{"id":4465,"date":"2011-03-04T14:35:05","date_gmt":"2011-03-04T14:35:05","guid":{"rendered":"https:\/\/baixacultura.org\/?p=4465"},"modified":"2011-03-04T14:35:05","modified_gmt":"2011-03-04T14:35:05","slug":"o-plagio-de-moacyr-scliar","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/baixacultura.org\/2011\/03\/04\/o-plagio-de-moacyr-scliar\/","title":{"rendered":"O “pl\u00e1gio” de Moacyr Scliar"},"content":{"rendered":"
E nessa onda de uma obra ser baseada numa hist\u00f3ria, que \u00e9 influ\u00eanciada por outros elementos, que por sua vez se originam de outras lendas, contadas e recontadas desde n\u00e3o se sabe quando e nem com quem come\u00e7ou, aproveitamos para deixar uma singela homenagem a um querido escritor ga\u00facho falecido h\u00e1 pouco. Moacyr Scliar<\/a> se foi em 27 de fevereiro e foi internacionalmente reconhecido<\/a> como um dos mais prol\u00edficos escritores brasileiros: mais de 70 livros – de romances, contos, infantis, cr\u00f4nicas, ensaios. [N\u00e3o podemos deixar de citar o mais sincero obitu\u00e1rio<\/a> escrito sobre Scliar, a cargo de Carlos Andr\u00e9 Moreira, rep\u00f3rter de Livros da Zero Hora e escritor<\/em>].<\/p>\n Scliar tanto fez “remixes” em suas obras, como no not\u00f3rio “O Centauro no Jardim”<\/strong> e em numerosas outras, quanto teve suas obras remixadas, como o famoso caso de “pl\u00e1gio” feito a partir de seu livro “Max e os Felinos<\/strong>“, de 1981.<\/p>\n O escritor canadense Yann Martel<\/a> ficou famoso – pelo menos no Brasil – por se inspirar em uma ideia de Scliar. Martel recebeu os 75 mil d\u00f3lares do Booker Prize<\/a> em 2002 pelo seu romance “A Vida de Pi<\/strong>“. A hist\u00f3ria fala de um menino que naufraga num barco com um tigre – mesmo tema do Max e os Felinos – s\u00f3 que obviamente com varia\u00e7\u00f5es e sem trechos id\u00eanticos. No de Scliar, um jovem judeu divide um bote salva-vidas com uma pantera. No de Martel, um adolescente indiano divide o espa\u00e7o com um tigre, e outros bichos. Foi o bastante para gerar toda uma pol\u00eamica, que no fim ajudou a divulgar o livro de Scliar e que o fez escrever o texto que reproduzimos abaixo, dispon\u00edvel no Digestivo Cultural<\/a>.<\/p>\n Nele, o brasileiro explica muito bem como ficou sabendo da vers\u00e3o de Martel e como encarou isso e toda a fuzarca que se seguiu. Sensatamente,\u00a0 reconhece um dos conceitos de propriedade intelectual: de que as ideias n\u00e3o s\u00e3o protegidas por direitos autorais<\/strong>. O que \u00e9 protegido \u00e9 a determinada forma de exterioriza\u00e7\u00e3o de uma ideia<\/strong>. E Scliar tinha clara no\u00e7\u00e3o disso, evitando uma poss\u00edvel briga judicial que agradaria aos mais afetados. Hoje o texto aparece como Introdu\u00e7\u00e3o nas edi\u00e7\u00f5es de Max e os Felinos, pela L&PM Pocket<\/a> (esgotado, infelizmente).<\/p>\n Al\u00e9m dessa atitude, Scliar mais tarde participou de um projeto de autoria coletiva. Durante a Bienal do Livro de S\u00e3o Paulo em 2008, ele escreveu o primeiro cap\u00edtulo de “O Livro de Todos – O Mist\u00e9rio do Texto Roubado<\/a>” um projeto que funcionou como campanha publicit\u00e1ria e cuja hist\u00f3ria poderia ser continuada pelos leitores no site criado<\/a>. Foram selecionados 173 textos, que podem ser lidos na \u00edntegra<\/a> no site, e que se juntaram ao do saudoso e gentil Moacyr. Um estranho incidente liter\u00e1rio<\/strong><\/p>\n O Destino ainda bate \u00e0 porta, claro, mas nesta \u00e9poca de comunica\u00e7\u00f5es instant\u00e2neas prefere o telefone. Na tarde de 30 de outubro de 2002, voltando para casa cansado de uma viagem, recebi uma liga\u00e7\u00e3o. Era uma jornalista do jornal O Globo, dando-me uma not\u00edcia que, a princ\u00edpio, n\u00e3o entendi bem: parece que um escritor tinha ganho, na Europa, um pr\u00eamio importante com um livro baseado em um texto meu.