Walter Benjamin – BaixaCultura https://baixacultura.org Cultura livre & (contra) cultura digital Fri, 25 Oct 2024 18:55:07 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.0.9 https://baixacultura.org/wp-content/uploads/2022/09/cropped-adesivo1-32x32.jpeg Walter Benjamin – BaixaCultura https://baixacultura.org 32 32 Cópia & Desvio – parte I https://baixacultura.org/2024/10/25/copia-desvio-parte-i/ https://baixacultura.org/2024/10/25/copia-desvio-parte-i/#respond Fri, 25 Oct 2024 18:52:24 +0000 https://baixacultura.org/?p=15740  

A proliferação mundial dos sistemas de inteligências artificiais generativas quebrou um paradigma ao tornar a cópia ainda mais base para a criação. Tudo que está na internet e foi raspado – sem consentimento, aliás – por estes sistemas está sendo a base para a criação de inúmeras coisas, de cards de redes sociais a ilustrações de livros, passando por e-mails, artigos, filmes, textos e músicas. Se já no início do século XX a reprodução técnica, especialmente na fotografia e no cinema, tornava a cópia e o “original” não facilmente distinguíveis, o que dirá a partir de 2023, quando as IAs ampliam a reprodução digital e, cada vez mais, a separam de sua materialidade original, que passa a se transformar em mero dado, padrões de números a alimentarem grandes bancos onde não existe mais singularidade, apenas cópia.

Diante disso, qual é o papel da cópia na era da IA Generativa? O projeto Cópia & Desvio é uma série de conferências experimentais/performances sobre o direito para copiar e reutilizar o conhecimento humano. Organizado em atos, o objetivo é apresentar uma narrativa crítica sobre a cópia e sua relação com a política e a sociedade ao longo do tempo.

A primeira parte se chama “A cópia na era de sua proliferação técnica” e ocorreu ao vivo em 24 de outubro, às 19h (UTC-3). Nela, Rafael Bresciani e Leonardo Foletto remixaram artefatos sonoros e visuais em live-coding (no sistema Hydra, com a interface do Flok) para compor a narração da conferência, centrada nesta primeira parte nas práticas e reflexões de cópia no início do século XX. Teve participação nas vozes (e textos) de Walter Benjamin, Marcel Duchamp, Conde de Lautréamont e Tommaso Marinetti. Na música, Neu!, Talking Heads e Kaisoku Tokyo. Nas imagens, Pablo Picasso, Okumura Masanobu, Kunisada, J Borges, Louis Daguerre, Hugo Ball, Kurt Schwitters, Man Ray, Niepce, Abraham Salm, Marinetti, entre outros. As vozes de Duchamp, Benjamin e Lautréamont foram criadas a partir do treinamento do sistema de IA Generativa chamado Eleven Labs

O vídeo é parte de uma investigação que estamos fazendo desde 2023 sobre o papel da cópia ao longo dos últimos séculos na história da arte, o que passa pela questão histórica do desvio. Como se sabe, a arte é marcada pelo plágio, o roubo, o desvio, a cópia e apropriação. A segunda parte irá centrar na sgunda metade do século XX, período essencial da proliferação técnica das cópias a partir dos gravadores, samplers, fitas, fotocopiadoras, televisão, vídeos, computadores.

Assista abaixo. Após, um trecho do texto falado por Benjamin no vídeo:

 

“Tanto a poesia sonora, as colagens e o cinema são artes que foram potencializadas nessa primeira metade do século XX com a expansão da reprodução técnica. Os aparatos técnicos são protagonistas tanto como método de produção (caso das collages) quanto de gravação e apresentação ao público (poesia sonora e o cinema).

Eu não vou explicar hoje o que é Inteligência Artificial Generativa pois, como falei para vocês, ainda não sei bem. Intuo que elas ampliam a reprodução digital e, cada vez mais, a separam de sua materialidade original, que passa a se transformar em mero dado, padrões de números a alimentarem grandes bancos onde não existe mais singularidade.

Eu intuo também que as tecnologias digitais de reprodução tornam mais difícil a negação e a escolha. É como um loop da desintegração: o meio é abstraído na hiperconexão do e e e e e e e e e e e e e e, com menos possibilidade de ou ou ou ou. Às máquinas de reprodução técnica digital não é facultado a possibilidade de fim, mas sim a reprodução contínua e infinita de presente. Tudo passa a ser conectado ao propósito da reprodução contínua de cópias. Nada mais é criado, tudo passa a ser apenas repetição sem diferença. Todas as obras já existentes remixam as anteriores: tudo é cópia.” 

Walter Benjamin (Benja), remixado no vídeo

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Comunicação, cultura livre e cópia na era da Inteligência Artificial https://baixacultura.org/2023/04/03/comunicacao-cultura-livre-e-copia-na-era-da-inteligencia-artificial/ https://baixacultura.org/2023/04/03/comunicacao-cultura-livre-e-copia-na-era-da-inteligencia-artificial/#comments Mon, 03 Apr 2023 18:16:26 +0000 https://baixacultura.org/?p=15202  

“Olá pessoal, uma alegria estar aqui com vocês*, exatos 6 anos depois de ter defendido minha tese, neste mesmo PPGCOM, especialmente com Alê Primo, que acompanhou meu doutorado e fez parte da minha banca de qualificação e defesa, e Laura Wöttrich, amiga e colega de comunicação há mais de uma década. A tese, a princípio, não tem muito a ver com o que vou falar hoje: trata de uma pesquisa sobre a mediação na Mídia Ninja, especialmente a partir da cobertura das manifestações de junho (julho, agosto) de 2013. Estudei, a partir de uma pesquisa etnográfica, como os actantes, humanos e não humanos (naquela época, sobretudo o software Twittcasting) agiram nas transmissões ao vivo, quem fez o outro fazer o quê, como e o que essa ação influenciou no resultado final dos vídeos e o que isso significou para o midiativismo, o jornalismo e as próprias jornadas de junho de 2013. Digo que a princípio a tese (disponível aqui) não tem a ver com o que vou falar hoje porque sempre há algo de inexplicável que permanece nos interesses de nossas pesquisas durante anos. Se há uma conexão mais visível da tese pra aula de hoje, ela diz respeito ao interesse na ação das tecnologias e nos “híbridos” que elas formam com a ação humana em algumas situações.

