{"id":10488,"date":"2015-10-29T12:22:10","date_gmt":"2015-10-29T12:22:10","guid":{"rendered":"https:\/\/baixacultura.org\/?p=10488"},"modified":"2015-10-29T12:22:10","modified_gmt":"2015-10-29T12:22:10","slug":"os-20-anos-da-ideologia-californiana","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/baixacultura.org\/2015\/10\/29\/os-20-anos-da-ideologia-californiana\/","title":{"rendered":"Os 20 anos da ideologia californiana"},"content":{"rendered":"
Em 1995, a internet comercial estreava no Brasil, Mark Zuckerberg ia a escola prim\u00e1ria em White Plains (interior do Estado de Nova York, nos EUA) aos 11 anos,\u00a0Larry Page<\/a> e Sergey Brin<\/a>\u00a0se conheciam na p\u00f3s-gradua\u00e7\u00e3o em computa\u00e7\u00e3o em Stanford (na California) e come\u00e7avam a trabalhar na ideia do Page Rank que originaria o Google tr\u00eas anos depois, e\u00a0Richard Barbrook<\/a> e Andy Cameron, ent\u00e3o membros do Hypermedia Research Centre of the University of Westminster<\/a>, em Londres, publicavam um ensaio chamado “A Ideologia Californiana<\/a>” na\u00a0Mute Magazine, texto que logo circularia pela lista de emails Nettime<\/a> e seria uma das primeiras cr\u00edticas ao neoliberalismo agressivo do Vale do Sil\u00edcio.<\/p>\n No ensaio, Barbook e Cameron definiam a tal ideologia como uma improv\u00e1vel mescla das atitudes bo\u00eamias e anti-autorit\u00e1rias da contracultura da costa oeste dos EUA com o utopismo tecnol\u00f3gico e o liberalismo econ\u00f4mico. Dessa mistura hippie<\/em> com yuppie<\/em> nasceria o esp\u00edrito das empresas .com do Vale do Sil\u00edcio, que passaram a alimentar a ideia de que todos podem ser “hip and rich<\/em>” – \u00a0para isso basta acreditar em seu trabalho e ter f\u00e9 que as novas tecnologias de informa\u00e7\u00e3o v\u00e3o emancipar o ser humano ampliando a liberdade de cada um e reduzir o poder do estado burocr\u00e1tico.<\/p>\n Na \u00e9poca, a ideologia californiana era bem representada por empresas como a Apple e a revista Wired<\/a>, e entusiasmava a todos que estavam por perto desse cen\u00e1rio – nerds de computadores, slackers, capitalistas inovadores, ativistas sociais, acad\u00eamicos “da moda”, burocratas futuristas e pol\u00edticos oportunistas, como escrevem os autores no ensaio. Tamb\u00e9m: como resistir a um coquetel que unia as premoni\u00e7\u00f5es tecnol\u00f3gicas de McLuhan de uma aldeia global<\/em> tecnol\u00f3gica com as potencialidades de emancipa\u00e7\u00e3o individual a partir da digitaliza\u00e7\u00e3o do conhecimento?<\/p>\n A explos\u00e3o da bolha especulativa das empresas de internet no final dos 1990<\/a> poderia ter servido como um alerta sobre onde esse pensamento poderia levar o planeta, mas a sedu\u00e7\u00e3o da ideologia\u00a0californiana persistiu e se espalhou com a ajuda do\u00a0Google, Facebook, Apple e v\u00e1rios outros dos gigantes do Sil\u00edcio que hoje fazem parte da nossa vida cotidiana. A ideia de um mundo p\u00f3s-industrial baseada na economia do conhecimento, em que a digitaliza\u00e7\u00e3o das informa\u00e7\u00f5es impulsionaria o crescimento e a cria\u00e7\u00e3o de riqueza ao diminuir as estruturas de poder mais antigas em prol de indiv\u00edduos conectados em comunidades digitais, prosperou. E hoje, queiramos ou n\u00e3o, predomina na nossa sociedade digital.