<\/p>\n Minha primeira rea\u00e7\u00e3o foi de estranheza: um escritor, e do chamado Primeiro Mundo, copiando um autor brasileiro? Copiando a mim? Ela se ofereceu para me dar mais detalhes, o que foi feito em telefonemas seguintes, e assim aos poucos fui mergulhando no que se revelaria, nos dias seguintes, um verdadeiro torvelinho, uma experi\u00eancia pela qual eu nunca havia passado.<\/p>\n Sim, um escritor canadense chamado Yann Martel havia recebido, na Inglaterra, o prestigioso pr\u00eamio Booker, no valor de 55 mil libras esterlinas, conferido anualmente a autores do Commonwealth brit\u00e2nico ou da Rep\u00fablica da Irlanda (entre outros: Ian McEwan, Michael Ondaatje, Kingsley Amis, J.M. Coetzee, Salman Rushdie, Iris Murdoch). Sim, ele dizia que havia se baseado em um livro meu, Max e os felinos, publicado no Brasil em 1981, pela L&PM (Porto Alegre), e traduzido poucos anos depois nos Estados Unidos como Max and the Cats (Nova York, Ballantine Books, 1990) e na Fran\u00e7a como Max et les Chats (Paris, Presses de la Renaissance, 1991). \u00c9 uma pequena novela que escrevi com grande prazer \u2015 lembro-me de um fim de semana na serra ga\u00facha em que matraqueava animado a m\u00e1quina de escrever, em todos os minutos em que n\u00e3o estava cuidando de meu filho, ainda pequeno.<\/p>\n Minha primeira rea\u00e7\u00e3o n\u00e3o foi de contrariedade. Ao contr\u00e1rio, de alguma forma senti-me envaidecido por ter algu\u00e9m se entusiasmado pela ideia tanto quanto eu pr\u00f3prio me entusiasmara<\/strong>. Mas havia, na not\u00edcia, um componente desagrad\u00e1vel e estranho, t\u00e3o estranho quanto desagrad\u00e1vel. Yann Martel n\u00e3o tinha, segundo suas declara\u00e7\u00f5es, lido a novela. Tomara conhecimento dela atrav\u00e9s de uma resenha do escritor John Updike para o New York Times, resenha desfavor\u00e1vel, segundo ele.<\/p>\n Esta afirmativa me perturbou. Max and the Cats n\u00e3o chegou a ser um best-seller, mas os artigos sobre o livro, que me haviam sido enviados pela editora, eram favor\u00e1veis \u2015 inclusive o do New York Times, assinado por Herbert Mitgang. Teria Updike escrito uma outra resenha \u2015 para o mesmo jornal? Se era esse o caso, por que eu n\u00e3o a recebera? Ser\u00e1 que os editores s\u00f3 mandavam resenhas favor\u00e1veis?<\/p>\n \u00c0 afirmativa seguia-se um coment\u00e1rio de Martel. Uma pena, dizia ele, que uma ideia boa tivesse sido estragada por um escritor menor. Mas, em seguida, levantava uma outra hip\u00f3tese: e se eu n\u00e3o fosse um escritor menor? E se Updike tivesse se enganado? De qualquer maneira a ideia principal do livro serviu-lhe de ponto de partida para sua obra The Life of Pi. E qual \u00e9 essa ideia?