Há dois anos atrás, eu lançava, durante a pandemia, o livro “A Cultura é Livre: uma história da resistência antipropriedade”, fruto de um trabalho de quase 10 anos de pesquisa junto ao BaixaCultura – laboratório online, coletivo, blog. O livro nasceu como uma tentativa de conceituar, situar e contextualizar a cultura livre, uma ideia que se propagou a partir do software livre, nos anos 1990, e ganhou destaque com as discussões em torno do livre compartilhamento de arquivos (“pirataria”) na internet dos anos 2000. Para isso, o trabalho realizado foi o de uma genealogia que resgata uma parte da circulação dos bens culturais na Antiguidade, a grande transformação da invenção da Imprensa de Gutemberg na Idade Média e a posterior ascensão do Capitalismo com o modo de produção, tendo a propriedade como sua base. Daí se originou a noção de propriedade intelectual, que resultou na consolidação dos bens culturais como mercadoria e do direito autoral como o sistema a regular estes bens, a partir do século XIX. Também daí nasceram algumas das resistências a este sistema, sobretudo no campo artístico e político de vanguarda do século XX, primeiro em termos mais conceituais, como os trabalhos do Dada, dos situacionistas franceses da década de 1950 e 60, depois também em termos práticos, sobretudo no punk rock e na cultura do fanzine e da arte postal nos anos 1970. O que seria do hip-hop e do rap se não fosse o desrespeito à propriedade intelectual na criação dos samplers? Esses movimentos do século XX também acompanharam a notável proliferação de meios tecnológicos de reprodução – da fotocopiadora ao videocassete, das vitrolas às fitas-cassetes – e ascensão dos chamados meios de Comunicação de massa, com o cinema, o rádio e a TV passando a fazer parte no cotidiano de bilhões de pessoas. Retrato um pouco desse período e das tecnologias de reprodução do início do século XX até o computador no capítulo 4 do livro, não por acaso chamado de “Cultura Recombinante”.

Próximo da metade, o livro enfim chega aos anos 1970, à criação do computador pessoal, do software livre, e duas décadas depois, da internet. A partir daí, foca nas discussões em torno da cultura livre a partir do conceito de copyleft, um dos grandes hacks no sistema de propriedade intelectual criado no século XIX. Escrevi na página 149: “Como trocadilho ou de forma literal, o copyleft foi o conceito, expresso na licença GPL e outras ligadas ao Projeto GNU que a seguem até hoje, de requerer a posse legal para, na prática, renunciar a esta ao autorizar que todos façam o uso que desejarem da obra, desde que transmitam suas mesmas liberdades a outros. A exigência formal da posse significa que nenhuma outra pessoa poderá colocar um copyright em cima de uma obra copyleft e tentar limitar o seu uso”.

Do copyleft se origina, no início dos anos 2000, os Creative Commons, conjunto de licenças (e depois uma ONG) que vai ajudar a expandir a ideia da cultura e do conhecimento livre para o mundo inteiro, dando também origem aos movimentos da Educação Aberta (aqui no Brasil chamado de REA, Recursos Educacionais Abertos), Ciência Aberta e OpenGlam (“galerias, bibliotecas, arquivos e museus abertos”), ainda hoje ativos. À discussão (e também às críticas) sobre cultura livre se segue as transformações na internet e na comunicação digital, em que a curadoria “humana” – aleatória e solta, exemplificadas pelo hábito de flanar pelos blogs e sites, prática comum dos usuários da internet dos anos 2000 – passa a ser gradativamente substituída pela curadoria algorítmica. O que pode ser visto principalmente a partir da consolidação das redes sociais – sobretudo com o modelo “Timeline” do Facebook (que vai influenciar as outras redes a partir dos anos 2010), como conta o Willian Araújo na tese de doutorado defendida neste mesmo programa – e do streaming como sistemas algorítmicos de seleção e recomendação de informação e conteúdo de predomínio na internet.

[Lembrando: sistemas algorítmicos de recomendação, por exemplo, são IAs?]

 

 

Ao final, “A Cultura é Livre” traz a perspectiva sobre a questão da cultura e do conhecimento livre para outros modos de existência que não o hegemônico ocidental, vendo como os ameríndios e povos do extremo oriente (como os chineses) têm até hoje noções historicamente muito distintas sobre o que é propriedade intelectual, cópia e original, conhecimento aberto e coletivo. Com estas perspectivas tento lembrar que existem modos de ver o mundo, presentes em muitos lugares e comunidades tradicionais, que entram em conflito com certas ideias e modos de agir ocidentais noção de propriedade intelectual se erigiu.

Por exemplo, na China, eu falo no livro do “Shanzai”, um neologismo chinês criado nos anos 2000 para dizer o que é falso, fake. Abarca de literatura a prêmios Nobel, deputados, parques de diversões, tênis, músicas, filmes, histórias das mais diversas. No princípio, o termo se referia só aos telefones (smartphones) ou à falsificação de produtos de marcas como Nokia ou Samsung e que se comercializam com o nome de Nokir, Samsing ou Anycat. Logo, porém, se expandiram para todas as áreas, em jogos que, à maneira do Dada, usavam da criatividade e de efeitos paródicos e subversivos com as marcas “originais” para criar outros nomes – Adidas, por exemplo, se converte em Adidos, Adadas, Adis, Dasida… São, porém, mais que meras falsificações: seus desenhos e funcionalidades não devem nada aos originais e as modificações técnicas ou estéticas realizadas lhes conferem uma identidade própria.

Uma parte desse modo de ver o processo de criação como algo mais coletivo que individual, que também origina o shanzai, remete ao confucionismo, um conjunto de ideias que foi dominante na China durante mais de 1000 anos, só perdendo força no início do século XX. A influência do confucionismo na cultura chinesa fez a perspectiva do direito autoral na região ser voltada, durante muito tempo, mais à defesa de uma base de informação pública, de livre acesso e reuso – o que no Ocidente foi chamado de domínio público. Como escrevi na p.220 do livro, “a demora da China em assinar tratados internacionais de propriedade intelectual (a partir da década de 1980, quando também o país passa a ser parte da World Intellectual Property Organization) tem relação com uma cultura coletiva e de defesa do domínio público enraizada desde muito tempo em sua sociedade. E também se associa com a propagação da cultura shanzai já citada, que tem a cópia como base para a recriação de diferentes produtos e marcas a partir de uma prática criativa compiladora enraizada no dia a dia do povo da região”.

