{"id":9538,"date":"2013-01-23T16:43:36","date_gmt":"2013-01-23T16:43:36","guid":{"rendered":"https:\/\/baixacultura.org\/?p=9538"},"modified":"2013-01-23T16:43:36","modified_gmt":"2013-01-23T16:43:36","slug":"arqueologia-da-reciclagem-digital","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/baixacultura.org\/2013\/01\/23\/arqueologia-da-reciclagem-digital\/","title":{"rendered":"Arqueologia da reciclagem digital"},"content":{"rendered":"

\u00a0\"\"<\/a><\/p>\n

 <\/p>\n

Para dar sequ\u00eancia ao resgate da biblioteca rizom\u00e1tica (veja os outros textos<\/a>), trazemos pra c\u00e1 um artigo que, por que n\u00e3o dizer, virou quase um cl\u00e1ssico das redes: a “cultura da reciclagem”, do jornalista\/pesquisador\/artista e professor da PUCSP\u00a0Marcus Bastos<\/a>.<\/p>\n

O trabalho circulou pela primeira vez na\u00a0se\u00e7\u00e3o Novo Mundo da revista Tr\u00f3pico<\/a>, editada por Giselle Beiguelman (hoje editora da Select<\/a>) e uma das principais revistas de arte contempor\u00e2nea (e digital) na rede em in\u00edcios e meados da d\u00e9cada de 2000. Uma segunda vers\u00e3o foi apresentada no NP de Semi\u00f3tica do congresso da\u00a0Intercom<\/a>\u00a0e uma terceira, da qual nos baseamos aqui, foi publicada no Rizoma em 1 de junho de 2005.<\/p>\n

O artigo\/ensaio \u00e9 um\u00a0tour de force<\/em>, como se diz por a\u00ed, sobre a a reapropria\u00e7\u00e3o – ou reciclagem – na cultura contempor\u00e2nea. Bastos busca a hist\u00f3ria do sampler e uma s\u00e9rie de iniciativas realizadas at\u00e9 o in\u00edcio dos 2000 para sugerir que a reciclagem\u00a0se insere progressivamente em setores\u00a0sociais cada vez mais amplos e, tamb\u00e9m, como uma pr\u00e1tica comum no universo\u00a0das m\u00eddias digitais. Explica: “O s\u00edmbolo de uma sociedade preocupada em preservar\u00a0suas reservas naturais e reaproveitar os detritos s\u00f3lidos n\u00e3o \u00e9 o Memex, \u00e9 o\u00a0sampler<\/em>“.<\/p>\n

O certo pioneirismo em tratar desse assunto com uma abordagem acad\u00eamica e multidiscplinar em in\u00edcios dos 2000 faz o texto ser, ainda hoje, uma refer\u00eancia importante para quem pesquisar e saber mais sobre o como a reciclagem – ou o remix, reapropria\u00e7\u00e3o, quer seja o nome – est\u00e1 fatalmente cada vez mais presente na nossa cultura.<\/p>\n

Alguns dos exemplos citados parecem ultrapassados diante da prolifera\u00e7\u00e3o do remix, mas a\u00ed tamb\u00e9m reside o valor “arqueol\u00f3gico” que o ensaio\/artigo adquiriu hoje ao recuperar essas manifesta\u00e7\u00f5es.\u00a0Vale dizer que atualizamos algumas informa\u00e7\u00f5es, destacamos trechos, buscamos imagens pra ilustra\u00e7\u00e3o (a que abre o post \u00e9 um cl\u00e1ssico do “remix ativista” do Adbusters<\/a>), colocamos alguns links (como os dos seminais textos sobre bricolage e sampler na hist\u00f3ria da arte) e outras pequenas arruma\u00e7\u00f5es para que o texto flua e funciona melhor. Boa leitura!<\/p>\n