<\/p>\n O Max Schmidt de meu livro \u00e9 um jovem alem\u00e3o que est\u00e1 fugindo do nazismo e que embarca para o Brasil. O navio em que viaja, um velho cargueiro, transporta tamb\u00e9m animais de um zool\u00f3gico. H\u00e1 um naufr\u00e1gio, criminoso, mas Max salva-se em um escaler. E de repente sobe a bordo um sobrevivente inesperado e amea\u00e7ador: um jaguar. Come\u00e7a ent\u00e3o a segunda parte da novela, que tem como t\u00edtulo “O jaguar no escaler”.<\/p>\n Esta, a ideia que motivou Martel. O seu personagem, Piscine Molitor Patel, Pi, \u00e9 um menino hindu cujo pai \u00e9 dono de um zool\u00f3gico. A fam\u00edlia emigra para o Canad\u00e1, levando os animais a bordo. H\u00e1, na segunda parte do livro, um naufr\u00e1gio (que depois ser\u00e1 considerado criminoso). Pi salva-se. No mesmo barco est\u00e3o um tigre de Bengala, um orangotango e uma zebra. O tigre liquida os tr\u00eas e Pi fica \u00e0 deriva com o felino por mais de duzentos dias.<\/p>\n O texto de Martel \u00e9 diferente do texto de Max e os felinos. Mas o leitmotiv<\/a> \u00e9, sim, o mesmo. E a\u00ed surge o embara\u00e7oso termo: pl\u00e1gio.<\/p>\n Embara\u00e7oso n\u00e3o para mim, devo dizer logo. Na verdade, e como disse antes, o fato de Martel ter usado a ideia n\u00e3o chegava a me incomodar. Incomodava-me a suposta resenha e tamb\u00e9m a maneira pela qual tomei conhecimento do livro. De fato, n\u00e3o fosse o pr\u00eamio, eu talvez nem ficasse sabendo da exist\u00eancia da obra. No lugar de Martel eu procuraria avisar o autor. Ali\u00e1s, foi o que fiz, em outra circunst\u00e2ncia. Meu livro A mulher que escreveu a B\u00edblia” teve como ponto de partida uma hip\u00f3tese levantada pelo famoso scholar norte-americano Harold Bloom segundo a qual uma parte do Antigo Testamento poderia ter sido escrita por uma mulher, \u00e0 \u00e9poca do rei Salom\u00e3o. Tratava-se, contudo, de um trabalho te\u00f3rico. Mesmo assim, coloquei o trecho de Bloom como ep\u00edgrafe do livro \u2015 que enviei a ele (nunca respondeu \u2015 nem sei se recebeu \u2015, mas eu cumpri minha obriga\u00e7\u00e3o). Martel agiu de maneira diferente. No pref\u00e1cio, em que agradece a muitas pessoas, atribui a “fagulha da vida” (“the spark of life<\/em>“) que o motivou a mim. Mas n\u00e3o entra em detalhes, n\u00e3o fala em Max e os felinos.<\/p>\n Nada se cria, tudo se copia, \u00e9 um dito frequente nos meios acad\u00eamicos. <\/strong>Escrevendo a respeito do incidente (prefiro este termo), Luis Fernando Verissimo observou que\u00a0Shakespeare baseou numerosas obras em trabalhos de contempor\u00e2neos menores. <\/strong> Em realidade, n\u00e3o h\u00e1 escritor que n\u00e3o seja influenciado por outros \u2015 Bloom, a prop\u00f3sito, fala da “ang\u00fastia da influ\u00eancia”. Quando comecei a rabiscar meus primeiros textos, copiava descaradamente. <\/strong> Em reda\u00e7\u00f5es escolares, transcrevi v\u00e1rias frases do Cazuza, de Viriato Correa, um livro que foi lido por v\u00e1rias gera\u00e7\u00f5es de crian\u00e7as brasileiras. Mas isto, no come\u00e7o. \u00c9 um sinal de maturidade procurarmos andar com nossas pr\u00f3prias pernas. E tamb\u00e9m \u00e9 um sinal de maturidade reconhecer, de forma expl\u00edcita, a utiliza\u00e7\u00e3o do material de outros. <\/strong> Em trabalhos cient\u00edficos isto \u00e9 feito mediante cita\u00e7\u00e3o bibliogr\u00e1fica. A transcri\u00e7\u00e3o tamb\u00e9m n\u00e3o pode ser extensa.