{"id":15653,"date":"2024-05-16T21:02:48","date_gmt":"2024-05-17T00:02:48","guid":{"rendered":"https:\/\/baixacultura.org\/?p=15653"},"modified":"2024-05-17T13:08:28","modified_gmt":"2024-05-17T16:08:28","slug":"os-interrompidos-sonhos-aceleracionistas-da-cultura-popular","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/baixacultura.org\/2024\/05\/16\/os-interrompidos-sonhos-aceleracionistas-da-cultura-popular\/","title":{"rendered":"Os interrompidos sonhos aceleracionistas da cultura popular"},"content":{"rendered":"
<\/p>\n
A prolifera\u00e7\u00e3o da intelig\u00eancia artificial generativa tem nos feito, nos \u00faltimos meses, redobrar o interesse por um conjunto de ideias agrupadas em torno do nome aceleracionismo. O termo tem lastro na teoria e filosofia pol\u00edtica h\u00e1 pelo menos uma d\u00e9cada. Nos \u00faltimos anos, tem ganhado repercuss\u00e3o tamb\u00e9m a partir da busca recente de empresas de IA generativa, como a Open IA, por uma \u201cIntelig\u00eancia Artificial Geral\u201d que v\u00e1 substituir ou superar a capacidade humana de pensar. Isso implica tamb\u00e9m na popularidade de ideias semelhantes como a singularidade, popularizada por Ray Kurzweil<\/a>, que relaciona o crescimento tecnol\u00f3gico desenfreado da \u201csuper intelig\u00eancia artificial\u201d \u00e0 mudan\u00e7as irrevers\u00edveis \u200b\u200bna civiliza\u00e7\u00e3o humana.<\/p>\n Usado a partir de \u201cThe persistence of Negative<\/a>\u201d, artigo de Benjamin Noys de 2010, o aceleracionismo tem como premissa a acelera\u00e7\u00e3o das for\u00e7as do capital como meio de desterritorializar o sistema capitalista. \u00c9 uma heresia pol\u00edtica: \u201ca insist\u00eancia de que a \u00fanica resposta pol\u00edtica radical ao capitalismo n\u00e3o \u00e9 protestar, agitar, criticar, nem t\u00e3o pouco esperar seu colapso nas m\u00e3os de suas pr\u00f3prias contradi\u00e7\u00f5es, mas sim acelerar suas tend\u00eancias ao desenraizamento, \u00e0 aliena\u00e7\u00e3o, \u00e0 decodifica\u00e7\u00e3o, \u00e0 abstra\u00e7\u00e3o\u201d, na defini\u00e7\u00e3o de Armen Avanessian e Mauro Reis na introdu\u00e7\u00e3o do \u00f3timo \u201cAceleracionismo: estrategias para una transici\u00f3n hacia el postcapitalismo<\/a>\u201d<\/p>\n O livro, publicado pela editora argentina Caja Negra em 2017, compila v\u00e1rios textos ainda n\u00e3o muito conhecidos no Brasil, como o \u201cManifesto por uma Pol\u00edtica Aceleracionista<\/a>\u201d, de Nick Srnicek e Alex Willians, \u201cMeltdow<\/a>\u201d e \u201cCr\u00edtica do Miserabilismo Transcendental<\/a>\u201d de Nick Land, \u201cReflex\u00f5es sobre o Manifesto por uma pol\u00edtica aceleracionista<\/a>\u201d de Antonio Negri , \u201cO Aceleracionismo questionado desde o ponto de vista do corpo<\/a>\u201d de Bifo Berardi, \u201cRed Stack Attack! <\/i>Algoritmos, capital e a automatiza\u00e7\u00e3o do comum<\/a>\u201d <\/i>de Tiziana Terranova, \u201cO labor do inumano<\/a>\u201d de Reza Negarestani, entre outros, inclusive o texto apresentado logo abaixo, de Mark Fisher.<\/p>\n Duas vis\u00f5es disputam o aceleracionismo. A primeira \u00e9 a apocal\u00edptica, elaborada principalmente por Nick Land, fil\u00f3sofo cocriador (ao lado de Sadie Plant) do CCRU (Cybernetic Culture Research Unit<\/i><\/a>) – her\u00e9tico grupo de pesquisa\/coletivo te\u00f3rico criado em 1995 na Universidade de Warwick, do qual Mark Fisher fez parte. Mais tarde, Land se tornaria um dos principais ide\u00f3logos da extrema direita mundial, apoiador de Trump e at\u00e9 mesmo de Bolsonaro, mentor de gente como Mencius Moldbug e Peter Thiel, reza a lenda que auto-exilado em Shangai j\u00e1 h\u00e1 alguns anos – uma parte de seus textos entre 1987 e 2007 est\u00e3o compilados no livro “Fanged Noumena”<\/a>, de 2011.<\/p>\n Figura exc\u00eantrica, Land falava j\u00e1 em 1993 (no texto \u201cMeltdown<\/i>\u201d) que os humanos s\u00e3o apenas \u201cmeat puppets<\/i>\u201d (fantoches de carne) do capital, um obst\u00e1culo a ser superado para que o capitalismo alcance seus objetivos transhumanistas de adquirir ag\u00eancia pr\u00f3pria a partir da acelera\u00e7\u00e3o descontrolada das finan\u00e7as e da Intelig\u00eancia Artificial, rumo ao caos e a destrui\u00e7\u00e3o do planeta. Esta vis\u00e3o anti-humanista e monstruosa, que parece sair de um filme de terror gore<\/i>, nasce de \u201cuma cr\u00edtica ao tom celebrat\u00f3rio \u00e0s tend\u00eancias desterritorializantes do capitalismo\u201d, como afirmam Victor Marques e Rodrigo Gonsalves no posf\u00e1cio \u00e0 edi\u00e7\u00e3o brasileira de \u201cRealismo Capitalista<\/a>\u201d, de Mark Fisher, lan\u00e7ada em 2020 pela Autonomia Liter\u00e1ria. Ela dobra a aposta em orienta\u00e7\u00e3o a um futuro onde a humanidade se tornaria um entrave ao desenvolvimento do tecno-capital, uma ideia que, por mais estranha e grotesca que possa parecer, serve de pano de fundo hoje para gente como Elon Musk e sua obsess\u00e3o com a coloniza\u00e7\u00e3o de outros planetas, e tamb\u00e9m para o \u201canarcocapitalismo\u201d de Javier Milei, na Argentina. Land considera o tecno-capital como o verdadeiro sujeito da hist\u00f3ria, sendo a humanidade o seu hospedeiro e n\u00e3o seu mestre –\u00a0<\/i>um tipo de frase que poderia sair da boca do presidente argentino num programa ruim de TV transmitido por streaming, com Milei vociferando ferozmente ladeado por seus quatro cachorros clonados pela empresa PerPETuate a partir do DNA do Conan, seu enorme mastim ingl\u00eas morto em 2017.