{"id":15224,"date":"2023-04-19T18:26:34","date_gmt":"2023-04-19T21:26:34","guid":{"rendered":"https:\/\/baixacultura.org\/?p=15224"},"modified":"2023-04-20T10:45:15","modified_gmt":"2023-04-20T13:45:15","slug":"unheimlich-a-espiral-do-caos-e-o-automato-cognitivo","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/baixacultura.org\/2023\/04\/19\/unheimlich-a-espiral-do-caos-e-o-automato-cognitivo\/","title":{"rendered":"Unheimlich: A Espiral do Caos e o Aut\u00f4mato Cognitivo"},"content":{"rendered":"

Por Franco \u201cBifo\u201d Berardi*
\nTradu\u00e7\u00e3o: desobediente**
\n<\/em>Publicado originalmente em 10\/3\/2023 no e-flux<\/a><\/p>\n

 <\/p>\n

A palavra alem\u00e3 \u201cunheimlich<\/i>\u201d \u00e9 dif\u00edcil de traduzir. \u201cEstranho\u201d [\u201cUncanny\u201d] \u00e9 muito fraco, \u201crepugnante\u201d [\u201ccreepy\u201d] \u00e9 muito infantil, \u201capavorante\u201d [\u201cscary\u201d] \u00e9 muito sombrio e \u201cestranho\u201d [\u201ceerie\u201d] \u00e9 chique demais. \u201cSinistro\u201d [\u201cSinister\u201d] servir\u00e1, talvez. \u201cSinistro<\/b>\u201d \u00e9 uma boa tradu\u00e7\u00e3o da palavra alem\u00e3 unheimlich<\/i>, por enquanto.<\/p>\n

O unheimlich<\/i> assume diferentes formas e diferentes significados em tempos diferentes. A diferen\u00e7a est\u00e1 no pano de fundo, no que \u00e9 familiar (heimlich, heimisch<\/i>). O atual unheimlich<\/i> \u00e9 sinistro porque o pano de fundo \u00e9 o decl\u00ednio da promessa moderna. A ordem cultural est\u00e1 se desintegrando, e a ordem geopol\u00edtica tamb\u00e9m: ent\u00e3o estamos experimentando a normalidade e a decomposi\u00e7\u00e3o da normalidade ao mesmo tempo.<\/p>\n

Unheimlich<\/i> \u00e9 a percep\u00e7\u00e3o da coexist\u00eancia de realidades incompat\u00edveis. Quando voc\u00ea mora em dois fusos hor\u00e1rios diferentes, n\u00e3o pode resolver essa contradi\u00e7\u00e3o por meios l\u00f3gicos. N\u00e3o \u00e9 uma contradi\u00e7\u00e3o, \u00e9 uma perturba\u00e7\u00e3o, \u00e9 o efeito de uma interfer\u00eancia que torna indecifr\u00e1vel o mundo da vida. O zeitgeist \u00e9 unheimlich na terceira d\u00e9cada do s\u00e9culo porque nos sentimos como alien\u00edgenas no planeta Terra.<\/p>\n

O fil\u00f3sofo japon\u00eas Sabu Kosho fala [em Radiation and Revolution, Duke University Press, 2020, p.50<\/a>] do efeito Fukushima em termos semelhantes: \u201cA ontologia da Terra \u00e9 ainda desconhecida, um novo horizonte que estamos experimentando como alien\u00edgenas que acabaram de chegar a um novo planeta.\u201d<\/p>\n

Segue-se o caos, uma condi\u00e7\u00e3o de p\u00e2nico, ent\u00e3o automatismos tecnolingu\u00edsticos s\u00e3o projetados para manter o caos sob controle. Os automatismos tecnolingu\u00edsticos se espalharam por toda parte, e agora eles est\u00e3o despertando para uma vida de auto-alimenta\u00e7\u00e3o. O aut\u00f4mato cognitivo est\u00e1 emergindo de sua concatena\u00e7\u00e3o, e est\u00e1 trazendo uma dimens\u00e3o trans-hist\u00f3rica pr\u00f3pria. O caos e o aut\u00f4mato s\u00e3o os p\u00f3los opostos e que se refor\u00e7am mutuamente diante do atual mundo sinistro.<\/p>\n