A cultura da reciclagem\u00a0<\/strong><\/p>\n

Marcus Bastos<\/em><\/p>\n

O carrinho do supermercado raspa no canto do refrigerador e as latas de\u00a0Pepsi twist chacoalham em loop sincronizado com o ritmo da m\u00fasica que\u00a0escapa pelas frestas entre o fone e o ouvido propriamente dito. No\u00a0apartamento, enquanto o telefone n\u00e3o toca e os arquivos no Shareaza n\u00e3o\u00a0completam o destino at\u00e9 o HD, um ritual comum a adeptos de todas as\u00a0tribos e sub-tribos espalhadas pelas ruas da cidade: separar o lixo org\u00e2nico,\u00a0n\u00e3o-org\u00e2nico, o pl\u00e1stico, o metal, o papel. A cena, familiar em sua\u00a0trivialidade, vai al\u00e9m da mera descri\u00e7\u00e3o de um s\u00e1bado qualquer antes do\u00a0sushi com saqu\u00ea, depois cinema, depois balada. O texto que aqui se inicia \u00e9\u00a0justamente uma tentativa de entender que rela\u00e7\u00f5es s\u00e3o poss\u00edveis entre\u00a0momentos cotidianos como o descrito e a formula\u00e7\u00e3o do conhecimento que\u00a0circula nos diversos circuitos que o institucionalizam. \u00c9 o retrato de um\u00a0processo que envolve entusiasmo, decep\u00e7\u00e3o, rigidez, pregui\u00e7a e outros.\u00a0Sentimentos humanos, ocultos entre linhas que querem relacionar os v\u00e1rios\u00a0est\u00edmulos que fazem o habitante das metr\u00f3poles contempor\u00e2neas pensar e\u00a0agir assim ou assado. Para que serve, afinal, o conhecimento sen\u00e3o para\u00a0amenizar o fato de que, segundo Kenneth Branagh, n\u00e3o existem adultos,\u00a0apenas crian\u00e7as com d\u00edvidas no banco.<\/p>\n

A favor dessa rela\u00e7\u00e3o estranha, um m\u00e9todo esquisito que permite perceber\u00a0como um dos grandes temas da cr\u00edtica cultural contempor\u00e2nea, o\u00a0hibridismo das manifesta\u00e7\u00f5es simb\u00f3licas, tamb\u00e9m pode ser aplicado ao\u00a0estudo da f\u00f3rmula de marketing preferida da ind\u00fastria aliment\u00edcia, que\u00a0inunda as prateleiras de supermercado com misturas pr\u00e9-fabricadas de\u00a0guaran\u00e1 com laranja, suco-de-abacaxi com hortel\u00e3, doritos com bacon e\u00a0outros primores de uma culin\u00e1ria t\u00e3o artificial quanto a intelig\u00eancia que os\u00a0cientistas cognitivos buscam em suas pesquisas. A coincid\u00eancia revela que\u00a0h\u00e1 mais coisas entre o estado de um \u00e9poca e as v\u00e1rias formas de\u00a0transform\u00e1-la em livros, CDs e DVDs, do que sup\u00f5e a nossa v\u00e3 \u2014 e \u00e0s vezes\u00a0pouco disposta a investigar o que acontece fora do mundo do pensamento\u00a0reconhecido pelos pares \u2014 filosofia.\u00a0Come\u00e7a aqui o terceiro tratamento de um texto que \u00e9 muito anterior \u00e0 sua\u00a0escrita propriamente dita.<\/p>\n

Talvez a quest\u00e3o central nem mesmo esteja\u00a0presente no eixo evidente de sua organiza\u00e7\u00e3o, o que ficou claro nessa\u00a0oportunidade de voltar ao tema (1)<\/strong>. Da\u00ed o gesto pouco recomendado de\u00a0afastar do leitor o tema central do artigo, obrigando-o a leitura de uns poucos par\u00e1grafos resultantes da busca pelas motiva\u00e7\u00f5es para a tentativa esbo\u00e7ada adiante, de associar o universo fugaz \u2014 intoxicado por modas e outras formas mundanas de preservar o imediato \u2014 das divers\u00f5es, eletr\u00f4nicas ou n\u00e3o, que fazem o fim-de-semana nas cidades do mundo, ao universo compenetrado \u2014 enrijecido por normas e outras formas livrescas de mediar o que se pretende preservado \u2014 das universidades e outras institui\u00e7\u00f5es dedicadas \u00e0 constru\u00e7\u00e3o, ao acumulo, \u00e0 circula\u00e7\u00e3o dos saberes.<\/p>\n

\u201ce talvez seja uma hist\u00f3ria chata, mas voc\u00ea n\u00e3o precisa ouvir, ela disse, porque ela sempre soube que ia ser daquele jeito<\/em>\u201d, disse\u00a0Bret Easton Ellis<\/a>\u00a0[o mesmo de Psicopata Americano] em “Os jogos da atra\u00e7\u00e3o<\/a>“. Os livros sobre Internet e m\u00eddias digitais fazem refer\u00eancias constantes ao Memex e \u00e0 Arpanet, assim como os livros de hist\u00f3ria contam invas\u00f5es, batalhas e guerras. Mas a hist\u00f3ria das m\u00eddias digitais n\u00e3o precisa ser necessariamente o resgate das pesquisas financiadas pelo governo com fins militares, assim como nem sempre os livros de hist\u00f3ria precisam ater-se \u00e0s grandes narrativas, deixando de lado fatos cotidianos igualmente significativos<\/em>. Buscando as ra\u00edzes da cultura digital em outras paragens seria poss\u00edvel encontrar in\u00fameras manifesta\u00e7\u00f5es de igual import\u00e2ncia hist\u00f3rica e maior relev\u00e2ncia cultural (2)<\/strong>.<\/p>\n

