{"id":15573,"date":"2024-02-20T20:03:56","date_gmt":"2024-02-20T23:03:56","guid":{"rendered":"https:\/\/baixacultura.org\/?p=15573"},"modified":"2024-02-21T09:40:50","modified_gmt":"2024-02-21T12:40:50","slug":"um-manifesto-hacker-20-anos-depois","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/baixacultura.org\/2024\/02\/20\/um-manifesto-hacker-20-anos-depois\/","title":{"rendered":"Um Manifesto Hacker – 20 anos depois"},"content":{"rendered":"

N\u00e3o \u00e9 f\u00e1cil a tarefa de apresentar Um Manifesto Hacker<\/a>, de McKenzie Wark, ao p\u00fablico brasileiro hoje. A natureza ensa\u00edstica, provocativa e ir\u00f4nica da obra nos p\u00f5e um desafio: como falar de um presente sem estragar a surpresa? Outra quest\u00e3o \u00e9 o tempo: o livro foi lan\u00e7ado pela primeira vez h\u00e1 vinte anos. Como contextualizar a obra? O papel da informa\u00e7\u00e3o e das tecnologias na sociedade contempor\u00e2nea est\u00e1 ainda mais vis\u00edvel do que h\u00e1 vinte anos, o que faz com que a obra continue atual \u2013 como a pr\u00f3pria autora afirma em sua introdu\u00e7\u00e3o \u00e0 edi\u00e7\u00e3o brasileira. Se, por um lado, n\u00e3o vamos estragar as surpresas \u2013 elas s\u00e3o deliciosas \u2013 por outro, n\u00e3o espere uma apresenta\u00e7\u00e3o tradicional. Ela seria o exato oposto do que o pr\u00f3prio livro tentou ser.<\/p>\n

O que podemos contextualizar \u00e9 que, embora a tradu\u00e7\u00e3o apenas saia agora, sua recep\u00e7\u00e3o em territ\u00f3rio brasileiro aconteceu mesmo h\u00e1 quase vinte anos. De forma um tanto err\u00e1tica, quase underground, o livro foi lido e discutido em meios acad\u00eamicos e ativistas, sobretudo onde havia pessoas interessadas em torno da grande \u00e1rea que se convencionou chamar cibercultura \u2013 nome que hoje, com a onipresen\u00e7a do digital em nossas vidas, parece ter sido abandonado.<\/p>\n

Dentro dessa \u00e1rea, hackers afeitos tamb\u00e9m aos estudos filos\u00f3ficos de inspira\u00e7\u00e3o deleuziana sobre a t\u00e9cnica receberam com entusiasmo estes escritos de McKenzie Wark; outros, especialmente te\u00f3ricos da comunica\u00e7\u00e3o e da sociologia, leram com aten\u00e7\u00e3o as teses do livro e notaram as semelhan\u00e7as com \u201cA Sociedade do Espet\u00e1culo\u201d, de Guy Debord, e \u201cManifesto Comunista\u201d, de Karl Marx e Friedrich Engels, evidentes na forma afor\u00edstica do texto mas nem t\u00e3o clara no conte\u00fado \u2013 embora voc\u00ea ver\u00e1 muito de ambos autores nas p\u00e1ginas do livro.<\/p>\n

