tecnopolítica – BaixaCultura https://baixacultura.org Cultura livre & (contra) cultura digital Fri, 21 Nov 2025 18:30:28 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.0.11 https://baixacultura.org/wp-content/uploads/2022/09/cropped-adesivo1-32x32.jpeg tecnopolítica – BaixaCultura https://baixacultura.org 32 32 O cadáver do aceleracionismo https://baixacultura.org/2025/11/21/o-cadaver-do-aceleracionismo/ https://baixacultura.org/2025/11/21/o-cadaver-do-aceleracionismo/#respond Fri, 21 Nov 2025 18:23:50 +0000 https://baixacultura.org/?p=15964 Benjamin Noys, que cunhou o termo “aceleracionismo” há mais de dez anos, escreveu um interessante balanço sobre o destino desse “movimento”, texto publicado no E-flux em novembro de 2025 (e que é o prefácio da nova edição de seu livro “Malign Velocities: Accelerationism and Capitalism“. Noys questiona por que revisitar o cadáver do aceleracionismo, já que o movimento parece ter se esgotado como vanguarda. Ele observa que “o aceleracionismo, se morto, permanece como um espectro assombroso presidindo sobre a paisagem cultural”, uma vez que as questões sobre o papel da tecnologia na cultura e na mudança política não desapareceram. Em suas palavras (tradução minha):

“Se o aceleracionismo é um movimento de vanguarda, na mesma linha do Futurismo, então, como muitos desses movimentos, ele parece ter se esgotado. Isso não é necessariamente algo a ser lamentado, mesmo por aqueles que o abraçaram. Os futuristas italianos viam seu movimento da velocidade como algo que deveria se tornar obsoleto pelas forças que eles desencadearam. De um ponto de vista cultural e político muito diferente, Guy Debord, líder dos Situacionistas nos anos 1960 e 70, pensava que o papel das vanguardas era desaparecer uma vez que seu trabalho estivesse concluído. O pró-aceleracionista poderia até argumentar que o aceleracionismo cumpriu seus objetivos, colocando os debates sobre tecnologia e mudança no centro das discussões, e agora pode deixar o campo com honra”.

Noys argumenta que, embora as paixões do momento aceleracionista tenham esmaecido e as plataformas que sustentaram seus debates (blogs e Twitter) tenham decaído, os debates sobre IA e grandes modelos de linguagem mostram que as questões permanecem urgentes. As redes sociais de hoje — dominada por bots, memes, IA e monetização — perderam sua carga utópica, deixando para trás uma cena mais esparsa e mais corrosiva. O fracasso do aceleracionismo em persistir no momento atual revelaria, segundo Noys, sua “falta de engajamento crítico com a tecnologia”. O que, por sua vez, levanta a questão de como devemos nos engajar com a tecnologia, seus potenciais e seus perigos, algo que de fato não parece consistente nos aceleracionistas, mas em espaços de ativismo como o nosso, guiados por princípios de transparência, software livre e redes distribuídas, sim.

O que parece estar claro, hoje, é a persistência do aceleracionismo de direita. Como comentamos neste post, a visão do aceleracionismo de direita (o agora chamado “aceleracionismo eficaz”, é usar a tecnologia para sustentar e espalhar a consciência humana (ou o que quer que substitua essa consciência) por todo o universo. Diz Noys: “tomando emprestadas ideias de Nick Land e da ficção científica, o e/acc quer criar o desenvolvimento desregulado da tecnologia, especialmente a inteligência artificial, para nos permitir transcender o que William Gibson chamou de “a carne”. Aqui podemos ver que o aceleracionismo converge com o mercado capitalista, e a noção distópica das corporações como seres sencientes emergentes, encontrada em Gibson, é invertida na promessa de um futuro radicalmente novo”.

Noys afirma que, mais uma vez, o Futurismo italiano pode oferecer um aviso salutar sobre o destino do movimento aceleracionista. O fato de que o Futurismo foi um movimento cultural heterogêneo – com suas tendências niilistas, anarquistas e proto-fascistas – obscurece o compromisso central de uma política estética do mito, que transforma a tecnologia de uma realidade social em uma força mítica. Diz Noys: “A necessidade de entender a tecnologia, e especialmente o controle da tecnologia (o que costumava ser chamado de “controle dos meios de produção”), corre o risco de desaparecer em um movimento que só oferece a pseudo-solução de se fundir com a tecnologia”.

Analisar o aceleracionismo é entender o que tem acontecido nos últimos dez anos, especialmente na discussão tecnopolítica. Noys afirma, e nós concordamos, que foi um movimento muito restrito, desconhecido por grande parte das pessoas – apenas um ponto minúsculo em relação a todas as questões e forças reais que moldaram esses anos. Mas, continua ele, “as formas como o aceleracionismo reencenou gestos do passado, ao mesmo tempo que prometia novos futuros tecnológicos utópicos para a era das redes sociais, ainda me parecem reveladoras. Ele representou algo das forças e trabalhos reais e sua expressão ideológica neste período. Se precisamos, como Hegel sugeriu, de compreender o nosso próprio tempo em pensamento, isso inclui entender onde podemos pensar que ele se desviou. É por isso que ainda acho que vale a pena traçar as velocidades malignas do aceleracionismo e as suas mutações”.

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17 anos de BaixaCultura https://baixacultura.org/2025/09/26/17-anos-de-baixacultura/ https://baixacultura.org/2025/09/26/17-anos-de-baixacultura/#comments Fri, 26 Sep 2025 23:22:35 +0000 https://baixacultura.org/?p=15939 Seguindo a tradição, todo 15 de setembro esquecemos de comemorar nosso aniversário. Ano pasado, nos 16, começamos essa tradição de assumir o esquecimento. Em 2023, nos 15 anos, fizemos um texto um mês depois. Os 14, em 2022, foi um raro ano com um texto na data certa – apenas porque lançamos o site novo nesse mesmo período. Em 2021, não fizemos nada. Em 2020, no auge da pandemia, só lembramos de mencionar um breve comentário em uma newsletter semanas depois. 2019 nada, mas 2018 foi um ano inédito: fizemos uma pequena comemoração presencial, quando ainda estávamos em Porto Alegre, chamado “BaixaCultura 10 anos – História Aberta”.