<\/p>\n Essas coisas s\u00e3o levadas cada vez mais a s\u00e9rio, apesar de a no\u00e7\u00e3o de propriedade intelectual ser relativamente nova na hist\u00f3ria da humanidade. Tomemos, por exemplo, os trabalhos de Hip\u00f3crates, considerado o pai da medicina, e que viveu no s\u00e9culo V a.C.. \u00c9 dif\u00edcil saber o que \u00e9 realmente obra dele e o que foi escrito por seus disc\u00edpulos. O nome Hip\u00f3crates era uma grife, uma gratuita franchising. Era livremente usado porque \u00e0 \u00e9poca n\u00e3o havia direitos autorais. Em mat\u00e9ria de texto, isso surgiu com a ind\u00fastria editorial, portanto em plena modernidade. Shakespeare ainda vivia uma fase de transi\u00e7\u00e3o.<\/strong><\/p>\n Uma ideia \u00e9 uma propriedade intelectual. Isto n\u00e3o significa que n\u00e3o possa ser partilhada. Pode, sim, e frequentemente o \u00e9. Um editor prop\u00f5e um mesmo tema para v\u00e1rios autores e faz uma antologia com os trabalhos: nada demais nisso. Um autor n\u00e3o est\u00e1 prejudicando o outro. \u00c9 diferente da situa\u00e7\u00e3o de um produto qualquer que \u00e9 copiado, o que implica preju\u00edzo para o produtor original \u2015 a pirataria. Usar a mesma ideia liter\u00e1ria n\u00e3o chega a ser pirataria.<\/p>\n Depois de muito debate sobre o assunto o livro de Martel finalmente chegou-me \u00e0s m\u00e3os. <\/strong> Li-o sem rancor; ao contr\u00e1rio, achei o texto bem escrito e original. Ali estava a minha ideia, mas era com curiosidade que eu seguia a hist\u00f3ria; queria ver que rumo tomaria sua narrativa \u2015 boa narrativa, ali\u00e1s, dotada de humor e imagina\u00e7\u00e3o. Ficou claro que nossas vis\u00f5es da ideia eram completamente diferentes. As associa\u00e7\u00f5es que eu fiz s\u00e3o diferentes das que Martel faz. <\/strong><\/p>\n Um n\u00e1ufrago num escaler diante de um jaguar \u2015 o que significaria aquilo para mim? Por que teria me ocorrido aquela imagem? \u00c9 uma pergunta que pode se aplicar a qualquer obra de fic\u00e7\u00e3o (e a qualquer sonho, qualquer fantasia). E que admite dois tipos de resposta, em n\u00edveis diferentes. Um, mais profundo, e por conseguinte mais misterioso, diz que tais coisas se originam no inconsciente; s\u00e3o fantasias ligadas a traumas, cuja elabora\u00e7\u00e3o pode demandar muitas horas-div\u00e3. O outro tipo de explica\u00e7\u00e3o \u00e9 aquele que ocorre ao pr\u00f3prio autor. Para mim o jaguar era a imagem de um poder absoluto e irracional. Como foi o poder do nazismo, por exemplo. Ou, numa escala bem menor, o poder da ditadura militar que se instalou no Brasil em 1964. Martel d\u00e1 uma conota\u00e7\u00e3o diferente \u2015 religiosa \u2015 \u00e0 imagem. E isto, presumo, deve ter refor\u00e7ado nele a convic\u00e7\u00e3o de que n\u00e3o estava copiando, mas sim usando a ideia como ponto de partida.<\/p>\n *** A isto seguiu-se a rea\u00e7\u00e3o de um \u00f3rg\u00e3o da imprensa canadense, o National Post. A mat\u00e9ria publicada no dia 7 de novembro levava como t\u00edtulo: “New chapter in a nation’s rage toward Canad\u00e1” (“Um novo cap\u00edtulo na raiva de uma na\u00e7\u00e3o [o Brasil] contra o Canad\u00e1”). E o subt\u00edtulo, usando a alitera\u00e7\u00e3o de que os anglo-sax\u00f5es tanto gostam, era muito significativo: “Beef, Bombardier, books”. O texto procurava associar a quest\u00e3o dos livros com os epis\u00f3dios da proibi\u00e7\u00e3o da importa\u00e7\u00e3o da carne brasileira pelo Canad\u00e1 (o “beef”) supostamente por raz\u00f5es sanit\u00e1rias, e a concorr\u00eancia entre a brasileira Embraer e a canadense Bombardier para a venda de avi\u00f5es. Ou seja: o assunto estava ultrapassando os limites da controv\u00e9rsia liter\u00e1ria. E difundia-se cada vez mais, como constatei, ao procurar descobrir na internet o notici\u00e1rio a respeito. Entrei no Google, digitei dois nomes, Yann Martel e Moacyr Scliar \u2015 e fiquei estarrecido: havia mais de quinhentos textos sobre o affaire. E os pedidos de entrevistas continuavam.