A hist\u00f3ria da Internet \u00e9, por exemplo, a hist\u00f3ria de como v\u00e1rios atores da\u00a0contracultura que se consolida dos anos 60 em diante optam por colocar\u00a0suas id\u00e9ias em pr\u00e1tica na ind\u00fastria ent\u00e3o emergente dos computadores\u00a0pessoais. O presente artigo sugere que a reciclagem, um dos exemplos de\u00a0como o ide\u00e1rio dessa contracultura se insere progressivamente em setores\u00a0sociais cada vez mais amplos, \u00e9 uma pr\u00e1tica comum tamb\u00e9m no universo\u00a0das m\u00eddias digitais. O s\u00edmbolo de uma sociedade preocupada em preservar\u00a0suas reservas naturais e reaproveitar os detritos s\u00f3lidos n\u00e3o \u00e9 o Memex, \u00e9 o\u00a0sampler<\/em>. Assim, parece razo\u00e1vel aproximar a linguagem digital do universo\u00a0em que este se desenvolve, na constru\u00e7\u00e3o das pequenas amostras de \u00a0pensamento desenvolvidas abaixo, para que o leitor combine da forma que achar mais interessante.<\/p>\n

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Uma breve hist\u00f3ria do sampler
\n<\/strong>
\nHerdeiro do Fairlight CMI\u00a0(imagem acima <\/em>e como
novidade apresentada na TV<\/a> em 1980), um computador criado pelos australianos Kim Rydie e Peter Vogel\u00a0em 1979, e aperfei\u00e7oado na dan\u00e7a an\u00f4nima da m\u00fasica eletr\u00f4nica, o sampler\u00a0\u00e9 um aparelho que grava e permite a manipula\u00e7\u00e3o de amostras sonoras.<\/p>\n

Com o sampler, compor torna-se tamb\u00e9m na m\u00fasica pop a arte de combinar\u00a0sons e trechos de m\u00fasicas<\/em>. O procedimento remete \u00e0s pr\u00e1ticas da m\u00fasica\u00a0eletroac\u00fastica<\/a>, mas desenvolve-se com nome e atitude nos sub\u00farbios das\u00a0grandes cidades norte-americanas, sendo o rap<\/em> nova-iorquino e a m\u00fasica\u00a0criada para as warehouse parties<\/em><\/a>\u00a0(festas em armaz\u00e9ns abandonados precursoras das raves) que de Detroit as manifesta\u00e7\u00f5es pioneiras. Em\u00a01948 a palavra sample<\/em> servia apenas para designar amostras colhidas em\u00a0exames m\u00e9dicos e pesquisas qualitativas.<\/p>\n

Sem saber que o termo em breve\u00a0ganharia outros sentidos, Pierre Schaeffer<\/a> fala em m\u00fasica concreta para\u00a0descrever suas experi\u00eancias na r\u00e1dio francesa ORTF. No artigo “A experi\u00eancia\u00a0musical”, o compositor explica como \u201ctoma partido composicionalmente dos\u00a0materiais oriundos do dado sonoro experimental \/…\/ n\u00e3o mais com rela\u00e7\u00e3o a abstra\u00e7\u00f5es sonoras preconcebidas, mas com rela\u00e7\u00e3o a fragmentos sonoros\u00a0existentes concretamente, e considerados como objetos sonoros definidos e\u00a0\u00edntegros, mesmo quando e sobretudo se eles escapam das defini\u00e7\u00f5es\u00a0elementares do solfejo<\/em>\u201d (3)<\/strong>.<\/p>\n

