Plágio Criativo – BaixaCultura https://baixacultura.org Cultura livre & (contra) cultura digital Tue, 15 Sep 2015 16:10:28 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.0.9 https://baixacultura.org/wp-content/uploads/2022/09/cropped-adesivo1-32x32.jpeg Plágio Criativo – BaixaCultura https://baixacultura.org 32 32 Pequenos Grandes Momentos Ilustrados da História da Recombinação: Plunderfonia https://baixacultura.org/2015/09/15/pequenos-grandes-momentos-ilustrados-da-historia-da-recombinacao-plunderfonia/ https://baixacultura.org/2015/09/15/pequenos-grandes-momentos-ilustrados-da-historia-da-recombinacao-plunderfonia/#respond Tue, 15 Sep 2015 16:10:28 +0000 https://baixacultura.org/?p=10425 fony

Como muitas crianças da década de 1950 no Canadá, John Oswald cresceu ouvindo rádio na casa de seus pais. Formava imagens somente a partir do barulho que vinha daquele aparelho grande, e com elas criava cenas, personagens, pequenas narrativas que não iam muito adiante – sua atenção dispersa sobre uma história logo se transferia pra outra, e outra, e indefinidamente.

Mas de tanto escutar pegou gosto pelo som. Passou a experimentar com os discos de música clássica de seus pais: pegava os discos de 78 RPM, com uma só música em cada lado, e passava para 33 RPM, e vice-versa, diminuindo e aumentando a velocidade conforme a rotação do aparelho. Assim, ia descobrindo sons diferentes daqueles usuais, paisagens sonoras que ia contando histórias que pareciam trazer significados opostos aqueles apresentados para quem ouvia “normalmente”.

Não temos como saber se nessas brincadeiras de infância e adolescência já estava a raiz do trabalho posterior de Oswald. Mas que algo tem que ver com a plunderfonia, certamente. Se não, vejamos a definição que o próprio canadense deu para a palavra, criada anos antes e apresentada ao público pela primeira vez em 1985, no texto “Plunderphonics, or Audio Piracy as a Compositional Prerogative“, na Conferência EletroAcústica da Wired Society, em Toronto:

“Um plunderfone é uma citação sonora reconhecível, usando o som real de algo familiar que foi gravado. Assobiar um compasso de Density 21.5 é uma citação musical tradicional. Pegar Madonna cantando Like a Virgin e regravá-la de trás pra frente ou mais lento é plunderfonia, contanto que você possa reconhecer razoavelmente a fonte. A pilhagem tem de ser evidente”.

burrows

Parece bobagem falar da prática de pilhagem sonora que é a plunderfonia hoje, tempos de remix, DJs e toda (ou quase) a música do mundo disponível na internet. Mas em 1985, quando Oswald lançou seu manifesto, não era. Nesta época já fazia 10 anos que ele mantinha uma organização fictícia chamada “Mistery Laboratory”, que fazia experimentos de colagem sonora com fitas-cassetes (chamada de “Mistery Tapes“), utilizando referências de música concreta com elementos surrealistas e dadaístas. Um de seus primeiros registros foi “Burrows“, em 1974, em que produziu palíndromos fonéticos em com trechos das obras lidas (e escritas) por William Burroughs, não por acaso um dos criadores do cut-up na literatura e inspirador da técnica plunderfônica.

Já com bagagem de experimentação sonora analógica, em 1985 é que Oswald ganha de vez reconhecimento público e relevância na área musical com seu texto “Plunderphonics”, em que dá nome a esta conceito de só trabalhar com materiais sonoros de outros, recortando e colando trechos diversos, sempre esclarecendo que seu intuito não era uso comercial. (Ainda que sem licença nenhuma, talvez fosse um antepassado primário de certas licenças Creative Commons de hoje.)

O ensaio, que pode ser lido aqui na íntegra, em inglês, apresenta as possibilidades de se fazer som também com equipamentos que reproduzem som, como rádios, gravadores de fitas. Faz uma defesa do sampling quando essa técnica era quase restrita a Djs de Hip-Hop, falando que uma gravação de um som – emitido por qualquer coisa, inclusive um aparelho que reproduz som de discos, fitas, rádios – é “simultaneamente um dispositivo de documentação e um dispositivo criativo”. E aborda, por fim, a questão do plágio, dizendo que ele pode ocorrer com uma obra apenas se o original “não for superado” pelo copiador, de acordo com o escritor John Milton. Oswald acrescenta ainda uma citação do compositor Stravinsky, hoje bastante conhecida, de que “um bom compositor não imita, mas rouba”.

plunderphoniccapa

 

Como resultado prático de seus testes plunderfônicos, em 1988 nasce seu EP de estreia, chamado “Plunderphonics”, que é distribuído para alguns jornalistas e estação de rádios na América do Norte. Continha 4 faixas, cada uma “refeita” a partir de variações de andamento, loops e samples rudimentares disponíveis na época, com Oswald explicando em detalhes o que propunha com as alterações. A primeira faixa, por exemplo, se chamava “Pretender“, e era feito a partir de um single da cantora Dolly Parton, bastante conhecida no cenário de country music dos EUA, chamado “The Great Pretender“. Oswald deixou mais lento o andamento da música fazendo Dolly eventualmente soar como um homem, provocando questões de gênero a partir de modificações na voz da cantora, uma “sex symbol” da época. A explicação didática sobre o experimento está disponível neste link.

Um ano depois, em 1989, surge “Plunderphonics”, o disco, com 24 faixas utilizando das mesmas técnicas plunderfônicas de alterar o som apenas com efeitos analógicos, sem, no entanto, deixar de fazer o ouvinte reconhecer de quem era o sampling principal – característica que diferencia a plunderfonia do sampling usado no hip-hop, por exemplo. O disco (baixe aqui o arquivo zipado) traz experimentações com faixas de grandes nomes da música, como Beatles, The Doors, Elvis Presley, James Brown e Michael Jackson – este não só na música, como também na capa (imagem acima), em que O Rei do Pop vira hermafrodita.

Claro que Oswald não passaria incólume sem a polícia do copyright o incomodar. Mais do que a música “Bad” virar “Dab” no disco, o que chamou atenção mesmo da associação da indústria fonográfica canadense da época foi a capa do disco. Michael Jackson, inclusive, depôs pessoalmente no processo penal instaurado de violação de direitos autorais contra “Plunderphonics”. Sem ter como competir com o poderio financeiro de Jackson, Oswald evitou de pagar multas estratosféricas aceitando retirar de circulação o disco, destruindo a fita máster e as cópias que tinha – mas aí já havia distribuído milhares por Estados Unidos e Canadá, de modo que o disco mesmo assim se espalhou. O caso ganhou repercussão da imprensa e uma das poucas matérias ainda disponíveis na rede, na então novata revista Wired, de 1995, dá o tom do que foi falado, a começar pelo título: “The Man Who Stole Michael Jackson’s Face”.

plunder 4

Depois do disco de 1989, John Oswald seguiu fazendo suas plunderfonias por aí. Foi convidado a produzir “Grayfolded” (1996), um disco duplo do Grateful Dead que consiste de um quebra cabeça de mais de 100 performances da banda em “Dark Star“, gravadas de 1968 a 1993. Saca aí como soa angelicalmente doido o lado 1 do primeiro disco, “Transitive Axis“:

Em 2001, foi lançada a coletânea dos trabalhos de Oswald, chamado “Plunderphonics 69/96” (imagem acima). Disco duplo, plunderfonia em estado puro já na capa, é divido em duas partes, “Songs”, baseadas em rock e pop, e “Tunes”, com trechos de música clássica, jazz e experimental.

Oswald continua a experimentar ainda hoje, tempos que, como sabemos, são muito mais afeito ao desvio e a recriação do que nas décadas de 1970-80-90. Mantém o selo FONY (um desvio a SONY até na tipografia usada, como mostra seu site) e um canal no Youtube com vídeos que dialogam com os recortes sonoros. Além de ter Facebook e Twitter, onde ficamos sabendo que ele recém organizou uma performance em Toronto com uma versão de uma obra sua, “Spectre, com 1000 (!) pessoas tocando instrumento de cordas simultaneamente. O guri que adorava contar histórias e criar imagens com sons fez disso sua vida.

**

Diferente do plágio praticado por má fé, preguiça ou falta de talento, a pluderfonia trabalhou com a adaptação e a recriação de um novo contexto para o som (ou a música), deixando claro sua origem. Em “Pluderphonics“, o disco, e em outras obras que se seguiram, Oswald não somente fez samplers, mas tomou as gravações dos outros como suas e as picotou, distorceu, modificou até a exaustão, usando para isso qualquer ferramenta que estivesse a sua disposição, analógica ou digital. Fez isso de formas arcaicas e futuristas; de variar a velocidade de um toca-discos ou de um toca-fita até cortar pedaços da música, construir “orquestras imaginárias” em que cada músico toca uma nota, criar um quarteto de jazz a partir de quatro solos de gravações separadas que aparentemente nada tem que ver umas com os outras, entre outras técnicas que a imaginação permitir criar.

