{"id":15202,"date":"2023-04-03T15:16:26","date_gmt":"2023-04-03T18:16:26","guid":{"rendered":"https:\/\/baixacultura.org\/?p=15202"},"modified":"2023-04-03T17:37:11","modified_gmt":"2023-04-03T20:37:11","slug":"comunicacao-cultura-livre-e-copia-na-era-da-inteligencia-artificial","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/baixacultura.org\/2023\/04\/03\/comunicacao-cultura-livre-e-copia-na-era-da-inteligencia-artificial\/","title":{"rendered":"Comunica\u00e7\u00e3o, cultura livre e c\u00f3pia na era da Intelig\u00eancia Artificial"},"content":{"rendered":"

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“Ol\u00e1 pessoal, uma alegria estar aqui com voc\u00eas*, exatos 6 anos depois de ter defendido minha tese, neste mesmo PPGCOM, especialmente com Al\u00ea Primo, que acompanhou meu doutorado e fez parte da minha banca de qualifica\u00e7\u00e3o e defesa, e Laura W\u00f6ttrich, amiga e colega de comunica\u00e7\u00e3o h\u00e1 mais de uma d\u00e9cada. A tese, a princ\u00edpio, n\u00e3o tem muito a ver com o que vou falar hoje: trata de uma pesquisa sobre a media\u00e7\u00e3o na M\u00eddia Ninja, especialmente a partir da cobertura das manifesta\u00e7\u00f5es de junho (julho, agosto) de 2013. Estudei, a partir de uma pesquisa etnogr\u00e1fica, como os actantes, humanos e n\u00e3o humanos (naquela \u00e9poca, sobretudo o software Twittcasting) agiram nas transmiss\u00f5es ao vivo, quem fez o outro fazer o qu\u00ea, como e o que essa a\u00e7\u00e3o influenciou no resultado final dos v\u00eddeos e o que isso significou para o midiativismo, o jornalismo e as pr\u00f3prias jornadas de junho de 2013. Digo que a princ\u00edpio a tese (dispon\u00edvel aqui<\/a>) n\u00e3o tem a ver com o que vou falar hoje porque sempre h\u00e1 algo de inexplic\u00e1vel que permanece nos interesses de nossas pesquisas durante anos. Se h\u00e1 uma conex\u00e3o mais vis\u00edvel da tese pra aula de hoje, ela diz respeito ao interesse na a\u00e7\u00e3o das tecnologias e nos \u201ch\u00edbridos\u201d que elas formam com a a\u00e7\u00e3o humana em algumas situa\u00e7\u00f5es.<\/p>\n