<\/p>\n A\u00a0vis\u00e3o do novo livro e do texto de 1995 n\u00e3o \u00e9 favor\u00e1vel a ideologia californiana. Em dado momento do ensaio original, os autores\u00a0relatam que o pensamento oriundo dessa ideologia \u00e9 o de que\u00a0as estruturas sociais, pol\u00edticas e legais ser\u00e3o substitu\u00eddas por intera\u00e7\u00f5es aut\u00f4nomas entre pessoas e os softwares – e que o “grande governo” n\u00e3o deve atrapalhar os “empreendedores engenhosos” do mundo digital. O texto tem uma posi\u00e7\u00e3o cr\u00edtica a esta postura, dizendo que ela rejeita no\u00e7\u00f5es de comunidade e de progresso social e d\u00e1\u00a0import\u00e2ncia somente para uma posi\u00e7\u00e3o guiada por um “fatalismo tecnol\u00f3gico e econ\u00f4mico”.<\/p>\n Barbrook e Cameron dizem que\u00a0a constru\u00e7\u00e3o exclusivamente privada e corporativo do ciberespa\u00e7o poderia promover a fragmenta\u00e7\u00e3o da sociedade estadunidense\u00a0e a cria\u00e7\u00e3o de mais desigualdade social e racial. Um trecho: “Os moradores de \u00e1reas pobres da cidade podem ser exclu\u00eddos dos novos servi\u00e7os online por falta de dinheiro. Em contraste, yuppies e seus filhos podem brincar de ser ciberpunks em um mundo virtual sem ter de encontrar\u00a0qualquer de seus vizinhos empobrecidos”.<\/p>\n Anos depois, o documentarista Adam Curtis criticaria a ideologia californiana,\u00a0que ainda \u00e9 predominante no imagin\u00e1rio das empresas de tecnologia (n\u00e3o s\u00f3 do Vale do Sil\u00edcio), na parte 1 e 2 do document\u00e1rio “Tudo Vigiado por M\u00e1quinas de Ador\u00e1vel Gra\u00e7a<\/a>“. Ele traz para o debate a escritora russo-estadunidense Ayn Rand<\/a> e sua filosofia objetivista, que influenciou a ideologia californiana (e muitos empres\u00e1rios do Vale do Sil\u00edcio) com a ideia de que os seres humanos se encontrariam sozinhos no universo e que deveriam se liberar de todas as formas de controle pol\u00edtico e religioso, vivendo apenas guiados por seus desejos ego\u00edstas. O casamento entre a teoria de Ayn e a cren\u00e7a no poder das m\u00e1quinas produziria a ilus\u00e3o de uma sociedade que prescindia, entre outras coisas, de pol\u00edticos e que se autogovernava e se autorregulava com a ajuda dos computadores.\u00a0Algu\u00e9m a\u00ed lembrou do anarcocapitalismo<\/a>, que a pr\u00f3pria Rand criticava?<\/p>\n **<\/p>\n A ideologia californiana (a ideia) est\u00e1 presente\u00a0hoje como base filos\u00f3fica para, por exemplo, a\u00e7\u00f5es de vigil\u00e2ncia em massa como as da NSA. A internet \u00e9 a ferramenta de controle dos sonhos, tudo \u00e9 registrado e deixa rastro (que alguns apagam, mas a maioria n\u00e3o), um cen\u00e1rio perfeito para que org\u00e3os de vigil\u00e2ncia, em nome da seguran\u00e7a, e com a ajuda dos computadores, possam vasculhar a vida de todos. Est\u00e1 presente quando Zuckerberg fala de\u00a0uma internet onde o padr\u00e3o \u00e9 ser soci\u00e1vel<\/a>\u00a0– de prefer\u00eancia sendo soci\u00e1vel numa ferramenta privada de um empres\u00e1rio do Vale do Sil\u00edcio, j\u00e1 que, afinal, toda tecnologia \u00e9 neutra regula a si pr\u00f3prio melhor do que ningu\u00e9m (aham<\/em>). Est\u00e1 presente tamb\u00e9m quando os diretores dessas empresas, como o pr\u00f3prio Zuck, ganham status de chefe de estado em encontro de pa\u00edses<\/a> e passam a prover “servi\u00e7os” para a sociedade – como \u00e9 o recente caso do Internet.org<\/a> e seu objetivo de oferecer uma internet paralela e privada “gratuita” para lugares remotos.