{"id":8775,"date":"2012-08-03T18:56:15","date_gmt":"2012-08-03T18:56:15","guid":{"rendered":"https:\/\/baixacultura.org\/?p=8775"},"modified":"2012-08-03T18:56:15","modified_gmt":"2012-08-03T18:56:15","slug":"o-roubo-de-ideias-so-se-discute-onde-elas-nao-existem","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/baixacultura.org\/2012\/08\/03\/o-roubo-de-ideias-so-se-discute-onde-elas-nao-existem\/","title":{"rendered":"O roubo de ideias s\u00f3 se discute onde elas n\u00e3o existem"},"content":{"rendered":"

\"\"<\/a><\/p>\n

Os acad\u00eamicos sem imagina\u00e7\u00e3o merecem a pol\u00edcia, j\u00e1 que desejam algum tipo de madrasta, do mesmo modo que a universidade, quando atua como pol\u00edcia, n\u00e3o merece metade de um c\u00e9rebro que se disp\u00f5e a gastar tempo com ela. \u00c9 impratic\u00e1vel discutir o pl\u00e1gio, em seus lances mais instigantes, ou enquanto quest\u00e3o, quando os plagiadores produzidos nas academias n\u00e3o passam de ladr\u00f5es sem gra\u00e7a, e quando a pol\u00edtica das casas de saber \u00e9 produzir cartilhas sobre como n\u00e3o copiar a si mesmo.<\/p>\n

Quando Guy Debord<\/a>, no magistral Paneg\u00edrico<\/a><\/em>, registra que a cita\u00e7\u00e3o desviada n\u00e3o vale mais a pena porque ningu\u00e9m pode identific\u00e1-la, parece agora um gesto de boa vontade. Aqueles que podem pratic\u00e1-la n\u00e3o a reconheceriam nem com um apud grudado na testa, e os que a praticam, \u00e9 porque n\u00e3o sabem fazer mais nada.<\/p>\n

Em todo caso, as universidades sempre viram o pl\u00e1gio como puro roubo; tamb\u00e9m por isso as experi\u00eancias de fus\u00e3o de materiais se efetivaram sobretudo nas artes ou em conex\u00e3o com elas. Me parece, como j\u00e1 escrevi acerca de Kenneth Goldsmith<\/a>, que atualmente se coloca um falso problema, de que toda cria\u00e7\u00e3o \u00e9 pl\u00e1gio, ou remix, como se interessasse uma t\u00e9cnica de despersonaliza\u00e7\u00e3o da escrita, e n\u00e3o que o escritor seja algo entre multiplicidades. N\u00e3o se resolve um problema de autoridade concedendo-a a um senhor diverso, e al\u00e9m do mais esse tipo de formula\u00e7\u00e3o, \u201ctudo \u00e9 isto ou aquilo\u201d, s\u00f3 poderia servir para dissolver um problema, n\u00e3o vale nada se apenas o reverte para instituir um totem.<\/p>\n

Enquanto o poeta da Casa Branca n\u00e3o larga o osso de seu fantasma moderno, a universidade perpetua um tipo de autoria de casta, em que o principal \u00e9 deixar claro a quem se pertence, por declara\u00e7\u00f5es de \u201crecorte\u201d, \u201cvi\u00e9s\u201d e comprometimento com os t\u00f3picos dados por um campo. [No mestrado em Ci\u00eancias Sociais da UFMA<\/a>, a cada dia um \u201cnovo trabalho\u201d explica o bumba-meu-boi, o reggae, o tambor de crioula e at\u00e9 mesmo o brega segundo Pierre Bourdieu, esta verdadeira pr\u00f3tese<\/em>].<\/p>\n

O rigor da documenta\u00e7\u00e3o (no fundo um recurso cientificista, a \u201cexig\u00eancia da prova\u201d, embora sirva para alguma coisa) tamb\u00e9m serve a esse mecanismo. Recentemente, comentando uma simples exposi\u00e7\u00e3o de motivos da mudan\u00e7a de meu projeto de doutorado, um racioc\u00ednio em voz alta de tr\u00eas p\u00e1ginas, uma professora sugeriu que eu apresentasse fontes, \u201cporque sen\u00e3o poderiam pensar que saiu tudo da sua cabe\u00e7a<\/em>\u201d. De fato, tudo saiu da minha cabe\u00e7a, mas felizmente ela \u00e9 povoada por muita gente diferente de mim. Como se v\u00ea, demonstrar que n\u00e3o se pensa sozinho \u00e9 a principal ocupa\u00e7\u00e3o de quem deveria estar pensando alguma coisa, por isso a escrita universit\u00e1ria \u00e9 cheia de barricadas.<\/p>\n

