{"id":3252,"date":"2010-07-06T11:13:07","date_gmt":"2010-07-06T11:13:07","guid":{"rendered":"https:\/\/baixacultura.org\/?p=3252"},"modified":"2010-07-06T11:13:07","modified_gmt":"2010-07-06T11:13:07","slug":"robert-darnton-e-o-google-books","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/baixacultura.org\/2010\/07\/06\/robert-darnton-e-o-google-books\/","title":{"rendered":"Robert Darnton e o Google Books"},"content":{"rendered":"

\"\"<\/a><\/p>\n

Robert Darnton \u00e9 o senhor a\u00ed de cima, em casa aos 71 anos, historiador e diretor da biblioteca da Universidade de Harvard. Um ensaio dele tratando sobre a pol\u00eamica do Google Books foi publicado no Brasil em mar\u00e7o de 2009. O texto constava na estr\u00e9ia da revista serrote<\/a> – publica\u00e7\u00e3o quadrimestral do Instituto Moreira Salles<\/a> – que teve a quarta edi\u00e7\u00e3o lan\u00e7ada agora em mar\u00e7o.<\/p>\n

Em 15 p\u00e1ginas das mais de 200 da primeira edi\u00e7\u00e3o da revista, Darnton analisava o impasse que as editoras criaram com o Google Books, o projeto que queria digitalizar todos os livros do mundo, e disponibiliz\u00e1-los para o pr\u00f3prio. Obviamente que a inten\u00e7\u00e3o esbarrou no interesse dos detentores do copyright das obras – e no imenso prazo do dom\u00ednio p\u00fablico. Al\u00e9m de fazer uma \u00f3tima recaptula\u00e7\u00e3o da briga entre editoras e tecnologias, o autor tamb\u00e9m critica, e bem, o lado do monop\u00f3lio do Google.<\/p>\n

Bom, feita a introdu\u00e7\u00e3o deixemos o resto para o grande ensaio, que n\u00e3o foi f\u00e1cil de encontrar diga-se de passagem. O \u00fanico blog que se ligou de copiar o conte\u00fado do site da revista (que inclusive foi inexplicavelmente removido) foi o da Biblioteca Municipal Paulo Bom Fim<\/a>, de Itanha\u00e9m<\/a>, S\u00e3o Paulo. Aos respons\u00e1veis, agradecemos muito e parabenizamos pelo blog completo e atualizado.\u00a0 \u00c0 revista serrote recomendamos seguir alguns apontamentos do autor, como\u00a0 tornar p\u00fablica a produ\u00e7\u00e3o do caro e pouco distribu\u00eddo peri\u00f3dico. Infelizmente, a c\u00f3pia est\u00e1 sem as notas de rodap\u00e9, mas ainda assim o texto est\u00e1 entend\u00edvel.<\/p>\n

Um aprofundamento ainda maior no assunto pode ser conferido na obra “A quest\u00e3o dos livros – Passado, Presente e Futuro<\/a>“, lan\u00e7ado em abril pela Companhia das Letras com tradu\u00e7\u00e3o de Daniel Pellizzari. Ali, est\u00e3o mais dez artigos, escritos desde 1980, sobre, logicamente, a hist\u00f3ria dos livros e das bibliotecas. Quem quiser ouvir do autor em pessoa aproveite que Robert Darnton vir\u00e1 para a Festa Liter\u00e1ria Internacional de Paraty (FLIP<\/a>) entre 4 e 8 de agosto.<\/p>\n

Esperamos encerrar aqui, pelo menos por um tempo, a nossa s\u00e9rie de tradu\u00e7\u00f5es. Temos v\u00e1rias pautas em vista, mas pouco tempo para desenvolv\u00ea-las. Entretanto, acreditamos que um texto destes \u00e9 melhor que nada. Boa leitura.<\/p>\n

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DILEMAS CONTEMPOR\u00c2NEOS O acordo com as editoras permitir\u00e1 ao site de buscas criar o maior acervo de livros da hist\u00f3ria da humanidade; o historiador e diretor da biblioteca de Harvard teme que as bibliotecas, na contram\u00e3o do esp\u00edrito do Iluminismo, percam a sua fun\u00e7\u00e3o p\u00fablica.<\/p>\n<\/blockquote>\n

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O Google e o futuro dos livros<\/strong><\/p>\n

Robert Darnton<\/strong><\/p>\n

Como navegar na paisagem da informa\u00e7\u00e3o que est\u00e1 apenas come\u00e7ando a aparecer? A quest\u00e3o \u00e9 mais urgente do que nunca, a julgar pelo recente acordo entre o Google e os escritores e editoras que o estavam processando por alegada viola\u00e7\u00e3o de copyright. Nos \u00faltimos quatro anos, o Google vem digitalizando milh\u00f5es de livros, incluindo muitos cobertos por copyright, das cole\u00e7\u00f5es de grandes bibliotecas de pesquisa, e tornando os textos acess\u00edveis online. Os escritores e editoras objetaram que digitalizar constitu\u00eda uma viola\u00e7\u00e3o de seus direitos autorais. Depois de demoradas negocia\u00e7\u00f5es, os queixosos e o Google chegaram a um acordo, que ter\u00e1 consequ\u00eancias profundas na maneira como os livros chegar\u00e3o aos leitores no futuro previs\u00edvel. Qual ser\u00e1 esse futuro?<\/p>\n<\/blockquote>\n

\"\"<\/a>A rec\u00e9m restaurada sala p\u00fablica da biblioteca da Academia Americana em Roma<\/em><\/p>\n

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Ningu\u00e9m sabe, porque o acordo \u00e9 t\u00e3o complexo que fica dif\u00edcil perceber os contornos legais e econ\u00f4micos no novo estado de coisas. Mas aqueles de n\u00f3s que s\u00e3o respons\u00e1veis por bibliotecas de pesquisa t\u00eam a clara vis\u00e3o de um objetivo comum: queremos abrir nossas cole\u00e7\u00f5es e torn\u00e1-las dispon\u00edveis a leitores de todas as partes. Como chegar l\u00e1? Talvez a \u00fanica t\u00e1tica pratic\u00e1vel seja a vigil\u00e2ncia: enxergar o mais longe que se puder; manter os olhos na estrada, lembrando-se de olhar no espelho retrovisor.<\/p>\n

