{"id":13578,"date":"2021-03-29T14:16:58","date_gmt":"2021-03-29T14:16:58","guid":{"rendered":"https:\/\/baixacultura.org\/?p=13578"},"modified":"2021-03-29T14:16:58","modified_gmt":"2021-03-29T14:16:58","slug":"entre-livres-e-solidaries-ou-re-isso-nao-e-um-manifesto-aberto-e-livre-em-reflexao","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/baixacultura.org\/2021\/03\/29\/entre-livres-e-solidaries-ou-re-isso-nao-e-um-manifesto-aberto-e-livre-em-reflexao\/","title":{"rendered":"Entre livres e solid\u00e1ries \u2013 ou [Re: Isso n\u00e3o \u00e9 um manifesto: aberto e livre em reflex\u00e3o]"},"content":{"rendered":"
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Imagem CC-BY por David Revoy <https:\/\/www.peppercarrot.com\/en\/article237\/episode-2-rainbow-potions<\/a>><\/p><\/div>\n

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Ni! Concordando com o esp\u00edrito geral do texto Isso n\u00e3o \u00e9 um manifesto: aberto e livre em reflex\u00e3o<\/a> de Marina de Freitas e Saulo Jacques, igualmente publicado aqui no Baixa Cultura, me senti provocado a reagir a alguns pontos*.<\/p>\n

A liberdade solid\u00e1ria do Software Livre<\/h2>\n

Os movimentos do que chamamos hoje \u201caberto e livre\u201d estruturaram-se com ra\u00edzes no Software Livre: a Wikip\u00e9dia, onde uma licen\u00e7a GNU<\/a> foi consagrada como a primeira licen\u00e7a para Recursos Educacionais Abertos; a cultura livre, onde es autoraes**<\/sup> das pioneiras licen\u00e7as Arte Livre e Creative Commons se inspiram explicitamente no Software Livre; o acesso aberto, onde o arXiv surge num ambiente de f\u00edsiques banhades na filosofia do projeto GNU; at\u00e9 tend\u00eancias mais recentes em hardware e biotecnologias que j\u00e1 surgem num mundo cient\u00edfico onde o Software Livre e sua filosofia s\u00e3o incontorn\u00e1veis.<\/p>\n

O Software Livre, por sua vez, \u00e9 fundado sobre a liberdade na sua conota\u00e7\u00e3o solid\u00e1ria, e sua filosofia \u2013 mais ou menos silenciosamente \u2013 permeia todos esses movimentos, tanto quanto neles est\u00e3o presentes pessoas motivadas por seus aspectos \u00e9ticos. A ideia de “ajudar seu vizinho” e a Regra de Ouro sendo centrais no argumento avan\u00e7ado por Stallman, devemos cuidar para n\u00e3o construir discursos como se isso n\u00e3o existisse, como se essas ideias estivessem ausentes desses movimentos, e evitar julg\u00e1-los por n\u00e3o solucionarem problemas que debordam seus objetivos, sob o risco de invisibilizar suas contribui\u00e7\u00f5es e apontar falsas solu\u00e7\u00f5es.<\/p>\n

H\u00e1 muito tempo se discutem e se organizam a\u00e7\u00f5es nas comunidades do livre sobre quest\u00f5es transversais como educa\u00e7\u00e3o, inclus\u00e3o, justi\u00e7a. No Brasil, s\u00f3 para lembrar alguns exemplos, houve a hist\u00f3rica parceria entre os movimentos de software e cultura livres no tempo dos pontos de cultura, e desses com educa\u00e7\u00e3o popular e inclus\u00e3o social atrav\u00e9s de iniciativas p\u00fablicas e privadas de metarreciclagem e capacita\u00e7\u00e3o digital, e discuss\u00f5es a respeito de quest\u00f5es de g\u00eanero em hackerspaces promovendo mudan\u00e7as concretas. Se os resultados finais s\u00e3o aqu\u00e9m do desejado, como certamente s\u00e3o se olharmos pelo prisma da quest\u00e3o da participa\u00e7\u00e3o feminina, n\u00e3o se trata de simples quest\u00e3o de ignor\u00e2ncia, desaten\u00e7\u00e3o ou ina\u00e7\u00e3o. A li\u00e7\u00e3o a se tirar \u00e9 tamb\u00e9m que esses s\u00e3o problemas dur\u00edssimos e estruturais, que merecem continuar sendo pressionados mas que dificilmente se resolver\u00e3o por iniciativa isolada dessas comunidades.<\/p>\n