<\/strong> No dia 15, cheguei aos Estados Unidos, onde deveria dar uma palestra em Amherst, Massachusetts. Em minha passagem (de menos de um dia) por Nova York, fui entrevistado por cinco \u00f3rg\u00e3os de imprensa.<\/p>\n A pergunta que mais me faziam \u2015 e, nos Estados Unidos, faziam-me de forma insistente \u2015 dizia respeito a um processo judicial. Algo para o qual eu n\u00e3o tinha a menor disposi\u00e7\u00e3o. N\u00e3o s\u00f3 porque demandaria tempo e energia, como tamb\u00e9m porque minha atitude n\u00e3o era, e nem nunca foi, litigante. <\/strong> Como mencionei antes , se, ao tempo em que come\u00e7ou a escrever seu livro, Yann Martel tivesse entrado em contato comigo dizendo que queria aproveitar a ideia, eu teria concordado, e de bom grado. Ele n\u00e3o o fez, o que pode ser considerado inadequado \u2015 mas, ilegal? Eu relutava em ver a coisa dessa maneira. De modo que resolvi dar o assunto por encerrado \u2015 para decep\u00e7\u00e3o, n\u00e3o pude deixar de notar, de algumas pessoas, que gostariam de ver a briga continuar.<\/strong><\/p>\n *** A outra quest\u00e3o diz respeito aos famosos quinze minutos de fama, de que falava Andy Warhol. Um livro chega ao notici\u00e1rio de duas maneiras. Pode ser atrav\u00e9s de um artigo cr\u00edtico ou de uma resenha. Mas, se for dessa maneira, pode-se ter certeza de que a repercuss\u00e3o ser\u00e1 limitada. Barulho mesmo faz o succ\u00e8s de scandale. Que, diga-se desde logo, n\u00e3o afasta o m\u00e9rito liter\u00e1rio. Esc\u00e2ndalo provocaram livros como Madame Bovary, de Flaubert, L’Assomoir, de Zola, e Le diable au corps, de Raymond Radiguet, para ficarmos s\u00f3 na Fran\u00e7a, onde se originou a express\u00e3o. E qual o mecanismo deste sucesso? \u00c9 como se as pessoas dissessem, repetindo o Eclesiastes: h\u00e1 livros demais no mundo \u2015 acrescentando em seguida: deem-me um motivo para ler esse livro em particular. E, quanto mais picante, mais controverso for o motivo, melhor \u2015 e tanto maior a possibilidade dos quinze minutos de fama. Por coincid\u00eancia, na mesma \u00e9poca da discuss\u00e3o sobre os livros, estourou o esc\u00e2ndalo Winona Ryder: a atriz tinha sido surpreendida roubando roupas de uma loja. N\u00e3o menos surpreendente foi o artigo aparecido em um jornal americano, dizendo que o julgamento seria ben\u00e9fico para a carreira de uma atriz cujos \u00faltimos filmes, segundo o articulista, n\u00e3o haviam tido muito \u00eaxito. Pouco depois disso, um conhecido contou-me o sonho que tivera: sonhara que a hist\u00f3ria do pl\u00e1gio havia sido combinada entre Yann Martel e eu, para m\u00fatua promo\u00e7\u00e3o. Um sonho inteiramente explic\u00e1vel, na conjuntura em que vivemos. Livro depende de promo\u00e7\u00e3o \u2015 e a promo\u00e7\u00e3o depende, entre outras coisas, da visibilidade do autor. Isso explica o desaparecimento do pseud\u00f4nimo, por exemplo. E explica as viagens coast to coast que os escritores americanos fazem, atravessando os Estados Unidos de um ponta a outra para falarem de seus livros em palestras e programas de tev\u00ea. \u00c9 claro que qualquer coisa que chame a aten\u00e7\u00e3o para a obra, nestas circunst\u00e2ncias, \u00e9 bem-vinda.