Q<\/strong>uando olho para tr\u00e1s, fixo-me no s\u00e9culo 18, no Iluminismo, em sua f\u00e9 no poder do conhecimento e no mundo de ideias em que ele operou \u2013 aquilo a que o iluminista se referia como Rep\u00fablica das Letras.<\/p>\n

O s\u00e9culo 18 imaginava a Rep\u00fablica das Letras como um reino sem pol\u00edcia, sem fronteiras e sem desigualdades, exceto as determinadas pelo talento. Qualquer um podia juntar-se a ela exercendo os dois atributos principais da cidadania: escrever e ler. Escritores formulavam ideias e leitores as julgavam. Gra\u00e7as ao poder da palavra impressa, os julgamentos se estendiam por c\u00edrculos cada vez mais amplos, e os argumentos mais fortes venciam.<\/p>\n

A palavra se espalhava tamb\u00e9m por cartas escritas, pois o s\u00e9culo 18 foi uma grande era de interc\u00e2mbio epistolar. Lendo a correspond\u00eancia de Voltaire, Rousseau, Franklin e Jefferson \u2013 cada uma enchendo cerca de 50 volumes \u2013, \u00e9 poss\u00edvel observar a Rep\u00fablica das Letras em opera\u00e7\u00e3o. Esses quatro escritores debatiam todas as quest\u00f5es de seu tempo numa sequ\u00eancia cont\u00ednua de cartas que interligava Europa e Am\u00e9rica numa rede de informa\u00e7\u00e3o transatl\u00e2ntica.<\/p>\n

Eu aprecio particularmente a troca de cartas entre Jefferson e Madison. Eles discutiam de tudo, especialmente a Constitui\u00e7\u00e3o dos Estados Unidos, que Madison estava ajudando a escrever na Filad\u00e9lfia enquanto Jefferson representava a nova rep\u00fablica em Paris. Eles escreviam ami\u00fade sobre livros, pois Jefferson amava visitar as livrarias da capital da Rep\u00fablica das Letras, e com frequ\u00eancia comprava livros para o amigo. As compras inclu\u00edram a Encyclop\u00e9die de Diderot, que Jefferson achava que havia conseguido por uma pechincha, embora tivesse tomado uma reimpress\u00e3o pela primeira edi\u00e7\u00e3o.<\/p>\n

Os dois futuros presidentes discutindo livros pela rede de informa\u00e7\u00e3o do Iluminismo \u2013 \u00e9 uma vis\u00e3o eletrizante. Mas antes de esse quadro do passado ser confundido pela emo\u00e7\u00e3o, devo acrescentar que a Rep\u00fablica das Letras s\u00f3 era democr\u00e1tica em princ\u00edpio. Na pr\u00e1tica, ela era dominada pelos bem nascidos e pelos ricos. Longe de poder viver de suas plumas, a maioria dos escritores tinha que cortejar patronos, solicitar sinecuras, fazer lobby por nomea\u00e7\u00f5es para publica\u00e7\u00f5es estatais, esquivar-se dos censores e disputar seu acesso a sal\u00f5es e academias onde as reputa\u00e7\u00f5es se faziam. Enquanto sofriam injusti\u00e7as nas m\u00e3os de seus superiores sociais, eles se voltavam uns contra os outros. A disputa entre Voltaire e Rousseau ilustra seus respectivos temperamentos. Em 1755, ap\u00f3s ler o Discours sur l\u2019origine et les fondements de l\u2019in\u00e9galit\u00e9 parmi les hommes [Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens], de Rousseau, Voltaire escreveu a ele: \u201cRecebi, Monsieur, seu novo livro contra a ra\u00e7a humana\u2026 Ele nos faz desejar cair de quatro\u201d. Cinco anos depois, Rousseau escreveu a Voltaire. \u201cMonsieur\u2026, eu o odeio.\u201d<\/p>\n

Os conflitos pessoais se misturavam com distin\u00e7\u00f5es sociais. Longe de funcionar como uma \u00e1gora igualit\u00e1ria, a Rep\u00fablica das Letras sofria a mesma doen\u00e7a que corroeu todas as sociedades do s\u00e9culo 18: o privil\u00e9gio. Os privil\u00e9gios n\u00e3o se limitavam a aristocratas. Na Fran\u00e7a, eles se aplicavam a tudo no mundo das letras, incluindo a impress\u00e3o e o com\u00e9rcio de livros, que eram dominados por guildas exclusivas, e os pr\u00f3prios livros, que n\u00e3o podiam sair legalmente sem um privil\u00e9gio real e a aprova\u00e7\u00e3o de um censor impressa com todas as letras no texto deles.<\/p>\n

Uma maneira de entender esse sistema \u00e9 recorrer \u00e0 sociologia do conhecimento, em especial, \u00e0 no\u00e7\u00e3o de Pierre Bourdieu de literatura como um campo de poder formado por posi\u00e7\u00f5es conflitantes dentro das regras de um jogo, ele pr\u00f3prio subordinado \u00e0s for\u00e7as dominantes da sociedade em geral. Mas n\u00e3o \u00e9 preciso filiar-se \u00e0 escola de sociologia de Bourdieu para reconhecer as conex\u00f5es entre literatura e poder. Vistas da perspectiva dos jogadores, as realidades da vida liter\u00e1ria contradiziam os altos ideais do Iluminismo. Apesar de seus princ\u00edpios, a Rep\u00fablica das Letras, tal como ela realmente operava, era um mundo fechado, inacess\u00edvel aos desprivilegiados. Entretanto, quero invocar o Iluminismo numa defesa da abertura em geral e do livre acesso em particular.<\/p>\n

S<\/strong>e passarmos do s\u00e9culo 18 para o presente, haver\u00e1 uma contradi\u00e7\u00e3o similar entre princ\u00edpio e pr\u00e1tica \u2013 bem aqui, no mundo das bibliotecas de pesquisa? Uma de minhas colegas \u00e9 uma senhora calma, pequenina, que poderia evocar o estere\u00f3tipo de Marion, a bibliotec\u00e1ria1. Quando encontra pessoas em festas e se identifica, elas \u00e0s vezes dizem com condescend\u00eancia: \u201cUma bibliotec\u00e1ria, que legal. Me diga, como \u00e9 ser uma bibliotec\u00e1ria?\u201d Ela responde: \u201cEssencialmente, tem a ver com dinheiro e poder\u201d.<\/p>\n

