poucos vai ficando em conjunto.

Cartaz da Leitura pública de On Ego, feita em 28 de março, em SP

O cérebro, de alguma maneira, depois de milhões de anos de evolução, ele cansou de que o homem, para transcender e entender as coisas todas, criassem deuses e coisas assim. Então, o que ele criou? Um simulacro, que são as redes. Ele criou um simulacro dele mesmo para você entender que as coisas precisam estar conectadas com um centro, mas podem estar rizomáticas. Ele criou os computadores para várias coisas, mas uma delas é para mapear ele mesmo e falar assim “Ó como eu sou”, e esse como eu sou é como você é.

A partir destas questões, e de outras questões geracionais muito claras depois do advento da internet – essa geração que nasceu com a internet tem o seu olhar todo modificado, no sentido de que a presença física e a presença virtual são vistas como duas formas de presença. Com manifestações diferentes, mas são presenças: uma presença carbônica, que é como nós estamos aqui, e a presença sílícia, quando tá na rede. Quando voce trabalha com isso, me interessa a potência do teatro na singularidade do local onde ele se dá. Me interessa o que está em torno – e que ainda está em fase embrionária e que tá começando a explodir sem rumo, o que é bom. Me interessa, a partir disso, potencializar estas duas formas de presença e quebrar as paredes do teatro, fazer com que ele, na força que ele tem como uma forma de presença, desdobrar essa reflexão pra fora dele e de fora dele lá pra dentro.

Eu já não penso mais em dramaturgia, mas tramaturgia, que é como você escreve – não só os diálogos mas todos os acontecimentos – como uma trama que vai se enredar nessas várias formas. Profanações [o 2º “espetáculo/superfície de eventos que Rubens e o Phila 7 preparam] é isso: tudo que vai acontecer – teatrais, imagéticas, virtuais – vão estar ali unidos por uma tramaturgia, onde os atores – que eu chamo de MCs de fluxos reflexivos – são os receptores e gerenciam isso junto ao público para que a ideia vá se construindo. É um pouco diferente do Teatro para Alguem porque eu nem estou interessado nem no teatro sozinho nem no teatro transmitido pela internet. Eu estou interessado nas potencialidades destas formas e em como nós podemos enredá-las para gerar uma potência que se espalhe como reflexão.

Em What's Wrong With the World, atores & projeções de atores & vídeos contracenam juntos

Não é teatro, nem cinema, e eu nem quero chamar de híbrido. Voce se apropria de todas as formas de produções estéticas – imagens, teatro, vídeo, formas de presença diferente, artes plásticas. Mas pra você chegar nisso tem que mudar o pensamento inteiro. Você não faz isso só intelectualmente, você tem que mudar a forma de pensar. Tá acontecendo comigo, eu faço exercícios. Por exemplo: Eu pego dois computadores e ligo, ponho dois filmes (ou videoarte) diferentes, ligo música aleatoriamente, deixo a sala do meu escritório aberta para fazer um frame com o real de senso comum, esse real que a gente se apoia. A partir desses fragmentos, eu vou construindo rapidamente uma narrativa, com a ajuda de livros – ponho quatro cinco livros junto disso tudo. Vou vendo onde estas coisas se conectam e vou construindo, na minha cabeça, uma narrativa que vai juntando tudo isso.

B :É a típica cognição da internet, não? Fazer várias coisas ao mesmo tempo.

R: Exato. Voce pega o que acontece no Facebook, por exemplo. Existem vários approachs [modos] pra entender isso, mas os dois mais comuns são 1) ah, isso é legal, mas é muito bobo; e 2) ah, isso é legal, o que me interessa mais. O bobo vai estar lá sempre, porque o bobo tá na vida da gente. Mas isso é legal: como eu posso captar isso como estrutura de reflexão, onde o teatro tem uma potência muito grande, e fazer a junção. Pra isso, você tem que mudar conceito de espaço, você tem que se educar para isso.

O cérebro sabe disso, de certa forma; na zona cognitiva e da razão, ele entende que “ah, onde nós conversamos agora é um espaço físico”. Mas se eu ligar um computador aqui, eu to com esse espaço e outro espaço que eu trouxe pra dentro de casa. Se eu ligar uma câmera, eu jogo esse espaço que eu estou – ou no mínimo um recorte dele – pra dentro de outro espaço, de uma outra pessoa, que está em outro lugar. Eu vou criando espaços conectados e formas de presença, vou enredando tudo isso de uma forma que, se você não se preocupar mais de que forma isso está vindo, você faz uma potência reflexiva espalhada violenta.

B: Ainda é difícil da gente não pensar em como isso está sendo feito.

R: É novo. Outro dia eu estava em um seminário sobre teatro e lá estava uma neurocientista. Falei isso que estou te falando e ela disse, “olha, você tem toda razão. O cérebro está constituindo redes de compreensão e ele entende toda a questão digital como extensão de seu corpo. É seu corpo extendido para fora de você, mas dizendo de você”. Mas é claro que isso tem um tempo de amadurecimento. Tanto que quem mais aproxima do nosso trabalho no Phila 7 não é o pessoal do teatro, mas sim o pessoal de multimeios. É que o olhar dessa moçada está mais ligado pra isso. Eu falo pra gente do teatro – que são aqueles que eu mais conheço – e muitos me olham assim, “ih, enlouqueceu, isso não é teatro”. Mas eu falo, “não quero que se chame de teatro, mas o teatro está lá. A teatralidade está lá, a potência do teatro está lá”. Mas não é como você aprendeu sempre, uma caixa preta, palco italiano, é outra coisa.

[youtube=http://www.youtube.com/watch?v=0nngr0WjXyg&feature=related] Making of de “What’s Wrong With the World”

B: No teatro é difícil achar interlocutores pra falar dessa relação com o digital, não?

R: Muito. Eu sou um ET. Às vezes a discussão morre em ver se é ou não é teatro. Mas meu pepino é maior que o do Teatro para Alguém, por exemplo. Porque, quando eles chamam de “teatro digital”, eles abrem essa discussão. Eu nem quero discutir isso. Eu não quero nomear nem de teatro nem de digital essas coisas todas. Eu to trabalhando com redes digitais, digineurais, você entende? Eu to criando um vocabulário pra isso, to escrevendo mesmo, pra poder me comunicar. Porque quando voce fala em teatro digital, voce nomeou duas coisas que já tem carimbo na sociedade. O pessoal do teatro, por questões óbvias, fala: isso não é teatro. Se eles [do Teatro para Alguém] chamassem de teatralidade digital, já começaria a ser mais aceito.