O sistema da mercadoria conhecido no Ocidente é, como se sabe, diferente para as perspectivas dos povos tradicionais – não é por acaso que Davi Kopenawa chama nós, os brancos, do “povo da mercadoria”, no monumental “A Queda do Céu”. Nas palavras da antropóloga Marilyn Strathern (1984), é a oposição da economia da commodity, na qual as pessoas e coisas assumem a forma social de coisas, com a economia da dádiva (gift), na qual pessoas e coisas assumem a forma social das pessoas. Como escrevi na p.216 do livro, “É nesse sentido que, em sociedades originárias de diversos locais do mundo, o modelo de propriedade (particularmente o de propriedade intelectual), calcado na relação da obra de arte como mercadoria de consumo, se torna insuficiente para lidar com uma relação mais duradoura e complexa da circulação de objetos. No sistema cultural das sociedades originárias, é perceptível, por exemplo, a centralidade dos valores coletivos, ligados à pluralidade e à sobrevivência da comunidade, em relação aos valores individuais, de uso exclusivo e escolha individual. O que, por sua vez, faz com que os bens culturais e de conhecimento nesse contexto sejam mais difíceis de se tornar apenas mais uma commodity vendida como mercadoria, pois há princípios e responsabilidades de reciprocidade e solidariedade que buscam valorizar a substância moral própria – que poderíamos também nomear como “alma” – dos objetos em suas relações com as pessoas e o mundo”.

A partir desse breve panorama, enfim podemos nos perguntar: como podemos falar em original e cópia se uma cultura de dois milênios do Extremo Oriente incentiva a reprodução e trata como mais importante do que a origem de uma ideia o seu conteúdo e a sua permanência, mesmo que modificada e reinventada a cada contexto? Ou como dizer que há um único humano dono de ideias quando para muitos povos originários, entre eles alguns ameríndios, não existe a separação entre sujeito e objeto como conhecemos no Ocidente, e a subjetividade criadora, a quem se deveria atribuir a “autoria” ou a “posse” dos bens, é distribuída em uma vasta rede que inclui pessoas e objetos, natureza e sociedade de modo praticamente simétrico?

Imagem criada por Giselle Beiguelman a partir dos processos text-to-image e image-to-image, como ela detalha em Ensaio Máquinas Companheiras, 2023.

 

CHEGAMOS ENFIM ÀS IAS

É na discussão sobre cópia e original que, enfim, chegamos à discussão mais quente do momento, as inteligências artificiais. Com a crescente popularização dos sistemas de Inteligência Artificial GENERATIVAS (que são capazes de gerar textos e imagens de forma autônoma), como o ChatGPT e o MidJourney, parece que estamos nos encaminhando para um outro momento histórico para discutir tanto a comunicação digital quanto a cultura e o conhecimento livre, o direito autoral e a propriedade intelectual. Alguns pesquisadores da área computacional indicam que, em breve, a quantidade de texto/imagem gerada por IAs tende a superar toda produção humana. Não é difícil de imaginar: baseado no aprendizado de máquina, o potencial é tendencialmente infinito de criação de obras. Mas dado que estes sistemas funcionam principalmente com novas apresentações de ideias que já foram geradas (e registradas em computadores), será possível reconhecer as fontes e identificar a autoria de uma informação trazida por estas IAs? Os sistemas “artificiais” – e também os “humanos”, ou seria melhor dizer para ambos “híbridos”? – de controle da informação poderão impor limites a esta proliferação e checar a veracidade daquilo que é informado? Como poderemos falar de cópia e original num mundo cada vez mais dominado por múltiplas cópias reproduzidas ad infinitum por sistemas algorítmicos “inteligentes”?

Proponho, claro, mais perguntas do que dou respostas. Tanto porque ainda é uma pesquisa inicial, que está começando enquanto, digamos, pesquisa formal acadêmica, estruturada a partir da FGV ECMI, onde hoje trabalho como pesquisador e professor. Mas principalmente porque ninguém sabe ainda responder estas e outras questões sobre IAs; as próprias empresas que estão na ponta de lança dessa discussão em 2023, como a Open IA, estão aprendendo sobre os impactos dos sistemas que criam com o feedback dos milhões de usuários. As respostas e os diferentes usos inventados pelas pessoas trazem novas respostas e novas “alucinações” dos sistemas, que estão tendo que ser corrigidos em tempo quase real.

Há, claro, um risco muito grande em experimentar ao vivo com uma tecnologia de impacto tão transformador na produção de informação, e não à toa a discussão sobre ética em IA é um dos grandes temas em debate já faz alguns anos (ou décadas). A ONU já deu recomendações, em 2021, para a suspensão do uso de IAs em sistemas de reconhecimento facial até que haja regulação sobre a utilização da tecnologia, assim como recentemente saiu uma carta assinada por mais de mil especialistas e personalidades, como Steve Wozniak, co-criador da Apple, Yuval Noah Harari, famoso historiador, além do bilionário sem escrúpulos Elon Musk, pedindo uma moratória, uma “parada obrigatória pra pensar” sobre as consequências do desenvolvimento desenfreado das IAs, especialmente as generativas como o ChatGPT.

Para entender um pouco sobre o que falamos quando tratamos de IAs generativas como o ChatGPT, gosto da imagem criada por um dos melhores textos dos muitos que publicados sobre o tema entre janeiro de 2023 pra cá. Ele se chama “ChatGPT is a blurry JPEG of the Web” e foi escrito por Ted Chiang para a New Yorker de fevereiro de 2023.

“Pense no ChatGPT como um jpeg borrado de todo o texto na Web. Ele retém grande parte das informações da Web, da mesma forma que um jpeg retém grande parte das informações de uma imagem de alta resolução. Mas se você estiver procurando por uma sequência exata de bits, não a encontrará; tudo o que você obterá é uma aproximação. Mas, como a aproximação é apresentada na forma de texto gramatical, que o ChatGPT se destaca na criação, geralmente é aceitável. Você ainda está olhando para um jpeg embaçado, mas o desfoque ocorre de uma forma que não torna a imagem como um todo menos nítida”.

A imagem do JPEG borrado nos ajuda a entender que o sistema criado pela Open IA “engole” (quase) toda a internet e regurgita reformulando o que engoliu, não palavra por palavra. Que apesar de inventar referências e outras informações erradas (quem usou certamente já foi surpreendido com um livro, um artigo inexistente), ele não “mente”, mas escreve respostas “prováveis” – ou “borradas”, seguindo na metáfora – baseada nos pesos e cálculos feitos a partir de cada token (entrada) gerado, como mostra esse infográfico produzido pela Super Interessante. São milhares de recombinações de ideias que já foram geradas pela mente humana, mostradas a partir de uma análise estatística de uma gigantesca base de dados. Base que, gigante que já é (e não sabemos bem o quão gigante é, outro grande problema ocasionado pela falta de transparência), tende a crescer cada vez mais, alimentadas por informações coletadas na rede sem autorização. Será que precisam ter autorização para isso? Será que a coleta de dados não reforça ainda mais o datacolonialismo, a extração (e a exploração) de dados de maneira desigual do sul global?