A l\u00f3gica hegem\u00f4nica do texto acad\u00eamico s\u00f3 conhece um sistema de cita\u00e7\u00e3o, ao qual a escrita est\u00e1 subordinada \u2013 e n\u00e3o o contr\u00e1rio. As cita\u00e7\u00f5es tomam partido de um sistema de autoria, que possui destacados tra\u00e7os semi\u00f3ticos, como a recusa da igualdade de termos com o texto (sobrenome em caixa alta, cita\u00e7\u00f5es longas destacadas da narrativa). \u00c9 por isso que, a n\u00e3o ser por quem n\u00e3o \u00e9 bobo nem nada, j\u00e1 se sabe como corre a hist\u00f3ria: ap\u00f3s elencar \u201ctodos\u201d os autores que j\u00e1 tocaram no assunto, o acad\u00eamico acrescenta sua v\u00edrgula.<\/p>\n

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Ah, a academia Jes\u00fas Mart\u00edn-Barbero<\/p><\/div>\n

Um livro muito popular em certos departamentos de Comunica\u00e7\u00e3o ilustra essa curiosa mentalidade. Em “Dos meios \u00e0s media\u00e7\u00f5es<\/em>“, o professor Jes\u00fas Mart\u00edn-Barbero<\/a> faz resenha de um n\u00famero assombroso de livros e autores, para ao final de cada uma delas mostrar de que modo ningu\u00e9m abordou a quest\u00e3o que interessava a ele pr\u00f3prio. At\u00e9 para dizer o que supostamente n\u00e3o se disse \u00e9 necess\u00e1rio citar, ao pre\u00e7o de responsabilizar outros autores por coisas que sequer lhes preocupava. Aparentemente, \u00e9 preciso falsear muitos autores para se tornar um.<\/p>\n

Parece pouco brigar com um formato, mas \u00e9 um modo de lhe recusar a transpar\u00eancia, ou naturalidade, que como em tudo o mais n\u00e3o existe; n\u00e3o se deve supor que uma estrutura l\u00f3gica possa apenas ser preenchida pelos conte\u00fados \u201cpropriamente cient\u00edficos\u201d. Se o Iluminismo legou uma no\u00e7\u00e3o essencialista da autoria, na escrita acad\u00eamica \u00e9 a l\u00f3gica do formato que se toma por ess\u00eancia; e aos que gostam de dizer que ela \u00e9 \u00fatil, esta modalidade de escrita, aos que a absolvem por sua utilidade, seria preciso lembrar que essa efic\u00e1cia \u00e9 o principal mantenedor de sua hegemonia.<\/p>\n

A cita\u00e7\u00e3o direta, entre aspas e destacada do texto, que pode perfeitamente funcionar, deve muito de sua manuten\u00e7\u00e3o a uma inabilidade para digerir. \u00c9 mais f\u00e1cil mant\u00ea-la intacta, para n\u00e3o fazer bobagem, para n\u00e3o mudar nada.<\/p>\n

Me lembro da gradua\u00e7\u00e3o, quando uma excelente monografia do curso de Hist\u00f3ria da UFMA n\u00e3o p\u00f4de ser aceita na biblioteca da universidade por n\u00e3o ter um resumo (o orientador, puto da vida, escreveu um resumo de pr\u00f3prio punho, na mesma hora, a caneta, e depositou o trabalho). Via twitter, tem uns meses, Alexandre Nodari<\/a> dizia que um departamento n\u00e3o queria receber a sua tese porque na capa n\u00e3o constava seu nome completo. Quando estava no mestrado, fui \u201caconselhado\u201d a utilizar palavras-chave diferentes das que usei, porque estas n\u00e3o \u201cpertenciam ao campo\u201d, embora dissessem algo sobre o texto.<\/p>\n

Ocorre na universidade o mesmo que no jornalismo ou em qualquer produ\u00e7\u00e3o intelectual que se queira normatizar: ela seca, condenada a uma forma, porque a\u00ed basta preencher alguma coisa, e \u00e9 a vit\u00f3ria dos funcion\u00e1rios. Seria melhor algo semelhante ao corpo de Tetsuo em Akira, de Katsuhiro Otomo,<\/a> que n\u00e3o cessa de crescer porque a for\u00e7a dentro dele possui enorme apetite, e absorve outras coisas em si, assimilando porta-avi\u00f5es, edif\u00edcios, avi\u00f5es ao corpo que n\u00e3o basta. Como se sabe, o pre\u00e7o \u00e9 a sua identidade, que se dissolve na for\u00e7a, assim como um autor aciona coisas a perder de vista, a come\u00e7ar da sua.<\/p>\n

Para que se pense, n\u00e3o importa de onde as ideias v\u00eam, mas para que servem. Esta fixa\u00e7\u00e3o da retaguarda, inclusive, \u00e9 tamb\u00e9m raz\u00e3o para a autoria ser uma grife, para uma ideia valer tanto quanto vale seu autor no feir\u00e3o do imagin\u00e1rio.<\/p>\n

Uma ideia n\u00e3o precisa de autor para bater na mente. Felizmente, muitos entendem o que isso quer dizer. A pirataria for\u00e7ou muitas portas de entrada para o s\u00e9culo 21, que ainda n\u00e3o come\u00e7ou, e a universidade est\u00e1 ocupada retocando as paredes que sobraram.<\/p>\n

[Reuben da Cunha Rocha, fundador e colaborador espor\u00e1dico do BaixaCultura<\/em>]<\/p>\n

Cr\u00e9ditos imagens: 1<\/a>, 2<\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"

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