Um Manifesto prop\u00f5e a vis\u00e3o de que existem tr\u00eas classes dominantes e suas respectivas classes dominadas. Cada uma dessas classes dominantes deriva seu poder da propriedade privada de uma categoria de meios de produ\u00e7\u00e3o. S\u00e3o elas a classe pastoralista, que det\u00e9m terras; a classe capitalista, que possui capital; e a classe vetorialista, propriet\u00e1ria da informa\u00e7\u00e3o. E suas decorrentes classes dominadas, respectivamente a classe camponesa, a classe trabalhadora e a classe hacker. Apesar de haver uma sequ\u00eancia hist\u00f3rica na emerg\u00eancia de cada uma delas (primeiro veio a pastoralista, depois a capitalista, e agora a vetorialista), a autora afirma que as tr\u00eas classes coexistem no presente.
\nEste \u00e9 um trechinho do pref\u00e1cio (
\u00edntegra<\/a>) que eu, Victor Barcellos (tamb\u00e9m tradutor da obra) e Rafael Grohmann fizemos para a \u201cUm Manifesto Hacker\u201d, segundo livro publicado no Brasil de McKenzie Wark, ambos pela dupla de editoras SobInfluencia e Funilaria – fizemos uma breve resenha do primeiro, \u201cO Capital Est\u00e1 Morto\u201d, em fevereiro de 2023<\/a>. \u201cUm Manifesto Hacker\u201d est\u00e1 \u00e0 venda no site das duas editoras (Funilaria<\/a> \/ SobInfluencia<\/a>) e tamb\u00e9m nas melhores livrarias do pa\u00eds. Republicamos<\/a> logo abaixo o pref\u00e1cio \u00e0 edi\u00e7\u00e3o brasileira do livro, escrito por Mckenzie, que atualiza com muita clareza e honestidade a quest\u00e3o da libera\u00e7\u00e3o da informa\u00e7\u00e3o da forma de propriedade na internet. O livro na \u00edntegra tamb\u00e9m est\u00e1 dispon\u00edvel em PDF, mas n\u00e3o espalha<\/a>.<\/p>\n

[Leonardo Foletto]<\/strong><\/p>\n

“O que para n\u00f3s era uma pr\u00e1tica de vanguarda rapidamente, e de forma independente, tornou-se um movimento social: o movimento pela informa\u00e7\u00e3o livre. \u00c0 medida que a internet se tornou uma forma de comunica\u00e7\u00e3o mais popular, todos come\u00e7aram a compartilhar. Como diz a tese 126 do livro: \u201ca informa\u00e7\u00e3o quer ser livre, mas est\u00e1 acorrentada em todos os lugares\u201d (…) Parecia que poder\u00edamos abrir a forma-mercadoria da informa\u00e7\u00e3o em favor de uma esp\u00e9cie de economia de d\u00e1diva abstrata. (…) N\u00e3o era pra ser. Os marxistas autonomistas italianos sustentam que toda \u201cinova\u00e7\u00e3o\u201d na forma-mercadoria \u00e9 impulsionada de baixo para cima, na medida em que tenta resolver um antagonismo de classe subordinada contra a forma-mercadoria por meio de sua recaptura por meio de uma muta\u00e7\u00e3o dessa forma. Foi mais ou menos isso que aconteceu. A classe dominante dominante, que chamo de classe vetorialista, recuperou a energia do movimento popular pela informa\u00e7\u00e3o livre transformando-a em trabalho n\u00e3o remunerado<\/strong>“.
\n<\/span><\/p><\/blockquote>\n

\u00a0<\/strong><\/p>\n

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CONSIDERA\u00c7\u00d5ES SOBRE UM MANIFESTO HACKER<\/h3>\n

Mckenzie Wark*<\/span><\/em><\/p>\n

Lendo Um Manifesto Hacker <\/a>novamente depois de muito tempo, agora parece um livro que outra pessoa escreveu e, ao mesmo tempo, um livro que cont\u00e9m n\u00e3o apenas a semente de todo o meu trabalho, mas o padr\u00e3o da minha vida desde ent\u00e3o.<\/p>\n<\/div>\n

\n

O livro faz pelo menos duas coisas ao mesmo tempo. Em parte \u00e9 um diagn\u00f3stico de um ponto de viragem hist\u00f3rico, entendido a n\u00edvel conceptual. Isso n\u00e3o \u00e9 mais capitalismo; \u00e9 algo pior. Essa muta\u00e7\u00e3o no modo de produ\u00e7\u00e3o \u00e9 global, mas distribu\u00edda de forma desigual. Os modos de produ\u00e7\u00e3o s\u00e3o sempre plurais. Durante muito tempo, o modo dominante poderia ser descrito como capitalismo. Embora o capitalismo certamente ainda exista, n\u00e3o \u00e9 mais o modo de produ\u00e7\u00e3o dominante.<\/span><\/p>\n<\/div>\n