Num outro \u00e2ngulo, apesar do texto de Marina e Saulo n\u00e3o falar nisso, ele traz \u00e0 mente o argumento meio modinha de pensar em usar licen\u00e7as para resolver problemas externos ao seu objeto, o que acaba sendo um baita tiro no p\u00e9. As licen\u00e7as, em especial as licen\u00e7as GNU, s\u00e3o um instrumento para avan\u00e7ar o objetivo social e solid\u00e1rio do Software Livre. Elas foram pensadas considerando essas dimens\u00f5es mais amplas. Em particular, a escolha de n\u00e3o incluir outras dimens\u00f5es, sociais ou culturais, nas licen\u00e7as foi muito bem pensada e, ao meu ver, se mostra sistematicamente correta. O sentido da implica\u00e7\u00e3o no t\u00edtulo do livro “Free Software, Free Society<\/a>” \u00e9 que uma sociedade livre depende de (i.e., implica) software livre, n\u00e3o o contr\u00e1rio. Problemas pol\u00edticos se resolvem com pol\u00edtica, n\u00e3o com gambiarras jur\u00eddicas ou t\u00e9cnicas. Uma sociedade livre se constr\u00f3i com software livre, mas ele \u00e9 s\u00f3 uma das exig\u00eancias do princ\u00edpio de liberdade solid\u00e1ria que a fundamenta.<\/p>\n

O risco de dados abertos n\u00e3o pessoais<\/h2>\n

O argumento de que certo dados – outros dados que n\u00e3o os de vida privada – podem representar um perigo e n\u00e3o devem ser abertos n\u00e3o me parece proceder para al\u00e9m de uma vis\u00e3o de curto prazo e ao meu ver pouco estrat\u00e9gica. Se algu\u00e9m acha que uma grande empreiteira n\u00e3o tem acesso a dados urbanos “secretos”, que o lobby ruralista n\u00e3o tem acesso a dados fundi\u00e1rios \u201crestritos\u201d, ou que uma grande farmac\u00eautica n\u00e3o tem acesso a dados de biodiversidade “seguros”, esse algu\u00e9m precisa se informar melhor. O mercado negro para dados e infiltra\u00e7\u00f5es \u00e9 terrivelmente maior do que se discute. Se o valor for alto, tudo est\u00e1 dispon\u00edvel. A din\u00e2mica real provocada ao se esconder dados \u00e9 que es poderoses v\u00e3o ter acesso a eles, enquanto o resto vai se iludir achando que os dados est\u00e3o seguros. E o resultado disso \u00e9 que a explora\u00e7\u00e3o ser\u00e1 ainda mais ampla e irrestrita, pois ningu\u00e9m estar\u00e1 ciente do perigo. Abrir os dados joga \u00e0s claras os perigos, t\u00e3o reais como incontorn\u00e1veis, permitindo a mobiliza\u00e7\u00e3o pol\u00edtica para remedi\u00e1-los, seja com mais fiscaliza\u00e7\u00e3o, com compensa\u00e7\u00f5es, ou at\u00e9 mesmo com a escolha de n\u00e3o se produzir certos dados. Mas uma vez que um dado foi produzido, vale o princ\u00edpio de que n\u00e3o se esconde informa\u00e7\u00e3o des poderoses. H\u00e1 situa\u00e7\u00f5es onde pode parecer poss\u00edvel ou muito necess\u00e1rio esconder informa\u00e7\u00f5es, e nesses casos consideraria que isso se d\u00ea apenas no curto prazo enquanto se estrutura uma estrat\u00e9gia para sua abertura respons\u00e1vel, pois no m\u00e9dio prazo deve-se supor que, querendo ou n\u00e3o, eles est\u00e3o acess\u00edveis.<\/p>\n