Outras perguntas que trago aqui hoje dão uma amostra das potencialidades transformadoras, para “bem ou mal”, das IAs generativas também para a discussão em comunicação e circulação de informação e bens culturais:

_ Se por um lado o crescente uso de sistemas de IA em trabalhos cotidianos favorece os usuários (inclusive na criação de novas “ocupações”, como design ou engenheiro de prompt), de outro é um problema concorrencial para os criadores intelectuais, especialmente para aqueles tipos de criação ditas instrumentais, como um cartaz de um evento, um “card” de rede social, uma trilha para um vídeo, uma ilustração para um trabalho qualquer;

_ O problema da concentração de mercado, tal qual as big techs hoje. Empresas de IA necessitam um investimento inicial alto, mas um custo de manutenção baixo para continuar produzindo obras e aumentando a oferta, o que é feito sem ser acompanhado por um aumento proporcional de demanda (esta questão trago do livro de Pedro Lana, advogado e doutorando em Direito na UFPR, chamado: “Inteligência Artificial e Autoria: Questões de Direito de Autor e Domínio Público”, lançado neste 2023).

_ A “apropriação” do espaço comum (domínio público) das ideias. Um número muito grande de obras produzidas pode exaurir a quantidade de expressões possíveis de uma ideia em um certo meio – música, por exemplo, onde já há casos de IAs, como a do Google Assistente, que reconhece os samplers de uma música, trechos de até menos de 1s. Identificar pode significar também controlar e restringir; quem já subiu um vídeo com uma música protegida por copyright no Youtube, Instagram ou outra plataforma sabe como, pela justificativa de “defender a propriedade”, as empresas de tecnologia já identificam e barram rapidamente a circulação de informações. Teria nascido o hip hop se todos os samplers usados fossem identificados, controlados e restringidos? O rapper brasileiro DOn L sacou esse perigo e escreveu assim no Twitter: “o capitalismo vai acabar com a arte do sample. sou totalmente contra ter que pagar por samples irreconhecíveis por um humano. se for por essa lógica, deveria ter direito autoral pros instrumentos. pagar pra yamaha, korg etc em toda musica kk”.

_ Os vieses, as alucinações; e as fontes? Novamente: cadê a transparência?

Aqui talvez estejam alguns dos maiores problemas hoje. Envolvem, por exemplo, os vieses, “alucinações”, erros cometidos pelo ChatGPT e exploração de trabalhadores para “corrigir” manualmente as IAs, que nos fazem vislumbrar um cenário cada vez mais próximo de uma “Dark Digital Age”.O histórico de alucinação de cunho fascista das últimas IAs não é dos melhores; será diferente agora? Se sim, como? Quais as medidas regulatórias possíveis para que estas máquinas não virem monstros racistas, misóginos e propagadores de fake news? Há muita discussão no tema, especialmente sobre legislações possíveis – algumas delas trouxe nesse texto do BaixaCultura. Vale acompanhar o trabalho da Coalizão Direitos na Rede, que está nessa e em outras pautas importantes em defesa dos direitos digitais.

No aspecto jurídico, vale lembrar também do fair use, o uso justo e suas limitações e exceções que tornaram-se um dos pilares legais dos quais os aplicativos de IA dependem. Sua defesa e ampliação, como diz Lukas Ruthes Gonçalves nesse texto, “são primordiais para que criadores e inventores possam continuar a recombinar conhecimentos existentes para criar novas e excitantes possibilidades, como faziam anteriormente com a câmera e programas de edição de imagens como o photoshop”.

Por fim, lembro Benjamin para remixar uma questão já clássica: como se identifica uma obra de arte na era de sua “reprodutibilidade algorítmica”? Se, como disse Hal Foster em “O que vem depois da Farsa?”, a força negativa da automação é menos a perda da “aura”, como acreditava Benjamin, e mais a perda do “risco individual” e da “participação comunal”, o que diríamos de processos não só automatizados quanto autônomos? Aliás, quão autônomos são estes sistemas? Outra questão: será que a obra de arte é fruto apenas do espírito humano?, como se pergunta o advogado e professor de Direito Guilherme Carboni.  Teria chegado a hora de, como os indígenas fazem a muito tempo, rever o antropocentrismo, dando status de criadores a seres não-humanos, “artificiais” ou “naturais”?

São muitas perguntas, deixo para vocês trazerem mais outras. Obrigado!”

[Leonardo Foletto]

* Esse texto parte da aula do dia 24/3, com o intuito de registrar algumas das conversas do dia. Foi elaborado antes e editado, com alguns acréscimos, até a publicação. A apresentação utilizada na aula está disponível aqui.

 

Fotos: Laura Wöttrich, professora do PPGCOM-UFRGS

Laura, Alê e Leonardo. Foto: Augusto Paim

 

 

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A obra de arte na era dos NFT’s: manutenção ou ruptura? https://baixacultura.org/2021/04/23/a-obra-de-arte-na-era-dos-nfts-manutencao-ou-ruptura/ https://baixacultura.org/2021/04/23/a-obra-de-arte-na-era-dos-nfts-manutencao-ou-ruptura/#comments Fri, 23 Apr 2021 18:34:53 +0000 https://baixacultura.org/?p=13622

Créditos: USAtodaysports/Giphy

 

“Em sua essência, a obra de arte sempre foi reprodutível. O que os homens faziam sempre podia ser imitado por outros homens. Essa imitação era praticada por discípulos, em seus exercícios, pelos mestres, para a difusão das obras, e finalmente por terceiros, meramente interessados no lucro”.

A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica
(Walter Benjamin. 1936)

Quando Benjamin escreveu o famoso ensaio citado acima, a arte era impactada pela revolução do cinema e da fotografia e toda a possibilidade de reprodução que estes suportes traziam, que “liberariam o objeto reproduzido do domínio da tradição e, ao multiplicar o reproduzido, colocariam no lugar da ocorrência única a ocorrência em massa”. É então que  surge o conceito de aura, uma materialidade temporal do aqui e agora, que segundo o autor é o que constitui a autenticidade da obra de arte. Quando ocorre a reprodução técnica da obra de arte, perde-se sua aura. A aura só existe quando a obra de arte é única.

Como veríamos algumas décadas depois, a reprodução passaria a ser o habitual nas novas formas de expressão artística e cultural a partir do surgimento de tecnologias eletrônicas, depois digitais e, finalmente, digitais em rede. A ponto do próprio artigo de Benjamin se tornar, provavelmente, o mais conhecido de sua extensa obra – certamente o mais copiado e citado. 