\n

N\u00e3o estou sozinha nesse diagn\u00f3stico, mas a maioria das outras tentativas de pensar essa ruptura n\u00e3o entenderam que ela tamb\u00e9m \u00e9 uma ruptura de linguagem. Assim, temos tentativas muito insatisfat\u00f3rias de pens\u00e1-lo como p\u00f3s-capitalismo ou neofeudalismo. Em outras palavras, isso significaria pensar o surgimento de uma nova \u00e9poca apenas em rela\u00e7\u00e3o \u00e0 l\u00edngua antiga. Cada nova era tenta pensar sua novidade na linguagem da antiga. Essa \u00e9 uma falha lingu\u00edstica a ser superada,e considero isso uma das percep\u00e7\u00f5es mais importantes de Marx.<\/span><\/p>\n<\/div>\n

\n

Em vez disso, tentei pensar a \u00e9poca em uma linguagem contempor\u00e2nea a ela. Escrevi Um Manifesto Hacker<\/em> em uma linguagem inexistente que chamo de \u201ceuropeia\u201d. Essa linguagem imagin\u00e1ria \u00e9 composta de partes iguais de latim religioso, marxismo, filosofia francesa e ingl\u00eas comercial. Essas s\u00e3o as linguagens transnacionais da modernidade que me fizeram. A edi\u00e7\u00e3o em ingl\u00eas n\u00e3o \u00e9 a original \u2013 tamb\u00e9m \u00e9 uma \u201ctradu\u00e7\u00e3o\u201d que eu mesmo fiz dessa l\u00edngua inexistente. Eu queria come\u00e7ar pelo menos com os recursos lingu\u00edsticos que v\u00e1rios modos de produ\u00e7\u00e3o sucessivos e sobrepostos infligiram ao mundo por meio da guerra e da coloniza\u00e7\u00e3o. Pensar nessa linguagem e contra ela.<\/span><\/p>\n<\/div>\n

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O m\u00e9todo de escrita \u00e9 o que os situacionistas chamavam de desvio (d\u00e9tournement). Uma c\u00f3pia e uma corre\u00e7\u00e3o da linguagem encontrada. Assim, a primeira linha: \u201cUm duplo assusta o mundo\u201d, e toda a tese 001 que se segue, copiei e modifiquei da famosa abertura de O Manifesto Comunista. Toda a linguagem \u00e9 um bem comum (commons), e pode-se fazer o poss\u00edvel para recusar a forma de propriedade e os nomes pr\u00f3prios de seus propriet\u00e1rios como uma pr\u00e1tica de escrita. Sempre me diverte que existam livros que se dizem \u201cradicais\u201d em conte\u00fados que obedecem \u00e0s conven\u00e7\u00f5es liter\u00e1rias mais conservadoras.<\/span><\/p>\n<\/div>\n

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Partindo de um desvio das linguagens transnacionais, Um Manifesto Hacker<\/em> oferece dois tipos de proposi\u00e7\u00f5es: algumas se referem \u00e0 situa\u00e7\u00e3o estrat\u00e9gica das classes subalternas como eu a via 25 anos atr\u00e1s. Alguns deles precisam de revis\u00e3o \u00e0 luz das lutas desde ent\u00e3o. O outro tipo de proposi\u00e7\u00e3o est\u00e1 menos ligado a circunst\u00e2ncias imediatas. Eles s\u00e3o um pouco mais inoportunos. Vou oferecer algumas reflex\u00f5es tardias sobre ambos.<\/span><\/p>\n<\/div>\n

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Resumidamente, as coisas tomaram um rumo que eu n\u00e3o previ, e que exige uma altern\u00e2ncia n\u00e3o s\u00f3 da pr\u00e1tica pol\u00edtica, mas tamb\u00e9m da teoria. Georg Luk\u00e1cs disse em seu ensaio sobre o m\u00e9todo marxista que mesmo que todas as suas descobertas particulares se mostrassem incorretas na pr\u00e1tica, a teoria marxista ortodoxa permaneceria correta. Eu tenho exatamente a vis\u00e3o oposta: apenas aquelas descobertas que se comprovam na pr\u00e1tica podem ser consideradas parte do \u201cmarxismo\u201d. Ele n\u00e3o tem nenhuma teoria essencial, ortodoxa ou n\u00e3o.<\/span><\/p>\n<\/div>\n