Estamos de volta a Pierre Bourdieu. No entanto, a maioria de n\u00f3s apoiaria os princ\u00edpios inscritos em lugares proeminentes de nossas bibliotecas p\u00fablicas. \u201cGratuito para todos\u201d, diz-se acima da entrada principal da Biblioteca P\u00fablica de Boston; e, nas palavras de Thomas Jefferson, entalhadas em letras douradas na parede da Trustee\u2019s Room da Biblioteca P\u00fablica de Nova York: \u201cEu vejo a difus\u00e3o de luz e educa\u00e7\u00e3o como o recurso mais confi\u00e1vel para melhorar a condi\u00e7\u00e3o de promover a virtude e aumentar a felicidade do homem\u201d. Estamos de volta ao Iluminismo.<\/p>\n

Nossa rep\u00fablica foi fundada sobre a f\u00e9 no princ\u00edpio central da Rep\u00fablica das Letras do s\u00e9culo 18: a difus\u00e3o da luz. Para Jefferson, o Iluminismo ocorreu por interm\u00e9dio de escritores e leitores, livros e bibliotecas \u2013 especialmente bibliotecas, em Monticello, na Universidade de Virg\u00ednia, e na Biblioteca do Congresso. Essa f\u00e9 est\u00e1 incorporada \u00e0 Constitui\u00e7\u00e3o dos Estados Unidos. O Artigo 1, Se\u00e7\u00e3o 8, estabelece copyright e patentes apenas \u201cpor per\u00edodos limitados\u201d e sujeitos ao prop\u00f3sito superior de promover \u201co progresso da ci\u00eancia e das artes utilit\u00e1rias\u201d. Os Pais Fundadores reconheciam os direitos de autores a um justo retorno sobre seu trabalho intelectual, mas colocavam o bem p\u00fablico acima do lucro privado.<\/p>\n

Como calcular a import\u00e2ncia relativa desses dois valores? Como os autores da Constitui\u00e7\u00e3o sabiam, o copyright foi criado na Gr\u00e3-Bretanha pelo Statute of Anne [Estatuto de Anne], em 1710, com a finalidade de conter as pr\u00e1ticas monopolistas da London Stationer\u2019s Company [Companhia dos Livreiros e Editores], e tamb\u00e9m, como seu t\u00edtulo proclamava, \u201cpara o encorajamento do saber\u201d. Na \u00e9poca, o Parlamento estabeleceu a dura\u00e7\u00e3o do copyright em 14 anos, renov\u00e1vel apenas uma vez. Os Stationers tentaram preservar seu monop\u00f3lio de publica\u00e7\u00e3o e de com\u00e9rcio de livros defendendo numa longa s\u00e9rie de a\u00e7\u00f5es judiciais o copyright perp\u00e9tuo, mas eles perderam na senten\u00e7a definitiva de Donaldson contra Becket em 1774.<\/p>\n

Quando os americanos se reuniram para escrever o anteprojeto de uma constitui\u00e7\u00e3o, 13 anos depois, eles no geral favoreceram a vis\u00e3o que havia predominado na Gr\u00e3-Bretanha. Vinte e oito anos pareciam tempo suficiente para proteger os interesses de autores e editoras. Al\u00e9m desse limite, o interesse do p\u00fablico devia prevalecer. Em 1790, a primeira lei de copyright \u2013 tamb\u00e9m dedicada \u00e0 \u201cpromo\u00e7\u00e3o do saber\u201d \u2013 acompanhou a pr\u00e1tica brit\u00e2nica ao adotar um limite de 14 anos, renov\u00e1vel por outros 14.<\/p>\n

Hoje, por quanto tempo se estende o copyright? Segundo o Sonny Bono Copyright Term Extension Act de 1998 (tamb\u00e9m conhecida como \u201cLei de Prote\u00e7\u00e3o de Mickey Mouse\u201d, porque Mickey estava prestes a cair em dom\u00ednio p\u00fablico), ela dura o tempo de vida do autor, mais 70 anos. Na pr\u00e1tica, isso normalmente significa mais de um s\u00e9culo. A maioria dos livros publicados no s\u00e9culo 20 ainda n\u00e3o entrou em dom\u00ednio p\u00fablico. No que diz respeito \u00e0 digitaliza\u00e7\u00e3o, o acesso a nossa heran\u00e7a cultural geralmente termina em 1\u00ba de janeiro de 1923, a data a partir da qual grande n\u00famero de livros est\u00e1 sujeito a leis de copyright. Ele permanecer\u00e1 ali \u2013 a menos que interesses privados assumam a digitaliza\u00e7\u00e3o, embalem-na para consumidores, vinculem os pacotes por meio de acordos legais, e os vendam para o lucro dos acionistas. Do jeito como as coisas est\u00e3o, por exemplo, Babbitt, de Sinclair Lewis, publicado em 1922, est\u00e1 em dom\u00ednio p\u00fablico, enquanto Elmer Gantry, de Lewis, publicado em 1927, s\u00f3 entrar\u00e1 em dom\u00ednio p\u00fablico em 2022.2<\/p>\n

Descer dos altos princ\u00edpios dos Pais Fundadores \u00e0s pr\u00e1ticas das ind\u00fastrias culturais de hoje \u00e9 sair do reino do Iluminismo para o tumulto do capitalismo corporativo. Se volt\u00e1ssemos \u00e0 sociologia do conhecimento para o presente \u2013 como o pr\u00f3prio Bourdieu fez \u2013, ver\u00edamos que vivemos num mundo projetado por Mickey Mouse, violento e cruel.<\/p>\n