Al\u00e9m de facilitar a composi\u00e7\u00e3o a partir dos sons, o funcionamento do\u00a0sampler sinaliza para a possibilidade de explorar a re-utiliza\u00e7\u00e3o de materiais\u00a0como t\u00e9cnica para produzir textos, imagens e m\u00fasica, e pode ser associado\u00a0\u00e0s diversas formas de colagem e apropria\u00e7\u00e3o produzidas na hist\u00f3ria da arte\u00a0e da literatura. Essa rela\u00e7\u00e3o j\u00e1 foi explorada em artigos como “On bricolage<\/a>“,\u00a0de Anne-Marie Boisvert, “Art history shake and bake<\/a>“, de Sara Diamond, e na\u00a0primeira vers\u00e3o deste artigo, publicado na revista Tr\u00f3pico sob o t\u00edtulo Cultura Sampler (4).<\/p>\n

Apesar de importante, por inserir o sampler num \u00a0contexto cultural mais amplo, a rela\u00e7\u00e3o com manifesta\u00e7\u00f5es semelhantes n\u00e3o esgota o assunto. Al\u00e9m disso, os exemplos descritos nos artigos em quest\u00e3o, mostram que o uso de amostras como forma de manipula\u00e7\u00e3o de linguagem em que h\u00e1 um novo tratamento de material previamente criado n\u00e3o se restringe \u00e0 m\u00fasica, o que permite generalizar o conceito de sampler, especialmente quando se observa que o computador unifica as pr\u00e1ticas de tratamento de m\u00eddias, na medida em que as manipula todas a partir do par\u00e2metro comum do c\u00f3digo bin\u00e1rio. Mesmo em micros dom\u00e9sticos \u00e9 poss\u00edvel converter praticamente qualquer produto cultural em arquivos que \u00a0podem ser armazenados, editados e distribu\u00eddos em formato digital. Nesse sentido, o scanner pode ser usado como um sampler de imagens, o OCR como um sampler de textos, o bloco de notas como um sampler de c\u00f3digos\u00a0fonte, as placas de captura de v\u00eddeo como um sampler audiovisual, e assim por diante.<\/p>\n

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Projeto Care, de Nelson Leirner; uma apropria\u00e7\u00e3o.<\/p><\/div>\n

A apropria\u00e7\u00e3o e o remix<\/strong><\/p>\n

No universo musical, o novo tratamento dado ao material sonoro recebe o\u00a0nome de remix. Em “Models of Autorship in New Media<\/a>” (5)<\/strong>, Lev Manovich\u00a0afirma que, nos \u00faltimos anos, a pr\u00e1tica do remix ganha espa\u00e7o fora do\u00a0universo musical, apesar de n\u00e3o ser admitida abertamente. Para Manovich,\u00a0o remix implica em um novo tipo de rela\u00e7\u00e3o de autoria, resultado do di\u00e1logo\u00a0ass\u00edncrono entre criadores, ainda que, em \u00e1reas como as artes visuais, o\u00a0cinema e a literatura, o remix seja visto como viola\u00e7\u00e3o de direitos autorais.<\/em>\u00a0Para preservar os direitos do autor, quando se escreve sobre as id\u00e9ias de\u00a0outra pessoa, \u00e9 de praxe usar marcas textuais como: ainda segundo\u00a0Manovich, fora do universo musical o termo mais pr\u00f3ximo de remix \u00e9\u00a0apropria\u00e7\u00e3o.<\/p>\n

Ao contr\u00e1rio do que sugere o te\u00f3rico russo, a apropria\u00e7\u00e3o e o remix t\u00eam\u00a0finalidades bastante diferentes. A pr\u00e1tica do remix se resume, na maioria\u00a0das vezes, a um novo tratamento r\u00edtmico do material sonoro. N\u00e3o\u00a0acontecem grandes mudan\u00e7as na estrutura mel\u00f3dica e harm\u00f4nica da\u00a0composi\u00e7\u00e3o, geralmente re-embalada com fins de adequ\u00e1-la \u00e0s sonoridades\u00a0predominantes nas paradas de sucesso ou nas pistas-de-dan\u00e7a. Isso n\u00e3o tira\u00a0o m\u00e9rito da pr\u00e1tica, especialmente em casos em que h\u00e1 mais interfer\u00eancia\u00a0no original, de que as 7 mixagens diferentes de Papua New Guinea, do FSOL,\u00a0s\u00e3o um bom exemplo. Al\u00e9m disso, uma s\u00e9rie de artistas come\u00e7a a explorar,\u00a0especialmente com a populariza\u00e7\u00e3o das m\u00eddias digitais, formas alternativas\u00a0de remix. \u00c9 o caso dos trabalhos de Rick Silva<\/a>, que mistura refer\u00eancias da\u00a0literatura e m\u00fasica pop (6)<\/strong>, e dos trabalhos audiovisuais de VJs como Alexis,\u00a0e sua manipula\u00e7\u00e3o ao vivo de Cidade de Deus, ou Luiz Duva<\/a>, que recriou o\u00a0cl\u00e1ssico Made in Brazil, de Let\u00edcia Parente, na programa\u00e7\u00e3o do 14\u00ba VideoBrasil.<\/p>\n