Mas por que estamos falando dele quase 85 anos depois, no segundo ano de distopia  pandêmica? Se agora as relações sociais se dão essencialmente de forma virtual, também os arquivos digitais exclusivos passaram a ser negociados com cifras milionárias através de uma moeda impalpável. Como isso é possível?

Bem-vindxs aos NFTs

NFT é a sigla de non-fungible token, em português, token não fungível. Eles começaram a aparecer em 2017 com os CryptoKitties, gatinhos fofos criptografados e colecionáveis (foto acima). Operam através de blockchain, principalmente através da plataforma Ethereum, com uma criptomoeda própria, o Ether. NFT´s possuem um código que identificam um arquivo, uma espécie de certificado digital baseado em blockchain, um pedaço de código de software com funcionalidade específica e identificado através de um identificador exclusivo – essencialmente uma longa sequência de números e letras aleatórias conhecida como “hash”. A cadeia de blockchain, a grosso modo, funciona como um registro público de um cartório onde você pode verificar a autenticidade. Através desse mecanismo, é possível trazer um aspecto de singularidade e exclusividade a absolutamente qualquer coisa que a imaginação humana puder alcançar. 

Daí vem os NFTs. Esses pedaços de dados digitais (Tokens Não Fungíveis) têm sido frequentemente usados em coleções e áreas para se conseguir uma propriedade digital certificada. E essa criptografia pode ser encontrada em obras de arte, coleções digitais e itens digitais para jogos online. Mas podem ser aplicadas nos mais variados objetos de desejo humano, e isso inclui desde memes de gatinho, um cartão de basquete com uma enterrada do Lebron James a alianças de casamento.

Como disseram Gabriel Menotti & Fernando Velázquez na Zum:

“O que o colecionador obtém na compra de um NFT é apenas o certificado de autenticidade e não a obra em si. Ao contrário do que possa parecer, a obra não está gravada na blockchain. O NFT não é um arquivo de mídia, mas um conjunto de metadados (uma etiqueta) que aponta para esse arquivo armazenado em algum canto da Internet. Por si só, essa mudança não elimina intermediários nem leva a um mercado de arte mais transparente ou confiável. Desprovida de componentes legais, a posse do NFT não garante direitos de reprodução ou exibição. Na verdade, não garante nem mesmo a própria exclusividade, uma vez que o artista sempre pode criar outro NFT apontando para o mesmo arquivo ou para outra versão dele. Para complicar ainda mais, os termos de uso da maioria dos marketplaces os exime de qualquer responsabilidade prévia sobre a integridade dos dados que armazenam, abrindo caminho para fraudes, roubos e trollagens. Eles não asseguram sequer o pleno funcionamento dos contratos inteligentes que deveriam automatizar o repasse de royalties de revenda para os autores”.

“Everydays – The First 5000 Days”, Beeple

O assunto rendeu atenção principalmente depois que a obra “Everydays – The First 5000 Days”, uma colagem digital do artista Mike Winkelmann, mais conhecido como Beeple, foi leiloada pela tradicional casa de leilão britânica Christies e vendido por $69 milhões; e é o NFT mais caro já vendido até o momento. A venda coloca Beeple entre os três artistas vivos com obras mais caras, depois de Jeff Koons e David Hockney. MetaKovan, o pseudônimo fundador da MetaPurse, é o comprador por trás do lance vencedor de $69 milhões. Mas não sabemos ao certo sua identidade, afinal o anonimato é uma possibilidade e atributo de redes descentralizadas.

A obra consiste de 5000 imagens feitas uma a cada dia ao longo de 13 anos  – cada uma das imagens que compõem a obra está licenciada em Creative Commons, aliás. A popularidade on-line de Beeple e sua produção livre e contínua certamente contribuíram para o preço altíssimo, mas um fator determinante foi a popularidade crescente em torno dos NFTs.

Depois da venda da obra de Beeple, todo um ecossistema emergiu em torno dos NFT´s de arte, com guias de “como entrar na onda e ganhar seu primeiro milhão” a uma explosão de diversos marketplaces para negociação. Essa explosão também foi impulsionada pelo forte incentivo a criação de modelos de negócios baseados em Ethereum, os Dapps, que são ferramentas e serviços movidos através dessa rede. 

Direito de Sequência

Uma vantagem aos criadores que utilizam NFT´s é que a interface padrão dos tokens permite aos criadores de arte receber uma taxa não apenas quando suas obras são vendidas pela primeira vez, mas também quando são revendidas. Na prática, é ver o renegado direito de sequência se materializar, que embora com previsão legal em diversas legislações de direitos autorais, é peça rara de existir no mundo físico. O direito de sequência é, no Direito, o que garante ao autor, e seus herdeiros, o direito de receber uma participação sobre a revenda de uma obra de arte original – no Brasil, este percentual é de 5% sobre o lucro verificável da obra.

Questões ambientais e éticas

Os NFT´s vem colecionando um emaranhado de críticas à sua utilização, em razão do exorbitante consumo energético e emissões de carbono nada sustentáveis. O site http://cryptoart.wtf estima as emissões de carbono analisando o resultado de transações baseadas em blockchain (especificamente Proof-of-Work, Ethereum) relacionadas aos NFT’S de arte. Um site que leva 10 segundos para emitir um NFT pode gastar cerca de 8,7 megawatts de energia, o que equivale ao gasto médio de uma família durante um ano inteiro. 

As críticas se estendem também aos artistas que fazem a escolha de lançar suas criações com NFT, como Gorillaz e a cantora Grimes – esta, depois de muitas críticas, destinou parte do dinheiro a uma ONG focada em reduzir as emissões de CO2. 

“Gods in Hi-Res”, arte digital em NFT criada por Grimes.

Falsa escassez e propriedade de ativos digitais

O que conduz o valor de um ativo em NFT é o argumento da exclusividade e sua importância na determinação do valor de um ativo. Mas os NFT´s se sustentam através da lógica de uma falsa escassez. Afinal, o fato de eu possuir um arquivo digital não quer dizer que você não possa possuir também. O código criptografado traz a ficção de uma exclusividade numa tentativa de se colocar uma aura (olhaí o profético Benjamin) artificial no arquivo digital.

Com NFT´s não é apenas o artista ou vendedor original que pode ter uma cópia do ativo digital: qualquer pessoa poder fazer uma captura de tela ou mesmo uma cópia (como é o caso da que fizemos acima de “Everydays”). A maioria dos NFTs é exibida ao público nas plataformas de vendas, como as já citadas acima. O que garante a propriedade e a exclusividade é somente uma codificação. 