Anterior à tradição de comemorar atrasado nosso aniversário é o de lembrar o primeiro post do site: Cópia Boa, Cópia Má – ou o início. A grande discussão em 2008 era o download livre e suas consequências para o direito autoral, a indústria cultural, o acesso ao conhecimento (e à informação) – daí o nome BaixaCultura. Dizíamos (eu e Reuben da Rocha, co-fundador) que a lógica industrial da cultura dominante ao longo do século 20 foi baseada num esquema feroz de controle autoral (o copyright), e que, naquele momento, a tecnologia digital dificultava esse controle e tornava os lucros cada vez menores nesta indústria, mesmo com os esforços (hoje até engraçados) das campanhas antipirataria promovidas sobretudo pelos estúdios de Holywood e as grandes gravadoras. A pretexto do documentário “Good Copy, Bad Copy”, endossávamos o sampler – “numa sociedade entupida de informação, a utilização de materiais pré-existentes pode ser bem mais subversiva do que produzir a partir dum vago princípio de originalidade” – a cópia livre, o acesso à cultura como elemento central na qualidade de uma democracia, o dub, o rap, o trabalho “criminoso” do Dj Danger Mouse, a contra-indústria do tecnobrega do Pará e a Nollywood nigeriana.

Desnecessário dizer que muita coisa mudou de lá pra cá. Podemos dizer que fomos ingênuos em acreditar no potencial transformador de uma internet livre. Ou talvez não: a transformação ocorreu, mas para pior. 17 anos atrás – como 20, ou 25 anos – parecia uma boa tática liberar informações da forma de propriedade. Mckenzie Wark disse, em 2023, no prefácio à edição brasileira de “Um Manifesto Hacker”, – e nós não poderíamos endossar mais – que “as forças de produção, neste caso as forças de produção de informação, ultrapassaram as relações de produção existentes”. A produção de informação livre surgiu como uma prática a partir da qual se cria uma produção autônoma de conhecimento. O que para nós era uma prática de vanguarda rapidamente, e de forma independente, tornou-se um movimento social: o movimento pela informação livre. À medida que a internet se tornou uma forma de comunicação mais popular, todos começaram a compartilhar. Como diz a tese 126 de “Um Manifesto Hacker”: “a informação quer ser livre, mas está acorrentada em todos os lugares”. (Uma frase que é um desvio de Rousseau e do teórico utópico da internet John Perry Barlow). Parecia que poderíamos abrir a forma-mercadoria da informação em favor de uma espécie de economia de dádiva (gift) abstrata.”

Mas como segue dizendo Wark, “A resposta da classe dominante ao movimento social pela informação livre foi a criação de uma forma de propriedade ainda mais abstrata”. A classe dominante dominante, que ela chama de classe vetorialista, recuperou a energia do movimento popular pela informação livre transformando-a em trabalho não remunerado. Este ciclo foi acelerado em escala ainda maior com a popularização dos sistemas de Inteligência Artificial Generativa, já que, como temos acompanhado, estes sistemas foram treinados no vasto tesouro de informações livres que criamos para nós mesmos, muitas vezes querendo (ou pensando que) estas informações poderiam ser bens comuns (commons). O que a classe vetorialista está tentando fazer agora, segundo Wark, é a substituição da classe hacker por máquinas capazes de fabricar a diferença – e achamos que tem conseguido, não?

Apesar desse cenário menos esperançoso que o de 17 anos atrás, seguimos por aqui. Também acreditando que podemos falar da cultura livre como liberdade positiva; tentando entender os meandros do colonialismo digital e as interferências das IAs nos direitos dos escritores; divulgando iniciativas para infraestruturas autônomas e comunitárias de tecnologias; recontando histórias de uma informática do oprimido latino-americana para soltar nossa imaginação sobre tecnologias alternativas, talvez como uma hiperstição aceleracionista – inventar futuros ficcionais para que eles possam se tornar reais. Seguimos documentando a cultura livre e entendendo as IAS de código aberto – mesmo que tenhamos muitas dúvidas se de fato o software livre possa derrotar as big techs. E buscando entender como a história da cópia e do desvio no século XXI pode dar luz sobre as práticas futuras de criação desviante – a cópia na era de sua proliferação técnica. Por fim, também achamos que para criticar e desconstruir artefatos complexos como os monopólios de IA, devemos fazer o trabalho meticuloso de desfazer – passo a passo, arquivo a arquivo, conjunto de dados a conjunto de dados, metadado a metadado, correlação a correlação, padrão a padrão – o tecido social e econômico que os constitui na origem. E que, para reagir e propor alternativas concretas, precisamos cada vez mais de uma cultura de invenção, concepção e planejamento que se preocupe com as comunidades e o coletivo, sem nunca ceder totalmente a agência e a inteligência à automação.

É por aí que seguiremos adelante.

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Informática do Oprimido na Tapera Taperá https://baixacultura.org/2025/08/11/informatica-do-oprimido-na-tapera-tapera/ https://baixacultura.org/2025/08/11/informatica-do-oprimido-na-tapera-tapera/#respond Mon, 11 Aug 2025 14:06:28 +0000 https://baixacultura.org/?p=15895 Na próxima quinta-feira, 14/8, 19h, Rodrigo Ochigame, autor de “Informática do Oprimido” conversa com Gabriela Nardy, do Comitê de Redes Comunitárias, e comigo, Leonardo Foletto.

Rodrigo (site pessoal) é um historiador e antropólogo que estuda computação e inteligência artificial sob uma perspectiva crítica, professor na Universidade de Leiden (Holanda) e doutor pelo MIT (EUA). Alguns dos textos publicados por Rodrigo são ” A longa história da justiça algorítmica” (2022) e “Filtrar la Disidencia: Redes sociales y luchas por la tierra en Brasil” (2016). Atualmente ele está estudando epistemologia do aprendizado de máquina, tema que vai desenvolver nos próximos meses pesquisando no CERN, aquele mesmo laboratório do Grande Colisor de Hédrons (LHC) e da invenção da WWW pela turma de Tim Berners-Lee.

O livro tem ilustrações de Léo Daruma, prefácio do Instituto Paulo Freire e texto de apresentação de Leonardo Foletto e Caio Valiengo, também editores da coleção e está disponível para compra, com 20% de desconto até 22/8, no site da Funilaria (cupom BAIXACULTURA).