Eu to cagando pra se é teatro ou não é teatro o que eu faço. Mas o teatro está no que o Phila 7 faz, ele está lá linkado com outras coisas, ele não tem o formato que a gente acostumou a ter. Mesmo quando você rompe com o palco italiano – que nem o Vertigem, que foi fazer peça em cadeia, hospital – é um lugar, onde se forma uma singularidade e o teatro se instaura. Esse lugar sempre vai existir pra mim, só que não tem mais parede, dali é pra fora e de fora pra dentro.
[NE: O Teatro da Vertigem é uma companhia de São Paulo que busca trabalhar com espaços não convencionais. “Projeto Apocalipse”, um de seus espetáculos, circulou o Brasil e alguns lugares da Europa sendo apresentado em cadeias; BR-3 se passava num barco que navegava pelo rio Tietê, em São Paulo]

Mas imagina, não é fácil: teatro tem mil e mil anos, e você insere uma questão que, em primeira instância, seria o contrário do que ele é: a força do teatro está exatamente na preseça. De uma certa forma, é difícil derrubar isso. O que você tem de fazer é se desvincular disso. Esquece. Não to fazendo teatro. Mas existe teatro lá, e pode existir sim.

Espaço de convivência da sede "real" do Phila 7, na Rua Tito, 79, em São Paulo

B: Como viabilizar financeiramente uma prática que ainda não tem nome?

R: Tenho pensado nisso. Inclusive, vou te chamar quando isso acontecer. Vai se chamar “Churrascão da Arte Diferenciada” (risos). Eu acho que ele pode se financiar na medida em que o coletivo se apropria disso, principalmente através da rede. Você pode, por exemplo, fazer dramaturgias porosas onde as pessoas das redes virtuais – ou mesmo presencialmente – vão construir na decisão do espetáculo. Elas contribuem com ideias e esse financiamento vem dessas proprias comunidades. Eu acho que isso é viável a médio prazo.

B: Como um crowdfunding?

R: Exatamente. Mas você nao faz a oferta da coisa; você começa a debater, ver onde a ideia se encaixa e vai construindo com ela. Eu tenho uma ideia que a pessoa tem o direito de acompanhar todo o processo, enviar imagens ou textos que elas achem pertinentes. E quando a coisa acontecer, ela tem um acesso a essa coisa – sempre tem um centro onde ela acontece. Você percebe que tudo isso ainda é futuro. Eu to falando de um presente que espera um devir, né. Mas alguem tem que meter a mão na massa, alguém tem que fazer o trabalho sujo.

B: E a colaboração das pessoas, como fica?

R: É complicada, tudo é complicado. Voce tem que mudar seu pensamento. No Profanações, eu me reuni com essas cabeças que vamos trabalhar: a ideia é isso, agora vamos construir juntos. É difícil, primeiro, aceitar que não temos uma coisa feita. A 2º coisa dificil é: pra você fazer esses trabalhos, a questão do ego tem que ser subvertida. Se você for trabalhar não a ideia mas sim o que você quer dessa ideia, e não do que você pode compor com ela, fudeu.

Você tem que trabalhar em outras instâncias da sua relação com a arte. Eu escrevo lá no Facebook só pra provocar as pessoas: processos desse tipo são propriedades de uma inteligência coletiva, não de uma inteligencia individual que direciona tudo. É uma inteligência coletiva que constrói a coisa toda. Eu vi que há uma narrativa mas é sempre aberto a experimentações, a novas ideias. Não é uma coisa fechada. Nunca tá pronto. É processo. Eu não estou trabalhando mais com coisas fechadas

Eu não estou atrás de sucesso, entendeu. Não to mesmo. To cagando. Eu sou um sujeito fadado ao fracasso, porque eu trabalho no fracasso. O que eu faço não é sedimentado, e você não pode se importar com isso. E te falo, parece utopia, mas é possível. Eu detesto quando alguém fala assim: você tem um projeto. E fala projeto para não falar produto. Eu não tenho e não quero ter. Não tenho nem produto pra te dar. Eu tenho uma coisa que nem é minha, é coletiva. Se é pra fazer o mais do mesmo, isso eu já fiz pra caracoles na minha vida. Na verdade nem fiz, já misturava, já era problema, mas não tão radical. Eu não tenho nenhum interesse no espetáculo ficar prontinho, bonitinho, se repetir toda a noite.

"WeTudo: Desesperando Godot" (2009) último "espetáculo" do Phila 7, dirigido por Rubens

B: Existe uma dificuldade de gerações mais velhas em entender que o direito autoral, do jeito que é posto hoje, não tem mais serventia.

R: Acabou! Acabou o direito autoral. Acabou mesmo. Tem que achar outra coisa. Isso já era. E quer saber, eu acho do caralho! Faz parte da inteligência coletiva, é genético, DNA, coisa da consciência humana. Pra mim, pro meu trabalho, jogar esse jogo (do direito autoral) seria negar tudo o que eu estou fazendo. É negar tudo. Claro, eu sou um artista, temos que ganhar dinheiro para sobreviver. Mas nós temos que construir outras formas desse dinheiro chegar na gente.

B: E isso não está estabelecido ainda, o que angustia as pessoas. Vai substituir pelo quê? Ninguém sabe ainda.

R: O problema é que ninguém sabe porque ninguém pensa diferente. Eles ficam pensando em como substituir o direito autoral e eles ainda pensam em direito autoral como uma propriedade privada que vai valer pelo resto da minha vida e quem quiser usar vai pagar pra mim. Não tem mais isso! Acabou! Tem que ter outro jeito.

Eu falo: “não fica sonhando com coisas que não vão acontecer mais”. A música já entendeu, tá aprendendo na marra. O cinema, a mesma coisa. Mas ele fica inventando coisas, tipo o 3D. Eu sou partidário – falo isso com gente de cinema, e sou xingado – de uma ideia intermediária. É assim: quando voce faz um filme pela lei do audiovisual, você, cineasta, já ganha por isso, o seu valor já tá embutido no valor obtido. A empresa que patrocina, não patrocina porra nenhuma, é o povo que patrocina o cinema brasileiro. Bradesco nao patrocina pica nenhuma, nem Petrobras. É tudo lei de incentivo, tu não paga o imposto lá e joga aqui.