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Vinte e cinco anos atr\u00e1s, parecia uma boa t\u00e1tica liberar informa\u00e7\u00f5es da forma de propriedade. As for\u00e7as de produ\u00e7\u00e3o, neste caso as for\u00e7as de produ\u00e7\u00e3o de informa\u00e7\u00e3o, ultrapassaram as rela\u00e7\u00f5es de produ\u00e7\u00e3o existentes. A produ\u00e7\u00e3o de informa\u00e7\u00e3o livre surgiu como uma pr\u00e1tica a partir da qual se cria uma produ\u00e7\u00e3o aut\u00f4noma de conhecimento. De diferentes maneiras, Adorno e Pasolini se refugiaram da press\u00e3o progressiva da mercantiliza\u00e7\u00e3o (commodification) em formas culturais e midi\u00e1ticas residuais, eu fazia parte de um movimento que buscava um espa\u00e7o de liberdade n\u00e3o-mercantilizada em m\u00eddias emergentes e formas t\u00e9cnicas.<\/span><\/p>\n<\/div>\n

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Embora tenha escrito grande parte de Um Manifesto Hacker<\/em> isoladamente, no norte do estado de Nova Iorque, eu n\u00e3o estava sozinha. Fiz parte de uma vanguarda que se reuniu em espa\u00e7os online para desenvolver teoria e pr\u00e1tica dentro dessas formas emergentes de produ\u00e7\u00e3o de informa\u00e7\u00e3o. Tentamos fazer uma teoria, uma arte, uma cultura e uma pol\u00edtica neste espa\u00e7o relativamente livre de uma s\u00f3 vez. Isso foi um tempo antes de a internet se tornar um grande neg\u00f3cio. Sua infraestrutura era mantida principalmente por universidades. Descobrimos que era uma maneira relativamente barata e r\u00e1pida de se organizar transnacionalmente, de conduzir experimentos, de encontrar afinidades.<\/span><\/p>\n<\/div>\n

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Todas as vanguardas s\u00e3o, em certo sentido, vanguardas midi\u00e1ticas, desde o dada\u00edsmo e o surrealismo at\u00e9 o fluxus, a tropic\u00e1lia ou os situacionistas. Eles usaram a m\u00eddia de seu tempo, da impress\u00e3o offset ao cinema, grava\u00e7\u00e3o de som, at\u00e9 mesmo o sistema postal, para criar matrizes transnacionais de inven\u00e7\u00e3o formal que eram ao mesmo tempo est\u00e9ticas, pol\u00edticas e culturais. Vimo-nos continuando essa pr\u00e1tica, mas n\u00e3o meramente repetindo-a. Um Manifesto Hacker<\/em> \u00e9 uma teoria dessa pr\u00e1tica. Como todas as vanguardas, teve suas fac\u00e7\u00f5es e dissens\u00f5es. Meu espa\u00e7o de afinidade dentro dele girava em torno do grupo nettime.org<\/a>.<\/span><\/p>\n<\/div>\n

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O que para n\u00f3s era uma pr\u00e1tica de vanguarda rapidamente, e de forma independente, tornou-se um movimento social: o movimento pela informa\u00e7\u00e3o livre. \u00c0 medida que a internet se tornou uma forma de comunica\u00e7\u00e3o mais popular, todos come\u00e7aram a compartilhar. Como diz a tese 126 do livro: \u201ca informa\u00e7\u00e3o quer ser livre, mas est\u00e1 acorrentada em todos os lugares\u201d. (Uma frase que \u00e9 um desvio de Rousseau e do te\u00f3rico ut\u00f3pico da internet John Perry Barlow). Parecia que poder\u00edamos abrir a forma-mercadoria da informa\u00e7\u00e3o em favor de uma esp\u00e9cie de economia de d\u00e1diva (gift) abstrata.<\/span><\/p>\n<\/div>\n