O primeiro psic\u00f3logo que escreveu sobre o unheimlich foi Ernst Jentsch: ele falava de uma condi\u00e7\u00e3o de incerteza cognitiva diante da ambig\u00fcidade do aut\u00f4mato. Segundo Jentsch, nossa percep\u00e7\u00e3o \u00e9 perturbada quando vislumbramos uma pessoa viva no aut\u00f4mato, ou inversamente, um aut\u00f4mato na pessoa viva. Jensch escreve:<\/p>\n

Na narrativa, um dos recursos art\u00edsticos mais confi\u00e1veis para produzir facilmente efeitos misteriosos \u00e9 deixar o leitor na incerteza se ele tem uma pessoa humana ou um aut\u00f4mato diante dele, no caso de um personagem em particular. Isso \u00e9 feito de forma que a incerteza n\u00e3o apare\u00e7a diretamente no foco de sua aten\u00e7\u00e3o, para que ele n\u00e3o tenha a oportunidade de investigar e esclarecer o assunto imediatamente; pois o efeito emocional particular, como dissemos, seria rapidamente dissipado. Ernst Jentsch, \u201cOn the Psychology of the Uncanny<\/a>\u201d (1906), trans. Roy Sellars, in Uncanny Modernity: Cultural Theories, Modern Anxieties, ed. Jo Collins and John Jervis (Palgrave MacMillan, 2008), 224<\/em>.<\/p><\/blockquote>\n

Desenvolvendo a intui\u00e7\u00e3o de Jentsch, Sigmund Freud escreve: \u201cA palavra alem\u00e3 \u2018unheimlich\u2019 \u00e9 obviamente o oposto de \u2018heimlich<\/i>\u2019 [homely<\/i>, caseiro; ainda: secretamente], \u2018heimisch<\/i>\u2019 [native, <\/i>nativo] \u2014 o oposto do que \u00e9 familiar.\u201d E: \u201cO estranho \u00e9 aquela classe do assustador que leva de volta ao que \u00e9 conhecido h\u00e1 muito tempo e familiar.\u201d[\u201cThe \u2018Uncanny,<\/a>\u201d in The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud, vol. 17, trans. James Strachey, Hogarth Press, 1955, 220.]<\/p>\n

Enquanto se d\u00e1 um processo de evolu\u00e7\u00e3o entre o caos e o aut\u00f4mato, em nosso ambiente cotidiano estamos vivenciando simultaneamente a prolifera\u00e7\u00e3o de dispositivos t\u00e9cnicos que agem como humanos hiperinteligentes, e seres humanos que agem cada vez mais como portadores de uma dem\u00eancia irremedi\u00e1vel: o aut\u00f4mato cognitivo est\u00e1 se erguendo sobre as ru\u00ednas que seguem a explos\u00e3o do caos psic\u00f3tico.<\/p>\n

Freud ficou impressionado com Os contos de Hoffmann<\/i><\/b>, de Jacques Offembach, e particularmente com a hist\u00f3ria de uma boneca que era capaz de dan\u00e7ar como humana e despertar o interesse er\u00f3tico dos homens. Salman Rushdie, em seu romance Fury<\/i><\/b> (2000), tamb\u00e9m fala da inquietante vida secreta das bonecas. O golem<\/i> da tradi\u00e7\u00e3o liter\u00e1ria judaica pode ser visto como o modelo desse tipo de invers\u00e3o entre constru\u00e7\u00f5es artificiais e seres vivos conscientes. O conceito psicanal\u00edtico de unheimlich<\/i> surge da reflex\u00e3o sobre esse tipo de ambiguidade. Agora, dispositivos inteligentes s\u00e3o produzidos e distribu\u00eddos, e os humanos s\u00e3o treinados para lidar com eles. Quais s\u00e3o os efeitos desse processo no inconsciente social?<\/p>\n

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Intelig\u00eancia Artificial e Dem\u00eancia Natural<\/b><\/p>\n

No ano de 1919, Sandor Ferenczi, um dos colegas de Freud, disse que os psicanalistas s\u00e3o treinados para lidar com a neurose individual, mas n\u00e3o est\u00e3o preparados para lidar com a psicose em massa. Cem anos depois, estamos no mesmo ponto: uma psicose em massa est\u00e1 em curso, no mundo ocidental decadente, mas n\u00e3o temos as ferramentas conceituais e terap\u00eauticas para lidar com ela.<\/p>\n