<\/p>\n Quando aqui\u00a0falamos do “fim da privacidade”<\/a>,\u00a0citamos o di\u00e1logo fict\u00edcio do livro “O C\u00edrculo”, de Dave Eggers, que tamb\u00e9m ilustra a aplica\u00e7\u00e3o pr\u00e1tica – e extrema – da ideologia californiana hoje. Um mundo onde tudo deve\u00a0<\/em>ser compartilhado, em que a sonegar qualquer informa\u00e7\u00e3o a outros pode ser encarado como “roubar o meu semelhante”, em que a vida privada \u00e9 um roubo<\/em>, \u00e9 um mundo onde sistemas inform\u00e1ticos est\u00e3o a organizar e governar a sociedade a partir de crit\u00e9rios supostamente objetivos. Algu\u00e9m lembrou da pesquisa sobre manipula\u00e7\u00f5es de emo\u00e7\u00f5es realizada no Facebook?<\/a><\/p>\n *<\/p>\n Barbrook e Cameron em 1995<\/p><\/div>\n O ensaio foi apontado\u00a0\u00e0 \u00e9poca por pessoas ligadas ao Vale do Sil\u00edcio como o trabalho de ‘esquerdistas’ , o que realmente \u00e9: Barbrook, em especial, \u00e9 leitor de Marx, Hegel e escreveu um livro chamado Cybercomunism: How the americans are supersending capitalism in cyberspace<\/a>.<\/em> Lovink, na apresenta\u00e7\u00e3o de “The Internet Revolution: From Dot-com Capitalism to Cybernetica Communism<\/strong>“, diz que A Ideologia Californiana \u00e9\u00a0um dos primeiros textos de uma corrente de pensamento chamada de net-criticism<\/em>, que pode ser posicionada na encruzilhada entre as artes visuais, movimentos sociais, cultura pop, e pesquisas acad\u00eamicas, com inten\u00e7\u00e3o interdisciplinar de tanto interferir quanto contribuir para o desenvolvimento das novas m\u00eddias, como Lovink explica em\u00a0“Dynamics of Critical Internet Culture 1994-2001<\/a>“.<\/p>\n \u00c9 uma corrente que se situa como uma terceira via, entre, de um lado, uma posi\u00e7\u00e3o\u00a0ligada a uma certa esquerda que critica a\u00a0internet por ela ter seu desenvolvimento baseado numa expans\u00e3o do dom\u00ednio dos EUA\u00a0em rela\u00e7\u00e3o ao seu poder cultural e econ\u00f4mico. E, de outro lado, justamente o da ideologia californiana, que tem a\u00a0internet como viabiliza\u00e7\u00e3o de um novo modelo de neg\u00f3cios e como realiza\u00e7\u00e3o de uma profecia indicativa da aldeia global congregada, como defende, entre outros, John Perry Barlow na conhecida “Declara\u00e7\u00e3o de Independ\u00eancia\u00a0do Ciberespa\u00e7o<\/a>“.<\/p>\n A constru\u00e7\u00e3o desta terceira via\u00a0teria como fun\u00e7\u00e3o, segundo Lovink, “observar a maneira com que os desenvolvedores e as primeiras comunidades de usu\u00e1rios tentaram conquistar e ent\u00e3o modelar o r\u00e1pido crescimento e muta\u00e7\u00e3o do ambiente da internet, apoiando alguns dos valores libert\u00e1rios (anti-censura), mas criticando outros (populismo do mercado neoliberal)”. Ganhou for\u00e7a em meados dos 1990, no desenvolvimento da net-art, do hackativismo e dos festivais de m\u00eddia t\u00e1tica<\/a>, inclusive no Brasil<\/a>, e tinha (tem) como postura criar uma infraestrutura de rede independente de grandes empresas, al\u00e9m de proteger certas liberdades da internet e a privacidade.<\/p>\n O net-criciticism<\/em> (talvez n\u00e3o com esse nome) ainda est\u00e1 presente hoje, por exemplo, na postura de Assange, dos criptopunks, de uma certa linha da cultura hacker europ\u00e9ia e latino-americana e da filosofia original do software livre, por exemplo, que defendem \u201ctranspar\u00eancia para os fortes, privacidade para os fracos<\/strong>\u201d e que se diferem de uma cultura hacker dos EUA que est\u00e1 a impulsionar a gentrifica\u00e7\u00e3o do ethos hacker, como apontado no texto “The hacker hack”<\/a>, de Brett Scott, publicado na revista Aeon (e traduzido aqui pro ptbr<\/a>). No fundo, o debate contempor\u00e2neo Uber X taxistas n\u00e3o deixa de ser um embate das duas posturas criticadas por “A Ideologia Californiana”, mas esse \u00e9 um assunto que pode ficar para outra postagem.