H\u00e1 dois anos atr\u00e1s, eu lan\u00e7ava, durante a pandemia, o livro \u201cA Cultura \u00e9 Livre: uma hist\u00f3ria da resist\u00eancia antipropriedade<\/a>\u201d, fruto de um trabalho de quase 10 anos de pesquisa junto ao BaixaCultura – laborat\u00f3rio online, coletivo, blog. O livro nasceu como uma tentativa de conceituar, situar e contextualizar a cultura livre, uma ideia que se propagou a partir do software livre, nos anos 1990, e ganhou destaque com as discuss\u00f5es em torno do livre compartilhamento de arquivos (\u201cpirataria\u201d) na internet dos anos 2000. Para isso, o trabalho realizado foi o de uma genealogia que resgata uma parte da circula\u00e7\u00e3o dos bens culturais na Antiguidade, a grande transforma\u00e7\u00e3o da inven\u00e7\u00e3o da Imprensa de Gutemberg na Idade M\u00e9dia e a posterior ascens\u00e3o do Capitalismo com o modo de produ\u00e7\u00e3o, tendo a propriedade como sua base. Da\u00ed se originou a no\u00e7\u00e3o de propriedade intelectual, que resultou na consolida\u00e7\u00e3o dos bens culturais como mercadoria e do direito autoral como o sistema a regular estes bens, a partir do s\u00e9culo XIX. Tamb\u00e9m da\u00ed nasceram algumas das resist\u00eancias a este sistema, sobretudo no campo art\u00edstico e pol\u00edtico de vanguarda do s\u00e9culo XX, primeiro em termos mais conceituais, como os trabalhos do Dada, dos situacionistas franceses da d\u00e9cada de 1950 e 60, depois tamb\u00e9m em termos pr\u00e1ticos, sobretudo no punk rock e na cultura do fanzine e da arte postal nos anos 1970. O que seria do hip-hop e do rap se n\u00e3o fosse o desrespeito \u00e0 propriedade intelectual na cria\u00e7\u00e3o dos samplers? Esses movimentos do s\u00e9culo XX tamb\u00e9m acompanharam a not\u00e1vel prolifera\u00e7\u00e3o de meios tecnol\u00f3gicos de reprodu\u00e7\u00e3o – da fotocopiadora ao videocassete, das vitrolas \u00e0s fitas-cassetes – e ascens\u00e3o dos chamados meios de Comunica\u00e7\u00e3o de massa, com o cinema, o r\u00e1dio e a TV passando a fazer parte no cotidiano de bilh\u00f5es de pessoas. Retrato um pouco desse per\u00edodo e das tecnologias de reprodu\u00e7\u00e3o do in\u00edcio do s\u00e9culo XX at\u00e9 o computador no cap\u00edtulo 4 do livro, n\u00e3o por acaso chamado de \u201cCultura Recombinante\u201d.<\/p>\n

Pr\u00f3ximo da metade, o livro enfim chega aos anos 1970, \u00e0 cria\u00e7\u00e3o do computador pessoal, do software livre, e duas d\u00e9cadas depois, da internet. A partir da\u00ed, foca nas discuss\u00f5es em torno da cultura livre a partir do conceito de copyleft<\/i>, um dos grandes hacks <\/i>no sistema de propriedade intelectual criado no s\u00e9culo XIX. Escrevi na p\u00e1gina 149: \u201cComo trocadilho ou de forma literal, o copyleft foi o conceito, expresso na licen\u00e7a GPL e outras ligadas ao Projeto GNU que a seguem at\u00e9 hoje, de requerer a posse legal para, na pr\u00e1tica, renunciar a esta ao autorizar que todos fa\u00e7am o uso que desejarem da obra, desde que transmitam suas mesmas liberdades a outros. A exig\u00eancia formal da posse significa que nenhuma outra pessoa poder\u00e1 colocar um copyright em cima de uma obra copyleft e tentar limitar o seu uso\u201d.<\/p>\n

Do copyleft se origina, no in\u00edcio dos anos 2000, os Creative Commons<\/i>, conjunto de licen\u00e7as (e depois uma ONG) que vai ajudar a expandir a ideia da cultura e do conhecimento livre para o mundo inteiro, dando tamb\u00e9m origem aos movimentos da Educa\u00e7\u00e3o Aberta (aqui no Brasil chamado de REA, Recursos Educacionais Abertos<\/a>), Ci\u00eancia Aberta<\/a> e OpenGlam<\/a> (\u201cgalerias, bibliotecas, arquivos e museus abertos\u201d), ainda hoje ativos. \u00c0 discuss\u00e3o (e tamb\u00e9m \u00e0s cr\u00edticas) sobre cultura livre se segue as transforma\u00e7\u00f5es na internet e na comunica\u00e7\u00e3o digital, em que a curadoria \u201chumana\u201d – aleat\u00f3ria e solta, exemplificadas pelo h\u00e1bito de flanar <\/i>pelos blogs e sites, pr\u00e1tica comum dos usu\u00e1rios da internet dos anos 2000 – passa a ser gradativamente substitu\u00edda pela curadoria algor\u00edtmica. O que pode ser visto principalmente a partir da consolida\u00e7\u00e3o das redes sociais – sobretudo com o modelo \u201cTimeline\u201d do Facebook (que vai influenciar as outras redes a partir dos anos 2010), como conta o Willian Ara\u00fajo na tese de doutorado defendida neste mesmo programa<\/a> – e do streaming<\/i> como sistemas algor\u00edtmicos de sele\u00e7\u00e3o e recomenda\u00e7\u00e3o de informa\u00e7\u00e3o e conte\u00fado de predom\u00ednio na internet.<\/p>\n