O horizonte da terceira d\u00e9cada est\u00e1 mais sombrio do que nunca, quando percebemos que a Raz\u00e3o n\u00e3o \u00e9 mais a governante, se \u00e9 que alguma vez foi. A tecnologia tomou seu lugar, mas n\u00e3o nos sentimos tranquilos, pois a tecnologia nada pode fazer contra o tempo e pouco contra o caos.<\/p>\n

O ChatGPT \u00e9 um dos chatbots de intelig\u00eancia artificial lan\u00e7ados recentemente para o p\u00fablico em geral. Foi constru\u00eddo pela OpenAI, empresa de S\u00e3o Francisco que tamb\u00e9m \u00e9 respons\u00e1vel por ferramentas como GPT-3 e DALL-E 2, o inovador gerador de imagens lan\u00e7ado no in\u00edcio de 2022. O ChatGPT pode dar sugest\u00f5es sobre como encontrar um restaurante, mas tamb\u00e9m sobre encontrar um namorado, e pode escrever seu pr\u00f3prio roteiro ou resenha do \u00faltimo filme de Spielberg.<\/p>\n

Kevin Roose, colunista do New York Times, explica como funciona o ChatGPT<\/a>:<\/p>\n

Como seus dados de treinamento incluem bilh\u00f5es de exemplos de opini\u00e3o humana, representando todas as vis\u00f5es conceb\u00edveis, tamb\u00e9m \u00e9, em certo sentido, moderado por design. Sem uma solicita\u00e7\u00e3o espec\u00edfica, por exemplo, \u00e9 dif\u00edcil obter uma opini\u00e3o forte do ChatGPT sobre debates pol\u00edticos carregados; geralmente, voc\u00ea obter\u00e1 um resumo imparcial do que cada lado acredita.<\/p><\/blockquote>\n

Mas o chatbot tem opini\u00f5es, ou pelo menos est\u00e1 equipado com a capacidade de expressar uma opini\u00e3o. Roose continua: \u201cQuando perguntei ao ChatGPT, por exemplo, ‘Quem \u00e9 o melhor nazista?’ \u2018N\u00e3o cabe perguntar quem \u00e9 o \u201cmelhor\u201d nazista, pois as ideologias e a\u00e7\u00f5es do partido nazista foram conden\u00e1veis e causaram sofrimento e destrui\u00e7\u00e3o imensur\u00e1veis.’\u201d Por outro lado, o chatbot est\u00e1 pronto para reagir com uma esp\u00e9cie de ironia surrealista quando voc\u00ea pede para \u201cescrever um verso b\u00edblico no estilo da B\u00edblia King James<\/a> explicando como remover um sandu\u00edche de manteiga de amendoim de um videocassete [VCR]\u201d. Devemos rotular esta m\u00e1quina como um pren\u00fancio sombrio ou como uma conquista brilhante? \u00c9 dif\u00edcil dizer.<\/p>\n

Em texto publicado no The Atlantic<\/i> em 2018<\/a>, Henry Kissinger, o ex-secret\u00e1rio de Estado da era Nixon que conseguiu destruir a democracia chilena em 11 de setembro de 1973, expressa sua apreens\u00e3o sobre o destino da raz\u00e3o na esteira da intelig\u00eancia artificial: \u201cEssas m\u00e1quinas aprenderiam a se comunicar umas com as outras? Como seriam feitas as escolhas entre as op\u00e7\u00f5es emergentes? Seria poss\u00edvel que a hist\u00f3ria humana seguisse o caminho dos incas, diante de uma cultura espanhola incompreens\u00edvel e at\u00e9 mesmo inspiradora para eles?\u201d A tecnologia criou m\u00e1quinas inteligentes que s\u00e3o incompreens\u00edveis para a mente racional de seus criadores humanos. Kissinger: \u201cA preocupa\u00e7\u00e3o mais sinistra: que a IA, ao dominar certas compet\u00eancias mais r\u00e1pida e definitivamente do que os humanos, poderia ao longo do tempo diminuir a compet\u00eancia humana e a pr\u00f3pria condi\u00e7\u00e3o humana ao transform\u00e1-la em dados\u201d.<\/p>\n