Mais ou menos como faziam os situacionistas no deturnamento, já amplamente falado por aqui e no Zine nº 1, quando desviavam citações alheias e davam a elas outros significados. O que escrevemos sobre o detour vale aqui também: “Talvez seja uma forma de entrar diretamente no longo diálogo do conhecimento, de expor referências e mostrar à todos o que se quer absorver destas – e da união do que se aproveita de um lado com o que se aproveita de outro é que nasce algo diferente. Parece sempre ter sido assim a criação, e barrar o uso dessas referências é, em todos os sentidos, limitar a criatividade. “

Logicamente, há antepassados e ações contemporâneas à plunderfonia – como todos estes pequenos momentos ilustrados da história da recombinação aliás, que nada mais são que rearranjos criativos em determinados períodos históricos, sem nada de “original”. Um dos mais notáveis exemplos destes antepassados é o trabalho de Dickie Goodman e BIll Buchanan no single “The Flying Saucer“, de 1956, em que Buchanan faz o papel de um repórter de rádio cobrindo uma suposta invasão alienígena, enquanto vários sons são tocados, de Chuck Berry a Litlle Richard e Elvis Presley. Hoje, “The Flying Saucer” parece mais uma reportagem do que propriamente uma música, mas foi lançada como single e atingiu o #3 lugar da parada dos EUA em 1956.

https://www.youtube.com/watch?v=oq5cB7K6_2M

Na década seguinte, compositores de música de experimental de concerto, como Alfred Schnittke e Mauricio Kagel, usavam também obras de outros autores para fazer as suas. Nesta mesma década de 1960, Lee “Scratch” Perry já brincava de sampling na Jamaica, no que viria a originar os primeiros samplers do rap – e que será tema de outro texto por aqui.

Outro caso notável e contemporâneo à Oswald é o do Negative Land, banda (de quem já falamos no texto Arte Ilegal de Disney a Zeppelin) e que se especializou em remixar outras músicas, como no notório caso do EP “U2” (1991), com citações explícitas a música “I Still Haven’t Found What I’m Looking For” da banda irlandesa, entre vários trechos de outros sons. Claro que teve processo da gravadora do U2 à época, Island Records, que, assim como Michael Jackson com Oswald, não gostou mais do nome U2 estampado na capa do EP do que propriamente da citação da música. O Negative Land levou adiante a história, inclusive escrevendo um livro disco sobre o causo, chamado ironicamente de “Fair Use: The Story of the Letter U and the Numeral 2” (1995), o que ajudou a fortalecer a fama da banda como anticopyright, inclusive sendo citada no documentário “RIP: A Remix Manifesto“. Mas essa é outra longa história que deixamos para uma outra vez.

Fontes de pesquisa
Além das já citadas no texto, a matéria do Dada ao Meme, do Chupa Manga Zine;
este post de um blog espanhol ligado ao periódico El Cultural: http://elcultural.com/blogs/la-columna-de-aire/2013/05/plunderfonia-y-3-loado-sea-el-pirata-oswald/;
este artigo no site DJ Broadcast: https://www.djbroadcast.net/article/98940/from-plunderphonics-to-frankensampling-a-brief-history-of-how-sampling-turned-to-theft; desta matéria do BoingBoing sobre o Grateful Dead: http://boingboing.net/2014/04/29/oswalds-greyfolded-plunderp.html;
entrevista de Oswald dada ao periódico espanhol Gara: http://www.mattin.org/essays/john_oswald.html;
este artigo de Oswald sobre as “mistery tapes” que ele levaria para uma ilha deserta: http://econtact.ca/14_3/oswald_desertisland.html

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Faz algum tempo que prometíamos uma continuidade no nosso selo editorial que lançou o Efêmero Revisitado em 2011/2012. Diversos contratempos e outros trabalhos infindáveis adiaram esse processo, mas eis que, em junho de 2015, a segunda publicação do selo é lançada: trata-se do Zine BaixaCultura nº1.

O tema escolhido pra edição foi o détournement, a partir de uma reedição de um texto já publicado aqui, o guia para os usuários do deturnamento, e de uma apresentação feita exclusivamente para a publicação. A ideia é dar continuidade a série “Pequenos Grandes Momentos da História da Recombinação”, mas também reeditar alguns textos do site e lançar conteúdos exclusivos relacionados à cultura livre e a (contra) cultura digital, em especial aqueles que achamos que combinam melhor com uma leitura em papel. Não vamos prometer uma periodicidade de lançamentos, mas já tem novos sendo gestados.

O primeiro lançamento do zine vai ocorrer hoje mesmo, 19 de junho de 2015, em Joinville, junto ao curso de jornalismo das faculdades Bom Jesus/Ielusc, conforme o cartaz de divulgação abaixo. A ideia é apresentar o conteúdo e falar um pouco sobre remix, plágio criativo e a ligação disso tudo com o copyleft e o software livre. A partir de segunda-feira o zine vai estar disponível em PDF (gratuito) na página Selo do site. E impresso, com envelope carimbado e adesivo, a módicos R$10 (taxas de envio incluso) ou na banca de zines mais próxima de sua cidade. Novas cidades e eventos de lançamentos serão divulgados aqui.

[Leonardo Foletto]

cartaz joinville
Fotos do evento de lançamento (Mauro Artur Schlieck)

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Como montar:

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Expediente (do zine): Calixto Bento (diagramação), Sheila Uberti (foto da capa – que abre esse post – sobre mosaico criado durante a oficina da artista Silvia Marcon, em Porto Alegre/RS) e Leonardo Foletto (edição).

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A arte do roubo criativo https://baixacultura.org/2012/11/20/a-arte-do-roubo-criativo/ https://baixacultura.org/2012/11/20/a-arte-do-roubo-criativo/#comments Tue, 20 Nov 2012 18:46:23 +0000 https://baixacultura.org/?p=6536

Copiar, você sabe, também é uma forma de criar.

Um bom roubo dá créditos. Honra o trabalho original. Não imita; transforma. É o que diz o escritor americano Austin Kleon no livro Steal like an artist (Roube como um Artista, ainda sem tradução para o português), em que lista 10 coisas que ninguém te contou sobre ser criativo.

Saca só a lista:

_ Steal like an artist (roube como um artista)

_ Don’t wait until you know who you are to get started (Não espere até você saber quem é você para começar)

_ Write the book you want to read (Escreva o livro que você quer ler)

_ Use your hands (Use suas mãos)

_ Side projects and hobbies are important (Projetos paralelos e hobbies são importantes)

_ The secret: do good work and share it with people. (O segredo: faça um bom trabalho e compartilhe com as pessoas

_ Geography is no longer our master. (Geografia não é mais o nosso mestre)

_Be nice. (The world is a small town.) (Seja legal: o mundo é uma cidade pequena)

_ Be boring. (It’s the only way to get work done.) (Seja chato: é a única forma de começar o trabalho já feito.)

_ Creativity is subtraction. (criatividade é subtração)

O livro é uma ampliação, com ilustrações e mais textos, destas 10 coisas que “ninguém te contou como ser criativo”. Vejamos como ele funciona roubando/traduzindo daqui o ítem 7:

Eu cresci no meio de um milharal no sul de Ohio. Quando eu era criança, tudo que eu queria fazer era sair com artistas. Tudo o que eu queria fazer era cair fora do sul de Ohio e chegar a algum lugar onde algo foi acontecendo.

Agora vivo em Austin, Texas. Um lugar bonito. Toneladas de artistas e profissionais criativos em toda parte.

E você sabe o que? Eu diria que 90% dos meus mentores e colegas não vivem em Austin, Texas. Eles vivem na internet.

O que quer dizer que a maioria do meu pensamento e da minha fala em arte é online.

Em vez de uma cena de arte geográfica, tenho amigos no Twitter e o Google Reader.

A vida é estranha.”

*

A lista/livro surgiu de uma palestra dada pelo autor (“um escritor que desenha, diz na apresentação“), com o nome de “Rocked the creative world”, que foi pra rede, virou um post e tornou-se viral. Com os milhões de cliques e leituras de sucesso, Austin ampliou sua discussão para o formato de livro, e assim saiu “Roube como um Artista” em fevereiro de 2012, publicado pela editora Workman.

Na página do trabalho, diversas críticas positivas, como essa da Forbes: “Equal parts manifesto and how-to, Steal Like An Artist aims to introduce readers to the idea that all creative work is iterative, no idea is original and all creators and their output are a sum of inspirations and heroes…”

Mas aqui vai uma construtiva: cadê o livro pra download grátis?

(Ok, tem quase todo ele disponível aqui)

Veja mais imagens do livro. Pra comprar, vá no site oficial. E pra ver os desdobramentos, vá no Tumbrl.

(indicação do livro veio daqui).