No caso da apropria\u00e7\u00e3o, ao contr\u00e1rio do remix, n\u00e3o h\u00e1 um novo tratamento\u00a0de material produzido com fins culturais, mas recontextualiza\u00e7\u00e3o de objetos\u00a0dos mais diversos tipos. Dois bons exemplos s\u00e3o as obras P<\/strong>rojeto Care e\u00a0Trabalhos Feitos em Cadeira de Balan\u00e7o Assistindo Televis\u00e3o.<\/em> Nelas, Nelson\u00a0Leirner<\/a> recupera o imagin\u00e1rio do consumo e da cultura urbana, interferindo\u00a0em objetos an\u00f4nimos, como cart\u00f5es de natal e latas de refrigerante. Ao\u00a0faz\u00ea-lo, atribui uma assinatura aos mesmos, denunciando nos bastidores do\u00a0mercado de arte um culto \u00e0 personalidade ironicamente semelhante ao star\u00a0system de Hollywood \u2014 mesmo que fundado em rituais completamente\u00a0diferentes. Al\u00e9m disso, pr\u00e1ticas comuns no contexto do situacionismo<\/a> (7)<\/strong>,\u00a0como trocar os bal\u00f5es de HQs para subverter seu sentido, ressurgem na\u00a0Internet, com o aux\u00edlio dos recursos de tratamento digital e distribui\u00e7\u00e3o\u00a0poss\u00edveis (8)<\/strong>.<\/p>\n

Na literatura, a pr\u00e1tica remonta a poemas como Um metro e meio de\u00a0poesia (Gast\u00e3o Debreix<\/a>), Punk Poem (Edgard Braga<\/a>) e Em Progresso (Tadeu\u00a0Jungle<\/a>)<\/em>. Neles, tamb\u00e9m ocorre a re-significa\u00e7\u00e3o de objetos cotidianos (a fita\u00a0m\u00e9trica, o alfinete, a bandeira do Brasil). Mas, como poesia \u00e9 feita em livro\u00a0e livro se multiplica, o que era objeto \u00fanico tirado do contexto vira p\u00e1gina\u00a0reproduzida, mesmo que artesanalmente.<\/p>\n

Al\u00e9m disso, outra diferen\u00e7a entre\u00a0a apropria\u00e7\u00e3o liter\u00e1ria e a apropria\u00e7\u00e3o nas artes visuais \u00e9 que a primeira\u00a0pode se restringir ao plano textual. Ainda que isso aproxime a pr\u00e1tica das\u00a0diversas formas de intertextualidade, \u00e9 preciso deixar claro que s\u00f3 h\u00e1\u00a0apropria\u00e7\u00e3o quando existe um reaproveitamento f\u00edsico dos materiais que\u00a0comp\u00f5em o texto de partida. Um exemplo \u00e9 o poema Cummings: N\u00e3o-\u00a0tradu\u00e7\u00e3o (Paulo Miranda), em que o texto do poeta americano \u00e9 transposto\u00a0para as p\u00e1ginas da revista Art\u00e9ria 2 por m\u00e9todos gr\u00e1ficos.<\/p>\n

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A digitaliza\u00e7\u00e3o
\n<\/strong>
\nAs m\u00eddias digitais acentuam esse jogo de reciclagens, presentes de maneiras\u00a0distintas na colagem, na apropria\u00e7\u00e3o e no remix. Isso fica claro pela\u00a0quantidade de exemplos em que h\u00e1 novos tratamentos de material\u00a0digitalizado, sejam cl\u00e1ssicos da literatura (HyperMacbeth<\/em>, m\u00fasica de Kid\u00a0Koma, letras de William Shakespeare; ainda
dispon\u00edvel na rede<\/a>), obras importantes da hist\u00f3ria do\u00a0cinema (Alpha Beta Disco<\/em>: Godard Remix<\/a>, do duo americano Drop Box),\u00a0trilhas sonoras de videogame (Overclocked Remix<\/a>, uma comunidade de trilhas de videogame<\/em>), sites (o remix de ~Real para Jodi) e diagramas (complex net art diagram<\/a>, a remix of mtaa\u2019s simple\u00a0net art diagram<\/em>, de Abe Linkoln), entre outros.<\/p>\n