E<\/strong>sse tipo de teste da realidade far\u00e1 os princ\u00edpios do Iluminismo parecer uma fantasia hist\u00f3rica? Vamos reconsiderar a hist\u00f3ria. \u00c0 propor\u00e7\u00e3o que o Iluminismo esmorecia, no in\u00edcio do s\u00e9culo 19, estabelecia-se o profissionalismo. \u00c9 poss\u00edvel acompanhar o processo comparando a Encyclop\u00e9die de Diderot, que organizou o conhecimento num todo org\u00e2nico dominado pela faculdade da raz\u00e3o, com sua sucessora do fim do s\u00e9culo 18, a Encyclop\u00e9die m\u00e9thodique, que dividia o conhecimento em campos que podemos reconhecer hoje em dia: qu\u00edmica, f\u00edsica, hist\u00f3ria, matem\u00e1tica e o resto. No s\u00e9culo 19, esses campos se transformaram em profiss\u00f5es certificadas por PhDs e guardadas por associa\u00e7\u00f5es profissionais. Eles se metamorfosearam em departamentos de universidades e, no s\u00e9culo 20, haviam deixado sua marca em campi \u2013 qu\u00edmica abrigada neste pr\u00e9dio, f\u00edsica naquele, hist\u00f3ria aqui, matem\u00e1tica ali, e, no centro de tudo, uma biblioteca, geralmente projetada para parecer um templo do saber.<\/p>\n

Ao longo do caminho, publica\u00e7\u00f5es especializadas brotaram nos campos, subcampos e sub-subcampos. As sociedades doutas as produziam, e as bibliotecas as adquiriam. Esse sistema funcionou bem durante cerca de 100 anos. A\u00ed as editoras comerciais descobriram que podiam fazer uma fortuna vendendo assinaturas dessas publica\u00e7\u00f5es. Quando uma biblioteca universit\u00e1ria subscrevia, os alunos e professores passavam a esperar um fluxo ininterrupto de edi\u00e7\u00f5es. Os pre\u00e7os podiam ser reajustados sem causar cancelamentos porque as bibliotecas pagavam pelas assinaturas e os professores n\u00e3o. O melhor de tudo: os professores forneciam trabalho de gra\u00e7a ou quase de gra\u00e7a. Eles escreviam artigos, julgavam artigos enviados e serviam em conselhos editoriais, em parte para difundir conhecimento \u00e0 moda do Iluminismo, mas, sobretudo, para promover as pr\u00f3prias carreiras.<\/p>\n

O resultado se destaca no or\u00e7amento de aquisi\u00e7\u00f5es de cada biblioteca de pesquisa: a assinatura anual do Journal of Comparative Neurology custa us$ 25.910; a de Tetrahedron custa us$ 17.969 (ou us$ 39.739, se enfeixada com publica\u00e7\u00f5es afins como um pacote Tetrahedron); o pre\u00e7o m\u00e9dio de uma publica\u00e7\u00e3o especializada em qu\u00edmica \u00e9 us$ 3.490; e os efeitos propagat\u00f3rios prejudicaram a vida intelectual por todo o mundo do aprendizado. Em raz\u00e3o do custo exorbitante de publica\u00e7\u00f5es peri\u00f3dicas, as bibliotecas, que costumavam gastar 50% de seu or\u00e7amento de aquisi\u00e7\u00f5es em monografias, agora gastam 25% ou menos. As editoras universit\u00e1rias, que dependem de vendas a bibliotecas, n\u00e3o conseguem cobrir seus custos publicando monografias. E os jovens pesquisadores que dependem de publicar para promover suas carreiras est\u00e3o em risco de extin\u00e7\u00e3o.<\/p>\n

Felizmente, esse quadro de fatos duros da vida no mundo do saber j\u00e1 est\u00e1 obsoleto. Bi\u00f3logos, qu\u00edmicos e f\u00edsicos j\u00e1 n\u00e3o vivem em mundos separados; historiadores, antrop\u00f3logos e estudiosos de literatura tampouco. O velho mapa do campus j\u00e1 n\u00e3o corresponde \u00e0s atividades dos professores e alunos. Est\u00e1 sendo redesenhado por toda parte, e, em muitos lugares, os projetos interdisciplinares est\u00e3o se transformando em estruturas. A biblioteca continua no centro das coisas, mas ela injeta nutri\u00e7\u00e3o por toda a universidade e, frequentemente, at\u00e9 nos rinc\u00f5es mais remotos do ciberespa\u00e7o, por meio de redes eletr\u00f4nicas.<\/p>\n

A Rep\u00fablica das Letras do s\u00e9culo 18 foi transformada numa Rep\u00fablica do Saber profissional, e agora est\u00e1 aberta a amadores \u2013 amadores no melhor sentido da palavra, amantes do saber em meio \u00e0 cidadania em geral. A abertura est\u00e1 operando por toda parte, gra\u00e7as aos acervos de artigos digitalizados de \u201cacesso aberto\u201d dispon\u00edveis sem custos \u2013 a Open Content Alliance<\/a>, a Open Knowledge Commons<\/a>, OpenCourseWare<\/a>, o Internet Archive<\/a> \u2013 e a empreendimentos abertamente amadores como a Wikipedia. A democratiza\u00e7\u00e3o do conhecimento agora parece estar na ponta dos dedos. Podemos dar vida ao ideal do Iluminismo na realidade.<\/p>\n<\/blockquote>\n

\"\"<\/a>O projeto de escaneamento de livros na Biblioteca Brit\u00e2nica, em Londres, que recebeu financiamento da Microsoft at\u00e9 que a empresa interrompeu o\u00a0 programa de digitaliza\u00e7\u00e3o de livros em maio passado <\/em>[de 2008]
\n<\/em><\/p>\n

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N<\/strong>esse ponto, algu\u00e9m pode suspeitar que eu pulei de um g\u00eanero americano, a lam\u00faria, para outro, o entusiasmo ut\u00f3pico. \u00c9 poss\u00edvel, imagino, os dois trabalharem juntos como uma dial\u00e9tica, n\u00e3o fosse o perigo da comercializa\u00e7\u00e3o. Quando empresas como o Google olham para bibliotecas, elas n\u00e3o veem meramente templos do saber. Veem ativos potenciais ou o que chamam de \u201cconte\u00fado\u201d, prontos para ser garimpados. Constru\u00eddos ao longo de s\u00e9culos a um custo imenso de dinheiro e trabalho, acervos de bibliotecas podem ser digitalizados em massa a um custo relativamente baixo \u2013 milh\u00f5es de d\u00f3lares, certamente, mas pouco comparado ao investimento que receberam.<\/p>\n