[Lembrando: sistemas algor\u00edtmicos de recomenda\u00e7\u00e3o, por exemplo, s\u00e3o IAs?<\/b>]<\/p>\n

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Ao final, \u201cA Cultura \u00e9 Livre\u201d traz a perspectiva sobre a quest\u00e3o da cultura e do conhecimento livre para outros modos de exist\u00eancia que n\u00e3o o hegem\u00f4nico ocidental, vendo como os amer\u00edndios e povos do extremo oriente (como os chineses) t\u00eam at\u00e9 hoje no\u00e7\u00f5es historicamente muito distintas sobre o que \u00e9 propriedade intelectual, c\u00f3pia e original, conhecimento aberto e coletivo. Com estas perspectivas tento lembrar que existem modos de ver o mundo, presentes em muitos lugares e comunidades tradicionais, que entram em conflito com certas ideias e modos de agir ocidentais no\u00e7\u00e3o de propriedade intelectual se erigiu.<\/p>\n

Por exemplo, na China, eu falo no livro do \u201cShanzai\u201d, um neologismo chin\u00eas criado nos anos 2000 para dizer o que \u00e9 falso, fake. Abarca de literatura a pr\u00eamios Nobel, deputados, parques de divers\u00f5es, t\u00eanis, m\u00fasicas, filmes, hist\u00f3rias das mais diversas. No princ\u00edpio, o termo se referia s\u00f3 aos telefones (smartphones) ou \u00e0 falsifica\u00e7\u00e3o de produtos de marcas como Nokia ou Samsung e que se comercializam com o nome de Nokir, Samsing ou Anycat. Logo, por\u00e9m, se expandiram para todas as \u00e1reas, em jogos que, \u00e0 maneira do Dada, usavam da criatividade e de efeitos par\u00f3dicos e subversivos com as marcas \u201coriginais\u201d para criar outros nomes \u2013 Adidas, por exemplo, se converte em Adidos, Adadas, Adis, Dasida… S\u00e3o, por\u00e9m, mais que meras falsifica\u00e7\u00f5es: seus desenhos e funcionalidades n\u00e3o devem nada aos originais e as modifica\u00e7\u00f5es t\u00e9cnicas ou est\u00e9ticas realizadas lhes conferem uma identidade pr\u00f3pria.<\/p>\n

Uma parte desse modo de ver o processo de cria\u00e7\u00e3o como algo mais coletivo que individual, que tamb\u00e9m origina o shanzai<\/i>, remete ao confucionismo, um conjunto de ideias que foi dominante na China durante mais de 1000 anos, s\u00f3 perdendo for\u00e7a no in\u00edcio do s\u00e9culo XX. A influ\u00eancia do confucionismo na cultura chinesa fez a perspectiva do direito autoral na regi\u00e3o ser voltada, durante muito tempo, mais \u00e0 defesa de uma base de informa\u00e7\u00e3o p\u00fablica, de livre acesso e reuso \u2013 o que no Ocidente foi chamado de dom\u00ednio p\u00fablico. Como escrevi na p.220 do livro, \u201ca demora da China em assinar tratados internacionais de propriedade intelectual (a partir da d\u00e9cada de 1980, quando tamb\u00e9m o pa\u00eds passa a ser parte da World Intellectual Property Organization) tem rela\u00e7\u00e3o com uma cultura coletiva e de defesa do dom\u00ednio p\u00fablico enraizada desde muito tempo em sua sociedade. E tamb\u00e9m se associa com a propaga\u00e7\u00e3o da cultura shanzai j\u00e1 citada, que tem a c\u00f3pia como base para a recria\u00e7\u00e3o de diferentes produtos e marcas a partir de uma pr\u00e1tica criativa compiladora enraizada no dia a dia do povo da regi\u00e3o\u201d.<\/p>\n