A base dessa cultura \u00e9 \u201cinvis\u00edvel\u201d para o usu\u00e1rio. \u00c9 comum na programa\u00e7\u00e3o\u00a0\u2014 especialmente depois da populariza\u00e7\u00e3o da programa\u00e7\u00e3o orientada a\u00a0objetos \u2014 a re-utiliza\u00e7\u00e3o\/atualiza\u00e7\u00e3o de c\u00f3digos-fonte. A pr\u00f3pria l\u00f3gica da\u00a0ind\u00fastria da inform\u00e1tica \u00e9, assim, um bom exemplo de reciclagem. Basta\u00a0substituir o n\u00famero depois do nome de cada programa pelo nome do diretor de programa\u00e7\u00e3o acompanhado da palavra mix, e tudo fica mais claro \u2014 para deleite do p\u00fablico e azar de quem for assinar o Windows (Plug-and-pray remix) e o Windows (Xtra Problemas Version)!<\/p>\n

Mas reciclar produtos culturais n\u00e3o \u00e9 exatamente como reciclar detritos\u00a0s\u00f3lidos ou programas de computador. Na reciclagem de lixo, o produto\u00a0resultante ser\u00e1 utilizado novamente, com poucos e declarados preju\u00edzos em\u00a0rela\u00e7\u00e3o ao material n\u00e3o-reciclado. Na reciclagem de produtos culturais, h\u00e1 o\u00a0risco de efeito inverso. Como o procedimento \u00e9 amplo, podendo ser\u00a0utilizado nos mais diversos contextos, ser\u00e3o consideradas pertinentes \u00e0\u00a0cultura da reciclagem apenas as pr\u00e1ticas criativas que exploram a\u00a0materialidade das linguagens, manipulando com postura cr\u00edtica e\/ou ir\u00f4nica\u00a0o material tratado, especialmente nos casos em que isso acontece em\u00a0ambiente digital.<\/em><\/p>\n

Um bom exemplo \u00e9 o trabalho do site\u00a0plagiarist.org<\/a>, que usou o\u00a0programa em Perl Travesty para realizar o recente Travesty Corporate PR\u00a0Infomixer, repetindo a estrat\u00e9gia do mais antigo Plagiarist Manifesto.\u00a0Ambos se apropriam de trechos de texto combinados por meio de um\u00a0algoritmo que os rearranja com base na freq\u00fc\u00eancia em que as palavras\u00a0aparecem no texto de partida. Al\u00e9m deles, destaca-se o pioneiro Reciclador\u00a0Multi-Cultural (ainda em funcionamento<\/a>), em que um programa seleciona imagens de c\u00e2meras web\u00a0<\/em><\/span>indicadas pelo usu\u00e1rio, para compor uma imagem aleat\u00f3ria<\/em>. Nos dois casos,\u00a0o algoritmo de programa\u00e7\u00e3o \u00e9 o elemento central dos trabalhos. Al\u00e9m do\u00a0car\u00e1ter modular, permutacional e inst\u00e1vel da Internet, os trabalhos\u00a0tematizam ainda o jogo econ\u00f4mico do capitalismo coorporativo e,\u00a0especialmente, seus reflexos nas pr\u00e1ticas de pl\u00e1gio e prote\u00e7\u00e3o dos direitos\u00a0autorais (9)<\/strong>.<\/p>\n

\"\"<\/a>

Reciclador multicultural<\/p><\/div>\n

Mais pr\u00f3ximo da apropria\u00e7\u00e3o, errata :: erratum<\/a> (DJ Spooky) \u00e9 uma met\u00e1fora\u00a0do remix como arte de girar discos, e homenagem cin\u00e9tica \u00e0 t\u00e9cnica do scratch. Inspirado em Anemic Cinema<\/a> (Marcel Duchamp), o trabalho oferece uma vers\u00e3o digital dos discos originais, para que o usu\u00e1rio gire e combine conforme os movimentos de mouse poss\u00edveis no arquivo de Flash dispon\u00edvel na galeria digital do Museu de Arte Contempor\u00e2nea de S\u00e3o Francisco (EUA). Apesar das implica\u00e7\u00f5es institucionais pass\u00edveis de discuss\u00e3o no gesto, especialmente pelo fato de um site n\u00e3o depender do espa\u00e7o do museu para ser veiculado, o trabalho de Spooky n\u00e3o foi objeto de pol\u00eamicas t\u00e3o contundentes quanto as que envolveram os trabalhos de Duchamp.<\/p>\n