Sabemos que os seres humanos têm uma série de motivações intrínsecas para valorizar e colecionar uma ampla gama de artefatos físicos, que vão desde cartinhas de Pokémon à obras de arte clássicas. O chamado “mundo da arte”, onde obras renascentistas e bananas com silvertape são vendidas a preços semelhantes, é o lugar onde a natureza subjetiva do valor é construída sob evidentes fatores abstratos. Porém, nada chega perto da abstração dos NFT´s: memes do começo do século, tweets de famosos e arte pixelada de estética duvidosa alcançam cifras inimagináveis. 

Inimagináveis e também distante dos conceitos de Benjamin do mesmo artigo, “valor de culto” e “valor de exposição”, que estão presentes em uma obra de arte tradicional. Normalmente, adquirimos uma obra de arte por motivações ritualísticas ou porque simplesmente desejamos pendurá-la em uma parede para nos exibirmos aos nossos amigos – o que não dá pra fazer com uma arte em NFT. Mas e o que mesmo podemos fazer com uma arte em NFT? Colocar como plano de fundo do celular?  

O “valor de exposição” para NFT’s não é tão simples assim. 

Especulação e lavagem de dinheiro

As criptomoedas nascem de um ideal de descentralização e autonomia, com a total ausência de controle de bancos ou estados. Porém, o que aparentemente parece ser uma vantagem, tem acabado por repetir a lógica de controle e dominação como em qualquer outra moeda de mercado. Assim, seguem sendo suscetíveis a variáveis de poder bem mais improváveis, como um tweet do Elon Musk, que faz despencar ou disparar a sua cotação.

Importante destacar as bases que sustentam essas negociações para entender sua lógica.

A lógica dos NFTs começa da seguinte maneira: colecionadores começam a acumular esses bens digitais a preços relativamente baixos. Grupos de colecionadores então formam outros grupos sociais diversos que, então, negociam e trocam ativos dessas coleções com base no apelo estético ou qualquer outro fenômeno social, com a finalidade, muitas vezes, de aumentar seu valor artificialmente através de transações fictícias. A dimensão especulativa só aparece quando essas coleções pré-existentes estão sujeitas a novas ondas de capital que formam mudanças significativas na valorização dos preços. Como o que ocorreu com a venda da obra do Beeple, onde vimos disparar o mercado de NFT´s de arte.

O imaginário especulativo financeiro está sendo atraído por uma corrida para adquirir NFTs, cujo conceito de valor e presunção de valor são absolutamente abstratos. A tecnologia aqui utilizada projeta um futuro nada diferente das condições econômicas e culturais do presente ou do passado, onde os deuses do mercado – e aqui no caso se incluem artistas e criativos – comandam seu poder de especulação sobre as massas.

O frenesi em torno dos NFTs e a corrida maluca para criar e possuir ativos únicos que acumularão um capital futuro é a receita exata para uma continuidade de desigualdades com a falsa promessa de democracia e reconhecimento. 

Benjamin falava que uma nova forma de mídia tem o potencial para transformar as relações sociais. Termina sua análise com um prognóstico, a conclusão de que a reprodução técnica seria “mais uma aplicação reacionária”. O que se poderia esperar da expansão das tecnologias de reprodução técnica, na época, seria então não somente uma exploração crescente do proletariado, mas também, em última análise, a criação de condições para a sua própria supressão. É cedo ainda para dizer, mas, ao que tudo indica, as NFTs da arte vão nessa mesma linha: acabam por reproduzir e potencializar as mesmas velhas hierarquias baseadas em modelos anteriores de desigualdade e dominação.

A combinação dos NFT´s com a especulação de valor e o culto a artistas, celebridades e bilionários nerds não são um bom cenário de uma promessa democrática e pós-capitalista do blockchain, algo que teria a possibilidade e infraestrutura para um mundo sustentável, como alguns já apontaram.

Mas o que há de errado em ganhar dinheiro e hypar artistas e colecionadores a um patamar muito acima da média da população? Um meio econômico programável e descentralizado  poderia, em princípio, pelo menos ter a capacidade de democratizar receitas e criar um modelo econômico horizontal de uma possibilidade de extensão nunca antes vista. 

Aprendemos, com a ressaca da internet, que hoje esse desenho (especulação + desregulação + performance) tem se encaixado mais em uma tradição antidemocrática que ameaça obscurecer valores compartilhados de humanidade, que aqui acabam ofuscados pelo ideal de uma performance estética e criação irreal de valor. Os NFTs, podemos dizer, não são ruptura, mas manutenção; seguimos iludidos pelo espetáculo e não se importando em  questionar as bases em que essa tecnologia se desenvolve.

[Nanashara Piazentin é advogada, mestranda em Propriedade Intelectual, coordenadora de cultura livre do Creative Commons Brasil.]

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O falso problema da escrita não-criativa https://baixacultura.org/2012/03/02/o-falso-problema-da-escrita-nao-criativa/ https://baixacultura.org/2012/03/02/o-falso-problema-da-escrita-nao-criativa/#comments Fri, 02 Mar 2012 18:39:16 +0000 https://baixacultura.org/?p=6395

Depois que Kenneth Goldsmith, o poeta-dândi por trás do belo acervo de arte experimental do ubuweb, lançou a ideia da escrita não-criativa, parece que um caminhão de fichas começaram a cair no entendimento das cacholas lítero-digitais. Não foram poucos os que se impressionaram com a possibilidade de produzir uma literatura somente a partir de outros textos – ou com a ideia de fazer isso abertamente, através de um curso de escrita não-criativa, uma simpática ironia a proliferação nos EUA (e também no Brasil) de cursos de escrita criativa.

Nós mesmos: lemos a entrevista de Goldmsith na Select – a porta de entrada da escrita não-criativa para a maioria, que depois foi reciclada/sensacionalizada pela Folha Ilustrada – e nos impressionamos. O remix que o Mr. Ubuweb fazia da ideia do detournement de Debord e GIl Wolman, do cut-up de Burroughs e Gysin e de outras tantas práticas não assumidas de roubo na criação veio como uma possível via seguraatual para o nosso dilema mortal de criar histórias na era do compartilhamento e do livre acesso a (quase) tudo.

Mas depois da ideia se tornar papo comum (e de boteco) entre os interessados no assunto e aparecer em diversos posts por aqui, começam a vir algumas críticas e provocações. Uma das que pescamos e trazemos aqui é do nosso caro Reuben da Cunha Rocha, jornalista, poeta, tradutor e doutorando em comunicação na USP e um dos fundadores do BaixaCultura.