<\/p>\n P.s:<\/strong> Marcelo Tr\u00e4sel<\/a> traduziu o texto original de “A Ideologia Californiana” para o portugu\u00eas faz alguns bons anos e ainda est\u00e1 dispon\u00edvel aqui<\/a>.<\/p>\n Imagens: 1 (Mute Magazine<\/a>), 2 (G1<\/a>), 3 (wikipedia<\/a>).<\/em><\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":" Em 1995, a internet comercial estreava no Brasil, Mark Zuckerberg ia a escola prim\u00e1ria em White Plains (interior do Estado de Nova York, nos EUA) aos 11 anos,\u00a0Larry Page e Sergey Brin\u00a0se conheciam na p\u00f3s-gradua\u00e7\u00e3o em computa\u00e7\u00e3o em Stanford (na California) e come\u00e7avam a trabalhar na ideia do Page Rank que originaria o Google tr\u00eas […]<\/p>\n","protected":false},"author":2,"featured_media":10503,"comment_status":"open","ping_status":"closed","sticky":false,"template":"","format":"standard","meta":[],"categories":[359,126],"tags":[1896,492,1423,202,727,1897,1452,1519,1869,830,107,661,1898],"post_folder":[],"jetpack_featured_media_url":"","_links":{"self":[{"href":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/10488"}],"collection":[{"href":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-json\/wp\/v2\/posts"}],"about":[{"href":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-json\/wp\/v2\/types\/post"}],"author":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-json\/wp\/v2\/users\/2"}],"replies":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-json\/wp\/v2\/comments?post=10488"}],"version-history":[{"count":0,"href":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/10488\/revisions"}],"wp:featuredmedia":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-json\/"}],"wp:attachment":[{"href":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-json\/wp\/v2\/media?parent=10488"}],"wp:term":[{"taxonomy":"category","embeddable":true,"href":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-json\/wp\/v2\/categories?post=10488"},{"taxonomy":"post_tag","embeddable":true,"href":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-json\/wp\/v2\/tags?post=10488"},{"taxonomy":"post_folder","embeddable":true,"href":"https:\/\/baixacultura.org\/wp-json\/wp\/v2\/post_folder?post=10488"}],"curies":[{"name":"wp","href":"https:\/\/api.w.org\/{rel}","templated":true}]}}<\/a><\/p>\n
<\/a>
\nSer\u00e1 ent\u00e3o que, 20 anos depois, \u00e9 poss\u00edvel dizer que a ideologia californiana “venceu”? Para discutir essa e outras quest\u00f5es \u00e9 que Barbrook acaba de lan\u00e7ar, junto do Institute of Network Cultures<\/a>, sediado na Holanda, o livro “The Internet Revolution: From Dot-com Capitalism to Cybernetica Communism<\/strong>“. Na introdu\u00e7\u00e3o especialmente escrita para este 20\u00ba anivers\u00e1rio do ensaio, o autor ingl\u00eas faz um balan\u00e7o de como os “capitalistas hippies” mudaram o Vale do Sil\u00edcio (e o mundo) e de como sua ideologia, num mundo cada vez mais social e digital, ainda \u00e9 um assunto relevante a se discutir. Como McLuhan tinha insistido, a provoca\u00e7\u00e3o te\u00f3rica cria compreens\u00e3o pol\u00edtica, explica\u00a0o editor do livro e tamb\u00e9m te\u00f3rico da m\u00eddia\u00a0Geert Lovink<\/a><\/p>\n<\/a><\/p>\n
<\/a>