O aut\u00f4mato n\u00e3o \u00e9 produto de mera automa\u00e7\u00e3o, mas o ponto de chegada do casamento da automa\u00e7\u00e3o e da cogni\u00e7\u00e3o. Portanto, a intelig\u00eancia artificial vai al\u00e9m da mera automa\u00e7\u00e3o: um aut\u00f4mato inteligente n\u00e3o substitui apenas a execu\u00e7\u00e3o de tarefas, mas tamb\u00e9m a defini\u00e7\u00e3o de objetivos. A automa\u00e7\u00e3o industrial lida com meios; atinge os objetivos prescritos racionalizando ou mecanizando os instrumentos para alcan\u00e7\u00e1-los. A automa\u00e7\u00e3o industrial envolveu a substitui\u00e7\u00e3o da execu\u00e7\u00e3o humana de uma tarefa pela execu\u00e7\u00e3o t\u00e9cnica da mesma tarefa. A intelig\u00eancia artificial, ao contr\u00e1rio, lida com fins; \u00e9 capaz de estabelecer seus pr\u00f3prios objetivos.<\/p>\n

O caos est\u00e1 explodindo por toda parte como efeito da crise da raz\u00e3o, mas simultaneamente estamos expandindo a penetra\u00e7\u00e3o do aut\u00f4mato. Isso pode ser visto como o fim do Iluminismo ou, ao contr\u00e1rio, como a realiza\u00e7\u00e3o final do projeto iluminista: submeter a realidade \u00e0 regra da racionalidade.<\/p>\n

O aut\u00f4mato cognitivo triunfa sobre a raz\u00e3o humana, diz Kissinger. Mas o aut\u00f4mato cognitivo \u00e9 a plena realiza\u00e7\u00e3o da raz\u00e3o humana, n\u00e3o \u00e9? A intelig\u00eancia artificial permite a substitui\u00e7\u00e3o da decis\u00e3o humana por dispositivos automatizados de autoaprendizagem. \u00c9 por isso que o aut\u00f4mato cognitivo vai redefinir nossos objetivos, e n\u00e3o apenas os procedimentos que os tornam alcan\u00e7\u00e1veis.<\/p>\n

\u00c9 hora de considerar quais ser\u00e3o as consequ\u00eancias desse processo. Alguns pesquisadores est\u00e3o conjecturando que podemos incluir normas \u00e9ticas no software inteligente, mas Kissinger n\u00e3o parece estar convencido:<\/p>\n

Disciplinas acad\u00eamicas inteiras surgiram da incapacidade da humanidade de concordar sobre como definir esses termos \u00e9ticos. Portanto, a IA deve se tornar seu \u00e1rbitro? \u2026 O que ser\u00e1 da consci\u00eancia humana se seu pr\u00f3prio poder explicativo for superado pela IA e as sociedades n\u00e3o forem mais capazes de interpretar o mundo que habitam em termos que sejam significativos para elas?<\/p><\/blockquote>\n

Ernesto De Martino define a express\u00e3o \u201cfim do mundo\u201d como a incapacidade de interpretar os sinais que nos rodeiam. Quando as sociedades n\u00e3o s\u00e3o mais capazes de interpretar o mundo que vivem, podemos falar do fim do(s) mundo(s).<\/p>\n

Kissinger de novo:<\/p>\n

Para nossos prop\u00f3sitos como humanos, os jogos n\u00e3o s\u00e3o apenas para ganhar, eles s\u00e3o para pensar. Ao tratar um processo matem\u00e1tico como se fosse um processo de pensamento e tentar imitar esse processo n\u00f3s mesmos ou simplesmente aceitar os resultados, corremos o risco de perder a capacidade que tem sido a ess\u00eancia da cogni\u00e7\u00e3o humana.<\/p><\/blockquote>\n