Créditos imagens: Flickr Austin Kleon.
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Todos nós plagiamos, inclusive Bob Dylan https://baixacultura.org/2012/09/26/todos-nos-plagiamos-inclusive-bob-dylan/ https://baixacultura.org/2012/09/26/todos-nos-plagiamos-inclusive-bob-dylan/#respond Wed, 26 Sep 2012 18:31:38 +0000 https://baixacultura.org/?p=9332

Kirby Ferguson, diretor dos quatro capítulos de “Tudo é Remix“, deu recentemente uma pequena conferência no TEDx com o título de “Embrace the Remix”.

Ali, Kirby falou sobre a natureza do remix e de como as ideias são sempre baseadas umas nas outras, dando o exemplo de ninguém menos que Bob Dylan, que, por sua vez, seguiu o conselho de seu mestre Woody Guthrie: “Importante é a letra. Não se preocupe com a melodia. Pegue uma melodia, cante alto enquanto eles cantam baixo, cante rápido quando cantam lentamente e você tem uma nova canção.”

Em sua fala, Kirby põe lado a lado a versão de Dylan para músicas tradicionais dos Estados Unidos, para que todos vejam que ele, assim como todos cantores folk, copiou melodias, transformou-as, combinou-as com novas letras que eram frequentemente sua própria mistura de material anterior.

Esteja combinado: Bob Dylan é, como todo gênio, um excelente copiador. Além das suas músicas, já fez isso em seus quadros (uma dessas é imagem que abres este post) na série chamada “The Asia Series”, que foram “acusados” de serem reproduções de fotos conhecidas de Henri Cartier-Bresson e Léon Busy.

E recentemente voltou ao assunto quando do lançamento de seu último disco, “Tempest” – que pode ser baixado aqui. Questionado sobre as citações ao livro Confessions of a Yakuza, de Junichi Saga, e ao poeta do século 19 Henry Timrod em sua obra, Dylan respondeu que se não fosse por ele muitas pessoas nunca teriam ouvido falar dos escritores.

“Todo mundo pode, menos eu”, queixou-se o bardo. “Para mim há regras diferentes.” Ele chamou seus críticos de “wussies and pussies” (algo como “fracos e covardes”). Em 2003, o “Wall Street Journal” relatou que as letras do disco “Love and Theft”, de 2001, eram notavelmente parecidas com trechos da biografia de Junichi Saga, lançada em 1995. Num dos trechos identificados, por exemplo, a letra de Dylan diz: “Não sou tão legal e clemente quanto pareço“; no livro, lê-se a frase: “Não sou tão legal ou clemente quanto eu poderia parecer“.

Continuou ele: “Estou trabalhando dentro da minha forma de arte”, disse Dylan na entrevista. “É simples assim (…). Chama-se composição. Tem a ver com melodia e ritmo, e depois disso vale tudo. Você torna tudo seu. Todos nós fazemos isso“. BINGO!

 *
 

Veja abaixo a transcrição da fala de Kirby no TedX. Clique na imagem acima para assistir o vídeo, com a transcrição na língua que quiser.

Vamos começar em 1964. Bob Dylan tem 23 anos, e sua carreira está atingindo seu apogeu. Ele foi nomeado o porta-voz de uma geração, e produz canções clássicas num ritmo aparentemente impossível, mas uma pequena minoria de dissidentes alega que Bob Dylan está roubando músicas de outros.

2004. Brian Burton, vulgo Danger Mouse, pega o “Álbum Branco” dos Beatles, o combina com “O Álbum Negro” de Jay-Z para criar o “Álbum Cinza”. “O Álbum Cinza” torna-se sensação imediata na Internet, e a gravadora dos Beatles envia inúmeras cartas de intimação apontando “concorrência desleal e diluição do valor da nossa propriedade.”

Agora, “O Álbum Cinza” é um remix. É material novo criado com material antigo. Foi feito usando essas três técnicas: copiar, transformar e combinar. Assim se faz o remix. Pegamos músicas já existentes, as dividimos em partes, transformamos as peças, as combinamos novamente, e temos uma música nova, mas esta é distintamente composta de músicas antigas.

Porém esses não são os únicos componentes da remixagem. Acho que são os elementos básicos de toda criatividade. Acho que tudo é um remix, e penso esta ser a melhor maneira de se conceber criatividade.

Bem, vamos de volta a 1964 e ouvir de onde originaram as primeiras músicas de Dylan.Vamos compará-las lado a lado.

Muito bem, a primeira música que irão ouvir é “Nottamun Town”. É uma melodia popular tradicional. E em seguida ouvirão “Masters of War” de Dylan.

Jean Ritchie: ♫ Em Nottamun Town, ninguém olhava para fora, ♫

♫ ninguém olhava para cima, ninguém olhava para baixo. ♫

Bob Dylan: ♫ Venham senhores da guerra, ♫

♫ vocês que constroem as grandes armas, vocês que constroem os aviões da morte, ♫

♫ vocês que constroem as bombas. ♫

Kirby Ferguson: Muito bem, é a mesma melodia de base e estrutura geral. A próxima é “The Patriot Game”, de Dominic Behan. Ao seu lado, ouvirão: “With God on Our Side” de Dylan.

Dominic Behan: ♫ Venham todos jovens rebeldes, ♫

♫ e alistem-se enquanto canto, ♫

♫ pois o amor a nossa pátria é algo poderoso. ♫

BD: ♫ Oh meu nome é nada, ♫

♫ minha idade significa menos ainda, ♫

♫ a terra de onde venho se chama Meio-Oeste. ♫

KF: O.k., então neste caso, Dylan admite que ele deve ter ouvido “The Patriot Game” mas se esqueceu, então quando a música ficou em sua cabeça, ele simplesmente pensou que era sua música.

A última: “Who’s Going To Buy You Ribbons”, uma outra canção popular tradicional. Com esta ouçam “Don’t Think Twice, It’s All Right”. Esta é mais sobre a letra da música.

Paul Clayton: ♫ Não adianta sentar e suspirar agora, ♫

♫ querida, não adianta sentar e chorar agora. ♫

BD: ♫ Não adianta sentar e pensar por que, baby, ♫

♫ se você ainda não sabe, ♫

♫ e não adianta sentar e pensar por que, baby, ♫

♫ De nada isso adiantará. ♫

KF: O.k., agora, tem muitas assim. Estima-se que dois terços das melodias que Dylan usou em suas primeiras músicas foram emprestadas. Isso é bem típico entre cantores da música folk. Este é o conselho do ídolo de Dylan, Woody Guthrie.

“Importante é a letra. Não se preocupe com a melodia. Pegue uma melodia, cante alto enquanto eles cantam baixo, cante rápido quando cantam lentamente e você tem uma nova canção.” (Risos) (Aplausos) E foi isto que Guthrie fez aqui, e tenho certeza que todos vocês reconhecem os resultados. (Música) Conhecemos esta melodia, certo? Conhecemos? Na verdade não a conhecem. Ela é “When the World’s on Fire”, uma melodia muito antiga, neste caso apresentada pela Família Carter. Guthrie a adaptou para “This Land is Your Land”. Então, Bob Dylan, assim como todos cantores folk, copiou melodias, transformou-as, combinou-as com novas letras que eram frequentemente sua própria mistura de material anterior.

Agora, direitos autorais americanos e leis de patente vão contra essa noção de que nós construímos no trabalho de outros. Em vez disso, essas leis e as leis do mundo inteirousam uma analogia bastante estranha com respeito a propriedade. As obras criativas podem ser uma espécie de propriedade, mas é propriedade que todos nós construímos, e as criações somente podem enraizar e crescer uma vez que o terreno tenha sido preparado.

Henry Ford uma vez disse: “Não inventei nada de novo. Simplesmente juntei as descobertas de outros homens que trabalharam nisso durante séculos. O progresso acontece quando todos os fatores contribuintes estão preparados e então ele é inevitável.”

2007. O iPhone faz a sua estréia. A Apple sem dúvida nos traz esta inovação rapidamente,mas seu momento se aproximava porque o núcleo desta tecnologia já estava sendo desenvolvido durante décadas. É o multi-toque que controla um dispositivo com um toque em sua tela. Aqui está Steve Jobs apresentando o multi-toque e fazendo uma piada um tanto profética.

Steve Jobs: E inventamos uma nova tecnologia chamada multi-toque. Podemos fazer múltiplos gestos com os dedos, e gente, nós a patenteamos. (Risos) KF: Sim. No entanto, eis aqui o multi-toque em ação. Isso é no TED, cerca de um ano antes. Este é Jeff Han, e isto é multi-toque. É o mesmo tipo de coisa. Vamos ouvir o que Jeff Han tem a dizer sobre esta tecnologia ultra moderna. Jeff Han: O sensor de multi-toque não é nada – não é algo novo. Quero dizer, pessoas como Bill Buxton experimentaram com isto nos anos 80. No momento, a tecnologia aqui não é o mais empolgante a não ser o fato da sua acessibilidade ser recém-descoberta. KF: Então ele é bastante honesto ao dizer que isto não é novo. Portanto não é o multi-toque como um todo que é patenteado. Mas sim suas pequenas partes, e são nesses pequenos detalhes onde vemos claramente que a lei de patentes contradiz seu propósito: promover o progresso das artes úteis.