O sistema da mercadoria conhecido no Ocidente \u00e9, como se sabe, diferente para as perspectivas dos povos tradicionais – n\u00e3o \u00e9 por acaso que Davi Kopenawa chama n\u00f3s, os brancos, do \u201cpovo da mercadoria\u201d, no monumental \u201cA Queda do C\u00e9u\u201d. Nas palavras da antrop\u00f3loga Marilyn Strathern (1984), \u00e9 a oposi\u00e7\u00e3o da economia da commodity<\/i>, na qual as pessoas e coisas assumem a forma social de coisas, com a economia da d\u00e1diva (gift), na qual pessoas e coisas assumem a forma social das pessoas<\/i>. Como escrevi na p.216 do livro, \u201c\u00c9 nesse sentido que, em sociedades origin\u00e1rias de diversos locais do mundo, o modelo de propriedade (particularmente o de propriedade intelectual), calcado na rela\u00e7\u00e3o da obra de arte como mercadoria de consumo, se torna insuficiente para lidar com uma rela\u00e7\u00e3o mais duradoura e complexa da circula\u00e7\u00e3o de objetos. No sistema cultural das sociedades origin\u00e1rias, \u00e9 percept\u00edvel, por exemplo, a centralidade dos valores coletivos, ligados \u00e0 pluralidade e \u00e0 sobreviv\u00eancia da comunidade, em rela\u00e7\u00e3o aos valores individuais, de uso exclusivo e escolha individual. O que, por sua vez, faz com que os bens culturais e de conhecimento nesse contexto sejam mais dif\u00edceis de se tornar apenas mais uma commodity<\/i> vendida como mercadoria, pois h\u00e1 princ\u00edpios e responsabilidades de reciprocidade e solidariedade que buscam valorizar a subst\u00e2ncia moral pr\u00f3pria \u2013 que poder\u00edamos tamb\u00e9m nomear como \u201calma\u201d \u2013 dos objetos em suas rela\u00e7\u00f5es com as pessoas e o mundo\u201d.<\/p>\n

A partir desse breve panorama, enfim podemos nos perguntar: como podemos falar em original e c\u00f3pia se uma cultura de dois mil\u00eanios do Extremo Oriente incentiva a reprodu\u00e7\u00e3o e trata como mais importante do que a origem de uma ideia o seu conte\u00fado e a sua perman\u00eancia, mesmo que modificada e reinventada a cada contexto? Ou como dizer que h\u00e1 um \u00fanico humano dono de ideias quando para muitos povos origin\u00e1rios, entre eles alguns amer\u00edndios, n\u00e3o existe a separa\u00e7\u00e3o entre sujeito e objeto como conhecemos no Ocidente, e a subjetividade criadora, a quem se deveria atribuir a \u201cautoria\u201d ou a \u201cposse\u201d dos bens, \u00e9 distribu\u00edda em uma vasta rede que inclui pessoas e objetos, natureza e sociedade de modo praticamente sim\u00e9trico?<\/p>\n

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Imagem criada por Giselle Beiguelman a partir dos processos text-to-image e image-to-image, como ela detalha em<\/em> Ensaio M\u00e1quinas Companheiras<\/a>, 2023.<\/em><\/p><\/div>\n

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CHEGAMOS ENFIM \u00c0S IAS<\/strong><\/p>\n