Bibliotecas existem para promover o bem p\u00fablico: \u201co encorajamento do saber\u201d, saber \u201cgratuito para todos\u201d. Empresas existem para ganhar dinheiro para seus acionistas \u2013 uma boa coisa, tamb\u00e9m, pois o bem p\u00fablico depende de uma economia lucrativa. Contudo, se permitirmos a comercializa\u00e7\u00e3o do conte\u00fado de nossas bibliotecas, n\u00e3o h\u00e1 como contornar uma contradi\u00e7\u00e3o fundamental. Digitalizar acervos e vender o produto de maneira que n\u00e3o garanta amplo acesso seria repetir o erro que foi cometido quando editoras exploraram o mercado de publica\u00e7\u00f5es especializadas, mas numa escala muito maior, pois transformaria a Internet em instrumento de privatiza\u00e7\u00e3o de um conhecimento que pertence \u00e0 esfera p\u00fablica. Nenhuma m\u00e3o invis\u00edvel interviria para corrigir o desequil\u00edbrio entre o bem-estar p\u00fablico e o privado. Somente o p\u00fablico pode fazer isso, mas quem fala pelo p\u00fablico? N\u00e3o os legisladores da Lei de Prote\u00e7\u00e3o Mickey Mouse.<\/p>\n

N\u00e3o se pode legislar o Iluminismo, mas \u00e9 poss\u00edvel estabelecer regras do jogo para proteger o interesse p\u00fablico. Bibliotecas representam o bem p\u00fablico. Elas n\u00e3o s\u00e3o empresas, mas precisam cobrir seus custos. Elas precisam de um plano de neg\u00f3cios. Pense no velho lema da Con Edison<\/a>3 quando teve que rasgar as ruas de Nova York para chegar \u00e0 infraestrutura embaixo delas: \u201cEscavar \u00e9 preciso\u201d. As bibliotecas dizem: \u201cDigitalizar \u00e9 preciso\u201d. Mas n\u00e3o em quaisquer termos. Precisamos faz\u00ea-lo no interesse do p\u00fablico e isso significa responsabilizar os digitalizadores perante a cidadania.<\/p>\n

Seria ing\u00eanuo identificar a Internet com o Iluminismo. Ela tem o potencial de difundir conhecimento al\u00e9m de qualquer coisa imaginada por Jefferson; mas, enquanto ela estava sendo constru\u00edda, link por hyperlink, os interesses comerciais n\u00e3o ficaram sentados ociosamente ao lado. Eles querem controlar o jogo, assumir seu controle, possu\u00ed-lo. Eles competem entre si, \u00e9 claro, mas t\u00e3o ferozmente que se eliminam mutuamente. Sua luta pela sobreviv\u00eancia est\u00e1 levando a um oligop\u00f3lio e, ganhe quem ganhar, a vit\u00f3ria poder\u00e1 significar uma derrota do bem p\u00fablico.<\/p>\n

N\u00e3o me entendam mal. Sei que empresas precisam prestar contas a acionistas. Acredito que os autores devam receber pagamento por seu trabalho criativo e que as editoras merecem ganhar dinheiro com o valor que acrescentam aos textos fornecidos pelos autores. Admiro a bruxaria de hardware, software, mecanismos de busca, digitaliza\u00e7\u00e3o e ranking de relev\u00e2ncia algor\u00edtmica. Reconhe\u00e7o a import\u00e2ncia do copyright, embora ache que o Congresso fez melhor em 1790 que em 1998.<\/p>\n

Por\u00e9m n\u00f3s tamb\u00e9m n\u00e3o podemos ficar esperando sentados como se as for\u00e7as do mercado pudessem operar pelo bem p\u00fablico. Precisamos nos engajar, nos envolver, e recuperar o justo dom\u00ednio do p\u00fablico. Quando digo \u201cn\u00f3s\u201d, quero dizer n\u00f3s o povo, n\u00f3s que criamos a Constitui\u00e7\u00e3o e que dever\u00edamos fazer os princ\u00edpios do Iluminismo por tr\u00e1s dela informar as realidades cotidianas da sociedade da informa\u00e7\u00e3o. Sim, precisamos digitalizar. Mas, mais importante, precisamos democratizar, precisamos acesso aberto a nossa heran\u00e7a cultural. Como? Reescrevendo as regras do jogo, subordinando interesses privados ao bem p\u00fablico e tirando inspira\u00e7\u00e3o da rep\u00fablica primitiva para criar uma Rep\u00fablica Digital do Saber.<\/p>\n

O<\/strong> que provocou estas reflex\u00f5es lamurientas e ut\u00f3picas? O Google. Quatro anos atr\u00e1s, o Google come\u00e7ou a digitalizar livros de bibliotecas de pesquisa, fornecendo a busca de textos integrais e tornando livros em dom\u00ednio p\u00fablico acess\u00edveis na Internet sem nenhum custo para o usu\u00e1rio. Por exemplo, agora \u00e9 poss\u00edvel para qualquer pessoa, em qualquer lugar, ver e baixar uma c\u00f3pia digital da primeira edi\u00e7\u00e3o, de 1871, de Middlemarch, que est\u00e1 no acervo da Bodleian Library, em Oxford. Todos lucraram, incluindo o Google, que colheu receita de alguma publicidade discreta anexada ao servi\u00e7o, o Google Book Search. O Google tamb\u00e9m digitalizou um n\u00famero sempre crescente de livros de bibliotecas que estavam protegidos por copyright para fornecer servi\u00e7os de busca que exibiam pequenos trechos do texto. Em setembro e outubro de 2005, um grupo de autores e editoras moveu uma a\u00e7\u00e3o coletiva contra o Google, alegando viola\u00e7\u00e3o de copyright. Em 28 de outubro passado, ap\u00f3s demoradas negocia\u00e7\u00f5es, as partes litigantes anunciaram um acordo, que est\u00e1 sujeito \u00e0 aprova\u00e7\u00e3o do Tribunal Distrital dos EUA do Distrito Sul de Nova York.4<\/p>\n

O acordo cria uma empresa conhecida como o Book Rights Registry<\/a> para representar os interesses dos detentores de copyright. O Google vender\u00e1 o acesso a um banco de dados gigantesco, composto principalmente por livros das bibliotecas de pesquisa que estejam fora de cat\u00e1logo e protegidos por copyright. Faculdades, universidades e outras organiza\u00e7\u00f5es poder\u00e3o subscrever, comprando uma \u201clicen\u00e7a de consumo\u201d do Google, que cooperar\u00e1 com o registro para a distribui\u00e7\u00e3o de toda a receita aos detentores de copyright. O Google reter\u00e1 37% e o registro distribuir\u00e1 63% para os detentores de direitos.<\/p>\n