<\/p>\n Nem todos os escritores aceitam essa injun\u00e7\u00e3o. Lembro Rubem Fonseca recusando-se a falar sobre sua obra em uma mesa-redonda: “O que tenho a dizer est\u00e1 nos meus livros”. Mas entre essa recusa e a aceita\u00e7\u00e3o total, \u00e0s vezes at\u00e9 entusi\u00e1stica, h\u00e1 um gradiente de possibilidades no qual os escritores v\u00e3o se situando conforme sua disponibilidade, conforme seu temperamento, conforme sua capacidade de comunica\u00e7\u00e3o. Parte disso corresponde ao papel do escritor como intelectual: as pessoas esperam que quem sabe escrever saiba tamb\u00e9m falar e tenha ideias a transmitir.<\/p>\n O importante \u00e9 n\u00e3o fazer um investimento emocional nesta fama passageira. O importante \u00e9 n\u00e3o tentar repetir os quinze minutos. “N\u00e3o h\u00e1 segundo ato nas vidas americanas”, disse Scott Fitzgerald, e isso \u00e9 v\u00e1lido especialmente para arte e literatura: depois que as cortinas do palco se fecham, elas n\u00e3o abrem mais. As pessoas que n\u00e3o acreditam, ou n\u00e3o querem acreditar nisso, entregam-se, n\u00e3o raro, \u00e0s mais pat\u00e9ticas tentativas para fazer de novo brilhar, sobre si, os refletores do sucesso. Que t\u00eam um grande efeito: aquecem o ego. E n\u00e3o existe entidade que deseje ser mais aquecida, e massageada, e acarinhada, do que o ego. No passado, essa era uma exig\u00eancia t\u00edmida, porque individualismo \u00e9 uma coisa relativamente recente: pode ter existido sempre, mas criou for\u00e7a com a modernidade, e triunfa nesta \u00e9poca narc\u00edsica em que vivemos. O ego exige sucesso. Mas, como disse Clarice Lispector, numa carta a uma jovem que pretendia tornar-se escritora: “Quando voc\u00ea fizer sucesso, fique contentinha, mas n\u00e3o contentona. \u00c9 preciso ter sempre uma simples humildade, tanto na vida como na literatura”. Contentinha, mas n\u00e3o contentona: em quatro palavras, Clarice disse tudo, o que n\u00e3o \u00e9 de admirar, em se tratando de uma grande escritora. \u00c9 interessante, ali\u00e1s, que tenha usado a express\u00e3o “contente”, mas n\u00e3o “feliz”. N\u00e3o \u00e9 a mesma coisa. Felicidade \u00e9 uma coisa transcendente, imaterial. Contente \u00e9 aquele que cont\u00e9m: sua car\u00eancia foi preenchida com elogios, com tapinhas nas costas. No Brasil temos a express\u00e3o “o bloco dos contentes”. Usa-se em geral para pessoas que, ligadas \u00e0 administra\u00e7\u00e3o p\u00fablica, conseguem favores, privil\u00e9gios, mordomias. O que as contenta vem de fora.<\/p>\n Literatura n\u00e3o \u00e9 fonte de contentamento. Nem \u00e9 coisa que possa ser feita pelo membro de um bloco. Ela \u00e9, essencialmente, um v\u00edcio solit\u00e1rio. Isto n\u00e3o quer dizer que tenha de ser praticada numa isolada torre de marfim. A grande literatura inevitavelmente reflete o contexto social da \u00e9poca. Mas o faz como um sism\u00f3grafo, cuja agulha desloca-se como resposta a movimentos profundos. Espero que isso tenha acontecido, ao menos em parte, ao menos em pequena parte, com uma hist\u00f3ria chamada Max e os felinos. Todo o resto, francamente, n\u00e3o tem muita import\u00e2ncia.