{"id":13432,"date":"2021-03-02T23:38:18","date_gmt":"2021-03-02T23:38:18","guid":{"rendered":"https:\/\/baixacultura.org\/?p=13432"},"modified":"2021-03-02T23:38:18","modified_gmt":"2021-03-02T23:38:18","slug":"isso-nao-e-um-manifesto-aberto-e-livre-em-reflexao","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/baixacultura.org\/2021\/03\/02\/isso-nao-e-um-manifesto-aberto-e-livre-em-reflexao\/","title":{"rendered":"Isso n\u00e3o \u00e9 um manifesto: aberto e livre em reflex\u00e3o"},"content":{"rendered":"
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Sol Verniers, https:\/\/is.gd\/kO5dUu<\/a><\/p><\/div>\n

J\u00e1 faz tempo que se argumenta a favor dos bens comuns digitais e pela transforma\u00e7\u00e3o das exageradas leis de propriedade intelectual (em especial em casos pand\u00eamicos<\/a>). V\u00e1rias partes do movimento pelo aberto tem, desde o seu princ\u00edpio, denunciado que a “l\u00f3gica do fechado” fortalece mecanismos de controle e dom\u00ednio que mant\u00e9m as desigualdades sociais bem vivas, e n\u00e3o servem, como se tenta justificar, para defender os pequenos inventores e artistas. Contribui, na verdade, para a manuten\u00e7\u00e3o do poder de corpora\u00e7\u00f5es e ind\u00fastrias sobre a cultura e o conhecimento; por isso, a disponibiliza\u00e7\u00e3o e possibilidade de remix do “c\u00f3digo fonte” da cultura, das m\u00eddias, das ci\u00eancia das tecnologias de maneira geral \u00e9 uma forma de se libertar desse dom\u00ednio e trazer mais igualdade, autonomia, liberdade e diversidade para elas.<\/p>\n

Um olhar r\u00e1pido por esses argumentos nos animam! Afinal, o aberto \u00e9 ent\u00e3o a chave para a descentraliza\u00e7\u00e3o do poder sobre a produ\u00e7\u00e3o de conhecimento, de arte, de tecnologia, etc. Mas vamos com calma: devemos nos perguntar “Ser\u00e1 que s\u00f3 a abertura \u00e9 o suficiente?” O di\u00e1logo que trazemos busca elaborar e continuar discuss\u00f5es j\u00e1 iniciadas<\/a> sobre a necessidade dos movimentos de c\u00f3digo aberto e da cultura livre em reconhecer que n\u00e3o \u00e9 apenas a l\u00f3gica do fechado que define rumos da cultura. Na verdade a quest\u00e3o \u00e9 anterior, est\u00e1 no pensamento por detr\u00e1s dessa l\u00f3gica capitalista-colonial de domina\u00e7\u00e3o e explora\u00e7\u00e3o.<\/p>\n

Para tratar do assunto, come\u00e7amos com as contribui\u00e7\u00f5es de Kalindi Vora<\/a> para o assunto. Ela argumenta que os digital commons<\/em> devem atentar a duas problem\u00e1ticas. A primeira<\/strong> \u00e9 de que nem todas as pessoas t\u00eam acesso aos conte\u00fados abertos; n\u00e3o t\u00eam acesso a computadores ou \u00e0 internet, mas tamb\u00e9m n\u00e3o tem tempo dispon\u00edvel para navegar, descobrir e colaborar com as tecnologia e conte\u00fados abertos. Ou seja, enquanto o aberto disponibiliza maior conhecimento para uma parcela da popula\u00e7\u00e3o, por outro lado, aumenta a dist\u00e2ncia entre essas e aquelas que n\u00e3o tem recursos materiais para usar e participar do aberto e livre; os grupos que n\u00e3o t\u00eam acesso a esses recursos est\u00e3o impossibilitados de colaborar com o desenvolvimento e produ\u00e7\u00e3o das obras abertas, o que mant\u00e9m suas vis\u00f5es de mundo e necessidades exclu\u00eddas do processo.<\/p>\n