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N\u00e3o era pra ser. Os marxistas autonomistas italianos sustentam que toda \u201cinova\u00e7\u00e3o\u201d na forma-mercadoria \u00e9 impulsionada de baixo para cima, na medida em que tenta resolver um antagonismo de classe subordinada contra a forma-mercadoria por meio de sua recaptura por meio de uma muta\u00e7\u00e3o dessa forma. Foi mais ou menos isso que aconteceu. A classe dominante dominante (dominant rulling class), que chamo de classe vetorialista (vectorialist), recuperou a energia do movimento popular pela informa\u00e7\u00e3o livre transformando-a em trabalho n\u00e3o remunerado.<\/span><\/p>\n<\/div>\n

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Na verdade, \u00e9 ainda pior do que isso. O capitalismo explora nosso trabalho; o vetorialismo explora nosso comunismo. Ele explora nossa necessidade de dar um presente de nossa sociabilidade uns aos outros. A resposta da classe dominante ao movimento social pela informa\u00e7\u00e3o livre foi a cria\u00e7\u00e3o de uma forma de propriedade ainda mais abstrata. As rela\u00e7\u00f5es de produ\u00e7\u00e3o alcan\u00e7aram as for\u00e7as de produ\u00e7\u00e3o. Este ciclo agora tem uma extens\u00e3o adicional, pois a chamada \u201cintelig\u00eancia artificial\u201d \u00e9 treinada no vasto tesouro de informa\u00e7\u00f5es livres que criamos para n\u00f3s mesmos para desenvolver uma t\u00e9cnica que possa substituir a pr\u00f3pria classe hacker.<\/span><\/p>\n<\/div>\n

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Sob o capitalismo, as for\u00e7as de produ\u00e7\u00e3o se desenvolveram reduzindo o trabalho \u00e0 repeti\u00e7\u00e3o e mesmice, e ent\u00e3o substituindo o trabalhador por uma m\u00e1quina que reproduzia de forma mec\u00e2nica essa repeti\u00e7\u00e3o. O que estava al\u00e9m dessa substitui\u00e7\u00e3o era o hack, a produ\u00e7\u00e3o da diferen\u00e7a, a atividade distintiva da classe hacker nas artes e nas ci\u00eancias. O que a classe vetorialista est\u00e1 tentando agora \u00e9 a substitui\u00e7\u00e3o da classe hacker por m\u00e1quinas capazes de fabricar a diferen\u00e7a. M\u00e1quinas que fazem isso mal, mas que do ponto de vista da classe dominante s\u00e3o prefer\u00edveis porque n\u00e3o podem entrar em greve.<\/span><\/p>\n<\/div>\n

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Em suma, a situa\u00e7\u00e3o \u00e9 muito pior do que h\u00e1 um quarto de s\u00e9culo. Vencemos algumas batalhas, mas perdemos a guerra. O livro que escrevi logo ap\u00f3s Um Manifesto Hacker, “Gamer Theory”, j\u00e1 era uma intui\u00e7\u00e3o disso. Trata-se do enclausuramento do hack, ali figurado como jogo, em um espa\u00e7o de jogo global, totalizante. Onde todas as nossas energias coletivas e criativas s\u00e3o direcionadas para formas que podem ser quantificadas, classificadas e ranqueadas. Lamento dizer, esse foi prof\u00e9tico.<\/span><\/p>\n<\/div>\n

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Revisei ainda mais a perspectiva pol\u00edtica de Um Manifesto Hacker<\/em> em meu livro posterior, “O Capital Est\u00e1 Morto”. Em meu livro “Raving”, ofereci pelo menos uma teoria e pr\u00e1tica de onde podemos nos esconder, podemos encontrar uma rela\u00e7\u00e3o com a t\u00e9cnica onde podemos pelo menos minimizar a captura de nossas energias hacker e obter algum prazer em formas de trabalho in\u00fatil.<\/span><\/p>\n<\/div>\n