<\/p>\n Nota do Editor:<\/em> Cr\u00e9ditos da imagens: 1<\/a>, 2<\/a>, 3<\/a>.<\/em><\/p>\n [Marcelo De Franceschi]<\/em><\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":" E nessa onda de uma obra ser baseada numa hist\u00f3ria, que \u00e9 influ\u00eanciada por outros elementos, que por sua vez se originam de outras lendas, contadas e recontadas desde n\u00e3o se sabe quando e nem com quem come\u00e7ou, aproveitamos para deixar uma singela homenagem a um querido escritor ga\u00facho falecido h\u00e1 pouco. 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\nSeja como for a hist\u00f3ria, teve desdobramentos surpreendentes. Nos dias que se seguiram, comecei a receber cartas, e-mails, telefonemas \u2015 e, sobretudo, pedidos de entrevistas de v\u00e1rios \u00f3rg\u00e3os da imprensa. N\u00e3o sou um autor desconhecido, mas certamente nenhum dos meus livros teve a repercuss\u00e3o alcan\u00e7ada por esse.<\/strong> E nenhum esteve envolvido em tanta confus\u00e3o. Confus\u00e3o esta que come\u00e7ou com a divulga\u00e7\u00e3o \u2015 extra-oficial \u2015 do resultado do pr\u00eamio, num site da internet, um “fiasco”, na express\u00e3o do jornal londrino The Guardian, de 26 de outubro. Simultaneamente, vinha \u00e0 luz a quest\u00e3o da ideia do livro. Em 27 de outubro, o pr\u00f3prio Yann Martel publicou no The Sunday Times, de Londres, um artigo que falava sobre o seu livro \u2015 e o meu. No domingo, 3 de novembro, O Globo publicou, em p\u00e1gina inteira, a mat\u00e9ria para a qual eu tinha sido entrevistado. A jornalista Daniela Name lembrava: “Max e os felinos n\u00e3o \u00e9 o primeiro romance brasileiro supostamente plagiado por um autor estrangeiro. Publicado em 1934, “A sucessora”, de Carolina Nabuco, gerou um debate liter\u00e1rio quando “Rebecca”, da inglesa Daphne du Maurier, foi editado quatro anos depois”. <\/strong> (Rebecca, ali\u00e1s, foi adaptado para o cinema por Alfred Hitchcock.) Dois dias depois, apareceu um outro artigo, vastamente difundido pelas ag\u00eancias internacionais: aquele escrito para o New York Times pelo correspondente do jornal no Brasil, Larry Rohter, que me entrevistou por telefone. O t\u00edtulo era: “Tiger in a Lifeboat, Panther in a Lifeboat: a Furor Over a Novel” (“O tigre num bote, a pantera num bote: um esc\u00e2ndalo sobre um romance”). Depois de explicar aos leitores americanos como pronunciar meu nome (“Mouhseer Skleer”), Rohter falava do sucedido, destacando que seu jornal jamais tinha publicado qualquer resenha de John Updike acerca de Max and the Cats. Tamb\u00e9m mencionava a rea\u00e7\u00e3o da imprensa brasileira.<\/p>\n
\nAlgumas conclus\u00f5es se podem tirar desse epis\u00f3dio, para o qual o adjetivo “bizarro” me ocorreu desde o in\u00edcio. \u00c9, de fato, uma coisa muito estranha. H\u00e1, nela, uma discuss\u00e3o objetiva sobre o que vem a ser, afinal, pl\u00e1gio. Objetiva porque h\u00e1 evidentes repercuss\u00f5es pr\u00e1ticas nesta \u00e9poca de marcas, patentes e direitos autorais, mas nem por isso f\u00e1cil de resolver. Mesmo que princ\u00edpios gerais sejam fixados, cada caso ser\u00e1 um caso e exigir\u00e1 uma decis\u00e3o, judicial ou n\u00e3o, independente.<\/strong><\/p>\n
\n Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado na colet\u00e2nea Legado Fliporto 2007 (Edi\u00e7\u00f5es Baga\u00e7o, 2008)<\/em>.<\/p><\/blockquote>\n