<\/p>\n A outra vis\u00e3o em disputa do aceleracionismo seria aquela mais \u00e0 esquerda, adotada por Fisher a partir de 2010, onde ela afirma que ser aceleracionista \u00e9, seguindo a m\u00e1xima de Bertold Brecht, \u201cn\u00e3o come\u00e7ar das coisas boas e velhas, mas das coisas novas e ruins\u201d. Um \u201crecuar para a frente\u201d, mesmo que \u201catrav\u00e9s da merda do capital\u201d, para adotar uma postura n\u00e3o contr\u00e1ria \u00e0 tecnologia ou neoludista, como \u00e0s vezes ecoa em certa parte da esquerda, mas sim uma que possa avaliar \u201cque tipo de inova\u00e7\u00f5es t\u00e9cnicas podem ser apropriadas a servi\u00e7o da emancipa\u00e7\u00e3o humana\u201d, como afirmam Marques e Gonsales no posf\u00e1cio \u00e0 Realismo Capitalista. Nessa vis\u00e3o, \u00e9 forte a presen\u00e7a do imagin\u00e1rio do fim do trabalho, de longa tradi\u00e7\u00e3o te\u00f3rica (remetendo inclusive ao primeiro livro escrito pelo j\u00e1 citado Bifo, \u201cContra Il lavoro\u201d<\/i>, publicado em 1970<\/a>) em que a intelig\u00eancia artificial, por exemplo, poderia estar \u00e0 servi\u00e7o da humanidade, reduzindo o trabalho repetitivo e deixando as pessoas com mais tempo para o lazer, os cuidados e o prazer. Este imagin\u00e1rio ut\u00f3pico-otimista est\u00e1 presente em obras como \u201cP\u00f3s-Capitalismo: um guia para o nosso futuro<\/a>\u201d, de Paul Mason (2017), publicado (e fora de cat\u00e1logo) no Brasil pela Cia das Letras, e \u201cComunismo de Luxo Totalmente Automatizado<\/a>\u201d, de Aaron Bastani, lan\u00e7ado em 2022 pela Autonomia Liter\u00e1ria.<\/p>\n O texto \u201cManifesto por uma pol\u00edtica aceleracionista\u201d, de Nick Srnicek e Alex Willians, \u00e9 central nessa vis\u00e3o, pois sintetiza uma disputa de imagin\u00e1rio de futuro \u00e0 esquerda, p\u00f3s-capitalista, para tamb\u00e9m desnaturalizar a ideia do realismo capitalista de Mark Fisher em que o capitalismo virou o \u201cpadr\u00e3o\u201d com o qual nenhuma outra forma pol\u00edtica estrangeira pode disputar. Como escrevem Srnicek e Willians, \u201co que o aceleracionismo promove \u00e9 um futuro mais moderno; uma modernidade alternativa que o neoliberalismo \u00e9 intrinsecamente incapaz de gerar\u201d. Ainda que esse futuro p\u00f3s-capitalista seja uma inc\u00f3gnita, \u00e9 necess\u00e1rio tentar imagin\u00e1-lo para que se consiga mobilizar coletivamente uma renova\u00e7\u00e3o pol\u00edtica, econ\u00f4mica e social na esfera do desejo. Algo que, hoje, a extrema-direita consegue fazer muito bem ao se apropriar do discurso \u201canti-sistema\u201d ultraliberal e neorreacion\u00e1rio, idealizado por figuras como Land.<\/p>\n Aqui entra o conceito elaborado pelo CCRU de hipersti\u00e7\u00e3o<\/i>, que fala da necessidade de inventar futuros ficcionais para que eles possam se tornar reais. Para Fisher, seria necess\u00e1rio pensar uma pr\u00e1tica hipersticional comunista que, por sua vez, tivesse algo de pragm\u00e1tico, para que n\u00e3o caia na utopia vazia que nos deixa na posi\u00e7\u00e3o c\u00f4moda de estar com as m\u00e3os limpas, mas in\u00fateis – e derrotadas. No campo da disputa de imagin\u00e1rios tecnol\u00f3gicos, ainda que n\u00e3o associados ao aceleracionismo, o resgate da hist\u00f3ria do Cybersin, por Evgeny Morozov em \u201cThe Santiago Boys\u201d<\/a>, entraria nessa linha, ao relembrar os erros da tentativa de constru\u00e7\u00e3o de um sistema t\u00e9cnico que ligasse dezenas de f\u00e1bricas no Chile de Salvador Allende nos anos 1970 [a principal refer\u00eancia aqui \u00e9 \u201cCybernetic Revolutionaries: Technology and Politics in Allende\u2019s Chile<\/a>\u201d, de \u00c9den Medina]. Poder\u00edamos incluir aqui tamb\u00e9m o Cooperativismo de Plataforma<\/a> e a sua potente ideia da posse das plataformas ser distribu\u00edda de forma coletiva entre seus cooperados, e tamb\u00e9m o \u201cOr\u00e1culo de Tecnologias Transfeministas<\/a>\u201d, criado pela Coding Rights (por Joana Varon e Sasha Constanza-Chok, com ilustra\u00e7\u00f5es de Clarote), um projeto que fornece ferramentas para permitir um brainstorming coletivo sobre imagin\u00e1rios alternativos, mais inclusivos e diversos, em torno das tecnologias.<\/p>\n O texto abaixo, produzido em 2013 (quatro anos antes da morte de Fisher), se apresenta n\u00e3o como um programa de a\u00e7\u00f5es do aceleracionismo, tal qual o j\u00e1 citado \u201cManifesto por uma pol\u00edtica aceleracionista\u201d, mas como uma an\u00e1lise pol\u00edtica da cultura – a cultura musical, como Fisher costumava gostar de trazer, mas tamb\u00e9m a comportamental. A partir da cr\u00edtica musical e cultural de Ellen Wilis, Fisher analisa como a direita neoliberal individualizou os desejos coletivos que a contracultura abriu nos anos 1960 para, ent\u00e3o, reivindicar esse novo terreno – e a partir da\u00ed, cooptar a contracultura e reduzir seus ideias libert\u00e1rios a \u201crel\u00edquias est\u00e9ticas\u201d destitu\u00eddas de sua radicalidade pol\u00edtica inicial.