🗓 14/8, às 19h
📕 Tapera Taperá – Galeria Metrópole
📍Av. São Luís, 187 – 2º andar, loja 29 – República – São Paulo

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O ruído das rachaduras https://baixacultura.org/2025/08/11/o-ruido-das-rachaduras/ https://baixacultura.org/2025/08/11/o-ruido-das-rachaduras/#respond Mon, 11 Aug 2025 13:42:20 +0000 https://baixacultura.org/?p=15887 Brincar com a tecnologia é uma forma de nos defendermos dela. E com a internet, não é diferente. Uma tecnologia cada vez mais sob a influência do capital, mas que pode ser ainda usada como via de fuga de sua estrutura controladora. Esse é o ponto de partida para uma discussão que [she[l]d] — performance de live coding de lixt (aka Rafael Bresciani) — traz como provocação para uma conversa-experimento com Leonardo Foletto (BaixaCultura) na editora Sob Influência, na próxima quinta-feira, 14 de Agosto, às 18 horas. Uma investigação ao vivo sobre as possibilidades de uma semiose que escapa da lógica algorítmica dominante e que tenta perfurar os métodos estabelecidos de produção de sentido.

Após a performance-debate, às 19h haverá o lançamento de “Informática do Oprimido”, de Rodrigo Ochigame, na Tapera Taperá, no mesmo andar da Galeria Metrópole. Vamos publicar um relato aqui sobre ambos os eventos.

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Bibliotecas, redes e revoluções: o legado tecnológico dos oprimidos https://baixacultura.org/2025/08/01/bibliotecas-redes-e-revolucoes-o-legado-tecnologico-dos-oprimidos/ https://baixacultura.org/2025/08/01/bibliotecas-redes-e-revolucoes-o-legado-tecnologico-dos-oprimidos/#respond Fri, 01 Aug 2025 22:56:53 +0000 https://baixacultura.org/?p=15881  

Informática do Oprimido, de Rodrigo Ochigame, é o segundo livro da coleção <âncoras do futuro>, criada pela Funilaria em parceria com o BaixaCultura, que busca tentar politizar o mal-estar que nos acomete hoje sobre os rumos da internet e das tecnologias. Neste texto, publicado originalmente em 2021, Rodrigo explora algumas narrativas alternativas à visão dominante da tecnologia e que desafiam a pretensa universalidade dos modelos técnicos ocidentais. Como seria, por exemplo, nossas bibliotecas digitais, plataformas de busca e sistemas de catalogação se o “modelo cubano” descrito por Setién Quesada neste livro tivesse se tornado o paradigma dominante da ciência da informação? E se, em vez de redes sociais centralizadas em servidores corporativos, tivéssemos desenvolvido plataformas inspiradas nessas práticas de intercomunicação dos oprimidos, onde a topologia da rede refletisse as relações éticas e políticas que desejamos construir?

A segunda parte do livro, Propostas para infraestruturas digitais democráticas, avança para a proposição ao trazer sua experiência com movimentos sociais e redes de pesquisadores no Sul Global para apresentar sete propostas concretas para infraestruturas digitais orientadas ao interesse público e sob controle democrático.

Da recuperação histórica de alternativas tecnológicas do passado à imaginação de possibilidades concretas para o futuro, este livro nos lembra sempre que a tecnologia não é – nem nunca foi, nem nunca será – neutra.  Seus códigos, algoritmos e interfaces são campos de batalha onde valores, visões de mundo e projetos de sociedade disputam hegemonia. E é precisamente no reconhecimento dessa não-neutralidade que reside nossa capacidade de resistir e recriar.

Rodrigo Ochigame é um historiador e antropólogo que estuda computação e inteligência artificial sob uma perspectiva crítica, professor na Universidade de Leiden (Holanda) e doutor pelo MIT (EUA). O livro tem ilustrações de Léo Daruma, prefácio do Instituto Paulo Freire e texto de apresentação de Leonardo Foletto (editor deste espaço) e Caio Valiengo, também editores da coleção. Publicamos aqui abaixo o texto de apresentação na íntegra.

Bibliotecas, redes e revoluções: O legado tecnológico dos oprimidos

Leonardo Foletto e Caio Valiengo

A ascensão do poder das plataformas digitais na vida de bilhões de pessoas do planeta nos fez acostumar a ouvir (e repetir) um mantra: a tecnologia não é neutra. Felizmente, para uma grande parcela da população mundial não é (como nunca foi) novidade entender que um sistema de gerenciamento de bibliotecas digitais, ou um intrincado algoritmo que faz funcionar os feeds de uma rede social, carrega muitos dos valores e das visões de mundo de quem o programa. A forma de organizar a informação, ou com que se prioriza um conteúdo em vez de outro, reflete escolhas políticas, econômicas e culturais que frequentemente permanecem invisíveis para o usuário comum – e às vezes até para alguns dos programadores que arquitetam algoritmos, que não raro se perguntam “mas como que o algoritmo é político? Isso é matemática, multiplicação de matrizes, lógica pura”.

Langdon Winner, no clássico livro de 1986 intitulado The Whale and the Reactor [A baleia e o reator], utiliza um exemplo distante dos algoritmos atuais, mas que explicitam a mesma dinâmica:  o processo de mecanização de uma fábrica de máquinas agrícolas em Chicago nos anos 1880. Comumente lido como parte “natural” da história dos desenvolvimentos industriais do período, motivados principalmente pela eficiência econômica gerada pela mecanização, o contexto específico dessa inovação técnica nos conta outra história. Trabalhadores qualificados da fábrica haviam organizado um sindicato para conquistar melhores condições de trabalho. Como reação, os proprietários da fábrica fomentaram a mecanização do processo que permitia o manejo das máquinas por trabalhadores não qualificados. A mudança produtiva e tecnológica nem sequer gerava resultados mais eficientes, visto que apresentava produtos com qualidade inferior e custos mais altos. As novas máquinas foram abandonadas depois de três anos de uso, mas cumpriram a função de destruir o sindicato.

Esta inconsciência técnica não é acidental. A formação dos profissionais de tecnologia nos centros hegemônicos, aqui tanto no Norte como no Sul Global, tende a separar deliberadamente o “como fazer” do “por que fazer” e “para quem fazer”, criando gerações de programadores que, mesmo brilhantes em suas habilidades técnicas, raramente compreendem o impacto social e político das ferramentas que desenvolvem. Assim como o operário na linha de montagem que não apenas desconhece o produto final de seu trabalho, mas é alienado da compreensão de seu papel como classe produtora de valor na engrenagem capitalista, muitos cientistas da era digital produzem fragmentos de código sem consciência do sistema econômico, político e social que ajudam a construir e perpetuar. Este trabalhador digital, frequentemente seduzido pela narrativa meritocrática do setor tecnológico e pelo fetiche da inovação, raramente percebe como sua atividade intelectual, aparentemente neutra e puramente técnica, está inscrita em relações de poder que transformam conhecimento em commodity, dados em capital e usuários em produtos.