Essas desigualdades ficaram evidentes logo no in\u00edcio de 2020, quando o ensino remoto tornou-se o padr\u00e3o para todas as escolas e o acesso est\u00e1vel e abundante \u00e0 internet, computadores e local adequado para estudo passaram a ser condi\u00e7\u00f5es b\u00e1sicas para a educa\u00e7\u00e3o<\/a>. Apesar da exist\u00eancia de alternativas livres para videoconfer\u00eancias e plataformas educacionais, isso n\u00e3o foi o suficiente para garantir a todos o acesso \u00e0 educa\u00e7\u00e3o. Essas quest\u00f5es nos lembram que as condi\u00e7\u00f5es de “acesso a todos” e de possibilidade que “qualquer um possa usar, estudar, modificar e distribuir” n\u00e3o s\u00e3o garantidos apenas com a publica\u00e7\u00e3o dos c\u00f3digos fontes e uso de licen\u00e7as abertas. \u00c9 preciso tamb\u00e9m considerar o acesso a recursos materiais, condi\u00e7\u00f5es de vida digna, tempo e conhecimentos necess\u00e1rios para contribuir com as produ\u00e7\u00f5es abertas e livres. Quando essas quest\u00f5es s\u00e3o ignoradas, corre-se o risco de que as produ\u00e7\u00f5es do c\u00f3digo aberto sejam cooptadas, esvaziando seus significados e os tornando uma revolu\u00e7\u00e3o de fachada, inofensivas aos paradigmas atuais.<\/p>\n

Falando em fachada, uma segunda<\/strong> quest\u00e3o levantada por Vora precisa igualmente ser considerada. Apesar da idealiza\u00e7\u00e3o de muitos, a tecnologia e a ci\u00eancia n\u00e3o s\u00e3o intrinsecamente neutras. Pelo contr\u00e1rio, elas carregam os valores das pessoas e estruturas que as produzem. N\u00e3o por acaso, temos sido defrontados com tecnologias de Intelig\u00eancia Artificial racistas, como as usadas pela pol\u00edcia de v\u00e1rios estados nos EUA<\/a>. Por isso, abrir o conhecimento n\u00e3o \u00e9 o suficiente; enquanto o c\u00f3digo aberto estiver carregado de valores que envolvem a domina\u00e7\u00e3o, explora\u00e7\u00e3o e aniquila\u00e7\u00e3o do outro\/diferente – marcadas especialmente nos pensamentos racistas, capacitistas, LGBTf\u00f3bicos, xenof\u00f3bicos e colonialistas -, n\u00e3o ser\u00e1 completamente livre. O desenvolvimento da ci\u00eancia, da cultura e das tecnologias s\u00f3 ser\u00e1 livre para quem n\u00e3o for “diferente”, e o remix ser\u00e1 mais uma etapa da apropria\u00e7\u00e3o cultural.<\/p>\n

O movimento do aberto e livre precisa, ent\u00e3o, expandir o di\u00e1logo para identificar quais de suas pr\u00e1ticas refor\u00e7am essas estruturas opressoras. \u00c9 com a inten\u00e7\u00e3o de evoluirmos como movimento, e n\u00e3o de promover o cancelamento do c\u00f3digo aberto, que nos questionamentos: abertura e total transpar\u00eancia s\u00e3o sempre as melhores op\u00e7\u00f5es?<\/p>\n