Enquanto isso, o Google continuar\u00e1 colocando livros em dom\u00ednio p\u00fablico acess\u00edveis a usu\u00e1rios para ler, baixar e imprimir, de gra\u00e7a. Dos sete milh\u00f5es de livros que o Google declaradamente digitalizou at\u00e9 novembro de 2008, um milh\u00e3o s\u00e3o obras em dom\u00ednio p\u00fablico; um milh\u00e3o s\u00e3o protegidas por copyright e impressas; e cinco milh\u00f5es s\u00e3o protegidas por copyright mas est\u00e3o fora de cat\u00e1logo. \u00c9 essa \u00faltima categoria que fornecer\u00e1 o grosso dos livros que ser\u00e1 disponibilizado pela licen\u00e7a institucional.<\/p>\n

Muitos dos livros com copyright e impressos n\u00e3o estar\u00e3o dispon\u00edveis no banco de dados, a menos que os detentores dos direitos optem por inclu\u00ed-los. Eles continuar\u00e3o sendo vendidos da maneira normal como livros impressos e tamb\u00e9m poder\u00e3o ser comercializados eventualmente em leitores de e-book como o Kindle, da Amazon.<\/p>\n

D<\/strong>epois de ler o acordo e compreender seus termos \u2013 o que n\u00e3o \u00e9 uma tarefa f\u00e1cil, j\u00e1 que ele tem 134 p\u00e1ginas e 15 ap\u00eandices de \u201cjuridiqu\u00eas\u201d \u2013 pode-se ficar embasbacado: eis uma proposta que poder\u00e1 resultar na maior biblioteca do mundo. Seria, \u00e9 claro, uma biblioteca digital, mas poderia fazer sombra \u00e0 Biblioteca do Congresso e a todas as bibliotecas nacionais da Europa. Mais ainda, na busca dos termos do acordo com os autores e editoras, o Google conseguiu se tornar tamb\u00e9m o maior neg\u00f3cio de livros do mundo \u2013 n\u00e3o uma cadeia de lojas, mas um servi\u00e7o de fornecimento eletr\u00f4nico capaz de superar a amaz\u00f4nica Amazon.<\/p>\n

Uma empresa em tamanha escala est\u00e1 fadada a provocar rea\u00e7\u00f5es dos dois tipos que estamos discutindo: de um lado, entusiasmo ut\u00f3pico; de outro, lam\u00farias sobre o perigo de concentrar poder de controlar o acesso \u00e0 informa\u00e7\u00e3o.<\/p>\n

Quem n\u00e3o se comoveria com a perspectiva de colocar virtualmente todos os livros das maiores bibliotecas de pesquisa dos EUA ao alcance de todos os norte-americanos, e talvez, eventualmente, de todas as pessoas do mundo com acesso \u00e0 Internet? A feiti\u00e7aria tecnol\u00f3gica do Google n\u00e3o s\u00f3 traria livros para leitores; ela tamb\u00e9m abriria oportunidades extraordin\u00e1rias de pesquisa, de uma gama de possibilidades de buscas diretas de palavras at\u00e9 complexas garimpagens de textos. Sob certas condi\u00e7\u00f5es, as bibliotecas participantes tamb\u00e9m poder\u00e3o usar as c\u00f3pias digitalizadas de seus livros para criar substitui\u00e7\u00f5es para t\u00edtulos que foram danificados ou perdidos. O Google preparar\u00e1 os textos de maneira a ajudar leitores com defici\u00eancias.<\/p>\n

Infelizmente, o compromisso do Google de fornecer livre acesso a seu banco de dados em um terminal em cada biblioteca p\u00fablica est\u00e1 cercado de restri\u00e7\u00f5es: os leitores n\u00e3o poder\u00e3o imprimir nenhum texto protegido por copyright sem pagar uma taxa aos detentores dos direitos (embora o Google tenha se proposto a pag\u00e1-las no come\u00e7o); al\u00e9m disso, um \u00fanico terminal dificilmente satisfar\u00e1 a demanda em bibliotecas grandes. Mas a generosidade do Google ser\u00e1 uma d\u00e1diva para leitores das bibliotecas Carnegie<\/a>5 em cidades pequenas, que ter\u00e3o acesso a mais livros que os atualmente dispon\u00edveis na Biblioteca P\u00fablica de Nova York. O Google pode tornar realidade o sonho do Iluminismo.<\/p>\n

Mas tornar\u00e1? Os fil\u00f3sofos do s\u00e9culo 18 viam o monop\u00f3lio como importante obst\u00e1culo \u00e0 difus\u00e3o do conhecimento \u2013 n\u00e3o apenas monop\u00f3lios em geral, que dificultavam o com\u00e9rcio, segundo Adam Smith e os fisiocratas, mas monop\u00f3lios espec\u00edficos, como o da Stationers\u2019 Company em Londres e a guilda dos vendedores de livros em Paris, que sufocaram o livre com\u00e9rcio de livros.<\/p>\n

O Google n\u00e3o \u00e9 uma guilda e n\u00e3o se prop\u00f4s criar um monop\u00f3lio. Ao contr\u00e1rio, ele perseguiu um objetivo louv\u00e1vel: promover o acesso \u00e0 informa\u00e7\u00e3o. Mas o car\u00e1ter do acordo coletivo torna o Google invulner\u00e1vel \u00e0 competi\u00e7\u00e3o. A maioria dos autores de livros e editoras que possuem copyright nos EUA est\u00e1 automaticamente coberta pelo acordo. Eles podem optar por sair, mas, fa\u00e7am o que fizerem, nenhuma nova iniciativa de digitaliza\u00e7\u00e3o poder\u00e1 sair do ch\u00e3o sem conquistar seu consentimento um a um (uma impossibilidade pr\u00e1tica) ou sem se ver atolada em outra a\u00e7\u00e3o coletiva. Se for aprovado pelo tribunal \u2013 um processo que poder\u00e1 levar at\u00e9 dois anos \u2013, o acordo dar\u00e1 ao Google o controle sobre a digitaliza\u00e7\u00e3o de virtualmente todos os livros cobertos por copyright nos Estados Unidos.<\/p>\n