O que raramente se questiona nestes ambientes, porém, é como seriam essas tecnologias se tivessem sido desenvolvidas sob outras premissas, em outros contextos históricos e geopolíticos, por pessoas que experimentaram realidades diferentes daquelas dos centros de poder do Vale do Silício. Enquanto a narrativa hegemônica nos apresenta uma linha evolutiva aparentemente natural e inevitável dos sistemas técnicos — da ARPANET financiada pelo Departamento de Defesa americano à Internet comercial dominada por gigantes como Google e Facebook; dos mainframes da IBM aos computadores pessoais da Apple e Microsoft; dos sistemas proprietários e fechados às plataformas de “economia compartilhada” que, ironicamente, concentram riqueza como nunca —, há, nas brechas do mundo capitalista, experiências tecnológicas alternativas que ainda permanecem obscurecidas, relegadas às notas de rodapé da história oficial da computação.

“Informática do Oprimido” explora justamente algumas dessas narrativas alternativas à visão dominante da tecnologia e que desafiam a pretensa universalidade dos modelos técnicos ocidentais. Como seria, por exemplo, nossas bibliotecas digitais, plataformas de busca e sistemas de catalogação se o “modelo cubano” descrito por Setién Quesada neste livro tivesse se tornado o paradigma dominante da ciência da informação? Em vez de algoritmos otimizados para maximizar cliques e tempo de permanência, teríamos sistemas que medem e valorizam uma efetiva “comunicação social autor-leitor” – aquela relação dialógica onde o leitor não é mero consumidor passivo de conteúdo, mas participante ativo num processo de construção coletiva de sentido através do acervo bibliográfico? O modelo cubano reconhecia esta dimensão social da leitura, mensurando não apenas quantas pessoas acessam determinado material, mas como esse acesso se traduz em apropriação crítica e transformadora do conhecimento. Sob esse modelo, nossas plataformas digitais não reduziriam o conhecimento a mercadorias distribuídas por métricas de engajamento e economia de atenção, mas reconheceriam a complexidade das interações humanas com a informação? A avaliação do sucesso de um sistema não seria baseada apenas em quantos usuários acessam determinado conteúdo, mas na qualidade e profundidade dessas interações, permitindo comparações contextualizadas entre diferentes comunidades e períodos históricos? Teríamos, enfim, uma internet que não apenas conecta pessoas a conteúdos, mas que compreende e nutre as relações sociais que dão significado ao conhecimento compartilhado?

Estes são exercícios de especulação, claro, que trazemos aqui porque fizemos enquanto líamos este texto pela primeira vez – e fica o convite para vocês fazerem também. Ao trazer à luz experiências do Sul Global, especialmente da América Latina, “Informática do Oprimido” nos convida a questionar a história única da tecnologia e a perceber que outros futuros tecnológicos não apenas foram imaginados, mas efetivamente construídos, mesmo que por breves períodos ou em circunstâncias adversas. As redes de solidariedade e comunicação popular desenvolvidas pelos movimentos de base ligados à Teologia da Libertação, também descritas neste livro, nos oferecem outro vislumbre dessas possibilidades: comunidades eclesiais que criaram sistemas de comunicação horizontal e participativa, muito antes da internet, antecipando aspectos fundamentais da teoria de redes distribuídas. As tecnologias sociais que emergiram dessas experiências – onde meios analógicos como rádios comunitárias, boletins mimeografados e redes de mensageiros se entrelaçavam para formar uma infraestrutura de comunicação resiliente à repressão – nos mostram como uma tecnologia verdadeiramente libertadora não está necessariamente atrelada à última inovação de software ou hardware, mas também à forma como suas arquiteturas de rede incorporam e amplificam valores de reciprocidade, proteção mútua e construção coletiva de saberes. E se, em vez de redes sociais centralizadas em servidores corporativos, tivéssemos desenvolvido plataformas inspiradas nessas práticas de intercomunicação dos oprimidos, onde a topologia da rede refletisse as relações éticas e políticas que desejamos construir?

Oprimidos no Chile 

Ainda que não citadas no livro, as experiências de Cuba e da intercomunicação nos anos 1970 e 1980 dialogam com outras duas experiências, no Chile de Salvador Allende (1970-1974), que ecoam um imaginário do que poderia ser uma espécie de modernidade tecnológica latino-americana em que a tecnologia não está afastada das necessidades sociais. O Cybersyn, concebido pelo ciberneticista britânico Stafford Beer em parceria com engenheiros chilenos liderados por Fernando Flores, representou uma visão radicalmente democrática da computação aplicada à economia. Utilizando tecnologia computacional modesta para a época – uma rede de apenas 500 teletipos e um computador mainframe IBM – o sistema criava um fluxo de informações em tempo quase real entre fábricas, centros de distribuição e órgãos governamentais*. Ao contrário dos sistemas cibernéticos soviéticos centralizados, o Cybersyn foi desenhado como uma rede de autonomia viável, onde as decisões fluíam tanto de baixo para cima quanto de cima para baixo, com trabalhadores das fábricas tendo papel ativo no monitoramento e ajuste da produção. A icônica “Sala de Operações” com suas cadeiras futuristas e telas de visualização de dados encarnava uma estética alternativa de tecnologia e também uma ideia de que sistemas técnicos poderiam amplificar, em vez de substituir, a inteligência coletiva dos trabalhadores**.

Paralelamente, a Editora Nacional Quimantú (que em mapuche significa “Sol do Saber”) representou uma revolução na democratização do acesso ao conhecimento. Nacionalizada a partir da antiga Editora Zig-Zag, a Quimantú transformou radicalmente tanto os processos de produção editorial quanto os modelos de distribuição editorial ao produzir livros com tiragens de até 50 mil exemplares vendidos a preços acessíveis*** em bancas de jornal, estações de trem e sindicatos. A editora estatal criou coleções como “Minilibros”, “Cuadernos de Educación Popular” e “Nosotros nos chilenos”, que levaram literatura, história, teoria política e a tentativa de construção de uma identidade nacional socialista, a setores historicamente excluídos do mercado editorial – além de ter experimentado com formas participativas de definição de seu catálogo, incluindo consultas a organizações de base sobre suas necessidades de formação****. Essa foi uma experiência do governo da Unidade Popular que buscava a criação de novos meios e indústrias de comunicação, como a criação da Chile Films, da Televisão Nacional e a estação de rádio Magallanes, onde Allende fez seu último discurso em meio a bombardeios e rajadas de metralhadoras.