Aqui está o primeiro ‘deslizar para desbloquear’. Isso é tudo que há nisto. A Apple patenteou isso. É uma patente de software de 28 páginas, mas vou resumir e conto o final: Desbloquear seu celular deslizando um ícone com o dedo. (Risos) Só estou exagerando um pouquinho. É uma patente ampla.

Agora, pode alguém possuir esta ideia? Nos anos 80, patentes de software não existiam, e a Xerox foi a pioneira em interface gráfica do usuário. E se eles tivessem patenteado os menus pop-up, barras de rolagem, o desktop com ícones que se parecem com pastas e folhas de papel? Teria uma Apple jovem e sem experiência sobrevivido ao ataque judicial de uma empresa maior e mais estabelecida como a Xerox?

Esta ideia que tudo é um remix pode parecer senso comum até que um remix aconteça para você. Por exemplo… SJ: Quero dizer, Picasso tinha um ditado. Ele disse: “Bons artistas copiam. Grande artistas se apropriam.” Temos sido sempre imprudentes sobre o roubo das grandes ideias. KF: O.k., isto é em 1996. Aqui é em 2010. “Vou destruir Android porque é um produto roubado.” (Risos) “Estou disposto a ir à guerra termonuclear por isso.” (Risos) O.k. em outras palavras, grandes artistas se apropriam, mas não de mim. (Risos)

Economistas comportamentais se refeririam a este tipo de coisa como aversão à perda.Temos uma predisposição forte para proteger aquilo que sentimos ser nosso. Não temos esta mesma aversão ao copiar o que pertence às outras pessoas, porque fazemos isso o tempo todo.

Este é o tipo de equação que estamos vendo. Temos leis que fundamentalmente tratam obras criativas como propriedade, mais recompensas maciças ou acordos em casos de violação, mais taxas legais altíssimas para sua proteção em juízo, mais enviesamentos cognitivos contra perda percebida. E a soma se parece assim. Essas são as ações judiciais dos últimos 4 anos no mundo dos smartphones. Isso promove o progresso das artes úteis?

1983. Bob Dylan tem 42 anos, e sua era de destaque cultural já passou há tempos. Ele grava uma canção chamada “Blind Willie McTell”, em homenagem ao cantor de blues e a canção é uma jornada ao passado, em um período muito mais sombrio, mas mais simples, um período em que músicos como Willie McTell tinham poucas ilusões do que faziam. “Eu tomo de outros compositores mas eu as arranjo à minha maneira.”

Creio que isto é o que fazemos em geral. Nossa criatividade vem de fora, não de dentro.Não a criamos por nós mesmos. Dependemos uns dos outros, e admitir isto a nós mesmos não é abraçar a mediocridade e derivação. É uma libertação dos nossos conceitos errôneos, e um incentivo para não esperarmos tanto de nós mesmos e simplesmente começar.

Muito obrigado. Foi uma honra estar aqui. Obrigado.

Agradeçemos a indicação da Fa Conti e da Aracele Torres.

Crédito foto: 1
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A literatura sampleada do mixlit https://baixacultura.org/2012/08/17/a-literatura-sampleada-do-mixlit/ https://baixacultura.org/2012/08/17/a-literatura-sampleada-do-mixlit/#respond Fri, 17 Aug 2012 16:01:01 +0000 https://baixacultura.org/?p=10647 12803293_10208040960156966_5977087546051905039_n

Psicólogo de formação e escritor e tradutor por profissão, Leonardo Villa-Forte é o cara por trás do blog. Escreve/remixa pequenos contos, publicados de forma periódica no MixLit, em que coloca para conversar diversos autores distintos, as vezes de gênero, nacionalidades e estilos completamente diferentes. Ao final, indica todas as referências dos trechos que usou, que depois são agrupados em tags no blog.

A aplicação dos princípios do remix na ficção literária ainda é uma prática rara, que tem paralelos recentes na escrita não-criativa de Kenneth Goldsmith e no Manifesto da Poesia Sampler, de Fred Coelho e Mauro Gaspar, e mais antigos no cut-up de William Burroughs e Brion Gysin. Coincidência ou não, em todos estes textos que publicamos aqui sobre o assunto mencionamos como um exemplo da ideia de samples na literatura o caso do MixLit. Chegou, então, a ver de falar dele.

A iniciativa tem tido boa cobertura da imprensa tradicional. Também por conta disso, Leonardo passou a dar oficinas sobre remix literário em alguns eventos, o que certamente tem contribuído para a reflexão inteligente sobre a prática (e tudo o mais) que ele mostra na entrevista abaixo.

mixlit

Segue abaixo a conversa na íntegra, realizada via rede:

Curiosidade: quanto tempo tu leva pra produzir um conto novo MixLIT? Muita gente diz que o “copiar e colar” é mais fácil do que criar, mas o copiar, colar E rearranjar de modo a fazer sentido não é ainda mais difícil do que “somente” criar?

O tempo que levo para produzir um novo conto MixLit pode variar desde duas horas horas a quatro ou cinco dias. Essa variação depende principalmente dos livros que utilizo para fazer o conto em questão: se são livros que conheço – que já li anteriormente – ou se são novos para mim. Dos livros que já li, sei qual é o universo, o tempo, a pessoa do narrador, o estilo da escrita, lembro de determinadas passagens ou cenas. Esse conhecimento prévio ajuda a encontrar mais rapidamente possíveis continuações entre os textos. Quando trabalho com livros que ainda não li, preciso de algum tempo para estabelecer familiaridade e intuir se funciona em ligação aos outros textos.

Quanto às diferenças de dificuldades, é um tipo de avaliação bastante difícil de se fazer. Estou certo de que não é fácil rearranjar fragmentos de modo a construir um sentido, e não só um sentido, mas um sentido com o qual eu me satisfaça. Parto da regra de que não posso escrever nada com minha própria mão e por isso às vezes é bastante angustiante ver que dois trechos poderiam se ligar e cair bem juntos, mas falta algo entre eles, algo que não estou encontrando nos livros. Nessa ocasião, é preciso repensar todo o texto. Por outro lado, existe a tranquilidade que vem da ideia de que tudo está em algum lugar, e que só é preciso encontrar – a ideia de que não será preciso partir do zero. Na criação de mão própria muitas dificuldades podem ser resolvidas com um planejamento prévio ou com o próprio aquecimento da mão, ir escrevendo e escrevendo, até a coisa acabar andando por si, a narrativa se desenhar.

Nenhuma das duas são saídas para o MixLit: não posso planejar previamente, nem posso ir aquecendo a mão. São dificuldades diferentes. O prazer também é diferente. Na criação de mão própria posso guiar a frase como bem entender, desde suas mínimas até as máximas unidades, estabelecer um ritmo e levar a narrativa para onde eu quiser. No MixLit, apesar da ideia de que posso levar para onde eu quiser, na verdade não posso, pois estou restrito àquilo que oferecem os livros que tenho. Assim, apesar de as duas ações resultarem em texto, sinto que a melhor resposta é dizer que as dificuldades são de naturezas diferentes.

Como você produz os contos remixados? Seleciona o que acha interessante num banco de dados, depois vai reconstruindo e misturando de forma algo aletatória? ou o método é mais caótico?

O método é mais artesanal. Não construo um banco de dados prévio. Tudo acontece na hora em que resolvo produzir um texto. Cerco-me de alguns livros escolhidos já intuindo que sejam possíveis de apresentarem conexões. Leio trechos de cada um, marco passagens que podem render ligações e assim vou passando de um livro a outro, enquanto transcrevo para o computador as passagens que seleciono. Nisso já tenho a noção de qual passagem pode ser um bom início, qual pode ser um bom final, qual pode preparar certa situação. Depois faço com elas um arranjo. Às vezes funciona de primeira. Às vezes não, e nessas horas tenho duas opções: mudar os livros, cercar-me de outros, ou avançar na (re)leitura dos que escolhi, ler páginas e páginas, até encontrar alguma passagem que pareça de fato encaixar com as outras, acrescentando algo ao texto. Quando vejo que a coisa não está caminhando bem, paro e vou terminar o texto no dia seguinte. Frequentemente misturo livros que venho lendo ou li recentemente com outros que estão há anos nas minhas estantes.

Como é produzir um trabalho em colaboração com textos novos ou clássicos da literatura? Dada a natureza normalmente solitária da literatura, seria esta forma uma “literatura colaborativa”?

É divertido. Sinto como se colocasse os livros para conversar e fosse, aos poucos, construindo um livro infinito, um livro que transborda suas páginas, como se certa linha de uma livro escapasse do limite do seu papel e fosse se esticando e esticando até repousar em outra linha, de uma outra página, de um outro livro. Uma linha infinita que poderia nunca acabar, e pela qual todos os livros pudessem dar as mãos. Gosto da imagem, do mapa que venho traçando. Por outro lado, menos mental, é uma ação bastante física, de um prazer quase infantil, entre o destruir e o construir. Retirar, recortar, picotar parágrafos estabelecidos e criar os meus, mudar o concreto de lugar e fazer dos textos impressos peças móveis, construir blocos que fiquem em pé, ver o texto quase como um Lego, um Tetris, uma conversa virtual onde sempre se está aberto à participação de um novo convidado, isso tudo me entusiasma.