Reuben continua desafiando ideias consensuais em seu novo espaço na rede, o webzine Cavalo Dada, e não poderia deixar de dar seus centavos ao debate sobre a escrita não-criativa. É de lá que roubamos este texto logo abaixo, escrito em 10 de dezembro de 2011.

Beckett,que a tudo observa do alto do ubuweb

A provocação final para trazê-lo para o debate foi a conversa minha (Leonardo) com Marcelo Noah no programa Elefante, ontem à tarde, na webrádio Minima.fm (que tem uma ótima programação e um bom slogan: “Mais que no ar, no wireless“). A ideia era falar sobre cultura livre, música e outros papos decorrentes destes, mas, sem querer querendo como nem porquê, me peguei falando um tantinho da escrita não-criativa by Goldsmith.

Pior: fui tentado a explicar para quem ouvia a rádio o que seria a coisa toda, inclusive com a ressalva de que isso não é a “morte” da escrita criativa, mas mais uma bifurcação de linguagem (?) que está se desenvolvendo potencializado pela cultura digital.

A conversa me soou um alerta, um “peraí, o que significa esse papo mesmo?”. Foi aí que a provocação de Reuben, lida tempos atrás, me retornou enorme, e não tive outra escolha se não compartilhar ela aqui abaixo como uma saudável crítica ao consenso oba oba.

[Leonardo Foletto]

O falso problema de K. Goldsmith

Reuben da Cunha Rocha

Que a dicotomia “escrita criativa”//”escrita não-criativa” seja um falso problema dá-se a ver no fato de o questionamento da autoria nascer c/ a própria autoria; isto é, se a autoria é um fenômeno moderno tal como a conhecemos, o plágio criativo também o é, como atesta a energia que gigantes da modernidade como Lautréamont ou Walter Benjamin nele empregaram, o impulso de nutrição que o roubo representa em suas obras. O falso problema se instaura ainda mais confortavelmente na poltrona das veleidades quando se nota que, enormíssimos saqueadores, seus nomes permanecem inscritos na história da autoria, bem como é Kenneth Goldsmith quem gira o mundo concedendo entrevistas, colaborando em simpósios e oferecendo cursos. Seu rosto, ao contrário do de Lautréamont, já é bastante conhecido.

Me sinto óbvio escrevendo algo como isto, mas circundado pelo que se tem dito sobre o assunto, e evidentemente admirando, como admiro, a obra & presença de Kenneth Goldsmith entre os humanos, tenho a impressão de que o poeta torna em totem um dilema c/ o qual não deveríamos sequer nos comprometer. É como os teóricos franceses, nalgum ponto do século XX, digladiando-se c/ o problema do significante/significado quando bastaria contorná-lo, já havendo disponíveis formulações mais produtivas acerca da natureza da linguagem. No caso de Goldsmith, quando detecta em dada função exercida pela autoria a prepotência p/ a qual o ego serve muitas vezes de escudo, compreende que ela não encerra os limites da criação mas ignora que nada lhe encerra os limites, entrando nesse ramerrão de “o futuro da escrita é assim & assado”.

Não interessa o contrário do autor, ou o contrário da autoria; interessa é que a criação não seja uma instância de autoridade, e que aquilo que o autor propõe, que o proponha primeiro a si próprio. Me vêm à mão, à lembrança, uma bela fala de José Celso Martinez Corrêa acerca do carnaval enquanto entrega à dissolução coletiva na qual o ser atinge seu mais alto brilho, & a simples presença de um livro como Curare, de Ricardo Corona, gesto por meio do qual, através do poeta, uma língua & um povo se dão à luz. Não há nada de libertário nesta ou naquela técnica de escrita, a peleja mais interessante está, me parece, no esquecimento das funções coletivas da arte, sua notória irrelevância, cujo nome mais conhecido é “entretenimento”. Quanto ao sujeito, tudo está em exercê-lo como grande domesticador ou em excitá-lo como porta perceptiva, canal p/ tudo o que existe. Neste ponto, ter uma ideia ou apropriar-se de uma ideia são recursos, dois entre tantos — a criação sempre esteve em aberto, ao contrário de muitas cabeças.

Que a linguagem nos diga coisas das quais sequer suspeitamos, inclusive em se tratando de algo escrito por nós mesmos, é uma experiência que não escapa a ninguém que se pronuncie — é a raiz dos mal-entendidos, das ambiguidades, das polissemias. A isto uns não reagem bem, voltando-se às aberturas de sua obra c/ o clássico “não entenderam nada”, quando nem sempre é este o caso; a outros alegra que a obra escape de seus domínios e sirva a outros que dela se apropriem. O que importa não é eleger o “não-eu” contra o “eu”, mas que “eu” não se cristalize nunca, que se deixe modificar sempre que necessário, inclusive pelo produto de suas mãos — neste sentido, não é que um poema expresse algo, mas que o revele, inclusive ao poeta. Caso contrário é apenas um novo autoritarismo — veja-se o que diz Goldsmith nesta entrevista, “não é tanto o que nós escrevemos, mas sim aquilo que decidimos reformular o que faz um escritor melhor que outro”. De minha parte, desde que percebi que viveria pela poesia, jamais me ocorreu que se tratasse de uma competição

Créditos fotos: daqui e do UbuWeb.
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A pintura nos pixels https://baixacultura.org/2011/02/10/a-pintura-nos-pixels/ https://baixacultura.org/2011/02/10/a-pintura-nos-pixels/#comments Thu, 10 Feb 2011 14:26:17 +0000 https://baixacultura.org/?p=4380

O experimentalista David Hockney, esse velhinho aí de 73 anos, voltou a receber os holofotes midiáticos recentemente. A revista Época de 24 de janeiro trouxe uma matéria sobre a nova exposição do artista plástico britânico realizada em Paris: “David Hockney, Fleurs Fraîches” (David Hockney, Flores Frescas). 200 pinturas compõem a mostra com o pequeno grande detalhe de não serem pintadas com uma tinta comum, mas sim de “tinta” virtual/eletrônica. Os “quadros”, com estilo de aquarelas,  foram produzidos diretamente no iPhone ou no iPad, e são exibidos nesses aparelhos. A exposição também é atualizada constantemente, a partir do envio de novas produções do artista.

Até aqui nada demais. Hockney é conhecido por fazer experimentos com pinturas e/ou fotografias utilizando-se de novas tecnologias. Nos anos 80 fazia mosaicos com polaroids e já na mesma década usava programas de computador para pintar – tu pode ver ele em ação na série de vídeos Painting With Light. Além disso, deve haver outros milhares de artistas que desenham apenas no meio digital. O problema é que por ter essa notoriedade apareceram pessoas querendo comprar as obras originais expostas. Só que nesse caso, não havia uma pintura original. Qual original, se as produções podem ser reproduzidas e compartilhadas ad infinitum?