Tanto Cybersyn quanto Quimantú foram brutalmente interrompidos pelo golpe militar de Augusto Pinochet em 11 de setembro de 1973. A perseguição a estes projetos foi estratégica: representavam perigosas alternativas ao modelo tecnocientífico e cultural que o neoliberalismo chileno precisava implantar. O Chile, como se sabe, foi o laboratório experimental das políticas que mais tarde seriam globalizadas, e o Golpe Militar que tirou Allende do poder (e o matou) é reconhecido pelo filósofo inglês Mark Fisher como o evento fundador do realismo capitalista – o reconhecimento fatalista de que não há alternativa ao capitalismo*****. Para Eden Medina*******, pesquisadora chilena, professora do MIT (EUA) e uma das pioneiras na sistematização da experiência tecnológica da Unidade Popular, a história do Cybersyn mostra também que não se trata apenas de sonhos utópicos, mas sim uma iniciativa construída coletivamente que fazia parte de um projeto político que tinha aspirações reais e tentava transformar a sociedade.

Estas experiências chilenas, assim como as bibliotecas cubanas e as redes de comunicação popular descritas em “Informática do Oprimido”, compartilham não apenas visões alternativas de tecnologia, mas também destinos marcados por interrupções violentas ou por pressões sistemáticas para sua descaracterização. Se os projetos chilenos foram abruptamente destruídos pelo golpe de Pinochet, as bibliotecas cubanas enfrentaram décadas de embargo econômico que limitaram severamente sua capacidade de modernização tecnológica, enquanto as redes de intercomunicação popular ligadas à Teologia da Libertação foram perseguidas e desmanteladas pelos regimes militares que se espalharam pela América Latina. Estes movimentos revelam um padrão: alternativas tecnológicas que desafiam a lógica dominante raramente são permitidas a amadurecer ou escalar, pois são cortadas ainda em germinação. Ou, quando sobrevivem, são relegadas a nichos marginais, impossibilitadas de competir em condições justas com os modelos hegemônicos.

Aprender com o passado, resistir ao futuro

As experiências chilenas e as descritas em “Informática do Oprimido” são apresentadas aqui não como meras curiosidades históricas ou utopias fracassadas, mas como sementes de possíveis futuros tecnológicos alternativos que persistem na memória e nas práticas de comunidades resistentes. Em um momento onde o colapso climático se aproxima, exacerbado pela crescente demanda por energia e água para os data centers dos serviços de Inteligência Artificial Generativa, retomar estas experiências e criar novos imaginários tecnológicos torna-se cada vez mais necessário para quem resiste às tecnologias hegemônicas das Big Techs do Vale do Silício.

É nesse contexto que se insere a segunda parte do livro, “Propostas para infraestruturas digitais democráticas”, escrita por Rodrigo Ochigame quatro anos depois da publicação que dá nome a este livro na Logic Magazine. Professor de Antropologia na Universidade de Leiden e doutor pelo MIT, Ochigame não se limita à análise histórica, mas avança para a proposição ao trazer sua experiência com movimentos sociais e redes de pesquisadores no Sul Global para apresentar sete propostas concretas para infraestruturas digitais orientadas ao interesse público e sob controle democrático. Essas propostas – que vão desde novos modelos de financiamento até arquiteturas técnicas descentralizadas – formam um programa para gestores e comunidades comprometidas com uma tecnologia inclusiva e democrática. O livro, assim, fecha seu ciclo: da recuperação histórica de alternativas tecnológicas do passado à imaginação de possibilidades concretas para o futuro, lembrando-nos sempre que a tecnologia não é – nem nunca foi, nem nunca será – neutra. Seus códigos, algoritmos e interfaces são campos de batalha onde valores, visões de mundo e projetos de sociedade disputam hegemonia. E é precisamente no reconhecimento dessa não-neutralidade que reside nossa capacidade de resistir e recriar.

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* Essa história é extensamente relatada por Eden Medina no livro “Cybernetic Revolutionaries: Technology and Politics in Allende’s Chile”, publicado em 2014 pela MIT Press.
** Vale conferir o podcast “The Santiago Boys”, escrito e apresentado pelo bielorusso Eugeny Morozov, que conta essa história em detalhes.
*** Vendido nos tradicionais quioscos, uma espécie de banca de jornais e livros no Chile, a editora tinha o lema de que o preço de um livro deveria ser equivalente a um maço de cigarros.
**** Para saber mais sobre essa experiência, ver “Quimantú y la colección Nosostros los Chilenos”, da editora independente chilena Tiempo Robado e, em breve, pela Funilaria.
***** Ver “Comunismo Lisérgico”, texto introdutório de um livro que, infelizmente, Mark Fisher nunca publicou.
******* “Aprendendo com Cybersyn, 50 anos depois: entrevista com Eden Medina”, entrevista para o Digilabour.

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Semiótica do fim – apresentação https://baixacultura.org/2025/06/17/semiotica-do-fim-apresentacao/ https://baixacultura.org/2025/06/17/semiotica-do-fim-apresentacao/#respond Tue, 17 Jun 2025 20:07:37 +0000 https://baixacultura.org/?p=15837 Mais ou menos um ano atrás, estive em Amsterdam, na Holanda, para participar do Mozilla Festival, um dos principais (e únicos) festivais internacionais que trata de ativismo, cultura e arte digital de modo conectado. Encontrei pessoalmente Geert Lovink, diretor do Institute of Network Cultures (INC), que há algum tempo conhecia de leituras e trocas de e-mails, e entreguei pra ele a cópia em português que fizemos, com a Funilaria, de “Extinção da Internet“, livro que ele havia escrito dois anos antes, em plena pandemia, para uma aula na Universidade de Amsterdam. Saí do INC – um oásis gráfico/pesquisa interdisciplinar que ocupa quase um andar inteiro de um prédio da Universidade de Ciências Aplicadas da capital holandesa – com a sacola cheia de alguns dos livros que eles produzem. Um deles se chamava “Semiotics of the End: On Capitalism and the Apocalypse”, de 2023, que inaugurou uma nova coleção do Instituto, “Network Notion”. Li todo no vôo de volta e, logo que cheguei no Brasil, comentei pra Rodrigo Côrrea, designer e editor da SobInfluencia: “li um livro excelente que tem a cara do que vocês têm publicado”. Mandei o PDF – livre em inglês aqui, como todos do INC –  e alguns meses, vários e-mails trocados da editora com Sbordoni e uma tradução competente de Victor Hermann depois – o livro está feito, bonitaço,  em pré-venda, disponível fisicamente a partir de meados de julho de 2025, quando o autor também estará no Brasil. Escrevi a apresentação, que publico aqui abaixo como um convite à leitura dessa curta e provocativa série de ensaios sobre o fim.