Portanto, nós deveríamos pegar o filme e disponibizá-lo de todas as formas possíveis, pra maior quantidade de pessoas possivel. A arrecadação que possa vir tem que formar um fundo de cinema pra gente começar a ser independente do cinema mercadológico. Entendeu? Você ir lá pedir dinheiro pro Bradesco e ele perguntar “ah, mas vai ter ator da Globo?”, “o filme é comportado? tem uma linguagem certinha?”. O fundo seria pra ficar livre disso, experimentar outras coisas, outras linguagens. Isso é uma solução intermediária, e nem isso o pessoal do cinema topa…

Eu adoro essas revoluções que estão acontencendo agora, que às vezes parecem eufóricas e juvenis. O que eu adoro nelas é que elas não tem centro, é uma ideia. “Marcha da liberdade“, por exemplo. Cada um vai lá gritar liberdade do que lhe interessa. E tá chegando (no Brasil), vai chegar no mundo inteiro.

Essa geração nova [que tá organizando essas pequenas revoluções] já tem introjetado coisas que você não precisa mais trabalhar para introjetar. Essa moçada que eu chamei pra trabalhar raramente ia ao teatro. Esse pessoal gosta de um monte de coisa legal, mas detesta teatro. Eles só se interessaram por teatro porque eu os chamei para trabalhar nessas ideias. Temos que construir um olhar pra poder ver o teatro, se não ele vai virar ópera, com aquele público senil, aquela coisa formal.

É necessário aprender a ouvir também. Eu falo dessas conversas do Facebook, que parecem idiotas, mas não são por um motivo muito simples: pra essa geração mais nova, a questão da presença é muito diferente do que a gente caracteriza como “estar presente”, do “estar aqui vendo uma imagem”. Nada. São formas de presença. Aquele bate-bapo ali é como se estivessem numa mesa de botequim. Não há diferença entre essas formas de presença pra eles.

Claro, existe muita merda no facebook, mas acho que a arte é um caminho para fazer a reflexão sobre isso. Ela tem que gerar reflexão, gerar conteúdo, gerar proposta, pensamento. As pessoas estão abertas pra isso, mas você tem que chegar nelas de algum jeito. Cabe as artes respectivas entrar ali e gerar atrito para gerar conteúdo. Eu acho isso, e é o que eu to tentando fazer.

Parte 1: [soundcloud url=”http://api.soundcloud.com/tracks/16697089″]

Parte 2: [soundcloud url=”http://api.soundcloud.com/tracks/16711475″]

Créditos fotos: Site Phila 7
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Elenco, Teste de. Distribuição: internet (somente) https://baixacultura.org/2011/04/11/elenco-teste-de-distribuicao-internet-somente/ https://baixacultura.org/2011/04/11/elenco-teste-de-distribuicao-internet-somente/#respond Mon, 11 Apr 2011 16:40:35 +0000 https://baixacultura.org/?p=4676

O primeiro longa brasileiro lançado diretamente na internet” foi o slogan que chamou nossa atenção para o filme “Teste de Elenco”. Disso fomos conferir a produção de 1 hora e 7 minutos que conta a sugestiva história de um diretor que recebe candidatas a um papel num filme – nada mais é dito sobre a produção, apenas o nome das personagens: Fábio e, mais tarde, Letícia.

A primeira impressão que se tem é a de que estamos assistindo as gravações de entrevistas do diretor com várias mulheres, o que é ressaltado pela edição alternada das imagens. Aos poucos dá pra perceber que é a conversa, num único espaço, de duas personas, com a diferença de que estas são interpretadas por mais de vinte atores. E sobra até para o roteiro se dividir quando três piadas são contadas ao mesmo tempo.

O longa-metragem é de responsabilidade da Fondo Filmes – produtora carioca de cinema e TV. Desde 27 de fevereiro de 2010, eles também produzem o site de comédia Anões em Chamas, lugar de postagem de diversos videos – destaque para as séries “Amanda”, menina meiga que dá dicas para agradar o namorado violento, e as “Histórias para nanar”, versões leves de histórias pesadas, além de muitos outros.

Lançado no site do Anões em Chamas no último 23 de março, “Teste de Elenco” é mais uma tentativa de buscar saídas ao nosso velho sistema de distribuição de cinema – tipo de experiência já feita por filmes como Bubble (de 2006), Carreiras3 Efes (ambos de 2007), lançados em múltiplas plataformas (cinema, TV, DVD e internet). Ou, ainda, pelo Mobz, um site em que as pessoas podem ajudar a fazer com que determinado filme seja distribuído na sala de cinema da sua cidade apenas “demandando” o filme através de um botão (veja lá como funciona direitinho;  é como um crowdfunding aplicado à distribuição de cinema).

A novidade no caso do “Teste de Elenco” é que o longa foi somente lançado na internet, numa experiência que se apresenta como uma das pioneiras no Brasil.  Um pouco sobre a produção tu pode conferir abaixo na entrevista realizada por e-mail com Osíris Larkin, diretor do filme a lado de Ian SBF. Ao fim do post, dê uma olhada no filme, que tem Fábio Porchat e Talita Werneck, do Comédia MTV,  nos papéis principais.

De onde surgiu a ideia para o Teste de Elenco?
A idéia original foi do Ian, em meados de 2008, que pensou no conceito de fazer um filme com vários atores fazendo o mesmo papel.

Qual o orçamento? Foi pago com algum patrocínio ou com dinheiro próprio?
Na verdade não teve orçamento. A gente foi pagando o que não dava pra conseguir de graça. A produção começou em Setembro de 2008 quando eu, Ian, e o Gustavo começamos a escrever o roteiro. Depois disso eu e Ian nos organizamos e fomos produzindo, com uma grande ajuda do nosso protagonista Fábio Porchat.

Parece que foram filmadas várias vezes com o mesmo roteiro e vocês editaram com os melhores trechos. Foi isso que aconteceu?
Na verdade a gente separou o roteiro em partes e demos certas partes pra cada ator encenar. Escolhemos os trechos pensando nas características de cada ator, pensando em qual parte eles melhor representaríam. Apenas o Fábio e a Talita encenaram o roteiro completo. Eram nossas âncoras.