\u00c9 na discuss\u00e3o sobre c\u00f3pia e original que, enfim, chegamos \u00e0 discuss\u00e3o mais quente do momento, as intelig\u00eancias artificiais. Com a crescente populariza\u00e7\u00e3o dos sistemas de Intelig\u00eancia Artificial GENERATIVAS (que s\u00e3o capazes de gerar textos e imagens de forma aut\u00f4noma), como o ChatGPT e o MidJourney, parece que estamos nos encaminhando para um outro momento hist\u00f3rico para discutir tanto a comunica\u00e7\u00e3o digital quanto a cultura e o conhecimento livre, o direito autoral e a propriedade intelectual. Alguns pesquisadores da \u00e1rea computacional indicam que, em breve, a quantidade de texto\/imagem gerada por IAs tende a superar toda produ\u00e7\u00e3o humana. N\u00e3o \u00e9 dif\u00edcil de imaginar: baseado no aprendizado de m\u00e1quina, o potencial \u00e9 tendencialmente infinito de cria\u00e7\u00e3o de obras. Mas dado que estes sistemas funcionam principalmente com novas apresenta\u00e7\u00f5es de ideias que j\u00e1 foram geradas (e registradas em computadores), ser\u00e1 poss\u00edvel reconhecer as fontes e identificar a autoria de uma informa\u00e7\u00e3o trazida por estas IAs? Os sistemas \u201cartificiais\u201d – e tamb\u00e9m os \u201chumanos\u201d, ou seria melhor dizer para ambos \u201ch\u00edbridos\u201d? – de controle da informa\u00e7\u00e3o poder\u00e3o impor limites a esta prolifera\u00e7\u00e3o e checar a veracidade daquilo que \u00e9 informado? Como poderemos falar de c\u00f3pia e original num mundo cada vez mais dominado por m\u00faltiplas c\u00f3pias reproduzidas ad infinitum <\/i>por sistemas algor\u00edtmicos \u201cinteligentes\u201d?<\/p>\n

Proponho, claro, mais perguntas do que dou respostas. Tanto porque ainda \u00e9 uma pesquisa inicial, que est\u00e1 come\u00e7ando enquanto, digamos, pesquisa formal acad\u00eamica, estruturada a partir da FGV ECMI, onde hoje trabalho como pesquisador e professor. Mas principalmente porque ningu\u00e9m sabe ainda responder estas e outras quest\u00f5es sobre IAs; as pr\u00f3prias empresas que est\u00e3o na ponta de lan\u00e7a dessa discuss\u00e3o em 2023, como a Open IA, est\u00e3o aprendendo<\/i> sobre os impactos dos sistemas que criam com o feedback dos milh\u00f5es de usu\u00e1rios. As respostas e os diferentes usos inventados pelas pessoas trazem novas respostas e novas \u201calucina\u00e7\u00f5es\u201d dos sistemas, que est\u00e3o tendo que ser corrigidos em tempo quase real.<\/p>\n

H\u00e1, claro, um risco muito grande em experimentar ao vivo com uma tecnologia de impacto t\u00e3o transformador na produ\u00e7\u00e3o de informa\u00e7\u00e3o, e n\u00e3o \u00e0 toa a discuss\u00e3o sobre \u00e9tica em IA \u00e9 um dos grandes temas em debate j\u00e1 faz alguns anos<\/a> (ou d\u00e9cadas). A ONU j\u00e1 deu recomenda\u00e7\u00f5es, em 2021<\/a>, para a suspens\u00e3o do uso de IAs em sistemas de reconhecimento facial at\u00e9 que haja regula\u00e7\u00e3o sobre a utiliza\u00e7\u00e3o da tecnologia, assim como recentemente saiu uma carta assinada por mais de mil especialistas e personalidades<\/a>, como Steve Wozniak, co-criador da Apple, Yuval Noah Harari, famoso historiador, al\u00e9m do bilion\u00e1rio sem escr\u00fapulos Elon Musk, pedindo uma morat\u00f3ria, uma “parada obrigat\u00f3ria pra pensar\u201d sobre as consequ\u00eancias do desenvolvimento desenfreado das IAs, especialmente as generativas como o ChatGPT.<\/p>\n

Para entender um pouco sobre o que falamos quando tratamos de IAs generativas como o ChatGPT, gosto da imagem criada por um dos melhores textos dos muitos que publicados sobre o tema entre janeiro de 2023 pra c\u00e1. Ele se chama \u201cChatGPT is a blurry JPEG of the Web<\/a>\u201d e foi escrito por Ted Chiang para a New Yorker de fevereiro de 2023.<\/p>\n