<\/p>\n Nesse ponto, a esquerda dos final da d\u00e9cada de 1990 e do in\u00edcio dos 2000, algo perdida ap\u00f3s o altermundismo e a prolifera\u00e7\u00e3o massiva da internet e das tecnologias digitais, passa a ser at\u00e9 mesmo anti-aceleracionista: \u201c\u00e9 reduzida a defender, sem compet\u00eancia, rel\u00edquias na forma de compromissos antigos (a social-democracia, o New Deal) ou a extrair um gozo t\u00edbio de seu pr\u00f3prio fracasso em superar o capitalismo\u201d, como Fisher escreve. Citando Wendy Brown, ele afirma que esta esquerda passa a buscar ref\u00fagio no familiar e no tradicional sem qualquer impulso para a frente ou orienta\u00e7\u00e3o pr\u00f3pria, um tipo de melancolia que contribui para o fracasso da cultura popular em gerar sonhos – inclusive est\u00e9ticos – novos<\/i>, que avancem radicalmente na dire\u00e7\u00e3o de um \u201coutro\u201d ainda n\u00e3o existente. Da\u00ed vem a sugest\u00e3o do aceleracionismo de Fisher em refor\u00e7ar a necessidade tamb\u00e9m de um imagin\u00e1rio aceleracionista<\/i> para a cultura. Ele, por\u00e9m, n\u00e3o chega a apontar diretamente elementos desse imagin\u00e1rio, embora critique em outro texto (\u201cFantasmas da Minha Vida<\/a>\u201d, lan\u00e7ado no Brasil em 2022) o\u00a0 \u201cmodo nostalgia\u201d, express\u00e3o criada por Fredric Jameson nos anos 1980 para se referir aos cada vez mais comuns pastiches p\u00f3s-modernos dos anos 1980 que se apegam \u00e0 forma e as t\u00e9cnicas do passado. O \u201cmodo nostalgia\u201d reverbera a sensa\u00e7\u00e3o, compartilhada tamb\u00e9m por Bifo em \u201cDepois do Futuro\u201d (lan\u00e7ado no Brasil em 2019 e j\u00e1 comentado por aqui<\/a>), de um \u201clento cancelamento do futuro\u201d, ou da dificuldade de imaginar futuros na arte decorrente tamb\u00e9m do afogamento pela superoferta de informa\u00e7\u00e3o libertada na rede.<\/p>\n Fisher provavelmente n\u00e3o tinha conhecimento dos avan\u00e7os transfeministas, ind\u00edgenas e afro futuristas das a\u00e7\u00f5es aut\u00f4nomas tecnol\u00f3gicas na Am\u00e9rica Latina, na \u00c1frica e na \u00c1sia. Possivelmente tamb\u00e9m n\u00e3o conhecia o kuduro angolano ou o funk brasileiro, ritmos e est\u00e9ticas musicais que, na nossa vis\u00e3o, apontam para o futuro – um futuro algo prec\u00e1rio, muito remixador e globo perif\u00e9rico [como j\u00e1 fal\u00e1vamos em 2010<\/a>!]. Um futuro que, mesmo olhando para o passado, traz elementos novos, talvez ainda n\u00e3o compreendidos o suficiente por uma classe intelectual pol\u00edtica de esquerda. Ainda assim, a an\u00e1lise de Fisher \u00e9 importante como diagn\u00f3stico e organiza\u00e7\u00e3o de caminhos poss\u00edveis para novos imagin\u00e1rios tamb\u00e9m tecnol\u00f3gicos – aceleracionistas ou n\u00e3o.<\/p>\n <\/p>\n [Leonardo Foletto e Victor Wolfenb\u00fcttel<\/strong>]<\/p>\n Tradu\u00e7\u00e3o: Victor Wolfenb\u00fcttel e Leonardo Foletto. Originalmente publicado no e-flux #46, junho de 2013<\/a><\/em><\/p>\n Vivemos um momento de profunda desacelera\u00e7\u00e3o cultural. As primeiras duas d\u00e9cadas deste s\u00e9culo t\u00eam sido marcadas at\u00e9 agora por um senso extraordin\u00e1rio de in\u00e9rcia, repeti\u00e7\u00e3o e retrospec\u00e7\u00e3o, estranhamente alinhado com as an\u00e1lises prof\u00e9ticas da cultura p\u00f3s-moderna que Fredric Jameson come\u00e7ou a desenvolver na d\u00e9cada de 1980. Sintonize o r\u00e1dio em uma esta\u00e7\u00e3o que toque as m\u00fasicas mais contempor\u00e2neas, e voc\u00ea n\u00e3o encontrar\u00e1 nada que n\u00e3o pudesse ter ouvido na d\u00e9cada de 1990. A afirma\u00e7\u00e3o de Jameson de que o p\u00f3s-modernismo era a l\u00f3gica cultural do capitalismo tardio representa agora um press\u00e1gio amea\u00e7ador do (n\u00e3o) futuro da produ\u00e7\u00e3o cultural capitalista: tanto pol\u00edtica como esteticamente, parece que agora s\u00f3 podemos esperar mais do mesmo, para sempre.<\/p>\n Pelo menos por enquanto, parece que a crise financeira de 2008 fortaleceu o poder do capital. Os programas de austeridade implementados com tanta agilidade na sequ\u00eancia da crise viram uma intensifica\u00e7\u00e3o \u2013 em vez de um desaparecimento ou dilui\u00e7\u00e3o \u2013 do neoliberalismo. A crise pode ter retirado a legitimidade do neoliberalismo, mas isso serviu apenas para mostrar que, na falta de qualquer for\u00e7a contr\u00e1ria eficaz, o poder capitalista pode agora prosseguir sem a necessidade de legitimidade. As ideias neoliberais s\u00e3o como a litania de uma religi\u00e3o cujo poder social sobreviveu \u00e0 capacidade de ter f\u00e9 dos crentes. O neoliberalismo est\u00e1 morto, mas continua. As explos\u00f5es militantes de 2011 pouco fizeram para perturbar a sensa\u00e7\u00e3o generalizada de que as \u00fanicas mudan\u00e7as ser\u00e3o para pior.<\/p>\n Women packaging the Beatles\u2019 album Rubber Soul at the Hayes Vynil Factory, England. A number of Beatles vynils bore the sentence \u201cManufactured in Hayes.