Nas Oficinas de Remix Literário que dou, essa parte da ação física sobre os textos é uma das preferidas, as pessoas realmente parecem gostar e sentir o texto se construindo através delas pelo meio do recorte, arranjo e colagem. Além de divertido, é intrigante. Ainda consigo ter a sensação de que é algo esquisito. Por mais que tenha alguém teoricamente no controle, nunca sei onde a coisa vai dar. Preciso confiar na capacidade de tornar os fragmentos um texto integral, e entender que aquilo pode virar algo meu, que diga respeito a mim. Isso é o que geralmente acontece.

Quanto ao termo “literatura colaborativa”, parece-me que tem sido mais aplicado a iniciativas de coletivos de pessoas que se agrupam para escrever. Penso já ter ouvido falar de sites ou livros digitais que estão sendo ou foram escritos assim, com várias pessoas inserindo frases suas, sem a figura de um único cérebro no controle. Se você lembrar das comunidades no Orkut, as conversas se davam assim. Uma pessoa lançava um tópico e então abaixo dela assistíamos a uma crescente inserção de comentários vindos de conhecidos (se frequentávamos aquela comunidade) ou desconhecidos. Quem se prestasse a ler um tópico inteiro, poderia encontrar, quase ao vivo, a formação de sentido sendo operada coletivamente, a partir dos fragmentos inseridos. O MixLit tem alguma semelhança com esse formato. Se ele seria a forma mais aproximada da expressão “literatura colaborativa”, eu não sei. É uma boa questão, que me leva a pensar em diferenças de método, procedimento e resultado.

Não sei se o MixLit é mais ou menos “literatura colaborativa” do que esses sites ou artigos ou histórias que as pessoas escrevem em conjunto. O caso de Borges com Bioy Casares, por exemplo, com livros que escreviam sob um pseudônimo único, o recente O verão de Chibo, de Vanessa Barbara e Emilio Fraia, também escrevendo em dupla, o #24H de Bernardo Gutierrez, um livro que nunca termina e incorpora comentários de leitores… enfim, são muito variadas as iniciativas destes tempos que vivemos, inserir uma ou outra sob certo termo depende mais do quão precisa é a definição desse termo.

Como a criação artística influencia e tem sido influenciada pela cultura do compartilhamento das redes digitais?

Creio que os criadores da minha geração formam um terreno especialmente particular, pois devemos ser os últimos a lembrar de um tempo sem internet, ao mesmo tempo que entramos nela não muito tarde. De certa maneira, isso gera uma cisão interessantíssima entre os discursos, o físico e longevo, e o digital e passageiro.

No meu caso específico penso que a questão do compartilhamento me levou a ver mobilidade e movimento (físicos, não só mentais) em coisas que pareciam estanques. Mas esse tipo de atravessamento parece tão natural que é uma daquelas coisas que a gente não consegue determinar uma única fonte. A criação muda na medida em que o criador está em contato ou não com a nova cultura. Você pode pensar em alguns escritores, como Michel Laub, que em seu Diário da Queda usa parágrafos bem curtos e numerados, um forma de organizar o texto que, a meu ver, dialoga muito, e de maneira inteligente, com a cultura digital. Mas você pode ir até livros tempos pré-internet, como o Arcades Project, de Walter Benjamim, ou quadros cubistas de Picasso, e ver que a compartimentação, a fragmentação e a mobilidade já estavam no olhar do artista.

haroldo

Você pode pensar simplesmente que esses trabalhos prefiguraram e indicaram os tempos por vir, ou, o que acredito ser mais interessante, considerar que esses trabalhos não só indicaram, mas construíram e participaram ativamente da formação de um certo tipo de olhar contemporâneo. Isso pode ser sentido muito vivamente pela leitura/experimentação de alguns dos poemas concretistas de Haroldo de Campos ou Décio Pignatari. Ali, a maior construção não é só a obra, mas a construção de um próprio leitor, do qual se demanda procedimentos incomuns de leitura. Você pode pensar em livros de aforismos, como o de Karl Krauss, ou de poemas curtos, como o 1 de Gonçalo Tavares, ou o Rilke Shake, de Angélica Freitas, ou O silêncio como contorno da mão, de Elaine Pauvolid, e pensar que poderiam caber muito bem como posts de uma rede social, um Twitter. Mas os aforismos de Karl Krauss foram escritos muito antes disso tudo.

O que acontece é que nossa cultura, hoje, está muito propícia para que esse tipo de trabalho (textos breves) retorne. O romance com mais de mil páginas está de difícil apreciação, como bem fala Italo Calvino em seu “Se um viajante numa noite de inverno“, livro também muito adequado a entrar nessa conversa e temporalmente não muito distante de nós. O caldo que ferve a cultura privilegia, em tempos, certos tipos de expressão, e em outros tempos, outros tipos de expressão. O romance está vivo – há um prazer muito específico em imergir dentro de um universo, dentro de uma história, e acompanhar seus desdobramentos, um prazer pouco substituível, digamos assim – o que acontece é que um criador, hoje, precisa estar muito ciente do tempo que irá demandar do seu leitor. O que, fazendo uma revisão ao que falei acima, não necessariamente se mede em páginas, pois há livros que, com poucas páginas, pedem uma degustação concentrada, como os de Raduan Nassar, e outros que, com muitas páginas, são lidos rapidamente, como muitos romances policiais e de mistério.

Sinto que, na cultura de compartilhamento, você está sempre com muito material e pouco tempo. Quando você lê um livro, aquilo é tudo que você tem à sua frente. Ao computador, qualquer arquivo aberto é mais um entre milhares que estão atrás dele, logo ali no seu desktop e no seu navegador. Há uma sensação de acúmulo e variedade que dificulta a imersão e privilegia a circulação. Esse tipo de leitura é o que uso quando vou fazer um MixLit. Fico feliz em conseguir realizar mais de um modo de leitura.

A cultura do compartilhamento também interferiu, obviamente, na noção de autoria. Com o compartilhamento um certo documento ou arquivo adquire vida própria, independente do seu autor ou do formato original em que foi lançado ao mundo. A cerimônia, no sentido de um respeito excessivo perante um material ou uma ideia, vai-se extinguindo aos poucos nesse lastro. E, como o avesso dessa mudança, revelou-se ainda mais a alegria de se desenhar um trajeto, traçar um percurso de leitura, apresentar o passo-a-passo, inventoriar o ambiente, desvendar as peças do interior da máquina. Quando o caminho fica turvo, clareá-lo é um prazer. Daí surgem até mesmo poemas, como “Directory”, de Robert Fitterman, que traço o trajeto de uma pessoa dentro de um shopping. No caso do MixLit, que trabalha mais com prosa, tento desfrutar de procedimentos, visões e ideias próprios de uma época digital, sem que isso seja uma perda em termos de narrativa. Fazer com que a chamada “experimentação” seja uma aliada, e não um obstáculo.

O que sinto é que a cultura digital mudou o homem. E que aquele rio, onde o mesmo homem não conseguia se banhar, torna-se outro cada vez mais rapidamente. Ao menos em certa camada do homem, pois há definitivamente uma camada onde a mudança ocorre de maneira muito lenta, ou simplesmente não ocorre. Hoje podemos ter a diversidade de encontrar criadores em maior e menor diálogo com a estética da cultura digital, uma diversidade que, me parece, será cada vez menor, pois está acontecendo uma passagem, talvez análoga à passagem que sofreram os autores de televisão, meio em que a geração mais velha de roteiristas é mais afeita à influência do rádio e hoje há uma geração que viveu mais as séries e o cinema.

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Um guia para usuários do détournement (2) https://baixacultura.org/2012/08/16/um-guia-para-usuarios-do-detournement-2/ https://baixacultura.org/2012/08/16/um-guia-para-usuarios-do-detournement-2/#comments Thu, 16 Aug 2012 15:11:15 +0000 https://baixacultura.org/?p=6845

Publicamos aqui a segunda (e última) parte do “guia”, de Guy Debord e Gil J. Wolman.

O texto, escrito em 1956 e publicado pela 1º vez numa revista surrealista belga chamada Les Lèvres Nues #8, faz uma interessante  incursão teórico-prática-irônica sobre “desvios” de obras já existentes para a produção de novas, as vezes de sentido oposto a original. É, como se vê, uma certa pré-história de práticas hoje popularizadas através do remix, remistura, remezcla, mashup, machinima, etc.

Nesta segunda parte, Debord e Wolman tratam de exemplos do détournament, mais ou menos moderados, mais ou menos efetivos. Falam da prática na literatura, mais efetiva no processo da escrita do que no resultado final (“Não há muito futuro no deturnamento de romances inteiros, mas durante a fase transitiva poderia haver um certo número de empreendimentos deste tipo.”)

Metagrafia de Isidore Isou, “sem título”, de 1964.