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Ao contr\u00e1rio de alguns te\u00f3ricos que eu poderia mencionar, n\u00e3o estou no neg\u00f3cio de oferecer \u201cesperan\u00e7a\u201d. A perspectiva \u00e9 ruim. Os movimentos populares viveram uma longa s\u00e9rie de derrotas hist\u00f3ricas. Estamos em retiro na maioria dos lugares. O benef\u00edcio de estar em retirada \u00e9 que h\u00e1 menos oportunistas por perto. Em vez disso, os oportunistas se rebatizaram como os \u201cintelectuais\u201d da rea\u00e7\u00e3o.<\/span><\/p>\n<\/div>\n

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As proposi\u00e7\u00f5es t\u00e1ticas de Um Manifesto Hacker s\u00e3o de seu tempo. At\u00e9 que ponto as proposi\u00e7\u00f5es te\u00f3ricas precisam ser abandonadas ou modificadas n\u00e3o cabe a mim dizer. Ainda acho o livro infinitamente produtivo, pelo menos para meu pr\u00f3prio trabalho e at\u00e9 para minha vida. Olhando para tr\u00e1s, encontro as sementes de todos os meus livros subsequentes. A s\u00e9rie de livros que rel\u00ea e recupera certas pr\u00e1ticas marxistas e de vanguarda que se cruzam, por exemplo: “The Beach Beneath the Street”, “The Spectacle of Disintegration” e “Molecular Red”. Ou a s\u00e9rie de livros que l\u00eaem outras teorias contempor\u00e2neas de forma camarada: “General Intellects” e “Sensoria”.<\/span><\/p>\n<\/div>\n

\n

At\u00e9 encontro uma conex\u00e3o com os livros que escrevi no processo de me assumir como transexual: “Philosophy for Spiders”, “Reverse Cowgirl”, and “Love and Money, Sex and Death”. H\u00e1 um conceito de natureza como diferen\u00e7a, natureza como hacke\u00e1vel, que prefigura o hackeamento do meu pr\u00f3prio corpo, a produ\u00e7\u00e3o da diferen\u00e7a na e como minha pr\u00f3pria carne.<\/span><\/p>\n<\/div>\n

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Certamente existem conceitos que ainda considero \u00fateis em Um Manifesto Hacker<\/em>, sendo a natureza como diferen\u00e7a apenas um exemplo. A sua contraposi\u00e7\u00e3o da express\u00e3o \u00e0 representa\u00e7\u00e3o, a sua alergia \u00e0s identidades e aos inv\u00f3lucros. Isso me parece uma cr\u00edtica antecipada ao ressurgimento do sentimento fascista. Ou a intui\u00e7\u00e3o de que a sobreviv\u00eancia planet\u00e1ria no Antropoceno pode exigir uma supera\u00e7\u00e3o da subordina\u00e7\u00e3o da produ\u00e7\u00e3o \u00e0 reprodu\u00e7\u00e3o da mesmice da forma de propriedade. Que pode de fato haver uma t\u00e9cnica potencial que \u00e9 mais abstrata do que, e n\u00e3o recuper\u00e1vel dentro da pr\u00f3pria propriedade.<\/span><\/p>\n<\/div>\n

\n

O que prezo mais do que a teoria neste livro \u00e9 a pr\u00e1tica, que mais tarde vim a chamar de baixa teoria (low theory). A pr\u00e1tica da baixa teoria \u00e9 a pr\u00e1tica de fazer teoria em e com um movimento social, uma vanguarda ou um projeto comunit\u00e1rio de resist\u00eancia minorizada. A baixa teoria pode recorrer aos recursos da alta teoria, que \u00e0s vezes se autodenomina filosofia, mas que na maioria das vezes \u00e9 erudi\u00e7\u00e3o sobre filosofia. A universidade tem sido um lugar onde poder\u00edamos conseguir empregos, mas os pr\u00eamios brilhantes de reconhecimento acad\u00eamico n\u00e3o s\u00e3o o objetivo da baixa teoria. A baixa teoria acontece em uma temporalidade diferente, a das tend\u00eancias hist\u00f3ricas, conjunturas pol\u00edticas, situa\u00e7\u00f5es culturais, n\u00e3o a do sistema semestral.<\/span><\/p>\n<\/div>\n