Esse desfecho n\u00e3o foi antecipado no come\u00e7o. Olhando para tr\u00e1s, para o curso da digitaliza\u00e7\u00e3o a partir dos anos 1990, podemos ver que perdemos uma grande oportunidade. Uma a\u00e7\u00e3o do Congresso e da Biblioteca do Congresso ou uma grande alian\u00e7a de bibliotecas de pesquisa apoiada por uma coaliz\u00e3o de funda\u00e7\u00f5es poderia ter feito o trabalho com um custo vi\u00e1vel e planejado, de modo a colocar o interesse p\u00fablico em primeiro plano. Ao distribuir o custo de v\u00e1rias maneiras \u2013 um aluguel baseado na quantidade de uso de um banco de dados ou uma linha or\u00e7ament\u00e1ria no National Endowment for the Humanities [Dota\u00e7\u00e3o Nacional para as Humanidades], ou da Biblioteca do Congresso \u2013, poder\u00edamos ter proporcionado a autores e editoras uma leg\u00edtima receita, enquanto manter\u00edamos um acervo com acesso livre, ou no qual o acesso fosse baseado em tarifas razo\u00e1veis. Poder\u00edamos ter criado uma Biblioteca Digital Nacional \u2013 o equivalente no s\u00e9culo 21 \u00e0 Biblioteca de Alexandria. \u00c9 tarde demais, agora. N\u00e3o s\u00f3 n\u00e3o conseguimos perceber essa oportunidade, mas, pior ainda, estamos permitindo que uma quest\u00e3o de pol\u00edtica p\u00fablica \u2013 o controle do acesso \u00e0 informa\u00e7\u00e3o \u2013 seja determinada por uma a\u00e7\u00e3o judicial privada.<\/p>\n

E<\/strong>nquanto as autoridades p\u00fablicas dormiam, o Google tomava a iniciativa. Ele n\u00e3o procurou resolver seus assuntos nos tribunais. Prosseguiu com seus neg\u00f3cios, escaneando livros em bibliotecas, e os escaneava de maneira t\u00e3o eficaz que despertou o apetite de outros por uma parte dos lucros potenciais. Ningu\u00e9m deve questionar a pretens\u00e3o de autores e editoras \u00e0 receita com direitos que devidamente lhes pertence; ningu\u00e9m tampouco presume um julgamento r\u00e1pido para as partes litigantes da a\u00e7\u00e3o. O juiz da corte distrital se pronunciar\u00e1 sobre a validade do acordo, mas isso diz respeito principalmente \u00e0 divis\u00e3o de lucros, e n\u00e3o \u00e0 promo\u00e7\u00e3o do interesse p\u00fablico.<\/p>\n

Como consequ\u00eancia inesperada, o Google desfrutar\u00e1 do que s\u00f3 pode ser chamado de monop\u00f3lio \u2013 um monop\u00f3lio de novo tipo, n\u00e3o de ferrovias ou a\u00e7o, mas de acesso \u00e0 informa\u00e7\u00e3o. O Google n\u00e3o tem competidores s\u00e9rios. A Microsoft abandonou seu grande programa de digitalizar livros h\u00e1 v\u00e1rios meses, e outras empresas como a Open Knowledge Commons (antiga Open Content Alliance) e o Internet Archives s\u00e3o min\u00fasculos e ineficazes em compara\u00e7\u00e3o ao Google. S\u00f3 o Google tem a riqueza para digitalizar em escala. E, tendo acertado com os autores e editoras, ele poder\u00e1 explorar seu poder financeiro do interior de uma barreira legal protetora; isso porque a a\u00e7\u00e3o coletiva cobre toda a classe de autores e editoras. Nenhum empres\u00e1rio novo conseguir\u00e1 digitalizar livros dentro do territ\u00f3rio cercado, mesmo que tenha recursos para isso, porque teria que travar todas as batalhas de copyright novamente. Se o acordo for sustentado pelo tribunal, somente o Google estar\u00e1 protegido de obriga\u00e7\u00f5es de copyright.<\/p>\n

O hist\u00f3rico do Google sugere que ele n\u00e3o abusar\u00e1 de seu poder fiscal legal, duplamente protegido. Mas o que acontecer\u00e1 se seus atuais dirigentes venderem a companhia ou se aposentarem? O p\u00fablico descobrir\u00e1 a resposta nos pre\u00e7os que o Google cobrar\u00e1 no futuro, especialmente o pre\u00e7o de licen\u00e7as de subscri\u00e7\u00f5es institucionais. O acordo deixa o Google livre para negociar acordos com cada um de seus clientes, embora ele anuncie dois princ\u00edpios diretores: \u201c(1) A realiza\u00e7\u00e3o da receita a taxas de mercado para cada livro ou licen\u00e7a em favor dos detentores de copyright e (2) a realiza\u00e7\u00e3o de amplo acesso aos livros pelo p\u00fablico, incluindo institui\u00e7\u00f5es de ensino superior\u201d.<\/p>\n

O que acontecer\u00e1 se o Google privilegiar a lucratividade ao livre acesso? Nada, se eu li os termos do acordo corretamente. Somente o representante legal, agindo pelos detentores de copyright, tem o poder de for\u00e7ar uma mudan\u00e7a nos pre\u00e7os de subscri\u00e7\u00e3o cobrados pelo Google, e n\u00e3o h\u00e1 nenhuma raz\u00e3o para se esperar que ele se oponha, caso os pre\u00e7os fiquem muito elevados. O Google pode optar por ser generoso nos pre\u00e7os, mas poderia tamb\u00e9m empregar uma estrat\u00e9gia compar\u00e1vel \u00e0 que se mostrou t\u00e3o eficaz nas publica\u00e7\u00f5es acad\u00eamicas especializadas: primeiro, atrair assinantes com pre\u00e7os iniciais baixos, e depois, quando eles estiverem fisgados, aumentar os valores at\u00e9 o ponto em que o com\u00e9rcio suportar.<\/p>\n