\u201d<\/p><\/div>\n Para entender o que pode estar em jogo no conceito de aceleracionismo est\u00e9tico, talvez valha a pena contrastar o estado de esp\u00edrito dominante em nossos tempos com o tom afetivo de um per\u00edodo anterior. Em seu ensaio de 1979, \u201cThe Family: Love It or Leave It<\/i>\u201d (A fam\u00edlia: ame-a ou deixe-a<\/a>), a cr\u00edtica musical e cultural Ellen Willis observou que o desejo da contracultura de substituir a fam\u00edlia por um sistema de cria\u00e7\u00e3o coletiva dos filhos implicaria \u201cuma revolu\u00e7\u00e3o social e ps\u00edquica de magnitude quase inconceb\u00edvel [1<\/em>]\u201d. \u00c9 muito dif\u00edcil, em nossos tempos de esvaziamento, recriar a confian\u00e7a da contracultura de que tal \u201crevolu\u00e7\u00e3o social e ps\u00edquica\u201d n\u00e3o s\u00f3 poderia acontecer, como j\u00e1 estaria em processo de desenvolvimento. A vida de Willis, assim como a de muitos da sua gera\u00e7\u00e3o, foi moldada pelo embalo dessas esperan\u00e7as e por depois v\u00ea-las murchar gradualmente \u00e0 medida que as for\u00e7as de rea\u00e7\u00e3o recuperavam o controle da hist\u00f3ria. Provavelmente, n\u00e3o h\u00e1 melhor relato do recuo da contracultura dos anos 60, da ambi\u00e7\u00e3o prometeica para a autodestrui\u00e7\u00e3o, a resigna\u00e7\u00e3o e o pragmatismo, do que a cole\u00e7\u00e3o de ensaios de Willis, \u201cBeginning To See The Light<\/i><\/a>\u201d<\/i>. A contracultura dos anos 60 pode ter sido reduzida a uma s\u00e9rie de rel\u00edquias est\u00e9ticas \u201cic\u00f4nicas\u201d \u2013 demasiado familiares, de circula\u00e7\u00e3o intermin\u00e1vel, des-historicizadas \u2013, despojadas de conte\u00fado pol\u00edtico, mas o trabalho de Willis permanece como uma dolorosa lembran\u00e7a do fracasso da esquerda. Como Willis deixa claro na introdu\u00e7\u00e3o do livro, ela se via frequentemente em desacordo com o que considerava o autoritarismo e o estatismo do socialismo dominante. Embora a m\u00fasica que ela ouvisse na \u00e9poca falasse de liberdade, o socialismo parecia ter mais a ver com centraliza\u00e7\u00e3o e controle estatal. A hist\u00f3ria de como a contracultura foi cooptada pela direita neoliberal nos \u00e9 familiar agora, mas o outro lado desta narrativa fala sobre a incapacidade da esquerda de se transformar face \u00e0s novas formas de desejo \u00e0s quais a contracultura deu voz.<\/p>\n A ideia de que os “anos 60 conduziram ao neoliberalismo” se complica se damos \u00eanfase no desafio \u00e0s estruturas familiares. Porque ent\u00e3o fica claro que a direita n\u00e3o absorveu correntes e energias contraculturais sem deixar vest\u00edgios. A convers\u00e3o da rebeli\u00e3o contracultural em prazeres de consumo capitalistas necessariamente ignora a ambi\u00e7\u00e3o da contracultura de acabar com as institui\u00e7\u00f5es da sociedade burguesa. Uma ambi\u00e7\u00e3o que, da perspectiva do novo \u201crealismo\u201d que a direita imp\u00f4s com sucesso, parece ing\u00eanua e sem esperan\u00e7a.<\/p>\n A pol\u00edtica da contracultura era anticapitalista, argumenta Willis, mas isso n\u00e3o implicava em uma rejei\u00e7\u00e3o direta de tudo o que era produzido no capitalismo. O prazer e o individualismo certamente foram importantes para o que Willis caracterizava como a sua \u201cdisputa com a esquerda [2<\/em>]\u201d. Contudo, o desejo de acabar com a fam\u00edlia n\u00e3o poderia ser constru\u00eddo apenas nestes termos; tratava-se inevitavelmente tamb\u00e9m de formas novas e sem precedentes de organiza\u00e7\u00e3o coletiva (por\u00e9m n\u00e3o estatistas). A pol\u00eamica de Willis \u201ccontra as no\u00e7\u00f5es correntes da esquerda sobre o capitalismo avan\u00e7ado\u201d considerava, na melhor das hip\u00f3teses, apenas como parcialmente verdadeiras as ideias de que \u201ca economia de consumo nos torna escravos das mercadorias, que a fun\u00e7\u00e3o dos meios de comunica\u00e7\u00e3o de massa \u00e9 manipular as nossas fantasias, e que por isso atingiremos a satisfa\u00e7\u00e3o pessoal com a compra de mercadorias do sistema [3<\/em>]\u201d. A cultura popular \u2013 e a m\u00fasica em particular \u2013 era um terreno de luta mais do que de dom\u00ednio do capital. A rela\u00e7\u00e3o entre formas est\u00e9ticas e pol\u00edtica era inst\u00e1vel e incipiente \u2013 a cultura n\u00e3o apenas \u201cexpressava\u201d posi\u00e7\u00f5es pol\u00edticas j\u00e1 existentes, mas tamb\u00e9m antecipava uma pol\u00edtica por vir (que tamb\u00e9m foi, muitas vezes, uma pol\u00edtica que nunca de fato chegou).<\/p>\n Ellen Willis reading \u201fNo More Fun and Games,\u201d a Journal of Female Liberation. Courtesy of the Ellen Willis\u2019 family.<\/p><\/div>\n O papel da m\u00fasica como um dos motores da acelera\u00e7\u00e3o cultural do final dos anos 50 at\u00e9 o ano 2000 teve a ver com a sua capacidade de sintetizar diversas energias, tropos <\/i>[4<\/em>] e formas culturais, tanto quanto qualquer outra caracter\u00edstica espec\u00edfica da pr\u00f3pria m\u00fasica. A partir do final dos anos 50, a m\u00fasica tornou-se a zona onde as drogas, as novas tecnologias, as fic\u00e7\u00f5es (cient\u00edficas) e os movimentos sociais podiam combinar-se para produzir sonhos \u2013 vislumbres sugestivos de mundos radicalmente diferentes da ordem social existente. (A ascens\u00e3o do \u201crealismo\u201d de direita implicou n\u00e3o apenas a destrui\u00e7\u00e3o de formas particulares de sonho, mas a pr\u00f3pria supress\u00e3o da fun\u00e7\u00e3o de sonhar na cultura popular.) Por um momento, bem no cora\u00e7\u00e3o da m\u00fasica comercial, abriu-se um espa\u00e7o de autonomia para os m\u00fasicos explorarem e experimentarem. Neste per\u00edodo, a m\u00fasica popular foi definida por uma tens\u00e3o entre os desejos e imperativos (geralmente) incompat\u00edveis dos artistas, do p\u00fablico e do capital. Sua convers\u00e3o em mercadoria n\u00e3o era o ponto em que esta tens\u00e3o seria sempre e inevitavelmente resolvida em favor do capital; em vez disso, as pr\u00f3prias mercadorias poderiam ser os meios pelos quais correntes rebeldes poderiam se propagar: \u201cOs meios de comunica\u00e7\u00e3o de massa ajudaram a espalhar a rebeli\u00e3o, e o sistema gentilmente comercializou produtos que a encorajaram, pela simples raz\u00e3o de que havia dinheiro a ser ganho com os rebeldes que tamb\u00e9m eram consumidores. Num certo n\u00edvel, a revolta dos anos 60 foi uma ilustra\u00e7\u00e3o impressionante da observa\u00e7\u00e3o de L\u00eanin de que \u201co capitalista te vender\u00e1 a corda para enforc\u00e1-lo [5<\/em>]\u201d.