Na poesia, citam a metagrafia – uma técnica de colagem gráfica inventada pelo romeno Isidore Isou e adotada pelo movimento do letrismo, que inspirou os situacionistas – como uma prática adequada a aplicação do détournament. E tratam o cinema como a área onde o deturnamento pode atingir sua maior efetividade e beleza, já que “os poderes do filme são tão extensos, e a ausência de coordenação desses poderes é tão evidente, que virtualmente qualquer filme que esteja acima da miserável mediocridade provê tema para infinitas polêmicas entre espectadores ou críticos profissionais“.

A tradução para o português desse texto foi realizada por Railton Sousa Guedes, do Arquivo Situacionista Brasileiro/Projeto Periferia (e revisada por nós, que também colocamos alguns links).pescada do e-book. A tradução é a partir do texto em inglês de Ken Knabb, que, por sua vez, traduziu do francês original. Ela (a tradução para o português) foi publicada originalmente no e-book Recombinação, do Rizoma (disponível pra download na nossa biblioteca).

Um guia para usuários do detournament (parte 2)

Guy Debord e Gil J. Wolman

Agora pode-se formular várias leis no uso do deturnamento.

O mais distante elemento deturnado é aquele que contribui mais nitidamente à impressão global, e não os elementos que diretamente determinam a natureza desta impressão. Por exemplo, em uma metagrafia [poema-colagem*] relativa à Guerra Civil Espanhola, a frase que mais destaca o sentido revolucionário é o fragmento de um anúncio de batom: “Belos lábios são vermelhos”. Em outra metagrafia (“A Morte de J.H.”) 125 anúncios classificados expressam um suicídio mais notável que os artigos do jornal que o narram.

As distorções introduzidas nos elementos deturnados devem ser tão simples quanto possível, pois o impacto principal de um deturnamento tem relação direta com a lembrança consciente ou semiconsciente dos contextos originais dos elementos. Isto é bem conhecido. Basta simplesmente notar que se esta dependência da memória insinua a necessidade de determinar o público alvo antes de inventar um deturnamento, este é apenas um caso particular de uma lei geral que governa não apenas o deturnamento mas também qualquer outra forma de ação no mundo.

A idéia da expressão pura, absoluta, está morta; sobrevive apenas temporariamente na forma paródica na medida em que nossos outros inimigos sobrevivem. Quanto mais próximo de uma resposta racional menos efetivo é o deturnamento. Este é o caso de um número bem grande de máximas alteradas por Lautréamont. Quanto mais aparente for o caráter racional da resposta, mais indistingüível se torna do espírito ordinário da réplica, que semelhantemente usa as palavras opostas contra ele. Isto naturalmente não se limita à linguagem falada. Foi nesse sentido que contestamos o projeto de alguns de nossos camaradas que propuseram deturnar um cartaz anti-soviético da organização fascista “Paz e Liberdade” — que proclamava, em meio a imagens de bandeiras sobrepostas dos poderes Ocidentais, “a união faz força” — acrescentando por cima em uma folha menor a frase “e coalizões fazem a guerra”.

O deturnamento através da simples reversão é sempre o mais direto e o menos efetivo. Assim, a Missa Negra reage contra a construção de um ambiente baseado em determinada metafísica construindo outro ambiente na mesma base, que apenas inverte — mas ao mesmo tempo conserva — os valores de tal metafísica. Não obstante, tais reversões podem ter um certo aspecto progressivo. Por exemplo, Clemenceau chamado “o Tigre”+ poderia ser chamado “o Tigre chamado Clemenceau”.

Das quatro leis fixadas, a primeira é essencial e se aplica universalmente. As outras três, na prática, aplicam-se apenas a elementos deturnados enganosos. As primeiras conseqüências visíveis da difusão do uso do deturnamento, fora seu intrínseco poder de propaganda, foram a revivificação de uma multidão de livros ruins, e a extensa (não intencional) participação de seus desconhecidos autores; uma transformação cada vez maior de frases ou obras plásticas produzidas para estar na moda; e acima de tudo uma facilidade de produção que supera em muito, em quantidade, variedade e qualidade, a escrita automática que tanto nos chateia.

O deturnamento não conduz apenas à descoberta de novos aspectos do talento; também colide frontalmente com todas as convenções sociais e legais, e pode ser uma arma cultural poderosa a serviço de uma verdadeira luta de classes. A barateza de seus produtos é a artilharia pesada que derruba todas as muralhas da China do entendimento*. É um verdadeiro meio de educação artística proletária, o primeiro passo para um comunismo literário. No reino do deturnamento se pode multiplicar idéias e criações à vontade. No momento nos limitaremos a mostrar algumas possibilidades concretas em vários setores atuais da comunicação — estes setores separados são significantes apenas em relação às tecnologias atuais, com tudo tendendo a fundir-se em sínteses superiores com o avanço destas tecnologias.

Consuelo, de George Sand, poderia ser relançada no mercado literário disfarçada sob algum título inócuo como “Vida nos Subúrbios”

Aparte dos vários usos diretos de frases deturnadas em cartazes, registros e radiodifusão, as duas aplicações principais de prosa deturnada estão em escritos metagráficos e, em menor grau, na hábil perversão da moderna forma clássica.

Não há muito futuro no deturnamento de romances inteiros, mas durante a fase transitiva poderia haver um certo número de empreendimentos deste tipo. Se um deturnamento fica mais rico quando associado a imagens, tais relações para com textos não são imediatamente óbvias. Apesar das inegáveis dificuldades, acreditamos que seria possível produzir um instrutivo deturnamento psicogeográfico da Consuelo de George Sand, que poderia ser relançada no mercado literário disfarçada sob algum título inócuo como “Vida nos Subúrbios”, ou até mesmo sob um título deturnado, como “A Patrulha Perdida”. (seria uma boa idéia reutilizar deste modo muitos títulos de velhos filmes deteriorados dos quais nada mais permanece, ou de filmes que continuam enfraquecendo as mentes dos jovens nos clubes de cinema).

A escrita metagráfica, não importa quão antiquada possa ser sua base plástica, apresenta oportunidades bem mais ricas para a prosa deturnada, como outros objetos apropriados ou imagens. Pode-se obter uma idéia do significado disso pelo projeto, concebido em 1951 mas eventualmente abandonado por falta de meios financeiros suficientes, que pretendeu fabricar uma máquina de fliperama arranjada de tal forma que o jogo de luzes e trajetórias mais previsíveis das bolas formaria uma composição metagráfica-espacial intitulada Sensações Térmicas e Desejos de Pessoas que Passam pelos Portões do Museu do Cluny Cerca de uma Hora depois do Poente em Novembro. Percebemos desde então que um empreendimento situacionista-analítico não pode avançar cientificamente por meio de tais obras. Não obstante, os meios permanecem satisfatórios para metas menos ambiciosas.

Seria melhor deturnar “O Nascimento de uma Nação” em sua totalidade, adicionando uma trilha sonora que faça uma poderosa denúncia dos horrores da guerra imperialista e das atividades da Ku Klux Klan

É obviamente no reino do cinema que o deturnamento pode atingir sua maior efetividade e, para os que se interessam por este aspecto, sua maior beleza. Os poderes do filme são tão extensos, e a ausência de coordenação desses poderes é tão evidente, que virtualmente qualquer filme que esteja acima da miserável mediocridade provê tema para infinitas polêmicas entre espectadores ou críticos profissionais. Apenas o conformismo dessas pessoas lhes impede descobrir tanto a atração apelativa como as falhas berrantes dos piores filmes.

Para ilustrar esta absurda confusão de valores, podemos observar que “O Nascimento de uma Nação” de Griffith é um dos filmes mais importantes na história do cinema por causa de sua riqueza de inovações. Por outro lado, é um filme racista e portanto não merece absolutamente ser mostrado em sua presente forma. Mas sua proibição total poderia ser vista como lamentável do ponto de vista do secundário, mas potencialmente meritório, domínio do cinema. Seria melhor deturná-lo em sua totalidade, sem a necessidade de sequer alterar a montagem, adicionando uma trilha sonora que faça uma poderosa denúncia dos horrores da guerra imperialista e das atividades da Ku Klux Klan que até hoje continua atuando nos Estados Unidos.

Tal deturnamento — um tanto moderado — é em última análise nada mais que um equivalente moral da restauração de velhas pinturas em museus. Mas a maioria dos filmes merece apenas serem cortados para compor outras obras. Esta reconversão de seqüências preexistentes serão obviamente acompanhadas de outros elementos, musicais ou pictóricos como também históricos. Enquanto a reprodução cinematográfica da história permanecer em grande parte semelhante à reprodução burlesca de Sacha Guitry, alguém poderá ouvir Robespierre dizer, antes de sua execução: “Apesar de tantos julgamentos, a minha experiência e a grandeza de minha tarefa me convence que tudo está bem”. Se neste caso uma apropriada reutilização de uma tragédia grega nos permite exaltar Robespierre, podemos imaginar uma sequência tipo-neorealista, no balcão de um bar de beira de estrada para caminhoneiros, por exemplo, com um motorista de caminhão dizendo seriamente para outro: “Antigamente a ética se restringia formalmente aos livros dos filósofos; nós a introduzimos no governo das nações”. Percebe-se que esta justaposição elucida a idéia de Maximilien, a idéia de uma ditadura do proletariado*.

