{"id":2775,"date":"2010-03-18T23:03:30","date_gmt":"2010-03-18T23:03:30","guid":{"rendered":"https:\/\/baixacultura.org\/?p=2775"},"modified":"2010-03-18T23:03:30","modified_gmt":"2010-03-18T23:03:30","slug":"sita-canta-o-blues","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/baixacultura.org\/2010\/03\/18\/sita-canta-o-blues\/","title":{"rendered":"Sita canta o blues"},"content":{"rendered":"

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Esta cela costuma ser um freio pra muita criatividade. Novos e velhos filmes, m\u00fasicas e livros s\u00e3o deixados de serem criados e consumidos pelo fato de que muito do que j\u00e1 foi feito estar ali dentro, inacess\u00edvel e na maioria das vezes esquecido, mofando. Os prisioneiros s\u00f3 costumam ver a luz quando est\u00e3o de p\u00e9 se segurando nas barras at\u00e9 que cansam e v\u00e3o para o fundo escuro e silencioso. O grande problema, al\u00e9m das grades, \u00e9 o cadeado, cujo poder de liberdade \u00e9 de quem tem as chaves, e n\u00e3o de quem produziu e deixou o que est\u00e1 aprisionado. Para abrir, s\u00f3 na base da fian\u00e7a, quando se tem.<\/p>\n

Quem quase foi v\u00edtima dessa pris\u00e3o foi Sita<\/a>, nascida de uma flor de l\u00f3tus num lago.\u00a0 Ela \u00e9 personagem da epop\u00e9ia Ram\u00e1iana<\/a>, poesia cl\u00e1ssica da mitologia Hindu, que conta a hist\u00f3ria dela com Rama<\/a>, um avatar azul [!] de um dos deuses indianos. Acontece que Sita resolveu cantar uns blues\u00a0 antigos na mais recente adapta\u00e7\u00e3o da hist\u00f3ria. Numa anima\u00e7\u00e3o lan\u00e7ada h\u00e1 pouco mais de dois anos, as letras das m\u00fasicas s\u00e3o interpretadas na \u00edntegra pela personagem e se integram mui bien \u00e0 narrativa original. Mas o “problema” por ela ter quase ficado presa era que as can\u00e7\u00f5es que Sita entoava s\u00f3 foram autorizadas para a cantora de jazz Annette Hanshaw<\/a>. Quem foi ela? Ora, foi uma cantora que teve o auge de sua carreira em 1920, ou seja, quase um s\u00e9culo atr\u00e1s. Tudo que Hanshaw cantou naquela \u00e9poca ainda est\u00e1 atr\u00e1s das grades do copyright, o que impossilita a reprodu\u00e7\u00e3o em quaisquer meios audiovisuais p\u00fablicos, como televis\u00e3o, cinemas e teatros, sem que se pague os sagrados direitos do autor. Mesmo que esse autor j\u00e1 n\u00e3o exista mais e que haja a possibilidade de relembr\u00e1-lo.<\/p>\n

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E esse foi o empecilho enfrentado pela diretora da anima\u00e7\u00e3o, Nina Paley, para conseguir distribuir sua arte, o filme Sita Sings The Blues<\/a>. Paley teve que bolar um complicado esquema<\/a> de negocia\u00e7\u00e3o para liberar Sita da jaula. Os detentores dos direitos das m\u00fasicas pediram 220 mil mangos para regularizar o filme. Paley pechinchou e o pre\u00e7o diminuiu para 50 mil doletas. A diretora teve que apelar ent\u00e3o para um empr\u00e9stimo e conseguir pagar o valor, na condi\u00e7\u00e3o de que seriam produzidas no m\u00e1ximo 5 mil DVDs de c\u00f3pias promocionais. Esse tipo de c\u00f3pia geralmente \u00e9 entregue a comentaristas, comit\u00eas de festivais e jornalistas, mas Paley pegou os arquivos dessas c\u00f3pias, hospedou on-line e licenciou em Creative Commons 3.0<\/a>, ou seja, qualquer pessoa pode compartilhar, distribuir, exibir \u00e0 vontade. S\u00f3 n\u00e3o pode vender, porque a\u00ed tem que pagar o pessoal das gravadoras.<\/p>\n

Agora, Nina Paley conta com o retorno da audi\u00eancia para ajudar a pagar o custo do filme – de 80 mil d\u00f3lares – e do empr\u00e9stimo. Atrav\u00e9s de uma parceria com o \u00f3timo site QuestionCopyright, Paley espera as doa\u00e7\u00f5es<\/a> do p\u00fablico – h\u00e1 inclusive um contador da porcentagem que falta para chegar no valor do empr\u00e9stimo – e tem uma loja de vendas<\/a> de produtos do filme, como\u00a0 adesivos, b\u00f3tons, camisetas, p\u00f4sters, dvds e cds da trilha sonora. Na imagem de cada produto, \u00e9 indicado o quanto do valor ser\u00e1 revertido para a autora. E segundo o site, as doa\u00e7\u00f5es tem sido est\u00e1veis desde a libera\u00e7\u00e3o de Sita:<\/p>\n