Como dá pra ver, há uma modificação no suporte da pintura, algo bastante semelhante ao que ocorreu com a música digital. O artigo “A música na época de sua reprodutibilidade digital” de Sérgio Amadeu – disponível no livro O Futuro da música depois da morte do cd – contém boas ideias para se pensar a pintura feita em tela de cristal. Citando Walter Benjamin (já citado por aqui), Silveira diz que o hic et nunc (“aqui e agora”), a autenticidade, a AURA,  da obra de arte no digital não podem ser encontrados numa única obra física, mas sim no processo, na produção.

Seria como naquelas situações dos grafiteiros de paisagens no calçadão ou daqueles ilustradores que fazem caricaturas por um precinho camarada. Sem a escassez e o desgaste da “obra-prima”, o encanto maior poderia estar no início e no durante da pintura – e não no fim. Prova disso é que na exposição de Hockney alguns aparelhos mostravam, em velocidade alta, todas as etapas da elaboração da pintura. Que tal marcar para uma “pintura ao vivo” com o artista, transmitida simultaneamente para usuários conectados?

Capa desenhada no iPhone pelo artista português Jorge Colombo.

A propriedade de uma obra, e seu possível lucro, se dá por meio da negação do acesso, como diz Sérgio Amadeu: “Tratar um conjunto de idéias, um conto, alguma imagem desenhada ou uma música como um terreno ou como um pedaço valioso de metal é o necessário para exigir os mesmos direitos de propriedade.” Na matéria de Época, há alguns artistas que pensam em conferir uma propriedade física à pintura digital, como o argumento patético de “imprimir a imagem uma única vez e assiná-la”. Outros ainda afirmam que tem medo e que não vão aderir a nova forma de pintar: “O uso das novas tecnologias por si só não significa qualidade. Não dá para ficar se submetendo às novidades”. Preferências a parte, a pintura pixelada pode ter um outro efeito: valorizar ainda mais a pintura pictórica. Um quadro único, físico, provavelmente vale mais do que “n” quadros, não acha?

Por outro lado, devido a praticidade e portabilidade dos aparelhos tablets, poderá tornar a prática da pintura acessível (quando os aparelhos realmente baratearem, claro, tanto quanto um mp3 player de hoje) a quem não tinha condições, ou aptidões, de pintar em tela de pano. O que poderá aumentar a visibilidade de novos pintores, e consequentemente aumento de qualidade de boas produções, necessária para se destacar entre a variedade, como assinala Sérgio Amadeu no fim do artigo. Não dá pra negar que a facilidade  de um tablet pode aproximar as artes plásticas das pessoas e que poderá se popularizar no futuro – que aponta para variedade de marcas.

Para finalizar, é algo que também está sendo feito pelo Art Project, lançado dia 1 de fevereiro. O serviço da Google possibilita uma visita virtual a, por enquanto, 17 museus do mundo todo – menos do Brasil, que ainda não possui nenhum representante. Pode se navegar não apenas pela estrutura dos museus, como no Google Street View, mas também dar zoom nas imagens, e conferir os detalhes e as pinceladas de cada obra presente.  Dá uma olhada nesse, além de muitos outros recursos, no vídeo abaixo:

Créditos fotos: 1, 2.

[Marcelo De Franceschi]

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A ideologia do autor https://baixacultura.org/2009/05/05/a-ideologia-do-autor/ https://baixacultura.org/2009/05/05/a-ideologia-do-autor/#comments Tue, 05 May 2009 20:03:51 +0000 https://baixacultura.org/?p=1892 Walter Benjamin reproduzido tecnicamente

Walter Benjamin reproduzido tecnicamente

 

No ensaio sobre a reprodutibilidade técnica há uma passagem em que W. Benjamin destaca certa transição, um processo de refuncionalização da arte [é sob este ponto de vista que o ensaio trata a questão da tecnologia, em seu papel na refuncionalização da arte e na transformação do sensorium social. Não vá esquecer disso e começar a pensar que W.B. é um pensador da web 2.0!], bem, eu dizia que Benjamin demarca a passagem em que a arte perde sua função ritual (mágica, religiosa) para adquirir autonomia enquanto campo (e se estabelecer como mercado). Uma segunda transição nasceria com a reprodutibilidade técnica da obra de arte, notadamente com a fotografia e monstruosamente com o cinema, por uma série de razões que não vêm ao caso. O que vem ao caso é a maneira como Benjamin observa toda a lenga-lenga da discussão seria o cinema uma forma de arte?. — “O esforço para conferir ao cinema a dignidade da ‘arte’ obriga (…) a introduzir na obra elementos vinculados ao culto”, Waltão aponta, com certeiro dedo.

 

Como assim a imagem não tem nada a ver com o texto?

Como assim a imagem não tem nada a ver com o texto?

 

Penso, repenso, martela em minha cabeça um “argumento” em defesa da manutenção da indústria fonográfica em seus padrões, digamos, clássicos, que ouvi recorrentemente nos debates lá no Música & Movimento: “quem é bom se estabelece!”. Quer dizer: não há nada de errado com o modelo de indústria se o gênio artístico supera a desumanidade da máquina e se estabelece, audível e visível em sua integridade. É aí que me vem certeira à mente a expressão de Benjamin, “introduzir elementos vinculados ao culto” —  mistificadores, ideológicos.

O autor, enquanto fundo ideológico da indústria cultural, é um gigantesco saco sem fundo. É o elemento de culto por trás do argumento de que “quem é bom se estabelece”. Aliás, é curioso que o pensamento de Benjamin seja indissociável do surrealismo, que nos anos dourados seguiu o questionamento da ideia de autoria e identidade aberto por Lautréamont no século 19 — o que me impede de descontextualizar completamente sua expressão!

Não precisa me dizer que o gênio existe e que a criatividade existe etc. Eu tô sabendo. Só que para salvá-lo de ser um lustroso brasão no paletó da máfia indústria cultural, às vezes só é possível desinteressar-se dele. Muitas vezes, cultuar o gênio é sentar-se nos duros bancos da igreja do Capital.

[Reuben da Cunha Rocha.]

Em tempo. Caso tu tenha clicado no link pro ensaio de Benjamin, há uma imprecisão no arquivo. A primeira versão do texto (que é a disponibilizada) é de 1936, e não de 1955. Eu sei, eu sei, mas isso é importante sim!

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