Por que a distribuição apenas na internet?
Porque hoje em dia a internet é a ferramenta mais usada e conveniente para o espectador. Com ela nós sabiamos que o filme seria muito mais visto do que se lançassemos nos cinemas ou em quaquer outro lugar. Tivemos mais publico em 2 semanas do que muitos filmes por aí.

Por que não disponibilizaram para download?
Porque queremos que as pessoas visitem nosso site: www.anoesemchamas.com.br

Vocês não acham que algumas pessoas podem dar um jeito de baixar do streaming? Não duvido nada, mas isso não é problema.

E tambem não facilitaria pra quem tem uma velocidade conexão baixa? Talvez, mas aí elas também teriam que esperar enquanto o filme baixa. Deixa ele “buffering” por um tempinho que funciona.

O player de vocês também não permite que se possa ir para determinado trecho do filme, pretendem corrigir isso? O player ainda está sofrendo alterações.

Alguma distribuidora ou canal de tv (Multishow, por exemlpo) já entrou em contato com interesse para distribuir, promover e/ou exibir o filme?
O Canal Brasil mostrou interesse, mas não conseguimos chegar a um acordo.

Qual o tamanho da equipe de vocês, pelo menos dos redatores/administradores já que os atores não são fixos? Atualmente temos uma equipe de 7 pessoas no Anões.

Numa recente matéria do jornal O Globo vocês disseram que pretendem abrir o site para videos de outros autores. Quais videos de outros já postaram? As séries Birizon (na verdade um curta dividido) e PTEC do diretor Pedro Carboni. Por enquanto não recebemos outras obras, mas se gostarmos da obra continuaremos à postar.

O que vocês pensam sobre o “audiovisual” brasileiro na internet?
Ainda está se desenvolvendo. Acho que está começando a ser levado um pouco mais a sério, mas ainda falta visão na parte das grandes marcas, exibidores, e produtores brasileiros para acreditar que a internet é um dos, senão o, melhor veículo para a comercialização de produtos e principalmente de descoberta de novos talentos.

[vimeo http://www.vimeo.com/22072825 w=400&h=225]

 

[Marcelo De Franceschi]

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https://baixacultura.org/2011/04/11/elenco-teste-de-distribuicao-internet-somente/feed/ 0
Os encartes da Apanhador Só https://baixacultura.org/2010/07/15/os-encartes-da-apanhador-so/ https://baixacultura.org/2010/07/15/os-encartes-da-apanhador-so/#comments Thu, 15 Jul 2010 11:59:11 +0000 https://baixacultura.org/?p=3244

Os cinco pneus da bicicleta da banda gaúcha Apanhador Só têm rodado muito mais pelo Brasil desde o lançamento do primeiro cd. O quarteto liberou as 13 músicas em seu site oficial no dia 11 de abril – dez dias antes de fazerem um show de graça no Teatro Renascença, em Porto Alegre. Atualmente eles estão em São Paulo, mas um dos lugares por onde passaram foi Santa Maria, no bar Macondo Lugar em 26 de junho.

Até então não tínhamos nos surpreendido com a atitude deles de disponibilizar gratuitamente a produção – que já rendeu mais de 7 mil downloads feitos. O que nos chamou atenção – além da apresentação tranquila das belas faixas do disco, boa parte delas acompanhadas pelo coro que era entoado no recheado espaço – foi o acabamento dado ao suporte físico das 13 músicas. Mais precisamente o encarte do cd.

Ao custo de 15 reais, 15 cartões (ou cards), no lugar de um esperado encarte de abrir, vêm junto ao disco dentro da caixa de papelão envelopada por uma capa mais fina. Em cada quadrado, as letras das canções estão ali – escritas à mão pelos integrantes – mas do outro lado há ilustrações que auxiliam na assimilação das composições. Agrupados, formam um bonito mural, sem uma interpretação definida, mas cuja graça reside nessa subjetividade, nessa indefinição. Afinal seria um tanto sem graça ter um único significado, principalmente por se tratar de música e poesia.

Tal iniciativa de se fazer um acabamento gráfico maior sobre o disco é um bom exemplo para as gravadoras e para a industria cultural como um todo. Com a inevitável disseminação digital do conteúdo, é preciso criar maneiras de justificar a existência do produto material. Poucas pessoas, no máximo os fãs doentes, querem comprar um produto, no caso um cd, e receber uma caixinha de plástico com fotinhos e/ou as letras. Para vender e despertar a curiosidade de muitas pessoas, é preciso usar a criatividade e pensar em novas, e baratas, formas de valorizar uma criação artística. E isso pode ser realizado investindo no aspecto visual. Transpondo o exemplo para outros suportes pode se citar livros com capas mais trabalhadas, como essas edições dos livros de Júlio Verne; filmes que venham com um livreto sobre a produção, como a coleção de dvds da cinemateca Veja. Nos discos, podem ser criados adesivos, imãs, pôsteres, papercrafts, jogos de carta, de tabuleiro, enfim, n alternativas atrativas. O blog Encarte, infelizmente desatualizado, mostra outros ótimos exemplos. Isso ainda traz de volta a reclamada interação da música com a arte do disco, que antigamente era de vinil e de maior tamanho. O caso da Apanhador Só mostra o quanto o cenário independente tem se movimentado e buscado outras maneiras de lucrar com seu trabalho, dando uma lição em muita gente que fica chorando prejuízos.

Os desenhos dos cartões [alguns estão espalhados no post] foram feitos pelo ilustrador Fabiano Gummo e o projeto gráfico foi de Rafael Rocha, diretor de arte da revista Noize. Rafael que decidimos entrevistar por e-mail para saber como foi a concepção do encarte diferenciado – e fomos gentilmente atendidos. Na conversa abaixo ele conta sobre o planejamento e de sua visão sobre o ato de se investir mais no meio material como forma de fazer valer a venda da música. Ele é baixista de uma banda recente, a Wannabe Jalva, que possui três músicas gravadas e também liberadas pra baixar.

De onde partiu a ideia de fazer o encarte com cartões, de ti, do ilustrador ou da banda?