\u201cPense no ChatGPT como um jpeg borrado de todo o texto na Web. Ele ret\u00e9m grande parte das informa\u00e7\u00f5es da Web, da mesma forma que um jpeg ret\u00e9m grande parte das informa\u00e7\u00f5es de uma imagem de alta resolu\u00e7\u00e3o. Mas se voc\u00ea estiver procurando por uma sequ\u00eancia exata de bits, n\u00e3o a encontrar\u00e1; tudo o que voc\u00ea obter\u00e1 \u00e9 uma aproxima\u00e7\u00e3o. Mas, como a aproxima\u00e7\u00e3o \u00e9 apresentada na forma de texto gramatical, que o ChatGPT se destaca na cria\u00e7\u00e3o, geralmente \u00e9 aceit\u00e1vel. Voc\u00ea ainda est\u00e1 olhando para um jpeg emba\u00e7ado, mas o desfoque ocorre de uma forma que n\u00e3o torna a imagem como um todo menos n\u00edtida\u201d.<\/p><\/blockquote>\n

A imagem do JPEG borrado nos ajuda a entender que o sistema criado pela Open IA \u201cengole\u201d (quase) toda a internet e regurgita reformulando o que engoliu, n\u00e3o palavra por palavra. Que apesar de inventar refer\u00eancias e outras informa\u00e7\u00f5es erradas (quem usou certamente j\u00e1 foi surpreendido com um livro, um artigo inexistente), ele n\u00e3o \u201cmente\u201d, mas escreve respostas \u201cprov\u00e1veis\u201d – ou \u201cborradas\u201d, seguindo na met\u00e1fora – baseada nos pesos e c\u00e1lculos feitos a partir de cada token<\/i> (entrada) gerado, como mostra esse infogr\u00e1fico produzido pela Super Interessante<\/a>. S\u00e3o milhares de recombina\u00e7\u00f5es de ideias que j\u00e1 foram geradas pela mente humana, mostradas a partir de uma an\u00e1lise estat\u00edstica de uma gigantesca base de dados. Base que, gigante que j\u00e1 \u00e9 (e n\u00e3o sabemos bem o qu\u00e3o gigante \u00e9, outro grande problema ocasionado pela falta de transpar\u00eancia), tende a crescer cada vez mais, alimentadas por informa\u00e7\u00f5es coletadas na rede sem autoriza\u00e7\u00e3o. Ser\u00e1 que precisam ter autoriza\u00e7\u00e3o para isso? Ser\u00e1 que a coleta de dados n\u00e3o refor\u00e7a ainda mais o datacolonialismo, a extra\u00e7\u00e3o (e a explora\u00e7\u00e3o) de dados de maneira desigual do sul global?<\/p>\n

Outras perguntas que trago aqui hoje d\u00e3o uma amostra das potencialidades transformadoras, para \u201cbem ou mal\u201d, das IAs generativas tamb\u00e9m para a discuss\u00e3o em comunica\u00e7\u00e3o e circula\u00e7\u00e3o de informa\u00e7\u00e3o e bens culturais:<\/p>\n

_ Se por um lado o crescente uso de sistemas de IA em trabalhos cotidianos favorece os usu\u00e1rios (inclusive na cria\u00e7\u00e3o de novas \u201cocupa\u00e7\u00f5es\u201d, como design ou engenheiro de prompt), de outro \u00e9 um problema concorrencial para os criadores intelectuais<\/em>, especialmente para aqueles tipos de cria\u00e7\u00e3o ditas instrumentais, como um cartaz de um evento, um \u201ccard\u201d de rede social, uma trilha para um v\u00eddeo, uma ilustra\u00e7\u00e3o para um trabalho qualquer;<\/p>\n