A luz do deturnamento propaga-se em linha reta. À medida que a nova arquitetura parece ter começado com uma fase barroca experimental, o complexo arquitetônico — que concebemos como a construção de um ambiente dinâmico relacionado a estilos de comportamento — provavelmente deturnará as formas arquitetônicas existentes, e em todo caso fará um uso plástico e emocional de todos os tipos de objetos deturnados: arranjos cuidadosos de coisas como guindastes ou andaimes de metal substituirão uma tradição escultural defunta. Isto choca apenas os mais fanáticos admiradores dos jardins estilo-francês.

Comenta-se que em sua velhice D’Annunzio, aquele suíno pró-fascista, mantinha a proa de um barco torpedeiro em seu parque. Sem considerar seus motivos patrióticos, a idéia de tal monumento não está isenta de um certo charme. Se o deturnamento fosse estendido a realizações urbanísticas, não seriam poucas as pessoas que seriam afetadas pela exata reconstrução em uma cidade de um bairro inteiro em outro. A vida nunca pode estar demasiado desorientada: o deturnamento neste nível realmente a faria bela. Os próprios títulos, como vimos anteriormente, são um elemento básico no deturnamento. Isto resulta de duas observações gerais: que todos os títulos são intercambiáveis e que eles têm uma importância decisiva em vários gêneros.

Todas as histórias de detetive “Série Noir” são extremamente semelhantes, contudo basta simplesmente mudar continuamente os títulos para garantir uma considerável audiência. Na música um título sempre exerce uma grande influência, contudo a escolha é bem arbitrária. Assim não seria uma má idéia fazer uma correção final ao nome “Sinfonia Heróica” mudando-a, por exemplo, para “Sinfonia Lênin”*.

O título contribui fortemente no deturnamento de uma obra, mas há uma inevitável ação contrária à obra no título. Assim pode-se fazer extenso uso de títulos específicos retirados de publicações científicas (“Biologia Litoral dos Mares Temperados”) ou militares (“Combate Noturno de Pequenas Unidades de Infantaria”), ou até mesmo de muitas frases encontradas nos livros ilustrados infantis (“Paisagens Maravilhosas Cumprimentam os Passageiros”).

Para encerrar, mencionaremos rapidamente alguns aspectos do que chamamos de ultradeturnamento, quer dizer, as tendências para um deturnamento que atue na vida social cotidiana. Pode-se dar outros significados a gestos e palavras, e isto tem sido feito ao longo da história por várias razões práticas. As sociedades secretas de China antiga fizeram uso de técnicas bem sutis de sinalização que abrangiam a maior parte do comportamento social (a maneira de organizar xícaras; de beber; de declamar poemas interrompendo-os em determinados pontos). A necessidade de um idioma secreto, de contra-senhas, é inseparável de qualquer tendência em jogo. No final das contas, qualquer sinalização ou palavra é suscetível de ser convertida em qualquer outra coisa, até mesmo em seu contrário.

Os insurgentes monarquistas do Vendée, por conduzirem a asquerosa imagem do Sagrado Coração de Jesus, foram chamados de Exército Vermelho. No domínio limitado do vocabulário político de guerra esta expressão foi completamente deturnada durante um século. Fora da linguagem, é possível usar os mesmos métodos para deturnar roupas, com todas suas fortes conotações emocionais. Aqui novamente encontramos a noção de disfarce que é inerente ao jogo.

Finalmente, quando alcançamos à fase de construir situações — a meta última de toda nossa atividade — todo mundo será livre para deturnar situações inteiras mudando deliberadamente esta ou aquela condição que as determina.

Não apresentamos estes métodos brevemente expostos aqui como algo inventado por nós, mas como uma prática geralmente difundida a qual nos propomos sistematizar.

Em si mesma, a teoria do deturnamento bem pouco nos interessa. Contudo achamos que ela está ligada à quase todos os aspectos construtivos do período pré-situacionista da transição. Assim seu enriquecimento, pela prática, parece necessário.

Futuramente prosseguiremos no desenvolvimento dessas teses.

GUY DEBORD E GIL WOLMAN, 1956

*1. A metagrafia foi uma técnica de colagem gráfica inventada pelo romeno Isidore Isou e adotada pelo movimento do letrismo, por ele liderado. Mais sobre os letristas nessa entrevista de Orson Welles com Isou.(Nota do Rizoma)

*2. Os autores estão deturnando uma sentença do Manifesto Comunista: “O baixo preço das mercadorias da burguesia foi a artilharia pesada que derrubou todas as muralhas da China, que forçou a capitulação do intenso, obstinado e bárbaro ódio aos estrangeiros”. (N. do Tradutor)
*3. Na primeira cena imagina-se uma frase de uma tragédia grega (Oedipus em Colonus de Sófocles) sendo colocada na boca de Maximilien Robespierre, líder da Revolução francesa. Na segunda, uma frase de Robespierre sendo colocada na boca de um motorista de caminhão.
*4. Beethoven originalmente nomeou sua terceira sinfonia em homenagem a Napoleão (tido como defensor da Revolução Francesa), mas quando Napoleão coroou a si mesmo como imperador o compositor rasgou furiosamente tal dedicatória renomeando-a como “Heróica”. A alusão a Lenin nesta passagem (como eventualmente é mencionado em “estados operários” no “Relatório na Construção de Situações” de Debord) é um vestígio de um vago anarco-trotskyismo nos primitivos letristas, em um período politicamente menos sofisticado.

Imagens: 1, 3, 4 daqui; metagrafia (daqui) e O Nascimento (daqui).
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Os situacionistas, você sabe, foram um bando de doidos teóricos-práticos-políticos que assaltaram o status quo reinante do final dos 1950 e nos 1960 com suas ideias de que “a arte é revolucionária, ou não é nada“.

Guy Debord e Raul Vaneigem foram seus, talvez, principais nomes. Debord, muito tageado por aqui, é o autor do ultra-citado e pouco lido “A Sociedade do Espetáculo“, livro essencial até como leitura nas faculdades de comunicação brasileiras.

Em 1956, Debord e Gil J. Wolman, outro situacionista francês, publicaram um “guia para um possível usuário do détournement” numa revista surrealista belga chamada Les Lèvres Nues #8. Nesse texto, introduziam, conceituavam e abusavam da prática citada – claro que com muito sarcasmo e ironia, talvez a fim de que ninguém levasse totalmente a sério aquilo que eles diziam.

As duas leis fundamentais do detournament apontadas inicialmente seriam 1) a perda de importância de cada elemento “detourned” (ou “detunado”, numa tradução literal para o português), que pode ir tão longe a ponto de perder completamente seu sentido original, e, ao mesmo tempo, a 2) reorganização em outro conjunto de significados que confere a cada elemento um novo alcance e efeito.

No “guia”, são apresentados dois tipos principais: os “menores“, onde é feito um desvio de um elemento que não tem importância própria, e que portanto toma todo seu significado do novo contexto onde foi colocado; e os “enganadores“, onde é feito o desvio de um elemento intrínsecamente significativo, o qual toma um dimensão diferente a partir do novo contexto.

Debord e sua gangue situacionista

Publicamos a seguir o “guia”. Dividimos em duas partes, para facilitar a fruição, porque sabemos que a leitura longa na tela costuma ser mais dispersa e difícil que no papel (até quando?).

Por que publicar esse texto aqui no BaixaCultura? Não sabemos bem. Acreditamos que ele, em diversos aspectos, é um dos precursores teóricos mais interessantes do que hoje chamamos de remix, remistura, remezcla, etc. Lembre-se: o texto foi escrito em 1956, há imensos 56 anos atrás, mais ou menos na mesma época que William Burroughs e Bryon Gisin experimentavam com o cut-up.

Publicamos aqui também para dar sequência a ideia de fazer circular a linda biblioteca rizomática, de onde a tradução para o português desse texto foi pescada, feita por Railton Sousa Guedes, do Arquivo Situacionista Brasileiro/Projeto Periferia (e revisada por nós, que também colocamos alguns links). A tradução é a partir do texto em inglês de Ken Knabb, que, por sua vez, traduziu do francês original. Ou seja, estamos falando mais de uma outra edição do que propriamente de uma tradução.

Um guia para usuários do detournament

Guy Debord e Gil J. Wolman

Toda pessoa razoavelmente atenta em nossos dias está alerta ao óbvio fato de que a arte já não pode mais ser considerada como uma atividade superior, ou nem mesmo como uma atividade compensatória à qual alguém honradamente poderia dedicar-se. A razão para esta deterioração é o claro aparecimento de forças produtivas que necessitam de outras relações de produção e de uma nova prática de vida. Na atual fase da guerra civil em que estamos engajados, e em íntima conexão com a orientação que estamos descobrindo para certas atividades superiores por vir, acreditamos que todos os meios conhecidos de expressão irão convergir para um movimento geral de propaganda que terá que abarcar todos os aspectos eternamente interrelacionados da realidade social.