Sinal de que a cultura contempor\u00e2nea j\u00e1 absorveu pr\u00e1ticas similares. H\u00e1\u00a0boas discuss\u00f5es sobre esse paradoxo no artigo “Contra o Pluralismo”, de Hal\u00a0Foster (10)<\/strong>. O tema aparece, ainda que em outro contexto, quando Naomi\u00a0Klein descreve no seu “Sem Logo<\/a>“, as diversas formas que a ind\u00fastria da\u00a0cultura encontra para neutralizar as manifesta\u00e7\u00f5es que desafiam os\u00a0discursos dominantes, sempre transformando em moda, tend\u00eancia ou\u00a0estrat\u00e9gia de marketing tudo o que desafia o coro dos contentes (11)<\/strong>.<\/p>\n

Outro aspecto dessa cultura de reciclagem aparece em trabalhos que lidam\u00a0com o imagin\u00e1rio do nomadismo. Um aspecto sutil dos movimentos\u00a0constantes de m\u00eddias e c\u00f3digos \u00e9 sua migra\u00e7\u00e3o entre sistemas e as quest\u00f5es\u00a0que ela acarreta. Assim, \u00e9 sintom\u00e1tico que uma artista com trabalhos\u00a0pioneiros no universo do ef\u00eamero e do recicl\u00e1vel, como \u00e9 o caso de Giselle\u00a0Beiguelman (O livro depois do livro<\/a>), tematize em seguida o\u00a0universo do nomadismo contempor\u00e2neo.<\/p>\n

\"\"<\/a><\/p>\n

Ainda que a maior parte do fluxo\u00a0atual ainda seja resultado de transmiss\u00e3o de dados por pessoas presas ao\u00a0escrit\u00f3rio pelos fios do computador de mesa, os dispositivos m\u00f3veis ganham\u00a0cada vez mais espa\u00e7o. Esse tr\u00e2nsito aparece na evolu\u00e7\u00e3o tecnol\u00f3gica e na\u00a0tem\u00e1tica de Leste o Leste?<\/a>, Egosc\u00f3pio<\/a>\u00a0(imagem acima)\u00a0e Poetrica<\/a>, trilogia em que\u00a0Beiguelman explora pain\u00e9is eletr\u00f4nicos para orquestrar din\u00e2micas coletivas\u00a0cada vez menos presas ao computador pessoal.<\/p>\n

N\u00e3o importa a sensa\u00e7\u00e3o de que \u201cnos ve\u00edculos de massa, esses tipos de\u00a0apropria\u00e7\u00e3o s\u00e3o t\u00e3o ub\u00edquos que parecem n\u00e3o ter agentes\u201d, nas palavras de\u00a0Hal Foster. No entorno do universo inaugurado pelo sampler, as pr\u00e1ticas de\u00a0re-utiliza\u00e7\u00e3o, apropria\u00e7\u00e3o e reciclagem de m\u00eddias invertem o lugar do\u00a0an\u00f4nimo. Nesse contexto, reciclar \u00e9 marca de uma sociedade em que o\u00a0excesso e a velocidade interessa.<\/p>\n