[Leonardo Foletto]

 

O livro que você tem em mãos é uma coletânea de 13 ensaios que investiga como o fim do mundo se tornou apenas mais um signo do que Alessandro Sbordoni, ecoando principalmente Franco “Bifo” Berardi, chama de “semiocapitalismo”. Trata-se de uma fase específica e avançada do capitalismo onde a produção de valor tem se deslocado da fabricação de bens materiais para a produção e circulação de signos, informações, afetos e relações sociais. Como diz Bifo, em um trecho citado nesse livro, “o semiocapitalismo coloca as energias neuropsíquicas para trabalhar, submetendo-as à velocidade mecanicista e forçando a atividade cognitiva a seguir o ritmo da produtividade em rede

A tese – se podemos assim chamá-la num texto tão aberto a provocações e leituras distintas – é que o fim do mundo é “apenas mais um signo” do semiocapitalismo: o apocalipse, tal como tradicionalmente concebido, não ocorrerá porque já está em curso permanente. Em sua visão, não há mais diferença entre o fim do mundo e o próprio capitalismo: ambos se reproduzem incessantemente segundo a lógica semiótica do capital. Este livro, então, se apresenta como um manifesto que nos convida a pensar sobre o que significa “fim” hoje.

Nos 13 ensaios permeia um diálogo com a famosa formulação atribuída a Frederic Jameson, mas popularizada por Mark Fisher em seu livro “Realismo Capitalista”: “é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”. Fisher argumentou que o capitalismo se apresentou após 1989 como o sistema político-econômico “padrão” com o qual nenhuma outra forma política estrangeira pode disputar, criando uma condição psicológica coletiva que torna muito difícil pensar em qualquer alternativa. A intuição de Fisher também é compartilhada pelo próprio Bifo em “Depois do Futuro” (lançado no Brasil em 2019 pela Editora Ubu): o “lento cancelamento do futuro”, diz Bifo, torna cada vez mais difícil imaginar futuros por decorrência também do afogamento coletivo pela superoferta de informação libertada na internet.

Sbordoni, entretanto, propõe ir além desse diagnóstico ao sugerir que ainda não imaginamos suficientemente estes “fins” – e que “o fim é apenas o começo”. Faz isso oferecendo um diálogo direto com alguns dos mais influentes nomes da crítica cultural e da filosofia dos últimos 40 anos, de Jean Baudrillard a Bernard Stiegler, Byung-Chul Han, Jacques Derrida, Giorgio Agamben, Nick Land, Slavoj Žizek, Tiqqun, Susan Sontag, além do jás citados Bifo Berardi, Mark Fisher e outros tantos. Este cardápio apresentado compõe uma espécie de banquete filosófico que nos alimenta de diversos , que cobrem diferentes aspectos de nossa vida acelerada pelas tecnologias do início do século 21, e que por conta disso necessitam paradas estratégicas para digerir e assentar as ideias – também para buscar relacionar as ideias apreendidas com as nossas experiências e reflexões cotidianas.

Esse assentamento de ideias e a conexão com referências próximas a nós é facilitado pela profusão de referências à cultura pop, já que a análise do livro, embora parte de filósofos de uma “alta teoria”, digamos, também quer entender algo que é prosaico e comum: como o apocalipse está presente nos produtos culturais que nos cercam neste século 21.

Aqui, vemos desde a música pop de Britney Spears (“Till the World Ends”), que na visão de Sbordoni se insere numa narrativa do fim como consumismo sem finalidade, numa “catástrofe do sentido” esvaziada de realidade pela repetição, até como “Vingadores: Ultimato”. No filme, que teve uma das maiores bilheterias da história do Cinema, os mortos retornam à imagem no desfecho do filme para anunciar um próximo filme do Universo Marvel – o que, na visão do autor, exemplifica a ideia de o fim, em si, é um signo de mais reprodução, mais simulação e repetição do mesmo.

Há ainda um cardápio enorme de músicas, filmes, ações e objetos estéticos citados e analisados sob a perspectiva crítica de Sbordoni, que incluem o glitch, por exemplo, e os backrooms– um estranho fenômeno na internet, originário do 4chan, misto de lenda urbana e espaço físico (inventado?), um lugar de transição que poderia figurar num hipotético (e hipnótico) clipe de “Road to Nowhere” dos Talking Heads remixada por algum DJ de trap nascido nos anos 2000.

Você ficará surpreso (ou não) em saber que o autor deste livro é um linguista e filósofo italiano nascido em Cagliari, maior cidade da ilha da Sardenha, na Itália, no mesmo ano em que a internet comercial estreou no planeta – 1995. Atualmente vivendo em Londres, onde trabalha para a editora de acesso aberto Frontiers, Sbordoni é também autor de “The Shadow of Being: Symbolic/Diabolic” (2023) e editor da revista britânica Blue Labyrinths, junto com o autor do posfácio deste livro Matt Bluemink, e da italiana Charta Sporca, ambas provocativas publicações digitais que tratam de filosofia, literatura, música e cultura digital. “Semiótica do Fim” foi publicado originalmente em inglês em 2023 pelo Institute of Network Cultures, de Amsterdam, dirigido por Geert Lovink, um dos principais e mais longevos teóricos e críticos da cultura digital – que, não por acaso, compartilha de muitas das referências citadas por Sbordoni, além da abordagem alta teoria e cultura pop da internet, como você pode ver em, por exemplo, “Extinção da Internet”, publicado em 2023 no Brasil pela Editora Funilaria em parceria com o BaixaCultura.

Este livro pode oferecer ferramentas conceituais relevantes para nós, brasileiros, também porque aqui parece haver um terreno fértil para o desenvolvimento da “anti-assombrologia” – o conceito que Sbordoni e Bluemink desenvolvem para pensar além dos fantasmas que assombram o presente. Se Mark Fisher escreveu sobre a assombrologia, em “Fantasmas da Minha Vida” (lançado no Brasil em 2022 pela Autonomia Literária), que “o futuro é sempre experienciado como uma assombração”, no Brasil experimentamos algo distinto.