<\/p>\n Isso agora parece bastante otimista, uma vez que, como todos n\u00f3s sabemos, n\u00e3o foi o capitalista quem acabou enforcado. O marketing da rebeli\u00e3o acabou sendo mais sobre o triunfo do marketing do que da rebeli\u00e3o. O golpe da direita neoliberal consistiu em individualizar os desejos que a contracultura abriu, e, em seguida, reivindicar o novo terreno libidinal. A ascens\u00e3o da nova direita foi baseada no rep\u00fadio \u00e0 ideia de que a vida, o trabalho e a reprodu\u00e7\u00e3o poderiam ser transformados coletivamente <\/i>\u2013 agora, o capital seria o \u00fanico agente de transforma\u00e7\u00e3o. O recuo de qualquer contesta\u00e7\u00e3o s\u00e9ria \u00e0 fam\u00edlia \u00e9 um lembrete de que o clima de rea\u00e7\u00e3o que cresceu a partir da d\u00e9cada de 1980 n\u00e3o foi apenas sobre a restaura\u00e7\u00e3o de algum poder econ\u00f4mico estritamente definido: foi tamb\u00e9m sobre o retorno \u2013 no n\u00edvel da ideologia, n\u00e3o necessariamente do fato emp\u00edrico \u2013 de institui\u00e7\u00f5es sociais e culturais que pareciam poss\u00edveis de serem eliminadas na d\u00e9cada de 1960.<\/p>\n No seu ensaio de 1979, Willis insiste que o regresso do familiarismo foi central para a ascens\u00e3o da nova direita, que estava prestes a ser confirmada, em grande estilo, com a elei\u00e7\u00e3o de Ronald Reagan nos EUA e de Margaret Thatcher no Reino Unido. \u201cSe existe uma tend\u00eancia cultural que definiu os anos 70\u201d, escreve Willis, \u201cfoi o ressurgimento agressivo do chauvinismo familiar [6<\/em>]\u201d. Para Willis, talvez o sinal mais perturbador deste novo conservadorismo tenha sido a aceita\u00e7\u00e3o da fam\u00edlia por partes da esquerda [7] \u2013 uma dire\u00e7\u00e3o refor\u00e7ada pela tend\u00eancia dos antigos adeptos da contracultura (inclusive ela pr\u00f3pria) de (re)tornar-se \u00e0 fam\u00edlia, devido a um misto de exaust\u00e3o e derrotismo. \u201cLutei, fiz minha parte, cansei de ser marginal. Eu quero entrar!\u201d [8<\/em>]. A impaci\u00eancia \u2013 o desejo de uma mudan\u00e7a s\u00fabita, total e irrevog\u00e1vel; do fim da fam\u00edlia dentro do tempo de uma gera\u00e7\u00e3o \u2013 deu lugar a uma resigna\u00e7\u00e3o amarga quando isso (inevitavelmente) n\u00e3o aconteceu.<\/p>\n Cover of The Alien Critic # 7, Nov 1973. Cover artist: Steven Fabian.<\/p><\/div>\n Agora podemos nos voltar para a controversa quest\u00e3o do aceleracionismo. Quero situar o aceleracionismo n\u00e3o como uma forma her\u00e9tica de marxismo, mas como uma tentativa de convergir, intensificar e politizar as dimens\u00f5es mais desafiadoras e explorat\u00f3rias da cultura popular. O desejo de Willis de \u201cuma revolu\u00e7\u00e3o social e ps\u00edquica de magnitude quase inconceb\u00edvel\u201d e a sua \u201cdisputa com a esquerda\u201d sobre o desejo e a liberdade podem oferecer uma maneira diferente de pensar o que est\u00e1 em jogo neste conceito t\u00e3o mal compreendido. Uma certa vis\u00e3o do aceleracionismo, talvez agora dominante, afirma que a posi\u00e7\u00e3o equivale a uma torcida pela intensifica\u00e7\u00e3o de qualquer processo capitalista, especialmente o \u201cpior\u201d, na esperan\u00e7a de que isso leve o sistema a um ponto de crise terminal. (Um exemplo disto seria a ideia de que votar em Reagan e Thatcher nos anos 80 foi a estrat\u00e9gia revolucion\u00e1ria mais eficaz, uma vez que suas pol\u00edticas supostamente levariam \u00e0 insurrei\u00e7\u00e3o). No entanto, esta formula\u00e7\u00e3o \u00e9 question\u00e1vel, na medida em que assume aquilo que o aceleracionismo rejeita \u2013 a ideia de que tudo o que \u00e9 produzido \u201csob\u201d o capitalismo pertence integralmente ao capitalismo. Em contraste, o aceleracionismo sustenta que existem desejos e processos que o capitalismo d\u00e1 origem e dos quais se alimenta, mas que n\u00e3o consegue conter. \u00c9 a acelera\u00e7\u00e3o destes processos que empurrar\u00e1 o capitalismo para al\u00e9m dos seus limites. O aceleracionismo \u00e9 tamb\u00e9m a convic\u00e7\u00e3o de que o mundo desejado pela esquerda \u00e9 p\u00f3s-capitalista \u2013 que n\u00e3o h\u00e1 possibilidade de retorno a um mundo pr\u00e9-capitalista e que n\u00e3o h\u00e1 desejo s\u00e9rio de regressar a este mundo, mesmo que pud\u00e9ssemos.