Rafael Rocha: A Ideia partiu de mim mesmo, a partir de várias reuniões com o Alexandre (vocalista da banda), algumas junto com o Gummo (ilustrador), e de vários processos de estudo e brain solitário em cima do projeto. Essa idéia surgiu da viagem que eu tinha ao escutar o som da Apanhador, que tem muitas linguagens, e diferentes estilos unidos através do som característico que a banda faz. Então, a ideia dos cartões foi algo que representasse cada música como uma arte separada, e a união de todas, compusesse uma obra final. Justamente como é o disco.

Tinha a intenção de agregar um valor a mais para a musica, para que realmente valesse o suporte físico?
Com certeza, a idéia, desde o começo, era fazer algo rebuscado e que também agregasse valor ao disco em si. E também considerei desde o começo, que a Apanhador, pelo seu primeiro EP “Embrulho para levar”, já tinha projetos gráficos muito bacanas e rebuscados, então, dar continuidade a isto era algo natural.

Como foi a composição dos desenhos, eles tem algum esquema para fazer sentido?
A composição dos desenhos, inicialmente, era para fazer uma história, ou algum sentido concreto e de fácil assimilação. Porém, deixei totalmente nas mãos do Gummo para ele criar e pirar em como ele quisesse chegar a este resultado. O resultado foi algo muito interessante, bem na linha de como é o seu trabalho, com um traço bem característico, com algumas referências que se repetem ao longo das cards e criam uma ligação muito bacana. E o mais interessante é a forma que eles devem ser apreciados, um a um, a partir da composição inicial das letras das músicas e do desenho da bicicleta.

Quais as influências do trabalho? Conhece algum outro cd que tenha o encarte diferenciado?
As influências vem de todo o lugar. Meu trabalho de Direção de Arte e Design tem uma relação bem orgânica, de unir elementos feitos à mão com a utilização do computador e a fotografia, acho a união destas estéticas muito interessante.
Eu sempre, desde piá, tinha um sonho de trabalhar pro resto da vida com encarte de discos. Minha vida se move a música. Na NOIZE, na Wannabe Jalva (revista em que trabalho e minha banda)… Infelizmente, os discos fisícos são cada vez mais raros. Porém, vivemos um momento de transição e acredito em futuro muito positivo para o mercado musical, relacionado as artes gráficas.
De outros projetos que eu gosto posso citar alguns discos do Of Montreal, White Stripes, Pearl Jam, os discos em vinil do Caetano, entre outros. Nos útlimos 3 anos apenas comprei discos pelo projeto gráfico. Sou completamente maluco por isso.

Aceitaria novos trabalhos semelhantes? Acha que esse design de discos e encarte, essa imbricação entre arte e música, é uma área, um serviço, que será mais procurada tanto pelas bandas independentes quanto pelas gravadoras?
Aceitaria de FATO! Acho que agora a fuga, para se querer vender discos de fato, é investir no projeto gráfico, entregar algo a mais. Mas, vejo o futuro virando para a produção de vinil ao invés de CDs, e com artes cada vez mais impactantes e rebuscadas. As gravadoras tem que absorver o “low cost” no meio virtual e investir mais nos discos físicos como um material que o fã que tem esse desejo tangível queria MESMO ter. Eu gostaria muito que isso acontecesse. Para isso, precisamos de uma união de pensamentos entre gravadoras/selos, designers e principalmente do público, que tem que consumir este material.

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[Marcelo De Franceschi]

envelopada
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Notas sobre o futuro da música (2): David Byrne encontra Thom Yorke https://baixacultura.org/2010/06/09/o-encontro-de-byrne-com-yorke-e-as-estrategias-para-um-mundo-novo/ https://baixacultura.org/2010/06/09/o-encontro-de-byrne-com-yorke-e-as-estrategias-para-um-mundo-novo/#comments Wed, 09 Jun 2010 18:00:13 +0000 https://baixacultura.org/?p=3147

A revista Wired de dezembro de 2007 publicou uma conversa entre Byrne e Thom Yorke, do Radiohead, que na época, estava recém lançando o emblemático “In Rainbows”. Traduziremos aqui a introdução e o papo inteiro, cheios de gírias e correndo o sério risco de cometer aberrações tradutórias. Mas qualquer coisa comentem e sugiram melhorias.

David Byrne e Thom Yorke sobre o Valor Real da Música

Parecia uma ideia louca. Quando o Radiohead disse que iria lançar seu novo álbum, In Rainbows, por download no esquema pague-o-quanto-quiser, você pensaria que o grupo tinha virado comunista. Afinal, Thom Yorke e companhia são um dos grupos mais bem sucedidos do mundo – um querido da crítica e favorito dos fãs por quase 15 anos. Eles não tinham lançado um novo álbum em mais de quatro anos, o mercado estava ansioso para o próximo disco. Então, por que o Radiohead faria uma experiência tão radical?

Acontece que a jogada foi um astuto movimento de negócios. No primeiro mês, cerca de um milhão de fãs baixaram In Rainbows. Cerca de 40 % deles pagaram por ele, de acordo com a comScore, a uma média de seis dólares cada, compensando a banda com aproximadamente US$ 3 milhões. Além disso, uma vez que possui a gravação original (o primeiro da banda), o Radiohead também pode licenciar o álbum para uma gravadora e distribuir a maneira antiga – em CD. Nos Estados Unidos, o disco vai à venda dia 01 de janeiro pela TBD Records/ATO Records Group.

Mesmo que o pague-o-quanto-quiser tenha funcionado para o Radiohead, no entanto, é difícil imaginar o modelo rendendo para Miley Cyrus – também conhecida como a patricinha hippie top das paradas Hannah Montana. A gravadora de Cyrus, Walt Disney Records, vai manter a venda de CDs no Wal-Mart, muito obrigado. Mas a verdade é que o Radiohead não pretendia iniciar uma revolução com In Rainbows. O experimento prova simplesmente que há uma profusão de oportunidades para a inovação nos negócios da música – este é apenas um dos muitos novos caminhos. Wired convidou David Byrne – um inovador lendário de si mesmo e o homem que escreveu a canção “Radio Head” dos Talking Heads – para conversar com Yorke sobre a estratégia de distribuição do In Rainbows e o que os outros podem aprender da experiência.

Byrne: OK.

Yorke: [Para o assistente.] Feche a maldita porta.

Byrne: Bem, bom disco, muito bom disco.

Yorke: Obrigado. Excelente.

Byrne: [Risos].

Yorke: É isso, não é?

