{"id":13166,"date":"2020-04-16T14:23:24","date_gmt":"2020-04-16T14:23:24","guid":{"rendered":"https:\/\/baixacultura.org\/?p=13166"},"modified":"2020-04-16T14:23:24","modified_gmt":"2020-04-16T14:23:24","slug":"notas-sobre-pandemia-vigilancia-e-o-confucionismo-no-extremo-oriente","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/baixacultura.org\/2020\/04\/16\/notas-sobre-pandemia-vigilancia-e-o-confucionismo-no-extremo-oriente\/","title":{"rendered":"Notas sobre pandemia, vigil\u00e2ncia e o Confucionismo na China"},"content":{"rendered":"
Alguns j\u00e1 sabem, mas ando imerso em uma pesquisa sobre cultura livre a buscar rela\u00e7\u00f5es na hist\u00f3ria bem anteriores \u00e0 propaga\u00e7\u00e3o do termo a partir do software livre, na d\u00e9cada de 1970 e 1980. Essa investiga\u00e7\u00e3o, que tem como objetivo a publica\u00e7\u00e3o de um livro sobre cultura livre neste 2020, tem feito diminuir um pouco as atividades cotidianas no <\/span>BaixaCultura<\/span><\/span>, e tamb\u00e9m me trazido algumas descobertas de pr\u00e1ticas, ideias, momentos e a\u00e7\u00f5es que remetem a ideia de bens culturais livres desde a Antiguidade de Gr\u00e9cia e Roma, assim como a do Extremo Oriente.<\/span><\/p>\n Ao ler sobre as formas de enfrentamento do Coronav\u00edrus em pa\u00edses como China, Taiwan, Cor\u00e9ia do Sul e Jap\u00e3o, me deu vontade de antecipar aqui uma brev\u00edssima parte da pesquisa do livro, que, mesmo tendo por foco a no\u00e7\u00e3o de propriedade intelectual, se relaciona \u00e0 vigil\u00e2ncia e a um certo modo coletivo de se organizar desses pa\u00edses, o que tem sido novamente discutido na filosofia a partir da pandemia. Segue abaixo o texto bruto, em processo, acrescido de uma reflex\u00e3o sobre a influ\u00eancia do Confucionismo sobre o pensamento coletivo chin\u00eas no enfrentamento \u00e0 pandemia.<\/p>\n Leonardo Foletto, editor do BaixaCultura<\/strong><\/p>\n <\/p>\n Foto: https:\/\/nextshark.com<\/p><\/div>\n Em \u201cShanzai: a arte da falsifica\u00e7\u00e3o e da desconstru\u00e7\u00e3o na China<\/a>\u201d, o fil\u00f3sofo sul-coreano radicado na Alemanha Byung-Chul Han analisa diversas obras art\u00edsticas chinesas e ocidentais para trabalhar com a ideia de como s\u00e3o constru\u00eddas as no\u00e7\u00f5es de autoria e originalidade no Extremo Oriente. Em dado momento, ele usa uma palavra para ilustrar na linguagem essa diferen\u00e7a, \u00c1dyton<\/em>, que em grego antigo, significa \u201cinacess\u00edvel\u201d ou \u201cintransit\u00e1vel\u201d. A origem desta palavra remete ao espa\u00e7o interior de um templo da Gr\u00e9cia Antiga que era completamente apartado do exterior onde se celebravam os cultos religiosos. \u201cO isolamento define o sagrado\u201d, diz Han, para ent\u00e3o continuar que a no\u00e7\u00e3o do estar isolado para poder se encontrar com Deus, ou consigo mesmo, \u00e9 diferente no Extremo Oriente, a come\u00e7ar pela arquitetura dos espa\u00e7os ditos sagrados: \u201cO templo budista se caracteriza pela permeabilidade ou pela abertura completa. Alguns templos tem portas e janelas que n\u00e3o fecham nada\u201d.<\/p>\n No pensamento chin\u00eas n\u00e3o h\u00e1 \u00e1dyton<\/em>, afirma Han, nem como espa\u00e7o nem como ideia. Nada se separa nem se fecha: o pensamento de que algo esteja apartado ou isolado do todo \u00e9 alheio ao modo de pensar predominante do Extremo Oriente, segundo Han. Assim, n\u00e3o haveria a ideia de original tal qual se entende no Ocidente, posto que a originalidade pressup\u00f5e um come\u00e7o no sentido estrito, o que uma parte do pensamento chin\u00eas tradicional renega ao n\u00e3o conceber a cria\u00e7\u00e3o a partir de um princ\u00edpio absoluto e individual, mas sim pelo processo cont\u00ednuo, sem come\u00e7o nem final, sem nascimento nem morte, fundamentalmente coletivo. A desconfian\u00e7a dos princ\u00edpios imut\u00e1veis e dos \u201cg\u00eanios\u201d criativos individuais remete \u00e0 falta de ess\u00eancia, \u00e0 forma de pensar e produzir focada no coletivo e a um certo vazio que, aos olhos ocidentais – exemplificados por Han no pensamento cr\u00edtico \u00e0 estas no\u00e7\u00f5es orientais do fil\u00f3sofo alem\u00e3o Hegel, um dos mais influentes pensadores do Ocidente – pode ser visto como hipocrisia, ast\u00facia ou at\u00e9 mesmo imoralidade.