\n

Talvez o melhor sinal de que o livro ainda tem sua utilidade \u00e9 que eu o considero plagiado com tanta frequ\u00eancia – o que acho divertido quando assume a forma de um desvio (d\u00e9tournement) engenhoso. De qualquer forma, fico feliz em ver que ainda fala a muitos tipos diferentes de leitores, em muitas partes diferentes do mundo. Perdi a conta do n\u00famero de idiomas em que voc\u00ea pode encontr\u00e1-lo. \u00c9 um livro que foi feito para ser hackeado.<\/span><\/p>\n<\/div>\n

\n

Brooklyn, Nova Iorque, julho de 2023<\/span><\/em><\/p>\n

*McKenzie Wark (New Castle, Austr\u00e1lia) \u00e9 professora de M\u00eddia e Estudos Culturais na New School for Social Research e Eugene Lang College em Nova York. Seus escritos e projetos pol\u00edticos se voltam para a an\u00e1lise do neoliberalismo tecnol\u00f3gico, al\u00e9m de escrever sobre os diversos movimentos Situacionistas, m\u00eddia t\u00e1tica e movimento anti-globaliza\u00e7\u00e3o. Publicou no Brasil pela Funilaria e sobinfluencia \u201cO capital est\u00e1 morto\u201d e \u201cUm manifesto hacker\u201d. Tamb\u00e9m \u00e9 autora de livros como “Molecular Red: Theory for the Anthropocene”, “Reverse Cowgirl”, “50 Years of Recuperation of the Situationist International”, “The Spectacle pf Disintegration” e outros, McKenzie \u00e9 tamb\u00e9m DJ e amplamente viv\u00edda na cultura da m\u00fasica techno e seus movimentos.<\/em><\/p>\n<\/div>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"

N\u00e3o \u00e9 f\u00e1cil a tarefa de apresentar Um Manifesto Hacker, de McKenzie Wark, ao p\u00fablico brasileiro hoje. A natureza ensa\u00edstica, provocativa e ir\u00f4nica da obra nos p\u00f5e um desafio: como falar de um presente sem estragar a surpresa? Outra quest\u00e3o \u00e9 o tempo: o livro foi lan\u00e7ado pela primeira vez h\u00e1 vinte anos. Como contextualizar […]<\/p>\n","protected":false},"author":2,"featured_media":15575,"comment_status":"open","ping_status":"open","sticky":false,"template":"","format":"standard","meta":[],"categories":[488,122],"tags":[925,927,147,6623,325,227,6629,6627,2236,2163,2247],"post_folder":[],"jetpack_featured_media_url":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-content\/uploads\/2024\/02\/manifesto-hacker.png","_links":{"self":[{"href":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/15573"}],"collection":[{"href":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-json\/wp\/v2\/posts"}],"about":[{"href":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-json\/wp\/v2\/types\/post"}],"author":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-json\/wp\/v2\/users\/2"}],"replies":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-json\/wp\/v2\/comments?post=15573"}],"version-history":[{"count":8,"href":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/15573\/revisions"}],"predecessor-version":[{"id":15584,"href":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/15573\/revisions\/15584"}],"wp:featuredmedia":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-json\/wp\/v2\/media\/15575"}],"wp:attachment":[{"href":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-json\/wp\/v2\/media?parent=15573"}],"wp:term":[{"taxonomy":"category","embeddable":true,"href":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-json\/wp\/v2\/categories?post=15573"},{"taxonomy":"post_tag","embeddable":true,"href":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-json\/wp\/v2\/tags?post=15573"},{"taxonomy":"post_folder","embeddable":true,"href":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-json\/wp\/v2\/post_folder?post=15573"}],"curies":[{"name":"wp","href":"https:\/\/api.w.org\/{rel}","templated":true}]}}