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This is the opposite of the traditional “burst and fade”<\/em> distribution model that so many works endure, dragged out of circulation prematurely to avoid competing with new releases from the same publisher. Because Nina’s film is audience-distributed, it’s in circulation forever, whenever and wherever people want to see it. And all those audience members are potential customers and donors, as the financial results bear out.<\/p>\n

[Isto \u00e9 o oposto do modelo tradicional de distribui\u00e7\u00e3o “estouro e desaparecimento” que suporta tantos trabalhos, deixados fora de circula\u00e7\u00e3o prematuramente para evitar competir com os novos lan\u00e7amentos da mesma editora. Como o filme de Nina \u00e9 distribu\u00eddo pela audi\u00eancia, est\u00e1 em circula\u00e7\u00e3o para sempre, quando e onde as pessoas quiserem v\u00ea-lo. E todos os membros da audi\u00eancia s\u00e3o os potenciais clientes e doadores, como confirmam os resultados financeiros.]<\/p>\n<\/blockquote>\n

A confian\u00e7a nos usu\u00e1rios era tanta que foi criada uma p\u00e1gina Wiki<\/a> no site do filme. Ali est\u00e3o dispon\u00edveis os links para as vers\u00f5es de v\u00e1rios tamanhos, os locais e datas das exibi\u00e7\u00f5es pelo mundo afora, mais de 20 legendas diferentes, os audios dos coment\u00e1rios da diretora, al\u00e9m de sugest\u00f5es, perguntas frequentes, curiosidades e leituras recomendadas. Ali\u00e1s, o arquivo .srt da legenda em portugu\u00eas est\u00e1 aqui<\/a>, e foi feito por uma brasileira<\/a>. Todas as vers\u00f5es do longa est\u00e3o hospedadas no site Archive.org<\/a>, que indica que o filme j\u00e1 foi baixado mais de 150 mil vezes.<\/p>\n

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E n\u00e3o \u00e9 pra menos. O filme faz uma feliz compara\u00e7\u00e3o entre as dificuldades de relacionamento dos dois deuses hindus com uma situa\u00e7\u00e3o amorosa parecida pela qual passou a diretora. O Ram\u00e1iana \u00e9 contado resumidamente por tr\u00eas bonecos de teatro de sombras que v\u00e3o improvisando o que sabem sobre a lenda, intercalados por\u00a0 outras montagens, clipes musicais com as m\u00fasicas de Hanshaw e partes que contam a hist\u00f3ria da separa\u00e7\u00e3o de Paley. S\u00e3o quatro tipos distintos de anima\u00e7\u00f5es combinadas numa com\u00e9dia rom\u00e2ntica musical. Uma arte muito bem detalhada, pois em apenas um trecho existem 15 elementos colados, como conta a diretora em um post<\/a> de seu blog. <\/strong>Advertimos que h\u00e1 uma parte do filme que pode causar estranheza naqueles que n\u00e3o est\u00e3o acostumados com o cinema indiano. L\u00e1 pelo meio dos 80 minutos de filme, descem umas cortinas e surge uma tela com a palavra “Intermission<\/em>” e uma contagem regressiva de uns tr\u00eas minutos – tipo de cena comum em Bollywood, nome dado \u00e0 poderosa ind\u00fastria cinematogr\u00e1fica da \u00cdndia, e aqui colocada como homenagem.\u00a0Durante esse tempo, os personagens aproveitam e v\u00e3o no banheiro ou compram pipoca, costume dos espectadores locais durante esses intervalos. De resto, o enredo \u00e9 um tanto normal para a maioria dos mortais espectadores.<\/p>\n

Desde o lan\u00e7amento, em 2008, o longa-metragem j\u00e1 ganhou 28 pr\u00eamios em festivais, de acordo com a p\u00e1gina da Wikip\u00e9dia<\/a>. Outra produ\u00e7\u00e3o da mesma autora que vem circulando j\u00e1 faz um tempo na rede \u00e9 o videozinho de um minuto “Copying is not Theft”<\/a> [Copiar n\u00e3o \u00e9 Roubar], em que \u00e9 explicado o conceito de que c\u00f3pia n\u00e3o exclui, mas sim se soma ao que j\u00e1 existia, praticamente o mesmo conceito de outro video da mesma s\u00e9rie chamado “All Creative Work Is Derivative”<\/a> [Todo o trabalho criativo \u00e9 derivado”].\u00a0 E mais dez curtas est\u00e3o planejados para Paley produzir na mesma linha<\/a>.<\/p>\n

Assim, Nina Paley est\u00e1 divulgando a milenar cultura indiana e os primeiros blues, compostos h\u00e1 90 anos, obtendo junto reconhecimento, retorno financeiro e mais trabalho, mesmo depois de dois anos do lan\u00e7amento de sua obra. Nada mal para a dona de um p\u00e1ssaro que por pouco n\u00e3o ficou preso dentro da gaiola.<\/p>\n

[Marcelo De Franceschi<\/strong>.]<\/p>\n

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