Byrne: É isso aí, estamos feitos. [Risos.] OK. Vou começar perguntando algumas coisas do negócio. O que você fez com esse disco não era tradicional, nem mesmo no sentido de envio de cópias para a imprensa e tal.

Yorke: A maneira que nós denominamos isso foi “nossa data de vazamento.” Cada gravação das últimas quatro – incluindo minha gravação solo – tinha sido vazada. Então, a idéia era, vamos vazar isso, então.

Byrne: Primeiramente haveria uma data de lançamento, e cópias adiantadas seriam enviadas aos colunistas meses antes disso.

Yorke: Sim, e então você telefonaria e diria: “Você gostou? O que você acha?” E é de três meses de antecedência. E, então, seria: “Você faria isso para a revista”, e talvez este jornalista tenha escutado. Todos esses jogos bobos.

Byrne: Isso é principalmente sobre as paradas, certo? Sobre o funcionamento da comercialização e do pré-lançamento até o momento que um disco sai de modo que – bum! – ele vai para as paradas.

Yorke: Isso é o que as grandes gravadoras fazem, sim. Mas isso não nos faz bem, porque nós não avançamos [para as outras camadas de fãs]. A principal coisa foi, havia todo esse exagero [com a mídia]. Nós estávamos tentando evitar todo o jogo de quem fica primeiro com as resenhas. Naqueles dias havia tanto papel para preencher, ou papel digital para preencher, que qualquer um que escreva as primeiras coisas é copiado e colado. Qualquer um que tenha a sua opinião primeiro tem todo esse poder. Especialmente para uma banda como a nossa, é totalmente uma sorte se essa pessoa está conosco ou não. Isso só parece selvagemente injusto, eu acho.

Byrne: Portanto, esse [Tal] se desvia de todos esses colunistas e vai direto para os fãs.

Yorke: De certa forma, sim. E foi uma emoção. Nós masterizarmos, e dois dias depois ele estava no site sendo, você sabe, pré-lançado. Isso foi só umas poucas semanas realmente emocionantes para ter aquela conexão direta.

Byrne: E deixar as pessoas escolherem os seus próprios preços?

Yorke: Isso foi uma idéia [do empresário Chris Hufford]. Nós todos pensávamos que ele estava maluco. Enquanto estávamos colocando o site, ainda estávamos dizendo: “Você tem certeza disso?” Mas foi muito bom. Nos liberou de alguma coisa. Não era niilista, implicando que música não valia nada. Era o total oposto. E as pessoas entenderam isso tal como foi concebido. Talvez seja apenas pessoas tendo um pouco de fé no que estamos fazendo.

Byrne: E isso funciona para vocês. Vocês têm um público formado. Como eu – se eu ouço que há algo de novo de vocês lá fora, eu vou sair e comprar sem confiar no que os colunistas dizem.

Yorke: Bem, sim. A única razão que nós poderíamos nem ter saído com essa, a única razão que ninguém nem dá a mínima, é o fato de que nós passamos por toda a linha dos negócios em primeiro lugar. Não é suposto ser um modelo para qualquer outra coisa. Era simplesmente uma resposta a uma situação. Estamos fora do contrato. Temos o nosso próprio estúdio. Temos este novo servidor. Que diabos faríamos então? Esta foi a coisa óbvia. Mas só funcionou para nós por causa de onde estamos.

Byrne: E quanto às bandas que estão começando?

Yorke: Bem, primeiro e antes de tudo, você não assina um imenso contrato de gravação que tira de você todos os seus direitos digitais, então quando você vender algo no iTunes, você consegue absolutamente nada. Essa seria a primeira prioridade. Se você é um artista emergente, deve ser assustador no momento. Então de novo não vejo uma desvantagem em todas as grandes gravadoras não terem acesso a novos artistas, porque elas não têm idéia do que fazer com eles agora de qualquer forma.

Byrne: Deve ser uma coisa fora de suas cabeças.

Yorke: Exatamente.

Byrne: Eu estive me perguntando: Por que lançar essas coisas – CDs, álbuns? A resposta que eu tiro disso é, bem, às vezes é artisticamente viável. Não é apenas uma coleção aleatória de músicas. Às vezes, as canções têm uma linha comum, mesmo que não seja óbvio ou até consciente por parte dos artistas. Talvez seja apenas porque todo mundo está pensando musicalmente da mesma maneira por dois meses.

Yorke: Ou anos.

Byrne: No entanto isso leva tempo. E outras vezes, existe um óbvio …

Yorke: … Propósito.

Byrne: Certo. Provavelmente, o motivo pelo qual é um pouco difícil de romper completamente com o formato de álbum é, se você está começando uma banda no estúdio, faz sentido do ponto de vista financeiro fazer mais do que uma música de uma vez. E faz mais sentido, se você está pondo todo o esforço em executar e fazer qualquer outra coisa a mais, se há um tipo de pacote.

Yorke: Sim, mas outra coisa é o que esse pacote pode fazer. As canções podem se amplificar cada uma se você colocá-los na ordem correta.

Byrne: Você sabe, mais ou menos, de onde o seu rendimento vem? Para mim, é provavelmente muito pouco da música atual ou vendas de discos. Eu faço um pouco em turnê e, provavelmente, a maioria vem de material de licenças. Não para comerciais – eu licencio para filmes e séries de televisão e esse tipo de coisa.

Yorke: Certo. A gente faz algo disso.

Byrne: E para algumas pessoas, os custos para sair em turnê são realmente baixos, então eles fazem muito em cima isso e não se preocupam com nada além.

Yorke: Nós sempre entramos em turnê dizendo: “Desta vez, não vamos gastar o dinheiro. Desta vez, vamos fazer o básico.” E então é: “Ah, mas nós precisamos deste teclado. E destas luzes.” Mas, no momento, ganhamos dinheiro principalmente de turnês. As quais são difíceis para mim conciliar, porque eu não gosto de todo o consumo de energia, a viagem. É um desastre ecológico, viajar, fazer turnês.

Byrne: Bem, existem os ônibus biodiesel e tudo isso.

Yorke: Sim, depende de onde você consegue o seu biodiesel. Há maneiras de minimizar isso. Fizemos uma dessas medições de carbono recentemente em que eles avaliaram o último período da turnê que fizemos, e tentaram descobrir onde estavam os maiores problemas. E foi obviamente todos viajando para o show.