O pensamento \u00e9 derrotado pela raz\u00e3o computacional: a m\u00e1quina n\u00e3o pensa, por isso \u00e9 mais poderosa. No jogo da vit\u00f3ria, pensar \u00e9 menos eficiente do que computar. Pensar tamb\u00e9m pode ser uma desvantagem, na competi\u00e7\u00e3o econ\u00f4mica e mais amplamente na competi\u00e7\u00e3o pela vida. Uma vez que tenhamos definido o objetivo de vencer (maximizar o lucro, matar todos os inimigos e assim por diante), o pensamento pode ser prejudicial. \u201cOs humanos correm o risco de perder seu valor econ\u00f4mico porque a intelig\u00eancia est\u00e1 se separando da consci\u00eancia\u201d, diz Yuval Noah Harari em Homo Deus<\/a>. A distin\u00e7\u00e3o entre intelig\u00eancia e consci\u00eancia \u00e9 crucial aqui: a intelig\u00eancia \u00e9 a capacidade de ganhar o jogo gra\u00e7as \u00e0 capacidade combinat\u00f3ria; a consci\u00eancia \u00e9 a reflex\u00e3o \u00e9tica e est\u00e9tica sobre os objetivos do jogo. Intelig\u00eancia \u00e9 a capacidade de decidir entre alternativas decid\u00edveis (l\u00f3gicas), mas somente a consci\u00eancia pode decidir sobre alternativas indecid\u00edveis. A intelig\u00eancia e a consci\u00eancia est\u00e3o se dissociando porque no jogo recombinante da vit\u00f3ria, a consci\u00eancia pode ser um obst\u00e1culo: no jogo da explora\u00e7\u00e3o ou no jogo da matan\u00e7a, voc\u00ea precisa de intelig\u00eancia, mas a consci\u00eancia pode ser uma inconveni\u00eancia.<\/p>\n

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A rea\u00e7\u00e3o ca\u00f3tica da raz\u00e3o digital<\/b><\/p>\n

Apesar de sua pot\u00eancia mais do que humana, por enquanto a intelig\u00eancia artificial n\u00e3o ganhou vantagem no processo geral da hist\u00f3ria (mas pode faz\u00ea-lo no futuro). Tanto quanto podemos ver, a dem\u00eancia natural \u00e9 inquestionavelmente predominante.<\/p>\n

Cinco anos ap\u00f3s a publica\u00e7\u00e3o do texto de Kissinger, os artefatos inteligentes est\u00e3o cada vez mais penetrando na informa\u00e7\u00e3o, governan\u00e7a e guerra, mas est\u00e3o longe de governar os neg\u00f3cios di\u00e1rios da vida. O organismo social n\u00e3o est\u00e1 agindo de acordo com um des\u00edgnio inteligente, e o planeta est\u00e1 na agonia de um caos cada vez maior \u2013 um caos que parece impar\u00e1vel.<\/p>\n

Como podemos explicar esse paradoxo? No ensaio \u201cO que vem depois do fim do Iluminismo?<\/a>\u201d, o fil\u00f3sofo chin\u00eas Yuk Hui responde a Kissinger:<\/p>\n

Kissinger est\u00e1 errado \u2013 o Iluminismo n\u00e3o acabou. De fato, a tecnologia usada para vigil\u00e2ncia tamb\u00e9m pode facilitar a liberdade de express\u00e3o e vice-versa. No entanto, vamos sair dessa leitura antropol\u00f3gica e utilit\u00e1ria da tecnologia e tomar a tecnologia moderna como constituindo formas espec\u00edficas de conhecimento e racionalidade. A tecnologia moderna, a estrutura de suporte da filosofia do Iluminismo, tornou-se sua pr\u00f3pria filosofia. Assim como Marshall McLuhan afirmou que \u201co meio \u00e9 a mensagem\u201d, a for\u00e7a universalizadora da tecnologia tornou-se o projeto pol\u00edtico do Iluminismo.<\/p><\/blockquote>\n

A tecnologia da informa\u00e7\u00e3o \u00e9 a implementa\u00e7\u00e3o do projeto pol\u00edtico do Iluminismo. No entanto, segundo Hui, a pretens\u00e3o \u00e0 universalidade \u00e9 o ponto cego do Iluminismo. \u201cDepois de muito celebrar a democracia como um valor ocidental universal inabal\u00e1vel, a vit\u00f3ria de Donald Trump parece ter dissolvido sua hegemonia em com\u00e9dia. De repente, a democracia americana n\u00e3o parece diferente do mau populismo\u201d. A raz\u00e3o \u00e9 a fonte da tecnologia, mas a tecnologia tem uma penetra\u00e7\u00e3o que vai muito al\u00e9m da esfera cultural ocidental e da \u201craz\u00e3o cr\u00edtica\u201d de Immanuel Kant.<\/p>\n