<\/p>\n A artimanha aceleracionista depende de uma certa compreens\u00e3o do capitalismo, melhor articulada por Deleuze e Guattari em Anti-\u00c9dipo (um texto que, n\u00e3o por coincid\u00eancia, surgiu na esteira da contracultura). Na famosa formula\u00e7\u00e3o do Anti-\u00c9dipo, o capitalismo \u00e9 definido pela sua tend\u00eancia a descodificar\/desterritorializar ao mesmo tempo que recodifica\/reterritorializa. Por um lado, o capitalismo desmantela todas as estruturas, normas e modelos sociais e culturais existentes do sagrado; por outro, revive in\u00fameras forma\u00e7\u00f5es aparentemente at\u00e1vicas (identidades tribais, religi\u00f5es, poder din\u00e1stico\u2026):<\/p>\n “A axiom\u00e1tica social das sociedades modernas est\u00e1 contida entre dois polos, e n\u00e3o para de oscilar de um polo a outro. Tais sociedades, nascidas da descodifica\u00e7\u00e3o e da desterritorializa\u00e7\u00e3o, sobre as ru\u00ednas da m\u00e1quina desp\u00f3tica, est\u00e3o contidas entre o Urstaat, que bem gostariam de ressuscitar como unidade sobrecodificante e reterritorializante, e os fluxos desencadeados que as levam em dire\u00e7\u00e3o a um limiar absoluto. Elas recodificam com toda a for\u00e7a, a golpes de ditadura mundial, de ditadores locais e de pol\u00edcia toda-poderosa, enquanto descodificam ou deixam descodificar as quantidades fluentes de seus capitais e de suas popula\u00e7\u00f5es. Elas est\u00e3o contidas entre duas dire\u00e7\u00f5es: arca\u00edsmo e futurismo, neoarca\u00edsmo e ex-futurismo, paranoia e esquizofrenia [9<\/em>]\u201d.<\/p><\/blockquote>\n Esta descri\u00e7\u00e3o capta estranhamente a forma como a cultura capitalista se desenvolveu a partir da d\u00e9cada de 1970, com a desregulamenta\u00e7\u00e3o neoliberal amoral almejando um projeto de dessacraliza\u00e7\u00e3o e mercantiliza\u00e7\u00e3o sem limites, complementada por um neoconservadorismo explicitamente moralizante, que procura reavivar e refor\u00e7ar tradi\u00e7\u00f5es e institui\u00e7\u00f5es mais antigas. No n\u00edvel do conte\u00fado proposto, esses futurismos e neoarca\u00edsmos se contradizem, mas e da\u00ed?<\/p>\n “Nunca uma discord\u00e2ncia ou um disfuncionamento anunciaram a morte de uma m\u00e1quina social que, ao contr\u00e1rio, se alimenta habitualmente das contradi\u00e7\u00f5es que provoca, das crises que suscita, das ang\u00fastias que engendra e das opera\u00e7\u00f5es infernais que a revigoram: o capitalismo aprendeu isso e deixou de duvidar de si, e at\u00e9 os socialistas deixavam de acreditar na possibilidade da sua morte natural por desgaste. As contradi\u00e7\u00f5es nunca mataram ningu\u00e9m [10<\/em>]”.<\/p><\/blockquote>\n Se o capitalismo \u00e9 definido <\/i>como a tens\u00e3o entre desterritorializa\u00e7\u00e3o e reterritorializa\u00e7\u00e3o, entende-se ent\u00e3o que uma forma (talvez a \u00fanica) de superar o capitalismo seja remover os amortecedores da reterritorializa\u00e7\u00e3o. Da\u00ed a not\u00f3ria passagem do Anti-\u00c9dipo<\/i>, que poderia servir de ep\u00edgrafe ao aceleracionismo:<\/p>\n “Ent\u00e3o, qual solu\u00e7\u00e3o, qual via revolucion\u00e1ria? (…) Retirar-se do mercado mundial, como Samir Amin aconselha aos pa\u00edses do Terceiro Mundo, numa curiosa renova\u00e7\u00e3o da \u201csolu\u00e7\u00e3o econ\u00f4mica\u201d fascista? Ou ir no sentido contr\u00e1rio, isto \u00e9, ir ainda mais longe no movimento do mercado, da descodifica\u00e7\u00e3o e da desterritorializa\u00e7\u00e3o? Pois talvez os fluxos ainda n\u00e3o estejam suficientemente desterritorializados e suficientemente descodificados, do ponto de vista de uma teoria e de uma pr\u00e1tica dos fluxos com alto teor esquizofr\u00eanico. N\u00e3o retirar-se do processo, mas ir mais longe, \u201cacelerar o processo\u201d, como dizia Nietzsche: na verdade, a esse respeito, n\u00f3s ainda n\u00e3o vimos nada [11<\/em>]”.<\/p><\/blockquote>\n A passagem \u00e9 enigm\u00e1tica e provocadora \u2013 o que Deleuze e Guattari querem dizer ao associar o \u201cmovimento do mercado\u201d com \u201cdescodifica\u00e7\u00e3o e desterritorializa\u00e7\u00e3o\u201d? Infelizmente eles n\u00e3o explicam, o que tornou f\u00e1cil para os marxistas ortodoxos enquadrarem esta passagem como um exemplo cl\u00e1ssico de como 1968 conduziu \u00e0 hegemonia neoliberal \u2013 mais uma capitula\u00e7\u00e3o da esquerda \u00e0 l\u00f3gica da nova direita. Esta leitura foi facilitada pela utiliza\u00e7\u00e3o desta passagem na d\u00e9cada de 1990 por Nick Land para fins explicitamente antimarxistas. Mas e se lermos esta se\u00e7\u00e3o do Anti-\u00c9dipo n\u00e3o como uma retrata\u00e7\u00e3o do marxismo, mas como um novo modelo para o que o marxismo poderia ser? \u00c9 poss\u00edvel que o que Deleuze e Guattari delineavam aqui fosse o tipo de pol\u00edtica que Ellen Willis defendia: uma pol\u00edtica que fosse hostil ao capital, mas viva ao desejo; uma pol\u00edtica que rejeitasse todas as formas do velho mundo em favor de uma \u201cnova terra\u201d; isto \u00e9, uma pol\u00edtica que exigisse \u201cuma revolu\u00e7\u00e3o social e ps\u00edquica de magnitude quase inconceb\u00edvel\u201d?<\/p>\n Um ponto de converg\u00eancia entre Willis e Deleuze e Guattari foi a sua cren\u00e7a comum de que a fam\u00edlia estava no centro da pol\u00edtica de rea\u00e7\u00e3o. Para Deleuze e Guattari, talvez seja a fam\u00edlia, mais do que qualquer outra institui\u00e7\u00e3o, a principal ag\u00eancia da reterritorializa\u00e7\u00e3o capitalista: a fam\u00edlia como estrutura transcendental (\u201cmam\u00e3e-papai-eu\u201d) assegura provisoriamente a identidade em meio e contra as tend\u00eancias l\u00edquidas do capital, sua propens\u00e3o a dissolver todas as certezas preexistentes. \u00c9 por esta raz\u00e3o, sem d\u00favida, que alguns esquerdistas recorrem \u00e0 fam\u00edlia como um ant\u00eddoto e escape ao colapso capitalista \u2013 mas isto \u00e9 ignorar a forma como o capitalismo depende da fun\u00e7\u00e3o reterritorializadora da fam\u00edlia.