Os defensores do livre mercado podem argumentar que o mercado se corrigir\u00e1. Se o Google cobrar demais, os clientes cancelar\u00e3o suas subscri\u00e7\u00f5es, e o pre\u00e7o cair\u00e1. Mas n\u00e3o existe uma rela\u00e7\u00e3o direta entre oferta e demanda no mecanismo para as licen\u00e7as institucionais vislumbradas pelo acordo. Estudantes, professores e clientes de bibliotecas p\u00fablicas n\u00e3o pagar\u00e3o pelas subscri\u00e7\u00f5es. O pagamento vir\u00e1 das bibliotecas; e se as bibliotecas n\u00e3o conseguirem arranjar dinheiro suficiente para a renova\u00e7\u00e3o de subscri\u00e7\u00f5es, elas poder\u00e3o provocar protestos ferozes de leitores que se acostumaram com o servi\u00e7o do Google. Em face dos protestos, as bibliotecas provavelmente cortar\u00e3o outros servi\u00e7os, incluindo a aquisi\u00e7\u00e3o de livros, como fizeram quando as editoras elevaram o pre\u00e7o das publica\u00e7\u00f5es especializadas.<\/p>\n

Ningu\u00e9m pode prever o que acontecer\u00e1. Podemos somente ler os termos do acordo e imaginar o futuro. Se o Google tornar acess\u00edvel, a um pre\u00e7o razo\u00e1vel, os acervos combinados de todas as grandes bibliotecas norte-americanas, quem n\u00e3o aplaudir\u00e1? N\u00e3o preferir\u00edamos um mundo em que esse imenso corpus de livros digitalizados estivesse acess\u00edvel, mesmo por pre\u00e7o alto, a outro contexto em que ele n\u00e3o existisse?<\/p>\n

Talvez, mas o acordo cria uma mudan\u00e7a fundamental no mundo digital ao consolidar o poder nas m\u00e3os de uma empresa. Tirante a Wikipedia, o Google j\u00e1 controla os meios de acesso \u00e0 informa\u00e7\u00e3o online para a maioria dos norte-americanos, quer queiram procurar pessoas, bens, lugares ou quase tudo. Al\u00e9m do \u201cBig Google\u201d original, temos Google Earth, Google Maps, Google Images, Google Labs, Google Finance, Google Arts, Google Food, Google Sports, Google Health, Google Checkout, Google Alerts, e muitas outras empresas Google a caminho. Agora, o Google Book Search promete criar a maior biblioteca e o maior neg\u00f3cio de livros que jamais existiu.<\/p>\n

Quer tenhamos compreendido o acordo corretamente ou n\u00e3o, seus termos est\u00e3o amarrados de tal forma que n\u00e3o podem ser desmembrados. Neste ponto, nem Google, nem os autores, nem as editoras, nem o tribunal distrital provavelmente modificar\u00e1 substancialmente o acordo. Mas esse \u00e9 tamb\u00e9m um ponto cr\u00edtico no desenvolvimento do que chamamos de sociedade da informa\u00e7\u00e3o. Se tivermos o equil\u00edbrio errado neste momento, os interesses privados poder\u00e3o sobrepujar o bem p\u00fablico no futuro previs\u00edvel, e o sonho do Iluminismo poder\u00e1 ser t\u00e3o fugidio quanto sempre foi.<\/p>\n

Filho de um jornalista do The New York Times morto na Segunda Guerra, Robert Darnton especializou-se no s\u00e9culo 18 franc\u00eas. \u00c9 professor da Universidade de Harvard e, desde julho de 2007, diretor de sua biblioteca, considerada a quinta maior do mundo, com 15 milh\u00f5es de volumes. V\u00e1rios de seus livros foram publicados no Brasil, incluindo Boemia liter\u00e1ria e revolu\u00e7\u00e3o<\/a> (1987) e Edi\u00e7\u00e3o e sedi\u00e7\u00e3o<\/a> (1992), ambos pela Companhia das Letras. Ele est\u00e1 completando 70 anos agora em 2009.
\nTradu\u00e7\u00e3o de Celso Paciornik.
\nEste texto foi
publicado pela The New York Review of Books<\/a>, 12.02.09.<\/strong><\/p>\n<\/blockquote>\n

Fonte da foto de Darnton<\/a>. A imagem que antecede o ensaio \u00e9 da exposi\u00e7\u00e3o Untitled (Paperbacks)<\/em><\/a> realizada em 1997 pela brit\u00e2nica Rachel Whiteread<\/a>. Dizia a serrote, neste pequeno trecho<\/a>, que “Ela lembra o interior de uma biblioteca dom\u00e9stica, feita em gesso, com as prateleiras vazias e os livros dependurados por baixo delas”.<\/p>\n

[Marcelo De Franceschi]<\/em><\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"

Robert Darnton \u00e9 o senhor a\u00ed de cima, em casa aos 71 anos, historiador e diretor da biblioteca da Universidade de Harvard. Um ensaio dele tratando sobre a pol\u00eamica do Google Books foi publicado no Brasil em mar\u00e7o de 2009. O texto constava na estr\u00e9ia da revista serrote – publica\u00e7\u00e3o quadrimestral do Instituto Moreira Salles […]<\/p>\n","protected":false},"author":2,"featured_media":8167,"comment_status":"open","ping_status":"open","sticky":false,"template":"","format":"standard","meta":[],"categories":[88,359,126,87,203],"tags":[400,146,147,366,401,402],"post_folder":[],"jetpack_featured_media_url":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-content\/uploads\/2012\/07\/darnton_007_6052-1.jpg","_links":{"self":[{"href":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/3252"}],"collection":[{"href":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-json\/wp\/v2\/posts"}],"about":[{"href":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-json\/wp\/v2\/types\/post"}],"author":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-json\/wp\/v2\/users\/2"}],"replies":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-json\/wp\/v2\/comments?post=3252"}],"version-history":[{"count":0,"href":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/3252\/revisions"}],"wp:featuredmedia":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-json\/wp\/v2\/media\/8167"}],"wp:attachment":[{"href":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-json\/wp\/v2\/media?parent=3252"}],"wp:term":[{"taxonomy":"category","embeddable":true,"href":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-json\/wp\/v2\/categories?post=3252"},{"taxonomy":"post_tag","embeddable":true,"href":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-json\/wp\/v2\/tags?post=3252"},{"taxonomy":"post_folder","embeddable":true,"href":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-json\/wp\/v2\/post_folder?post=3252"}],"curies":[{"name":"wp","href":"https:\/\/api.w.org\/{rel}","templated":true}]}}