Byrne: Ah, você quer dizer o público.

Yorke: Yeah. Especialmente nos Estados Unidos. Todo mundo dirige. Então, como vamos abordar isso? A ideia é que toquemos em locais urbanos, com alguns sistemas de transporte alternativos a carros. E minimizar o vôo do equipamento, o envio por navio tudo. Nós não podemos ser enviados no navio, no entanto.

Byrne: [Risos].

Yorke: Se você for no Queen Mary ou algo assim, na verdade é pior do que voar. Então voar é sua única opção.

Byrne: Você está fazendo dinheiro com o download de In Rainbows?

Yorke: Em termos de receita digital, fizemos mais dinheiro com este disco do que com todos os outros álbuns do Radiohead juntos, para sempre – em termos de qualquer coisa na rede. E isso é loucura. É em parte devido ao fato de que a EMI não estava nos dando todo o dinheiro das vendas digitais. Todos os contratos assinados em uma determinada época não têm nenhuma dessas coisas.

Byrne: Então, quando o álbum sair como um CD físico, em Janeiro, vai contratar sua própria empresa de marketing?

Yorke: Não. Isso começa a ficar um pouco mais tradicional. Quando nós começamos primeiro com a idéia, não íamos fazer um CD normal físico. Mas depois de um tempo que era como, bem, isso é só esnobismo. [Gargalhada.] A, que está pedindo por problemas, e B, que é esnobe. Então, agora estão falando em colocar no rádio e esse tipo de coisas. Eu acho que é normal.

Byrne: Eu estive pensando sobre como a distribuição e lojas de discos e CDs e todas essas coisas que estão mudando. Mas estamos falando de música. O que é música, o que a música faz para as pessoas? O que as pessoas pegam disso? Para que é isso? Essa é a coisa que está sendo mudada. Nem todas as outras coisas. As outras coisas é o carrinho de compras que segura um pouco disso.

Yorke: É um serviço de entrega.

Byrne: Mas as pessoas continuarão a pagar para ter essa experiência. Você cria uma comunidade com a música, não só nos shows mas falando sobre isso com seus amigos. Ao fazer uma cópia e entregá-la aos seus amigos, você estabeleceu um relacionamento. A implicação é que eles agora são obrigados a lhe dar algo de volta.

Yorke: Yeah, yeah, yeah. Eu só estava pensando enquanto você dizia que: Como é que uma gravadora põe suas mãos naquilo? Isso me faz pensar no livro Sem Logo em que Naomi Klein descreve como as pessoas da Nike pagariam caras para imitar os jovens e agradá-los. Eu sei por fato que as grandes gravadoras fazem a mesma coisa. Mas ninguém nunca me explicou exatamente como. Quero dizer, eles se escondem em torno de fóruns de discussão e postam “Você já ouviu falar do …”? Talvez eles façam isso. E então eu estava pensando no filme do Johnny Cash, quando Cash entra e diz: “Eu quero fazer um disco ao vivo em uma prisão”, e sua gravadora acha que ele é maluco. Ainda naquela época, a gravadora foi capaz de alguma forma compreender o que os jovens queriam e de dar para ele [a oportunidade]. Considerando agora, eu penso que há uma falta de compreensão. Não é sobre quem está roubando quem, e não se trata de ordens judiciais, e não é sobre DRM e todo esse tipo de coisa. É sobre se a música afeta você ou não. E por que você iria se preocupar com um artista ou com uma empresa depois que as pessoas copiam a sua música se a música em si não é valorizada?

Byrne: Você está valorizando o sistema de entrega como oposto da relação e da coisa emocional…

Yorke: Você está avaliando a companhia ou o interesse dos artistas em vez da música em si. Eu não sei. Nós sempre fomos muito ingênuos. Nós não temos outra alternativa para fazer isso. É a única coisa óbvia a se fazer.

[Marcelo De Franceschi]
Créditos: Imagem de abertura do ensaio daqui.

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Notas sobre o futuro da música (1): Romulo Froés e a música brasileira de hoje https://baixacultura.org/2010/04/05/insights-musicais-1/ https://baixacultura.org/2010/04/05/insights-musicais-1/#comments Mon, 05 Apr 2010 13:00:11 +0000 https://baixacultura.org/?p=2878 .

O feriadão de páscoa me trouxe muitas dúvidas, discussões e leituras sobre a Indústria Musical de hoje, incluso as potencialidades e os limites da cena brasileira/paulista/independente. Antes que eu (ou vocês) falem “mas o que isso tem a ver com o BaixaCultura?”, eu vos digo o que todo mundo sabe: todas estas dúvidas são decorrentes da tal “revolução” digital que falamos aqui desde setembro de 2008, data de criação deste espaço.

[A palavra “revolução”, ainda que colocada entre aspas, não precisaria estar desse modo, porque, afinal de contas, a wikipédia me diz que revolução – do latim revolutio, “uma volta” – é uma fundamental transformação social no poder ou nas estruturas organizacionais que têm lugar em um período relativamente curto de tempo, o que se aplica perfeitamente no caso da cultura, especialmente na música, não?]

O grande catalisador de insights, e pré-insights-que-ainda-precisam-de-tempo-para-fixar, foi essa entrevista com Rômulo Froés, publicado em 1º de abril no Scream & Yell, dos melhores sítios de jornalismo cultural no Brasil desde 2000 (!), ano de sua criação. Rômulo, o que canta na foto que abre este post, é músico, cantor e compositor com três discos no currículo (“Calado”, de 2004, “Cão”, de 2006, e o duplo “No chão sem o chão”, lançado ano passado) e uma das cabeças pensantes mais interessantes da nova safra musical brasileira.

É difícil resumir a entrevista, ou fazer um “the best of” com os melhores momentos, ou ainda um lide (no jargão jornalístico, o primeiro parágrafo da notícia, que traz as informações básicas ao responder as perguntas “O quê?”, “Quem?”, “Quando?”, “Onde?”, “Como?”, e “Por quê?”). São muitas questões relacionadas, abordagens distintas , assuntos tratados em mais de cinco horas de entrevista relatadas em muitos milhares de caracteres. Basta dizer, por hora, que Rômulo faz um diagnóstico com rara lucidez do estado da arte da cena musical brasileira, e de como a “revolução” digital tem papel fundamental nessa história.