Nossos fantasmas também vêm de futuros não realizados que, mesmo assim, insistem em irromper no presente através da urgência, da escassez e de nossa habilidade, aqui tornada indispensável, de festejar – e tudo que está implicado na festa, sobretudo a corporeidade da diversão manifestada na dança. Nossa produção cultural – do funk carioca ao tecnobrega, dos memes novelescos aos passinhos – não apenas processa ansiedades sobre o fim, mas remixa constantemente novos começos a partir do que parecia destruído (ou esquecido). A crítica de Sbordoni ao semiocapitalismo ressoa aqui, para além de um diagnóstico melancólico, também como um reconhecimento de uma capacidade brasileira de criar outros circuitos, outras relações com o tempo que desafiam a lógica linear do apocalipse capitalista. Se o autor propõe que “o fim é apenas o começo”, no contexto brasileiro isso não é metáfora, mas uma necessidade: somos especialistas em transformar precariedade em potência, nem que seja para fazer do fim do mundo mais uma oportunidade de recomeçar – e dançar. Todo apocalipse, no fundo, também é véspera de festa.

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Conectados e cansados https://baixacultura.org/2025/03/23/conectados-e-cansados/ https://baixacultura.org/2025/03/23/conectados-e-cansados/#respond Sun, 23 Mar 2025 21:45:37 +0000 https://baixacultura.org/?p=15803  

A internet dos anos 2000 prometeu liberdade e colaboração e entregou Big Techs, plataformização da vida e a precarização do trabalho criativo. O que levou a essa transformação? No dia 13 de março, Sílvio Lorusso, autor do livro “Emprecariado” (Clube do Livro de Design, 2023) e eu debatemos os impactos desse cenário e o futuro do trabalho digital. Foi na Risotropical (Galeria Metrópole), centro de São Paulo, das 19h às 21h30, evento organizado pela Ubunttu, Clube do Livro do Design (especialmente Tereza Bettinardi, editora e designer por trás da iniciativa) e que fez parte da DW! Semana de Design.

Gravei em áudio a maior parte da conversa e recupero aqui alguns trechos destacados:

_ Um conceito central discutido é a plataformização, que se refere ao crescente domínio das estruturas de plataformas em diversos aspectos da vida, desde mobilidade e redes sociais até trabalho, saúde, alimentação e serviços públicos – veja aqui o artigo já clássico que analisa o conceito em suas principais dimensões.  Falamos da (óbvia) constatação de que cada vez mais se acessa a internet via plataformas (em seus “jardins murados”), locais onde infraestruturas econômicas e políticas, com seus mecanismos próprios de governança, operam. A plataformização coincide com uma mudança na percepção das possibilidades utópicas da internet, da “ressaca da internet”, com o reconhecimento de que foram as plataformas que acabaram com as possibilidades transformadoras de descentralização e autonomia da internet;

_ A crítica ao tecnolucionismo, a ideia de que a solução para diversos problemas reside em mais tecnologias, mais aplicativos, mais plataformas, quando na verdade essa abordagem muitas vezes só serve à monetização de dados e alimenta um ciclo de desigualdade, para não falar do aumento da concentração de poder político e da perda da capacidade de imaginar outros modelos de gestão e organização da infraestrutura da comunicação. A ascensão das IAs generativas tem acelerado ainda mais esse processo;

_  A discussão sobre empreendedorismo, tema do “Emprecariado” (livro de Lorusso), foi, claro, ponto central da conversa. A ideologia de ser empreendedor é vista por Lorusso como o outro lado da precariedade. Há, em comum, o fato de ambas ideias estarem ligados à ideia de risco,  mas com o empreendedor abraçando a incerteza como oportunidade, enquanto o trabalhador precário vivencia o ser empreendedor como uma imposição. As plataformas, como se sabe, exacerbam essa relação, como discutido no livro, que analisa diversas plataformas para além das tradicionais “Gafam” (Google, Amazon, Facebook, Apple, Microsoft): o LinkedIn, o makretplace de freelas Fiverrg; e o GoFundMe, plataforma de crowdfunding que, segundo Lorusso, exemplifica como a lógica da criatividade e do financiamento coletivo pode se estender a necessidades sociais e, com isso, expor uma certa “criatividade trágica” generalizada.

_ Falamos também das alternativas às plataformas centralizadas, como as plataformas federadas (no Fediverso), que operam com uma lógica descentralizada, onde cada instância têm suas próprias regras. Comentei também que essas plataformas, que têm ganhado um certo boom neste 2025 com a migração de pessoas cansadas das redes sociais alinhadas à Trump, também enfrentam desafios relacionados à moderação de conteúdo em larga escala, além da necessidade de organização e trabalho para manter esses espaços saudáveis.

_ Além de provar o chimarrão gaúcho, Lorusso comentou sobre como, na sua breve vivência em território brasileiro (que incluiu o Carnaval), teve um certo assombro em perceber a implementação generalizada – e normalizada –  das tecnologias de reconhecimento facial nas grandes cidades brasileiras. A precariedade inerente ao contexto brasileiro parece fazer com que experimentos tecnológicos sejam mais facilmente implementados aqui (e no restante do Sul Global) do que em lugares como a Europa (Portugal em especial, onde ele vive; mas também na Itália, sua terra de origem). 

_ Por fim, comentamos até sobre a proliferação das apostas online (bets), motivados por uma pergunta da platéia. É um fenômeno inescapável no país e que demanda um novo vocabulário para entender a dinâmica de plataforma e precarização, agora desvinculada da ideia de produção ou do trabalho tradicional, e que tem impactos sociais significativos, especialmente entre a população de baixa renda.

As fotos do evento abaixo são da Helena Wolfenson.