<\/p>\n Uma parte desse modo de ver a verdade e o processo de cria\u00e7\u00e3o como algo mais coletivo que individual remete \u00e0 um dos princ\u00edpios do Confucionismo (\u5112\u5b78), conjunto de doutrinas morais, \u00e9ticas, filos\u00f3ficas e religiosas criadas pelos disc\u00edpulos de Conf\u00facio ap\u00f3s a sua morte, em 479 a.C, e que teve grande influ\u00eancia no pensamento chin\u00eas, e do Extremo Oriente de pa\u00edses como as Cor\u00e9ias, Jap\u00e3o, Taiwan e Vietnan, at\u00e9 in\u00edcio do s\u00e9culo XX.<\/p>\n Natural da prov\u00edncia de Lu, hoje Shantung, leste da China, Conf\u00facio vinha de uma fam\u00edlia nobre em decad\u00eancia e teve diversas ocupa\u00e7\u00f5es em sua vida \u2013 professor, funcion\u00e1rio p\u00fablico, pol\u00edtico, carpinteiro, pastor – at\u00e9 cerca dos 50 anos de idade, quando come\u00e7ou a viajar com frequ\u00eancia pelas prov\u00edncias chinesas e angariar disc\u00edpulos em torno de sua filosofia baseada na vida simples, na coletividade e no altru\u00edsmo. Era uma proposta filos\u00f3fica que retomava alguns costumes de dinastias chinesas mais antigas como Shang (1600\u20131046 a.C) e a pr\u00f3pria Zhou (1046\u2013256 a.C), per\u00edodo em que, segundo alguns autores, havia uma decad\u00eancia moral e \u00e9tica na sociedade chinesa.<\/p>\n A partir da Dinastia Han (206 a.C a 220 d.C), os ensinamentos de Conf\u00facio passaram a exercer profunda influ\u00eancia nos governos e na sociedade chinesa, fornecendo o plano do que seria uma vida ideal e a r\u00e9gua pela qual as rela\u00e7\u00f5es humanas deveriam ser medidas. Reinventados e reinterpretados por diversas pessoas ao longo dos s\u00e9culos, suas ideias moldariam uma s\u00e9rie de costumes nas \u00e1reas da educa\u00e7\u00e3o, cultura, pol\u00edtica e da rela\u00e7\u00f5es sociais na China durante diferentes momentos da China Imperial. S\u00f3 perderiam for\u00e7a no in\u00edcio do s\u00e9culo XX, quando termina o per\u00edodo Imperial Chin\u00eas e o Confucionismo passa a ser acusado de ser tradicional demais para conviver com o dinamismo da ent\u00e3o sociedade moderna ocidental. O movimento 4 de Maio<\/a>, por exemplo, criticava a heran\u00e7a do Confucionismo como um obst\u00e1culo \u00e0 moderniza\u00e7\u00e3o na busca por poder e riqueza na competi\u00e7\u00e3o com outras na\u00e7\u00f5es do mundo ocidental.<\/p>\n A influ\u00eancia dos ensinamentos de Conf\u00facio na forma de ver a cria\u00e7\u00e3o na China e nos pa\u00edses do Extremo Oriente passa a ganhar certo repercuss\u00e3o no Ocidente, sobretudo nos estudos sobre propriedade intelectual e copyright, a partir do livro \u201cTo Steal a Book is An Elegant Offense: Intelectual Property Law in Chinese Civilization<\/a>\u201d, do professor de direito de William P. Alford. O t\u00edtulo do livro, \u201cRoubar um livro \u00e9 uma ofensa elegante\u201d, vem de um conceito popular (Qie Shu Bu Suan Tou<\/em>) na China a partir de Kong Yiji<\/a>, livro lan\u00e7ado n\u00e3o por acaso em 1919, ano das a\u00e7\u00f5es do Movimento 4 de Maio, por um conhecido escritor da \u00e9poca chamado Lu Xun. A hist\u00f3ria da obra gira em torno de um personagem central que d\u00e1 nome ao livro, um intelectual autodidata alco\u00f3latra e fracassado que frequenta uma taverna na cidade de Luzhen (\u9b6f\u93ae), base de outras fic\u00e7\u00f5es de Xun. Ele n\u00e3o passou no exame de xiucai<\/em>, um dos muitos da China Imperial da \u00e9poca, e usa em seu discurso frases cl\u00e1ssicas confusas, que geram desprezo entre os outros frequentadores do local, que o ridicularizam tamb\u00e9m por \u201cfazer bicos\u201d, e tamb\u00e9m roubar, para comer e beber. Uma de suas atividades era copiar manuscritos para clientes ricos; \u00e0s vezes, tamb\u00e9m surrupiava livros desses clientes para trocar por vinho na taverna. “Roubar um livro \u00e9 uma ofensa elegante” era o argumento que usava quando insultado pelos frequentadores do local.<\/p>\n<\/p>\n