S\u00f3 para completar, sim, dados da vida privada s\u00e3o diferentes \u2013 n\u00e3o cabe expandir aqui, mas n\u00e3o \u00e9 dif\u00edcil entender que eles operam de outra forma.<\/p>\n

A reatividade das tecnologias abertas<\/h2>\n

Tamb\u00e9m n\u00e3o concordo que as tecnologias abertas sejam particularmente reativas. No caso de softwares, grande parte das “inova\u00e7\u00f5es” propriet\u00e1rias s\u00e3o inspiradas de inova\u00e7\u00f5es abertas, assim como vice-versa. De editores de texto a aplicativos de mensagem e plataformas de publica\u00e7\u00e3o, a maior parte das aplica\u00e7\u00f5es que usamos quotidianamente evolu\u00edram entre o livre e o propriet\u00e1rio. Exceto pelo fato de redes livres serem principalmente m\u00faltiplas e de pequena escala, pois manter grandes servi\u00e7os centralizados depende frequentemente da explora\u00e7\u00e3o de dados pessoais que contraria a \u00e9tica do livre \u2013 e justamente a\u00ed temos uma imensa e intensa din\u00e2mica de inova\u00e7\u00e3o para prover a integra\u00e7\u00e3o de redes descentralizadas, conduzida por uma constela\u00e7\u00e3o de atores do livre.<\/p>\n

A reatividade aparece assim como uma din\u00e2mica intr\u00ednseca \u00e0 inova\u00e7\u00e3o, e n\u00e3o particular \u00e0s tecnologias abertas. J\u00e1 em dimens\u00f5es que n\u00e3o da abertura do c\u00f3digo tamb\u00e9m pode se constatar algo semelhante, por exemplo o AirBnB<\/strong> \u2013 plataforma de capitalismo digital \u2013 n\u00e3o \u00e9 nada al\u00e9m de Couchsurfing<\/strong> \u2013 plataforma de solidariedade digital \u2013 com um bot\u00e3o de pagamento. De modo que falar em falta de criatividade de tecnologias livres \u00e9 vestir um falso estigma. O que tem de ser apontado s\u00e3o: a falta de a\u00e7\u00f5es e regula\u00e7\u00f5es favor\u00e1veis da parte de governos que montam imensas estruturas para subvencionar sistemas de “propriedade intelectual”; a falta de prioridade em contratos p\u00fablicos para produ\u00e7\u00e3o de bens p\u00fablicos; a falta de apoio institucional via incubadoras tecnol\u00f3gicas e nas universidades etc.<\/p>\n

O altermundismo dos comuns<\/h2>\n

Uma quest\u00e3o fundamental levantada no final do texto d\u00e9les \u00e9 a de n\u00e3o se reduzir inova\u00e7\u00e3o a automa\u00e7\u00e3o. O mundo da inova\u00e7\u00e3o hypercapitalista<\/em>, ou capitalista digital, est\u00e1 bem ciente dessa diferen\u00e7a, manifestada no culto da “inova\u00e7\u00e3o disruptiva”. No caso do mundo livre e aberto a dimens\u00e3o altermundista, mesmo estando na sua raiz, parece n\u00e3o ganhar tanto destaque. Talvez por medo de estigma n\u00e3o-conformista e pelo fato de que o fazer livre em si, ainda que discreto, j\u00e1 contribui para ela. Ent\u00e3o \u00e9 preciso sim levantar a bola e espalhar a clareza de que as tecnologias livres s\u00e3o apenas uma parte da escolha de substituir a maneira como organizamos a sociedade por uma outra fundada em liberdade com solidariedade. Para isso, o in\u00edcio do texto d\u00e9les muito acertadamente observa as desigualdades de participa\u00e7\u00e3o nos privil\u00e9gios que permitem usufruir plenamente dos comuns criativos, como a disponibilidade de tempo, de capital cultural e material. A luta da criatividade livre se confunde dessa maneira com a luta por uma sociedade mais justa e solid\u00e1ria, em especial para que as pessoas tenham compet\u00eancias para participar dos comuns, seguran\u00e7a para escolher n\u00e3o se submeterem a modos de produ\u00e7\u00e3o excludentes, e tempo para exercerem suas liberdades.<\/p>\n