_ O problema da concentra\u00e7\u00e3o de mercado, tal qual as big techs hoje<\/em>. Empresas de IA necessitam um investimento inicial alto, mas um custo de manuten\u00e7\u00e3o baixo para continuar produzindo obras e aumentando a oferta, o que \u00e9 feito sem ser acompanhado por um aumento proporcional de demanda (esta quest\u00e3o trago do livro de Pedro Lana, advogado e doutorando em Direito na UFPR, chamado: \u201cIntelig\u00eancia Artificial e Autoria: Quest\u00f5es de Direito de Autor e Dom\u00ednio P\u00fablico<\/a>\u201d, lan\u00e7ado neste 2023).<\/p>\n

_ A \u201capropria\u00e7\u00e3o\u201d do espa\u00e7o comum (dom\u00ednio p\u00fablico) das ideias<\/em>. Um n\u00famero muito grande de obras produzidas pode exaurir a quantidade de express\u00f5es poss\u00edveis de uma ideia em um certo meio – m\u00fasica, por exemplo, onde j\u00e1 h\u00e1 casos de IAs, como a do Google Assistente, que reconhece os samplers de uma m\u00fasica<\/a>, trechos de at\u00e9 menos de 1s. Identificar pode significar tamb\u00e9m controlar e restringir; quem j\u00e1 subiu um v\u00eddeo com uma m\u00fasica protegida por copyright no Youtube, Instagram ou outra plataforma sabe como, pela justificativa de \u201cdefender a propriedade\u201d, as empresas de tecnologia j\u00e1 identificam e barram rapidamente a circula\u00e7\u00e3o de informa\u00e7\u00f5es. Teria nascido o hip hop se todos os samplers usados fossem identificados, controlados e restringidos? O rapper brasileiro DOn L sacou esse perigo e escreveu assim no Twitter<\/a>: \u201co capitalismo vai acabar com a arte do sample. sou totalmente contra ter que pagar por samples irreconhec\u00edveis por um humano. se for por essa l\u00f3gica, deveria ter direito autoral pros instrumentos. pagar pra yamaha, korg etc em toda musica kk\u201d.<\/p>\n

_ Os vieses, as alucina\u00e7\u00f5es; e as fontes? Novamente: cad\u00ea a transpar\u00eancia<\/em>?<\/p>\n

Aqui talvez estejam alguns dos maiores problemas hoje. Envolvem, por exemplo, os vieses, \u201calucina\u00e7\u00f5es\u201d, erros cometidos pelo ChatGPT e explora\u00e7\u00e3o de trabalhadores para \u201ccorrigir\u201d manualmente as IAs<\/a>, que nos fazem vislumbrar um cen\u00e1rio cada vez mais pr\u00f3ximo de uma \u201cDark Digital Age\u201d.O hist\u00f3rico de alucina\u00e7\u00e3o de cunho fascista das \u00faltimas IAs n\u00e3o \u00e9 dos melhores<\/a>; ser\u00e1 diferente agora? Se sim, como? Quais as medidas regulat\u00f3rias poss\u00edveis para que estas m\u00e1quinas n\u00e3o virem monstros racistas, mis\u00f3ginos e propagadores de fake news? H\u00e1 muita discuss\u00e3o no tema, especialmente sobre legisla\u00e7\u00f5es poss\u00edveis – algumas delas trouxe nesse texto do BaixaCultura<\/a>. Vale acompanhar o trabalho da Coaliz\u00e3o Direitos na Rede<\/a>, que est\u00e1 nessa e em outras pautas importantes em defesa dos direitos digitais.<\/p>\n

No aspecto jur\u00eddico, vale lembrar tamb\u00e9m do fair use<\/i>, o uso justo e suas limita\u00e7\u00f5es e exce\u00e7\u00f5es que tornaram-se um dos pilares legais dos quais os aplicativos de IA dependem. Sua defesa e amplia\u00e7\u00e3o, como diz Lukas Ruthes Gon\u00e7alves nesse texto<\/a>, \u201cs\u00e3o primordiais para que criadores e inventores possam continuar a recombinar conhecimentos existentes para criar novas e excitantes possibilidades, como faziam anteriormente com a c\u00e2mera e programas de edi\u00e7\u00e3o de imagens como o photoshop\u201d.<\/p>\n