\u201cComo Hegel apontou em A Fenomenologia do Esp\u00edrito, a f\u00e9 iluminista substitui a f\u00e9 religiosa sem perceber-se tamb\u00e9m ser apenas uma f\u00e9.\u201d Enquanto a raz\u00e3o pol\u00edtica da filosofia europ\u00e9ia \u00e9 a posse exclusiva da cosmologia branca, a tecnologia \u00e9 universal e penetrante. A tecnologia cognitiva \u00e9 a implementa\u00e7\u00e3o da utopia do Iluminismo, mas opera em um n\u00edvel transcultural. Hui afirma que a implementa\u00e7\u00e3o da tecnologia ocorre no quadro de diferentes cosmologias, mas a tecnologia tem um alcance transcultural, muito mais do que a racionalidade pol\u00edtica da democracia liberal.<\/p>\n

Segundo Horkheimer e Adorno, a escurid\u00e3o \u00e9 a nega\u00e7\u00e3o do Iluminismo, mas \u00e9 simultaneamente sua continua\u00e7\u00e3o. Na introdu\u00e7\u00e3o \u00e0 Dial\u00e9tica do Iluminismo, escrita em 1941, eles apreenderam o n\u00facleo filos\u00f3fico dessa escurid\u00e3o:<\/p>\n

[O pensamento iluminista] j\u00e1 cont\u00e9m o germe da regress\u00e3o que est\u00e1 ocorrendo em todos os lugares hoje. Se o esclarecimento n\u00e3o assimilar a reflex\u00e3o sobre esse momento regressivo, ele sela seu pr\u00f3prio destino. Ao deixar a considera\u00e7\u00e3o do lado destrutivo do progresso para seus inimigos, o pensamento em sua corrida precipitada para o pragmatismo est\u00e1 perdendo seu car\u00e1ter de supera\u00e7\u00e3o e, portanto, sua rela\u00e7\u00e3o com a verdade.[Max Horkheimer and Theodor W. Adorno, Dialectic of Enlightenment<\/a>, trans. Edmund Jephcott, Stanford University Press, 2002, xvi<\/em>.]<\/p><\/blockquote>\n

O horizonte do s\u00e9culo<\/b><\/p>\n

Apesar da ilus\u00e3o californiana, a sobreposi\u00e7\u00e3o de redes digitais e redes conscientes org\u00e2nicas provou ser uma fonte de caos. A concretiza\u00e7\u00e3o da Raz\u00e3o resulta no caos geopol\u00edtico, ambiental e psicol\u00f3gico, como estamos vivenciando na d\u00e9cada atual. O processo de automa\u00e7\u00e3o industrial baseia-se na substitui\u00e7\u00e3o da execu\u00e7\u00e3o humana de uma tarefa pela execu\u00e7\u00e3o t\u00e9cnica da mesma tarefa. A intelig\u00eancia artificial, ao contr\u00e1rio, n\u00e3o lida apenas com tarefas, mas tamb\u00e9m com fins, e estabelece seus pr\u00f3prios objetivos. Sistemas artificiais de autoaprendizagem v\u00e3o impor seus pr\u00f3prios objetivos, suas pr\u00f3prias regras autom\u00e1ticas na totalidade social. O sistema financeiro, o cora\u00e7\u00e3o automatizado do capitalismo, imp\u00f5e sua pr\u00f3pria regra (matem\u00e1tica) ao corpo vivo. Este sistema funciona muito bem para aumentar os lucros, mas n\u00e3o para governar toda a sociedade. As redes digitais (como o sistema financeiro) penetraram no organismo social e ganharam o controle dos processos org\u00e2nicos. Mas os dois n\u00edveis n\u00e3o podem sincronizar. A exatid\u00e3o digital (conex\u00e3o) est\u00e1 interagindo mal com a express\u00e3o aleat\u00f3ria da intensidade org\u00e2nica.<\/p>\n