 

 

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Vale a pena ver de novo – Tudo Vigiado por máquinas de adorável graça (2012) https://baixacultura.org/2025/03/07/vale-a-pena-ver-de-novo-tudo-vigiado-por-maquinas-de-adoravel-graca-2012/ https://baixacultura.org/2025/03/07/vale-a-pena-ver-de-novo-tudo-vigiado-por-maquinas-de-adoravel-graca-2012/#respond Sat, 08 Mar 2025 01:23:04 +0000 https://baixacultura.org/?p=15805 Quase 13 anos atrás, fizemos um texto no BaixaCultura falando do “Tudo Vigiado por Máquinas de Adorável Graça”, de Adam Curtis, grande documentarista inglês conhecido por seu estilo único e denso de contar histórias políticas e interessantes do século XX. O post reproduziu uma resenha de uma amiga do BaixaCultura de tempos, Aracele Torres, doutora e mestre em história social pela USP, autora da bela tese “A internet livre e aberta como ideologia: o debate da neutralidade da rede no Brasil e nos Estados Unidos” e do livro essencial “A Tecnoutopia do Software Livre”, baseado em sua dissertação e em seu trabalho de militante do software livre de muitos anos.

O belo e misterioso nome do documentário, “All Watched Over By Machines of Loving Grace” (no original), faz referência a um poema publicado em 1967 sob o mesmo nome, cujo o autor, Richard Brautigan, falava de uma sociedade onde os homens estavam livres de trabalho e a natureza tinha alcançado seu estado de equilíbrio, tudo graças ao avanço da cibernética.

All Watched Over By Machines Of Loving Grace
I like to think (and
the sooner the better!)
of a cybernetic meadow
where mammals and computers
live together in mutually
programming harmony
like pure water
touching clear sky.

I like to think
(right now, please!)
of a cybernetic forest
filled with pines and electronics
where deer stroll peacefully
past computers
as if they were flowers
with spinning blossoms.

I like to think
(it has to be!)
of a cybernetic ecology
where we are free of our labors
and joined back to nature,
returned to our mammal
brothers and sisters,
and all watched over
by machines of loving grace.

 

O documentário é uma crítica contundente à tradição tecno-utópica originada nos Estados Unidos, da ideologia californiana ao tecnosolucionismo. Você deve imaginar, por conta disso tudo, o quanto o filme está cada vez mais atual na Era Musk-Trump, por isso nossa recomendação de hoje.

Está dividido em 3 partes: “Amor e Poder“ mostra como o casamento entre a teoria de Ayn Rand e a crença no poder das máquinas produziu a ilusão de uma sociedade que prescinde, entre outras coisas, de políticos e que se autogovernava e se autoregulava com a ajuda dos computadores. ”O uso e abuso dos conceitos vegetais” apresenta o entrelaçamento entre a teoria da cibernética e a teoria do ecossistemas naturais, que produziu a crença de que a natureza era um sistema autorregulado e estável. Por fim, “O macaco dentro da máquina e a máquina dentro dos macacos“, encerra com a discussão em torno da teoria sobre o comportamento humano moldado por códigos matemáticos genéticos – o ser humano como uma máquina controlada por seus genes. Cada uma com cerca de uma hora de duração, todos disponíveis no Vimeo do BaixaCultura para assistir, legendados e de grátis, e aqui abaixo:

 

 

 

Há este e outros vídeos na nossa BaixaTV, canal com uma seleção de documentários, curtas, longas, programas de TV e vídeos variados sobre cultura livre, (contra) cultura digital e diversos temas ao redor disso, tanto produzidos por nós quando por outros e rearrajandos por nós. Acreditamos que organizar a informação de modo a facilitar o acesso permitirá que ela siga circulando.

 

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A crise é cognitiva – a guerra cultural e os fins da internet https://baixacultura.org/2025/02/14/a-crise-e-cognitiva-a-guerra-cultural-e-os-fins-da-internet/ https://baixacultura.org/2025/02/14/a-crise-e-cognitiva-a-guerra-cultural-e-os-fins-da-internet/#respond Fri, 14 Feb 2025 14:09:45 +0000 https://baixacultura.org/?p=15788 Semana passada participei novamente no Balanço & Fúria para falar sobre as transformações da internet, das raízes rebeldes à ascensão da plataforma aliada (e potencializadora) da extrema direita. Falamos um pouco sobre como essa mudança impactou a cognição, o trabalho e a cultura, levando a uma crise de consenso e à ascensão da desinformação, entre outras coisas. No final destacamos a necessidade urgente de repensar a forma como interagimos com a tecnologia e de buscar alternativas que promovam a descentralização, a transparência e o bem comum. A ascensão do DeepSeek, com seu modelo de código aberto, oferece uma faísca de esperança em meio a um cenário de crescente preocupação com o poder das Big Techs e o impacto da desinformação. 

“Quem teve acesso à internet do fim dos anos 90 e começo dos anos 2000 jamais imaginaria que ela se tornaria um dos principais instrumentos para a elaboração do fascismo de nosso tempo, um impulsionador da crise política e estética, seguido da crise cognitiva que determinaria uma nova subjetividade em seus usuários, assim como uma nova definição de capitalismo ultraprecarizado e ultraliberal, que confundiu ainda mais os limites do trabalho, das liberdades e da democracia liberal.

Da guerra cultural à plataformização, passando pela monopolização das Big Techs e a disputa geopolítica baseada nas tecnologias criadas a partir do que resta da internet, Leonardo Foletto caminha sobre uma breve história das redes de compartilhamento, da pirataria, do hackativismo até o apodrecimento algorítmico fascista em que nos encontramos agora.”

Dá pra ouvir/baixar no site e também aqui abaixo.

[Leonardo Foletto]

 

 

 

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Software livre pode derrotar as big techs? https://baixacultura.org/2025/02/07/codigo-aberto-pode-derrotar-as-big-techs/ https://baixacultura.org/2025/02/07/codigo-aberto-pode-derrotar-as-big-techs/#respond Fri, 07 Feb 2025 17:09:28 +0000 https://baixacultura.org/?p=15779 Falei para o programa “Outra Manhã”, do Outras Palavras, na segunda 3/2/25 sobre DeepSeek e a questão do open source, a partir do texto publicado aqui – que foi republicado pelo OP também

Na conversa, de cerca de 1h, busquei enfatizar o potencial dos modelos de código aberto para desafiar o domínio de grandes empresas de tecnologia. Trouxe também questões éticas e práticas sobre o uso de dados, as implicações políticas da IA ​​e possibilidades futuras de desenvolvimento de IAs descentralizadas, locais e de código aberto. A manchete é um pouco sensacionalista, como o jornalismo tem costumado ser (às vezes por questão de sobrevivência).

[Leonardo Foletto]

Na semana seguinte, Antônio Martins e Glauco Faria conversaram com Uirã Porã sobre como o software livre vive no Brasil e como ele pode ser base da autonomia tecnológica, numa conversa que vale a pena escutar:

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