Por exemplo, vamos considerar os dados abertos. Eles s\u00e3o essenciais para a fiscaliza\u00e7\u00e3o de governos, ONGs e outras institui\u00e7\u00f5es, para pesquisas que necessitam de uma r\u00e1pida resposta, ou que sejam colaborativas; contribui tamb\u00e9m para o monitoramento coletivo de desastres ambientas, entre outras in\u00fameras vantagens. Isso significa que todo dado deve ser aberto? Evidente que dados que exponham a privacidade das pessoas devem ser protegidos, mas n\u00e3o \u00e9 s\u00f3 esse tipo de informa\u00e7\u00e3o que pode ser sens\u00edvel. O mapeamento de esp\u00e9cies de animais e plantas, que sejam de interesse da ind\u00fastria farmac\u00eautica, ou de redes internacionais de tr\u00e1fico de esp\u00e9cies nativas, pode coloc\u00e1-las em risco; assim, uma boa inten\u00e7\u00e3o cient\u00edfica pode facilitar a extin\u00e7\u00e3o de uma esp\u00e9cie e ampliar tens\u00f5es pol\u00edticas em territ\u00f3rios de reservas ind\u00edgenas ou ambientais.<\/p>\n

Ainda sobre o uso de dados abertos, recentemente a Open Knowledge Foundation, em parceria com a Microsoft e o UK Foreign, Commonwealth & Development Office, lan\u00e7ou uma competi\u00e7\u00e3o global para o uso de dados abertos para a\u00e7\u00f5es clim\u00e1ticas. A competi\u00e7\u00e3o oferece um “pr\u00eamio” de $1000 para a melhor proposta – e em troca, a Microsoft d\u00e1 mais um passo no controle de dados e em sua inten\u00e7\u00e3o de influenciar decis\u00f5es sobre pol\u00edticas clim\u00e1ticas, similar ao que j\u00e1 fizeram em agricultura e produ\u00e7\u00e3o de alimentos<\/a>. E mais: se dados n\u00e3o se “autogeram”, mas necessitam de ferramentas para serem obtidos e interpretados, eles dizem muito mais do que “fatos” (como defendem alguns data\u00edstas). Dados podem ser encarados como bens socioculturais, e essa perspectiva desafia oligop\u00f3lios de tecnologia que cada vez mais se apropriam e exploram esses bens comuns.<\/p>\n

A necessidade de a\u00e7\u00f5es construtivas e propositivas para lidar com as mudan\u00e7as clim\u00e1ticas \u00e9 real e urgente, e o incentivo \u00e0 produ\u00e7\u00e3o e uso de dados abertos para isso abrem muitos caminhos de mudan\u00e7as sociais positivas. Mas, se a an\u00e1lise das tecnologias se limitar a esses aspectos, n\u00e3o ser\u00e1 o suficiente para gerar reais mudan\u00e7as nas estruturas sociais. Como denuncia Yeshimabeit Milner<\/a>, fundadora do Data for Black Lives<\/a> , o conjunto de tecnologias do Big data n\u00e3o s\u00e3o inova\u00e7\u00f5es tecnol\u00f3gicas, s\u00e3o novas t\u00e9cnicas que reproduzem um sistema fascista de domina\u00e7\u00e3o e exterm\u00ednio; da mesma forma, as tecnologias livres podem acabar cumprindo esse papel. Por isso, \u00e9 preciso desenvolver novas maneiras de medir e validar produ\u00e7\u00f5es que n\u00e3o se baseiem unicamente em crit\u00e9rios tecnicistas e de abertura, mas que igualmente considerem a an\u00e1lise das consequ\u00eancias (sociais, ambientais, pol\u00edticas, etc.) desses produtos, desde como afetam seu usu\u00e1rio, at\u00e9 como afetam a sociedade para al\u00e9m deles.<\/p>\n

Tendo em vista esses riscos, o design de tecnologias livres, e da pr\u00f3pria coleta e disponibiliza\u00e7\u00e3o de dados abertos, deve considerar a sensibilidade das informa\u00e7\u00f5es coletadas, e o desejo das comunidades e grupos envolvidos nelas. Por exemplo, tecnologias de coletas de amostras de \u00e1guas, ou de identifica\u00e7\u00e3o de p\u00e1ssaros, podem garantir, por design, a seguran\u00e7a desses dados, e possibilitar que pesquisas comunit\u00e1rias possam ser feitas e compartilhadas com seguran\u00e7a, sem necessariamente disponibilizar os dados e resultados abertamente para o mundo.<\/p>\n