<\/p>\n N\u00e3o \u00e9 por acaso que a infame afirma\u00e7\u00e3o de Margaret Thatcher de que \u201cn\u00e3o existe sociedade, apenas indiv\u00edduos\u201d teve de ser complementada por \u201c\u2026 e as suas fam\u00edlias\u201d. \u00c9 tamb\u00e9m significativo que em Deleuze e Guattari, tal como noutros te\u00f3ricos anti psiqui\u00e1tricos como R. D. Laing e David Cooper, o ataque \u00e0 fam\u00edlia estivesse associado a um ataque \u00e0s formas dominantes de psiquiatria e psicoterapia. A cr\u00edtica de Deleuze e Guattari \u00e0 psican\u00e1lise baseia-se na maneira como ela isola o indiv\u00edduo do campo social mais amplo, privatizando as origens do sofrimento no \u201cteatro\u201d edipiano das rela\u00e7\u00f5es familiares. Eles argumentam que a psican\u00e1lise, em vez de analisar a forma como o capitalismo realiza esta privatiza\u00e7\u00e3o ps\u00edquica, apenas a repete. Tamb\u00e9m \u00e9 not\u00e1vel que as lutas antipsiqui\u00e1tricas retrocederam tanto quanto as lutas pela fam\u00edlia: para que o sistema de realidade da nova direita fosse naturalizado, era necess\u00e1rio que essas lutas, indissoci\u00e1veis da contracultura, fossem n\u00e3o apenas derrotadas, mas sim que desaparecessem.<\/p>\n Vale a pena parar aqui para refletir sobre o qu\u00e3o longe a esquerda est\u00e1 de defender com confian\u00e7a o tipo de revolu\u00e7\u00e3o que Deleuze e Guattari e Ellen Willis esperavam. A an\u00e1lise de Wendy Brown sobre a \u201cmelancolia de esquerda\u201d no final da d\u00e9cada de 1990 ainda capta dolorosamente (e de forma embara\u00e7osa) os impasses libidinais e ideol\u00f3gicos em que a esquerda muitas vezes se v\u00ea presa. Na verdade, Brown descreve o que \u00e9 uma esquerda anti-aceleracionista: uma esquerda que, sem qualquer impulso para a frente ou orienta\u00e7\u00e3o pr\u00f3pria, \u00e9 reduzida a defender, sem compet\u00eancia, rel\u00edquias na forma de compromissos antigos (a social-democracia, o New Deal) ou a extrair um gozo t\u00edbio de seu pr\u00f3prio fracasso em superar o capitalismo. Muito longe de estar do lado do inimagin\u00e1vel e do in\u00e9dito, esta \u00e9 uma esquerda que se refugia no familiar e no tradicional. \u201cO que surge\u201d, escreve Brown,<\/p>\n \u201c\u00e9 uma esquerda que opera sem uma cr\u00edtica profunda e radical do status quo ou sem uma alternativa convincente \u00e0 ordem existente das coisas. Mas talvez ainda mais preocupante, \u00e9 uma esquerda que se tornou mais apegada \u00e0 sua impossibilidade do que \u00e0 sua potencial fecundidade; uma esquerda que se sente mais \u00e0 vontade vivendo n\u00e3o na esperan\u00e7a, mas na sua pr\u00f3pria marginalidade e fracasso; uma esquerda que est\u00e1 presa em uma estrutura de apego melanc\u00f3lico a um certo nicho de seu pr\u00f3prio passado morto, cujo esp\u00edrito \u00e9 fantasmag\u00f3rico, cuja estrutura de desejo \u00e9 retr\u00f3grada e punitiva [12<\/em>]\u201d.<\/p><\/blockquote>\n Foi precisamente esta tend\u00eancia esquerdista para o conservadorismo, a defensiva e a nostalgia que permitiram que Nick Land provocasse a esquerda dos anos 90 com o Anti-\u00c9dipo, argumentando que a \u201cdestrui\u00e7\u00e3o criativa\u201d do capital era muito mais revolucion\u00e1ria do que qualquer coisa que a esquerda fosse capaz de projetar agora.<\/p>\n Margret Thatcher supporting pro-market campaigners in Parliament Square, on the eve of polling for the common market referendum, 1975. Photo: A\/P.<\/p><\/div>\n N\u00e3o h\u00e1 d\u00favidas de que esta melancolia persistente contribuiu para o fracasso da esquerda em tomar a iniciativa ap\u00f3s a crise financeira de 2008. A crise e suas consequ\u00eancias at\u00e9 agora justificaram a vis\u00e3o de Deleuze e Guattari de que \u201cas m\u00e1quinas sociais t\u00eam o h\u00e1bito de se alimentar\u2026 das crises que provocam.\u201d O dom\u00ednio cont\u00ednuo do capital pode ter tanto a ver com o fracasso da cultura popular em gerar novos sonhos como com a qualidade inercial das posi\u00e7\u00f5es e estrat\u00e9gias pol\u00edticas oficiais. Onde a cultura popular de vanguarda do s\u00e9culo XX permitiu todos os tipos de ensaios experimentais daquilo que Hardt e Negri chamam de \u201cmonstruoso, violento e traum\u00e1tico\u2026 processo revolucion\u00e1rio de aboli\u00e7\u00e3o da identidade [13<\/em>]\u201d, os recursos culturais para este tipo de desmantelamento do eu est\u00e3o agora um tanto desnudados. Michael Hardt disse que \u201co conte\u00fado positivo do comunismo, que corresponde \u00e0 aboli\u00e7\u00e3o da propriedade privada, \u00e9 a produ\u00e7\u00e3o aut\u00f4noma da humanidade \u2013 uma nova vis\u00e3o, uma nova maneira de ouvir, pensar, amar [14<\/em>]\u201d. O tipo de reconstru\u00e7\u00e3o da subjetividade e das categorias cognitivas que o p\u00f3s-capitalismo ir\u00e1 implicar \u00e9 tanto um projeto est\u00e9tico como algo que pode ser entregue por qualquer tipo de agente parlamentar ou estatista. Hardt refere-se \u00e0 discuss\u00e3o de Foucault sobre a frase de Marx \u201co homem produz o homem\u201d. O programa que Foucault descreve na sua explica\u00e7\u00e3o sobre esta frase (abaixo<\/i>) precisa ser recuperado pela cultura caso se almeje alguma esperan\u00e7a de alcan\u00e7ar a \u201crevolu\u00e7\u00e3o social e ps\u00edquica de magnitude quase inconceb\u00edvel\u201d com que a cultura popular uma vez sonhou:<\/p>\n \u201cO problema n\u00e3o \u00e9 recuperar a nossa identidade \u201cperdida\u201d, libertar nossa natureza aprisionada, nossa verdade mais profunda; em vez disso, o problema \u00e9 avan\u00e7ar em dire\u00e7\u00e3o a algo radicalmente Outro. O centro da quest\u00e3o ainda parece estar na frase de Marx: o homem produz o homem… Para mim, o que deve ser produzido n\u00e3o \u00e9 um homem id\u00eantico a si mesmo, exatamente como a natureza o teria desenhado ou de acordo com a sua ess\u00eancia; pelo contr\u00e1rio, devemos produzir algo que ainda n\u00e3o existe e sobre o qual ainda n\u00e3o podemos saber como e nem o que ser\u00e1 [15<\/em>]\u201d.