Notas
\n<\/strong>
\n1.<\/strong> O texto A cultura da reciclagem teve uma primeira vers\u00e3o publicada na\u00a0se\u00e7\u00e3o Novo Mundo da revista Tr\u00f3pico, editada por Giselle Beiguelman, e\u00a0uma segunda vers\u00e3o apresentada no NP de Semi\u00f3tica do Intercom,\u00a0coordenado por Irene Machado. Agrade\u00e7o a ambas e a L\u00facia Santaella pelas\u00a0oportunidades e est\u00edmulos constantes \u00e0 acreditar na for\u00e7a das pequenas\u00a0polar\u00f3ides cotidianas, desvios e ajustes do olhar em busca de imagens mais\u00a0definitivas.
\n2.<\/strong> O livro depois do livro (S\u00e3o Paulo, Peir\u00f3polis, 2004), de Giselle\u00a0Beiguelman, \u00e9 um bom exemplo de reflex\u00e3o sobre a Internet pautada por\u00a0preocupa\u00e7\u00f5es desvinculadas dos usos conservadores da rede, conforme\u00a0apresenta\u00e7\u00e3o mais extensa na resenha \u201cEst\u00e1 provado que j\u00e1 \u00e9 poss\u00edvel\u00a0filosofar em digital\u201d, publicada pelo autor do presente texto na revista\u00a0Gal\u00e1xia\u00a0n.7\u00a0(S\u00e3o\u00a0Paulo,\u00a0Edusp,2004).
\n3.<\/strong> Cf. Menezes, Fl\u00f4 [org.]. M\u00fasica Eletroac\u00fastica. Hist\u00f3ria e Est\u00e9ticas. S\u00e3o\u00a0Paulo: Edusp, 1996.
\n4.<\/strong> Os textos de Boisvert e Diamond foram publicados na
Horizon Zero n. 8<\/a>, a primeira vers\u00e3o do presente artigo publicada na Tr\u00f3pico n\u00e3o est\u00e1 mais dispon\u00edvel.
\n5.<\/strong>\u00a0
http:\/\/www.manovich.net
\n<\/a>6.<\/strong>\u00a0os sites
Cuechamp<\/a>\u00a0e DJ RABBI<\/a>.
\n7.<\/strong>\u00a0 \u201cA mis\u00e9ria do meio estudantil considerada em seus aspectos\u00a0econ\u00f4mico, pol\u00edtico, psicol\u00f3gico, sexual e, mais particularmente intelectual,\u00a0e sobre alguns meios para remedi\u00e1-la\u201d, in: Situacionista. Teoria e Pr\u00e1tica da\u00a0Revolu\u00e7\u00e3o. S\u00e3o Paulo: Baderna, 2002.
\n8.<\/strong>\u00a0Cf.\u00a0\u201cThe\u00a0remix\u00a0of\u00a0politics\u201d,\u00a0de Rick\u00a0Silva.
\n9.<\/strong> Para um discuss\u00e3o mais extensa sobre o uso de c\u00f3digos no trabalho da\u00a0Plagiarist.org e outros expoentes da cultura digital, ver
O livro depois do\u00a0livro<\/a>, de Giselle Beiguelman (S\u00e3o Paulo: Peir\u00f3polis, 2004).
\n10.<\/strong> In: Foster, Hal. Recodifica\u00e7\u00e3o. Arte, espet\u00e1culo, pol\u00edtica cultural. S\u00e3o\u00a0Paulo: Casa Editorial Paulista, 1996.
\n11.<\/strong> Cf. Klein, Naomi. Sem logo.
A tirania das marcas em um planeta vendido<\/a>.\u00a0S\u00e3o Paulo: Record, 2002.<\/p>\n<\/blockquote>\n

\u00a0Cr\u00e9ditos: Adbusters<\/a>, Sampler<\/a>, Leirner<\/a>, Art<\/a>, recycler<\/a>, Egosc\u00f3pio<\/a>.<\/address>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"

\u00a0   Para dar sequ\u00eancia ao resgate da biblioteca rizom\u00e1tica (veja os outros textos), trazemos pra c\u00e1 um artigo que, por que n\u00e3o dizer, virou quase um cl\u00e1ssico das redes: a “cultura da reciclagem”, do jornalista\/pesquisador\/artista e professor da PUCSP\u00a0Marcus Bastos. O trabalho circulou pela primeira vez na\u00a0se\u00e7\u00e3o Novo Mundo da revista Tr\u00f3pico, editada por […]<\/p>\n","protected":false},"author":2,"featured_media":9548,"comment_status":"open","ping_status":"closed","sticky":false,"template":"","format":"standard","meta":[],"categories":[359,126],"tags":[454,216,1080,1761,1762,1763,1764,1765,207,1766,1767,1768,907,1769,1770,360,1771,299,310,1772,1773,917,1774,1775,1776,1777,1298],"post_folder":[],"jetpack_featured_media_url":"","_links":{"self":[{"href":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/9538"}],"collection":[{"href":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-json\/wp\/v2\/posts"}],"about":[{"href":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-json\/wp\/v2\/types\/post"}],"author":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-json\/wp\/v2\/users\/2"}],"replies":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-json\/wp\/v2\/comments?post=9538"}],"version-history":[{"count":0,"href":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/9538\/revisions"}],"wp:featuredmedia":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-json\/"}],"wp:attachment":[{"href":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-json\/wp\/v2\/media?parent=9538"}],"wp:term":[{"taxonomy":"category","embeddable":true,"href":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-json\/wp\/v2\/categories?post=9538"},{"taxonomy":"post_tag","embeddable":true,"href":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-json\/wp\/v2\/tags?post=9538"},{"taxonomy":"post_folder","embeddable":true,"href":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-json\/wp\/v2\/post_folder?post=9538"}],"curies":[{"name":"wp","href":"https:\/\/api.w.org\/{rel}","templated":true}]}}