Tamb\u00e9m devemos dar aten\u00e7\u00e3o \u00e0s licen\u00e7as usadas e \u00e0 organiza\u00e7\u00e3o das comunidades de desenvolvimento de tecnologias livres. A aplica\u00e7\u00e3o de licen\u00e7as desatualizadas, ou n\u00e3o adequadas, pode fazer com que grandes corpora\u00e7\u00f5es se apropriem dos produtos gerados<\/a> e os tornem fechados. Em outros casos, a t\u00e1tica das Big Techs tem sido se “infiltrar” nas comunidades de desenvolvimento seus pr\u00f3prios empregados<\/a>, possivelmente com a miss\u00e3o de influenciar os rumos do desenvolvimento de softwares livres e de c\u00f3digo aberto para que supram suas necessidades (incluindo a aplica\u00e7\u00e3o de licen\u00e7as falhas, ou a prefer\u00eancia pelo desenvolvimento de solu\u00e7\u00f5es compat\u00edveis com softwares e sistemas operacionais propriet\u00e1rios). Assim, \u00e9 preciso que sejam consideradas a forma como as pr\u00f3prias comunidades se organizam, quais licen\u00e7as s\u00e3o mais adequadas para cada fim, bem como o direito e garantia da prote\u00e7\u00e3o e privacidade dos dados produzidos e compartilhados. Isso pode evitar que os produtos gerados aberta e coletivamente sejam indesejavelmente apropriados, e que n\u00e3o se perca o dom\u00ednio sobre as comunidades e coletivos formados com a sincera inten\u00e7\u00e3o de desenvolver tecnologias livres que promovam maior seguran\u00e7a e autonomia.<\/p>\n

Amadurecer como comunidade vai passar por rever nossas t\u00e1ticas e m\u00e9todos para mantermos os objetivos de mais participa\u00e7\u00e3o e acesso dentro de um contexto de justi\u00e7a social. Di\u00e1logos abertos e sinceros sobre os temas levantados nesse texto j\u00e1 foram iniciados, mas \u00e9 preciso que continuem sendo conduzidos de modo que nossa luta n\u00e3o seja apropriada por grupos com interesses de manuten\u00e7\u00e3o das estruturas de domina\u00e7\u00e3o e explora\u00e7\u00e3o atuais, nem que a ingenuidade seja um obst\u00e1culo para construir as bases de uma alternativa que reconhe\u00e7a as dimens\u00f5es social e cultural como fatores indissoci\u00e1veis nas pr\u00e1ticas cient\u00edficas e no desenvolvimento tecnol\u00f3gico. Precisamos ousar em criar e incorporar novas vis\u00f5es de mundo, superar a rea\u00e7\u00e3o competitiva \u00e0s cria\u00e7\u00f5es propriet\u00e1rias (n\u00e3o se limitar a s\u00f3 criar “vers\u00f5es” livres de algo propriet\u00e1rio), e passar a guiar o desenvolvimento e produ\u00e7\u00e3o de conhecimento a partir de diferentes e, at\u00e9 mesmo. inventadas vis\u00f5es de mundo. \u00c9 tamb\u00e9m necess\u00e1rio transcender o desenvolvimentismo e a no\u00e7\u00e3o de que inova\u00e7\u00e3o \u00e9 a automatiza\u00e7\u00e3o de processos manuais, se propondo a ent\u00e3o se reinventar como movimento. Nosso desafio \u00e9 incluir essas quest\u00f5es nas estrat\u00e9gias dos movimentos do aberto, ou seguir nessa estrada em dire\u00e7\u00e3o a um cen\u00e1rio cyberpunk, com a bizarra mistura de ideologia californiana <\/a>e a capacidade industrial de larga escala chinesa.<\/p>\n

[Marina de Freitas, Centro de Tecnologia Acad\u00eamica<\/a> (IF\/UFRGS) e Saulo Jacques, Hacking Ecology<\/a><\/strong>]<\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"

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