<\/p><\/blockquote>\n NOTAS<\/strong><\/p>\n [1]: Ellen Willis, Beginning To See The Light: Sex, Hope and Rock-and-Roll (Hannover and London: Wesleyan University Press, 1992), p. 158. <\/p>\n <\/p>\n <\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":" A prolifera\u00e7\u00e3o da intelig\u00eancia artificial generativa tem nos feito, nos \u00faltimos meses, redobrar o interesse por um conjunto de ideias agrupadas em torno do nome aceleracionismo. O termo tem lastro na teoria e filosofia pol\u00edtica h\u00e1 pelo menos uma d\u00e9cada. Nos \u00faltimos anos, tem ganhado repercuss\u00e3o tamb\u00e9m a partir da busca recente de empresas […]<\/p>\n","protected":false},"author":2,"featured_media":15654,"comment_status":"open","ping_status":"open","sticky":false,"template":"","format":"standard","meta":[],"categories":[359,203],"tags":[6637,6639,325,2062,6640,6635,138,6638,2228,1990],"post_folder":[],"jetpack_featured_media_url":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-content\/uploads\/2024\/05\/2013_06_2716487_10-610x396-1.jpg","_links":{"self":[{"href":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/15653"}],"collection":[{"href":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-json\/wp\/v2\/posts"}],"about":[{"href":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-json\/wp\/v2\/types\/post"}],"author":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-json\/wp\/v2\/users\/2"}],"replies":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-json\/wp\/v2\/comments?post=15653"}],"version-history":[{"count":6,"href":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/15653\/revisions"}],"predecessor-version":[{"id":15663,"href":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/15653\/revisions\/15663"}],"wp:featuredmedia":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-json\/wp\/v2\/media\/15654"}],"wp:attachment":[{"href":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-json\/wp\/v2\/media?parent=15653"}],"wp:term":[{"taxonomy":"category","embeddable":true,"href":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-json\/wp\/v2\/categories?post=15653"},{"taxonomy":"post_tag","embeddable":true,"href":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-json\/wp\/v2\/tags?post=15653"},{"taxonomy":"post_folder","embeddable":true,"href":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-json\/wp\/v2\/post_folder?post=15653"}],"curies":[{"name":"wp","href":"https:\/\/api.w.org\/{rel}","templated":true}]}}\u201cUma revolu\u00e7\u00e3o social e ps\u00edquica de magnitude quase inconceb\u00edvel\u201d: os interrompidos sonhos aceleracionistas da cultura popular\u00a0<\/b><\/h3>\n
Mark Fisher<\/em><\/h4>\n
\n[2]: No original, \u201cquarrel with the left<\/em>\u201d. Ellen Willis, Beginning To See The Light: Sex, Hope and Rock-and-Roll (Hannover and London: Wesleyan University Press, 1992), p.16
\n[3]: Ellen Willis, Beginning To See The Light: Sex, Hope and Rock-and-Roll. Hannover and London: Wesleyan University Press, 1992.
\n[4]: No original, “tropes<\/em>“, que significa literalmente tropo<\/em>, mas que possui proximidade de sentido \u00e0 met\u00e1fora.
\n[5]: Ellen Willis, Beginning To See The Light: Sex, Hope and Rock-and-Roll. Hannover and London: Wesleyan University Press, 1992, p.16.
\n[6]: Ibid., 150.
\n[7]: \u201cOn the left, family chauvinism often takes the form of nostalgic declarations that the family, with its admitted faults, has been vitiated by modern capitalism, which is much worse (at least the family is based on personal relations rather than soulless cash, etc., etc.).\u201d Ibid., 152.
\n[8]: Ibid., 161.
\n[9]: Gilles Deleuze e F\u00e9lix Guattari, O Anti-\u00c9dipo: Capitalismo e Esquizofrenia 1. Trad. Luiz B. L. Orlandi. S\u00e3o Paulo; Editora 34, 2010. p.345.
\n[10]: Ibid., p. 202.
\n[11]: Ibid., p.318
\n[12]: Wendy Brown, \u201cResisting Left Melancholy,\u201d Boundary 2 26:3 (1999): 19\u201327.
\n[13]: \u201cPara muitas pessoas, de fato, a fam\u00edlia \u00e9 o principal se n\u00e3o exclusivo local de experiencia social coletiva, acordos de trabalho cooperativo, carinho e intimidade. Baseia-se nos commons, mas ao mesmo tempo o corrompe, impondo uma s\u00e9rie de hierarquias, restri\u00e7\u00f5es, exclus\u00f5es e distor\u00e7\u00f5es.\u201d Tradu\u00e7\u00e3o. de Clarice Pelotas. Antonio Negri e Michael Hardt, Commonwealth. Cambridge, MA: Belknap Press, 2009. p 339.
\n[14]: Michel Hardt, \u201cThe Common in Communism,\u201d in eds. Costas Douzinas and Slavoj \u017di\u017eek, The Idea of Communism. New York: Verso, 2010. p.141.
\n[15]: Michel Foucault, Observa\u00e7\u00f5es sobre Marx (Nova York: Semiotext(e), 1991), 121.<\/p>\n