Um exemplo do que estou falando está nesse trecho:

A gente tem um mercado falido. A Tropicália surgiu no final dos anos 60, com militares no poder, mas eles ainda conseguiram aparecer no mercado, conseguiram chamar a atenção.

Era a TV começando a rolar, né. A internet é o quarto momento disso. Primeiro teve a indústria fonográfica, que começou a gravar disco. Depois o rádio, a TV e agora a internet.(…) A internet, de certa forma, fodeu uma galera também. O povo da MPB que fica chorando por causa da pirataria, falando que não vende disco, tipo o Fagner reclamando na TV. O Fagner se fodeu, em certo sentido. A Biscoito Fino [Gravadora com diversos artistas da MPB em eu catálogo, responsável pela notificação e consequente ameça de processo à diversos blogs que disponibilizavam discos desses artistas para download] fica reclamando…  uma banqueira. E tem a minha turma, que só existe por causa da internet. Só que talvez seja a geração mais difícil de assentar e se mostrar justamente porque o negócio ficou muito amplo. É muita gente fazendo no mundo inteiro a toda hora. Está cada vez mais difícil de formar o negócio.

É que hoje existe uma oferta muito grande de coisas. Antigamente você tinha um disco do Caetano e só ia pintar um disco da Gal, do Chico, meses depois. Então você ficava um bom tempo em cima daquele disco do Caetano. Agora a gente tem o seu disco e na semana seguinte sai o da Lulina…

(…) Acho que a gente pertence a uma geração que tem uma percepção diferente. E tem que parar com isso. Eu cada vez me ponho mais o desafio: posso ser esse cara pra sempre, do meu tamanho, que gravo meus disquinhos, vendo mil cópias e é isso, acabou. Talvez não exista mais o fenômeno Caetano Veloso, Gilberto Gil, os caras que fizeram música de invenção e ainda assim tiveram apelo popular no Brasil inteiro. Talvez não tenha mais. Estou cada vez mais me forçando a isso: você grava teu disco, tem uma turma que ouve, um povo te chama pra fazer entrevista, que gosta de você e é isso, acabou. Talvez a sua tia nunca vá saber que você grava disco. Tem um monte de parente meu que não sabe que eu gravo.

*

Se encaixarmos a fala de Rômulo com a de Gil ao final dessa postagem, temos uma opinião in process. Vejamos Gil:

“O problema é que vocês querem que apareça outro modelo único, que não vai exigir esforço algum e te traga o sono de volta. A digitalização não exige que toda obra de arte seja de graça, mas que um modelo próprio de comercialização seja criado para cada necessidade. A tendência atual é que pensemos não na propriedade, mas no comum, no compartilhado”.

Para não descontextualizar: Gil respondia a uma banda de Santos, que achava muito bonito essa história de cultura livre, creative commons, etc, mas queria saber mesmo é de ganhar dinheiro. A ideia de ganhar dinheiro com música obviamente que não deve ser descartada, mas relativizada, porque rios de dólares para comprar iates de ouro e criar lago particulares dentro de sua própria casa estavam diretamente relacionadas à enorme quantidade de pessoas que consumiriam à sua arte, algo que hoje não mais pode acontecer.

Dito de outra forma, a quantidade astronômica de lucro dos artistas (mas principalmente das gravadoras) estava relacionada à cultura de massa da qual a música se inseria – e ainda se insere. Mas hoje nem toda música está nessa lógica de consumo massivo, e me arrisco a dizer que teremos cada vez menos música entrando nesse esquema, o que fatalmente fará com que excentricidades do mais alto luxo como as citadas sejam casos de museu – e de dinossauros que tem saudade dessa época, não por acaso aqueles que mais são contrários a qualquer coisa que diga respeito ao livre compartilhamento de arquivos.

O fato de existir a possibilidade de não haver mais luxos para os músicos não tem nada a ver com não ter mais dinheiro para os mesmos. É claro que tem, só que de outras formas, de acordo com a música e as possibilidades de cada um. Alguns tem a ideia de que um salário digno, uma conquista não só dos músicos mas de toda uma classe trabalhadora através da história, venha a ser abolido por completo em nome do intercâmbio cultural e da “panacéia” do grátis. Ora, o salário digno continuará existindo – a menos que tu considere milhões de dólares na conta e doze Ferraris Maranello na garagem como o único soldo digno para sua “arte”.

**

Como um exercício de pensamento, imaginemos hoje que o século XX nunca tivesse existido – recordemos que antes do nascimento da indústria fonográfica os músicos costumavam ganhar a vida tocando de cidade em cidade. Tentemos explicar a alguma espécie de alienígena o que é essa tal de música. Poderíamos dizer que existem pessoas que gravam em casa (se possível, em um estúdio profissional) canções que tentam enriquecer a sua existência e a do próximo – ou que gravam para fazer as pessoas dançarem, o que de outro modo também pode se encaixar no “enriquecer” a existência. Que assim que terminam, colocam na internet para que escute quem queira. Que as pessoas podem escutar estas canções de grátis a partir de um computador com acesso à internet. Que se estas mesmas pessoas gostarem muito do que ouviram podem obter estas canções em alguns estabelecimentos restritos e raros, conhecido como lojas. Que, se o grupo ou artista que a criou vai atuar na tua cidade, tu poderá, normalmente mediante pago, ir ao show, escutá-la novamente agora ao vivo e com mais algumas quantas pessoas. E que, por fim, se tu gostar ainda mais depois de ter assistido ao show, pode comprar um ou mais objetos em que aquela “música” – ou qualquer coisa relacionada à imagem de quem a criou – esteja presente, obtendo assim um grau elevado de vinculação com aquele que, lá no início, “enriqueceu” a sua simplória existência.

Te parece muito mal tudo isso?

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[Leonardo Foletto.]

P.s: Os insights surgidos da entrevista, ainda em ação, vão proporcionar outras postagens. O último parágrafo desse post é uma livre-adaptação de um texto publicado na revista espanhola Rock Delux, edição especial 2000-2009 publicada em novembro de 2009, chamado “La industria musical española diez años después del tsunami”, que, de tão boa contextualização que faz, será em breve traduzido e remixado por aqui.

Créditos imagens: 1, 2, 3.
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https://baixacultura.org/2010/04/05/insights-musicais-1/feed/ 12