Ep\u00edlogo<\/h2>\n

O livre e aberto sempre trouxe consigo inten\u00e7\u00f5es \u00e9ticas e emancipadoras. N\u00e3o por acaso h\u00e1, hoje e historicamente, um m\u00fatuo reconhecimento e permeabilidade com movimentos de mesma base: na cultura, na educa\u00e7\u00e3o, na ci\u00eancia, na alimenta\u00e7\u00e3o, e mesmo na pol\u00edtica. Dito isso, \u00e9 preciso reconhecer que os caminhos que o livre oferece s\u00e3o sacrificados, no melhor dos casos requerendo um sacrif\u00edcio na travessia para fora do mundo propriet\u00e1rio, tornando-os pouco acess\u00edveis para quem n\u00e3o desfruta dos vistos privil\u00e9gios facilitadores. Mas podemos ir al\u00e9m e reconhecer que isso se verifica tamb\u00e9m naqueles movimentos alinhados, e que da impossibilidade de submetermo-nos a m\u00faltiplos sacrif\u00edcios \u2013 na car\u00eancia de m\u00faltiplos privil\u00e9gios simult\u00e2neos \u2013 decorre a aus\u00eancia da grande sinergia que esperamos.<\/p>\n

Dessa forma, um pr\u00f3ximo passo talvez seja criar um ecossistema interseccional que proponha um pacote de bens e servi\u00e7os, os quais traduzam a filosofia livre-solid\u00e1ria num estilo de vida\u00a0que possa ser adotado coletivamente por indiv\u00edduos organizados em c\u00e9lulas aut\u00f4nomas, por\u00e9m federadas. Os ganhos em efeito de rede, de escala, e de compartilhamento n\u00e3o-rival gerando abund\u00e2ncia, obtidos atrav\u00e9s dessa integra\u00e7\u00e3o, podem abrir caminhos e no limite superar a necessidade de privil\u00e9gios com a gera\u00e7\u00e3o de riqueza n\u00e3o monet\u00e1ria circulante na pr\u00f3pria rede. Assim, quanto vale uma assinatura conjunta de: servi\u00e7os livres para comunica\u00e7\u00e3o e colabora\u00e7\u00e3o digital; suporte no uso de tecnologias livres; obras e eventos culturais livres; jornalismo independente; alimentos org\u00e2nicos de pequenes produtoraes; e forma\u00e7\u00f5es com recursos educacionais abertos?<\/p>\n

E se uma assinatura inicialmente mais cara, mas convergente adiante, incluir computadores e outros hardwares abertos, acesso \u00e0 Internet associativo, energia de fontes n\u00e3o poluentes, e mesmo moradias ecol\u00f3gicas? E se com isso uma parte significativa des aderentes trabalhassem na pr\u00f3pria rede que es prov\u00ea da maioria de suas necessidades? J\u00e1 d\u00e1 pra chamar de anarco-socialismo?<\/p>\n

Minha utopia \u00e9 uma alquimia livre-solid\u00e1ria dissolvedora de sacrif\u00edcios e de privil\u00e9gios. Olhando para a hist\u00f3ria, a busca da alquimia n\u00e3o nos permitiu transmutar tudo em ouro. Mas nos levou \u00e0 f\u00edsico-qu\u00edmica com a qual produzimos diamantes a partir de polui\u00e7\u00e3o atmosf\u00e9rica.<\/p>\n

Est\u00e1 bom o suficiente para mim. E para voc\u00ea?<\/p>\n

[Ale \u201cSolstag\u201d Abdo] <\/em><\/p>\n

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* Este texto est\u00e1 publicado sob licen\u00e7a CC-BY.<\/a>
\n** Este texto utiliza as normas de escrita epicena descritas em <
https:\/\/poetica.cienciaaberta.net\/sp\/Usu\u00e1rio:Solstag\/L\u00edngua_portuguesa_neutra_de_g\u00eanero<\/a>>.<\/em><\/p>\n<\/div>\n

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