Por fim, lembro Benjamin para remixar uma quest\u00e3o j\u00e1 cl\u00e1ssica: como se identifica uma obra de arte na era de sua \u201creprodutibilidade algor\u00edtmica\u201d? Se, como disse Hal Foster em \u201cO que vem depois da Farsa?<\/a>\u201d, a for\u00e7a negativa da automa\u00e7\u00e3o \u00e9 menos a perda da \u201caura\u201d, como acreditava Benjamin, e mais a perda do \u201crisco individual\u201d e da \u201cparticipa\u00e7\u00e3o comunal\u201d, o que dir\u00edamos de processos n\u00e3o s\u00f3 automatizados quanto aut\u00f4nomos<\/i>? Ali\u00e1s, qu\u00e3o aut\u00f4nomos <\/em>s\u00e3o estes sistemas? Outra quest\u00e3o: ser\u00e1 que a obra de arte \u00e9 fruto apenas do esp\u00edrito humano?, como se pergunta o advogado e professor de Direito Guilherme Carboni.\u00a0<\/a> Teria chegado a hora de, como os ind\u00edgenas fazem a muito tempo, rever o antropocentrismo, dando status de criadores a seres n\u00e3o-humanos, \u201cartificiais\u201d ou \u201cnaturais\u201d?<\/p>\n

S\u00e3o muitas perguntas, deixo para voc\u00eas trazerem mais outras. Obrigado!”<\/p>\n

[Leonardo Foletto]<\/strong><\/p>\n

* Esse texto parte da aula do dia 24\/3, com o intuito de registrar algumas das conversas do dia. Foi elaborado antes e editado, com alguns acr\u00e9scimos, at\u00e9 a publica\u00e7\u00e3o.<\/em> A apresenta\u00e7\u00e3o utilizada na aula est\u00e1 dispon\u00edvel aqui<\/a>.<\/p>\n

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Fotos: Laura W\u00f6ttrich, professora do PPGCOM-UFRGS<\/p><\/div>\n

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Laura, Al\u00ea e Leonardo. Foto: Augusto Paim<\/p><\/div>\n

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  “Ol\u00e1 pessoal, uma alegria estar aqui com voc\u00eas*, exatos 6 anos depois de ter defendido minha tese, neste mesmo PPGCOM, especialmente com Al\u00ea Primo, que acompanhou meu doutorado e fez parte da minha banca de qualifica\u00e7\u00e3o e defesa, e Laura W\u00f6ttrich, amiga e colega de comunica\u00e7\u00e3o h\u00e1 mais de uma d\u00e9cada. A tese, a […]<\/p>\n","protected":false},"author":2,"featured_media":15203,"comment_status":"open","ping_status":"open","sticky":false,"template":"","format":"standard","meta":[],"categories":[122],"tags":[2126,216,2171,147,1837,2241,1196,274],"post_folder":[],"jetpack_featured_media_url":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-content\/uploads\/2023\/04\/aula-ufrgs-robo.jpg","_links":{"self":[{"href":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/15202"}],"collection":[{"href":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-json\/wp\/v2\/posts"}],"about":[{"href":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-json\/wp\/v2\/types\/post"}],"author":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-json\/wp\/v2\/users\/2"}],"replies":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-json\/wp\/v2\/comments?post=15202"}],"version-history":[{"count":9,"href":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/15202\/revisions"}],"predecessor-version":[{"id":15213,"href":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/15202\/revisions\/15213"}],"wp:featuredmedia":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-json\/wp\/v2\/media\/15203"}],"wp:attachment":[{"href":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-json\/wp\/v2\/media?parent=15202"}],"wp:term":[{"taxonomy":"category","embeddable":true,"href":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-json\/wp\/v2\/categories?post=15202"},{"taxonomy":"post_tag","embeddable":true,"href":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-json\/wp\/v2\/tags?post=15202"},{"taxonomy":"post_folder","embeddable":true,"href":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-json\/wp\/v2\/post_folder?post=15202"}],"curies":[{"name":"wp","href":"https:\/\/api.w.org\/{rel}","templated":true}]}}