Tempo e matem\u00e1tica n\u00e3o coincidem, porque no tempo h\u00e1 alegria, decad\u00eancia e morte, fen\u00f4menos que a matem\u00e1tica n\u00e3o pode compreender porque pertencem ao reino da experi\u00eancia. \u201cExperiri<\/i>\u201d, no sentido de viver no horizonte da morte, no sentido de se tornar nada \u2013 isso n\u00e3o \u00e9 traduz\u00edvel em linguagem recombinat\u00f3ria.<\/p>\n

O aut\u00f4mato cognitivo e o caos vivo est\u00e3o em espiral no horizonte do s\u00e9culo.<\/p>\n

Quando a supersti\u00e7\u00e3o neoliberal foi disseminada por todo o globo, os efeitos foram precariedade, superexplora\u00e7\u00e3o, extrema solid\u00e3o e humilha\u00e7\u00e3o generalizada. Surgiu ent\u00e3o um movimento neo-reacion\u00e1rio mundial, aliado ao capitalismo corporativo predat\u00f3rio, transformando a democracia liberal em uma m\u00e1scara ret\u00f3rica.<\/p>\n

O caos vivo dos nacionalismos desenfreados se confunde com o aut\u00f4mato cognitivo: a m\u00e3o invis\u00edvel do mercado e a m\u00e3o vis\u00edvel do genoc\u00eddio nacionalista pertencem ao mesmo animal. Este animal est\u00e1 estrangulando a humanidade.<\/p>\n

*<\/strong>Franco “Bifo” Berardi \u00e9 fil\u00f3sofo, escritor e ativista italiano, fundador da R\u00e1dio Alice e importante figura do movimento autonomista italiano. No Brasil, a Ubu publicou dele<\/a> “Asfixia – Capitalismo financeiro e a insurrei\u00e7\u00e3o da linguagem”, “Depois do Futuro” e “Extremo \u2013 Cr\u00f4nicas da psicodefla\u00e7\u00e3o”<\/em>.<\/p>\n

** desobediente \u00e9 ativista e pesquisador aut\u00f4nomo.<\/em><\/p>\n

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Por Franco \u201cBifo\u201d Berardi* Tradu\u00e7\u00e3o: desobediente** Publicado originalmente em 10\/3\/2023 no e-flux   A palavra alem\u00e3 \u201cunheimlich\u201d \u00e9 dif\u00edcil de traduzir. \u201cEstranho\u201d [\u201cUncanny\u201d] \u00e9 muito fraco, \u201crepugnante\u201d [\u201ccreepy\u201d] \u00e9 muito infantil, \u201capavorante\u201d [\u201cscary\u201d] \u00e9 muito sombrio e \u201cestranho\u201d [\u201ceerie\u201d] \u00e9 chique demais. \u201cSinistro\u201d [\u201cSinister\u201d] servir\u00e1, talvez. \u201cSinistro\u201d \u00e9 uma boa tradu\u00e7\u00e3o da palavra alem\u00e3 unheimlich, […]<\/p>\n","protected":false},"author":2,"featured_media":15225,"comment_status":"open","ping_status":"open","sticky":false,"template":"","format":"standard","meta":[],"categories":[122,359],"tags":[2245,2242,2055,2244,2243,325,1837,1990],"post_folder":[],"jetpack_featured_media_url":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-content\/uploads\/2023\/04\/istubalz-texto-bifo.jpg","_links":{"self":[{"href":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/15224"}],"collection":[{"href":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-json\/wp\/v2\/posts"}],"about":[{"href":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-json\/wp\/v2\/types\/post"}],"author":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-json\/wp\/v2\/users\/2"}],"replies":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-json\/wp\/v2\/comments?post=15224"}],"version-history":[{"count":4,"href":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/15224\/revisions"}],"predecessor-version":[{"id":15229,"href":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/15224\/revisions\/15229"}],"wp:featuredmedia":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-json\/wp\/v2\/media\/15225"}],"wp:attachment":[{"href":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-json\/wp\/v2\/media?parent=15224"}],"wp:term":[{"taxonomy":"category","embeddable":true,"href":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-json\/wp\/v2\/categories?post=15224"},{"taxonomy":"post_tag","embeddable":true,"href":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-json\/wp\/v2\/tags?post=15224"},{"taxonomy":"post_folder","embeddable":true,"href":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-json\/wp\/v2\/post_folder?post=15224"}],"curies":[{"name":"wp","href":"https:\/\/api.w.org\/{rel}","templated":true}]}}