Há várias opiniões contraditórias sobre as formas e até mesmo sobre a verdadeira natureza da propaganda educativa, essas opiniões geralmente refletem uma ou outra variedade do reformismo político da moda. Basta-nos dizer que, em nossa visão, as premissas para revolução, tanto no aspecto cultural como no estritamente político, não apenas estão maduras como começaram a apodrecer.

Não se trata aqui de voltar ao passado, o que é reacionário; até mesmo os “modernos” objetivos culturais são em última análise reacionários na medida em que dependem de formulações ideológicas de uma sociedade passada que prolongou sua agonia de morte até o presente. A única tática historicamente justificada é inovação extremista. A herança literária e artística da humanidade é usada para propósitos de propaganda partidária. É claro que é necessário ir além de qualquer idéia meramente escandalosa. A oposição à noção burguesa da arte e do gênio artístico tornou-se um chapéu roto. O bigode que Duchamp rabiscou na Mona Lisa não é mais interessante que a versão original daquela pintura. Temos agora que empurrar este processo ao ponto de negar a negação.

Bertolt Brecht revelou em uma recente entrevista no “Françe-Observateur” que ele fez cortes em clássicos do teatro de forma a torná-los mais educativos – nesse aspecto ele está mais próximo que Duchamp da orientação revolucionária que proclamamos. É necessário destacar, contudo, que no caso de Brecht tais salutares alterações são estreitamente limitadas por seu infeliz respeito à cultura definida pelos parâmetros da classe governante — aquele mesmo respeito, ensinado tanto nos jornais dos partidos operários como também nas escolas primárias da burguesia, que induz até mesmo os distritos operários mais vermelhos de Paris a sempre preferir “El Cid” à “Mãe Coragem” [de Brecht].

Na realidade, é necessário eliminar todos resquícios da noção de propriedade pessoal nesta área. O aparecimento das já ultrapassadas novas necessidades por obras “inspiradas”. Elas se tornam obstáculos, hábitos perigosos. Não se trata de gostar ou não delas. Temos que superá-las. Pode-se usar qualquer elemento, não importa de onde eles são tirados, para fazer novas combinações. As descobertas de poesia moderna relativas à estrutura analógica das imagens demonstram que quando são reunidos dois objetos, não importa quão distantes possam estar de seus contextos originais, sempre é formada uma relação. Restringir-se a um arranjo pessoal de palavras é mera convenção. A interferência mútua de dois mundos de sensações, ou a reunião de duas expressões independentes, substitui os elementos originais e produz uma organização sintética de maior eficácia. Pode-se usar qualquer coisa.

Desnecessário dizer que ninguém fica limitado a corrigir uma obra ou a integrar diversos fragmentos de velhas obras em uma nova; a pessoa pode também alterar o significado desses fragmentos do modo que achar mais apropriado, deixando os imbecis com suas servis referências às “citações”. Tais métodos paródicos foram freqüentemente usados para obter efeitos cômicos. Mas tal humor é o resultado das contradições dentro de uma condição cuja existência é tida como certa. Como o mundo da literatura quase sempre nos parece tão distante quanto o da Idade da Pedra, tais contradições não nos fazem rir. É então necessário conceber uma fase paródica-séria onde a acumulação de elementos deturnados, longe de contribuir para provocar indignação ou riso em sua alusão a algum trabalho original, expresse nossa indiferença para com um inexpressivo e desprezível original, e se interesse em fazer uma certa sublimação.

Lautréamont foi tão longe nesta direção que ele ainda é parcialmente mal compreendido até mesmo pelos seus mais declarados admiradores. A despeito de suas óbvias aplicações deste método na linguagem teórica de Poiesies — onde Lautréamont (utilizando as máximas de Pascal e Vauvenargues, particularmente) se esforça por reduzir o argumento, através de sucessivas concentrações, tão somente a máximas — um certo Viroux, três ou quatro anos atrás, causou considerável espanto ao demonstrar conclusivamente que “Os Cantos de Maldoror” é um grande deturnamento de Buffon e de outras obras de história natural, entre outras coisas.

O fato dos prosélitos do Figaro, como o próprio Viroux, serem capazes de ver nisto uma justificação para desacreditar Lautréamont, e de outros acreditarem que tinham que defendê-lo elogiando sua insolência, apenas testifica a senilidade destes dois agrupamentos de parvos em elegante combate. Um lema como «o plágio é necessário, o progresso o implica» ainda é pobremente compreendido, e pelas mesmas razões que a famosa frase sobre a poesia, que “deve ser feita por todos”.

Aparte da obra de Lautréamont — que bem à frente de seu tempo foi em grande parte uma crítica precisa — as tendências para o deturnamento que podem ser observadas na expressão contemporânea são em sua maior parte inconscientes ou acidentais. É na indústria da propaganda, mais do que na decadente produção estética, onde estão os melhores exemplos. Podemos em primeiro lugar definir duas categorias principais de elementos deturnados, levando em consideração se o ajuntamento vem ou não acompanhado por correções inseridas nos originais. Temos aqui détournement secundários e deturnamentos enganosos.

O détournement secundário é o deturnamento de um elemento que não tem nenhuma importância em si mesmo e que tira todo seu significado do novo contexto em que foi colocado. Por exemplo, um recorte de jornal, uma frase neutra, uma fotografia comum.

O détournement enganoso, também chamado détournement de proposição-premonitória, é em contraste o deturnamento de um elemento intrinsecamente significante que deriva de um diferente escopo de um novo contexto. Por exemplo, um slogan de Saint-Just ou um trecho de um filme de Eisenstein. Obras extensamente deturnadas são usualmente compostas por uma ou mais séries de deturnamentos enganosos e secundários.

Notas: A palavra francesa détournement significa desvio, diversão, reencaminhamento, distorção, abuso, malversação, seqüestro, ou virar ao contrário do curso ou propósito normal. Às vezes é traduzida como  “diversão”, mas esta palavra gera confusão por causa de seu significado mais comum como entretenimento inativo. Como a maioria das outras pessoas que de fato pratica o deturnamento, eu simplesmente preferi aportuguesar a palavra francesa. (Nota do Tradutor)
Nota do Rizoma: Embora traduzido por Raílton como “deturnação”, optamos pelo uso corrente, aqui neste site, do termo “deturnamento”, já presente em outros textos sobre o assunto.
Nota do BaixaCultura: Preferimos usar, no título, o termo francês original “détournement”.

(a segunda parte vem tá aqui).

Créditos: 1, 3, 4 daqui; 2 (situacionistas).
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https://baixacultura.org/2012/08/10/um-guia-para-usuarios-do-detournement-1/feed/ 0
Essa tal de literatura copyleft https://baixacultura.org/2012/08/07/essa-tal-de-literatura-copyleft/ https://baixacultura.org/2012/08/07/essa-tal-de-literatura-copyleft/#respond Tue, 07 Aug 2012 15:17:52 +0000 https://baixacultura.org/?p=8816

Numa conversa típica, o jornalista espanhol radicado em São Paulo Bernardo Gutierrez fala muito. Normal: pra quem vive disso, falar bem, e rápido, agregando informações novas e relevantes, é importante. De cada 10 palavras que usa, provavelmente uma delas será “hackear” e outra será “copyleft”. Outras serão conectivos, mais outras duas em espanhol e o resto é imprevisível.

Periodista com longa estrada na mídia tradicional espanhola e como correspondente em diversos países do mundo, ele cansou de trabalhar na “imprensa tradicional”. Passou a, para usar seu vocabulário, “hackeá-la”: se aproximou dos movimentos de cultura digital da Espanha, em especial o 15M, para dizer que existem outros caminhos, o que, pensando nos meios de comunicação, talvez possa ser chamado de “pós-jornalismo“.

Com isso em mente, foi militar por uma “cultura copylef” e prestar consultoria a quem não entende disso (ou quer entender mais) através da FuturaMedia, empresa que é “CEO”.  Passou a fazer improváveis deslocamentos do conceito de copyleft para, quem sabe, ajudar na sua divulgação/discussão/comparação. Por exemplo, fez uma interessante provocação: pescou as 4 liberdades do software livre, a base do copyleft, e aplicou nas cidades, dando o nome de “cidades copyleft“. Veja:

Libertad 0. Libertad para ejecutar la ciudad sea cual sea nuestros propósito

Libertad 1. Libertad para estudiar el funcionamiento de la ciudad y adaptarlo a tus necesidades – el acceso al código fuente es condición indispensable para eso.

Libertad 2. La libertad para redistribuir copias y ayudar así a tu vecino.

Libertad 3. La libertad para mejorar la ciudad y luego publicarlo para el bien de toda la comunidad.

Faz sentido, não?

Mesmo que como provocação – já que, como disse Felipe Fonseca nesse texto essencial sobre o assunto, “Cidades, Coisas, Pessoas” (acredite, você precisa ler este texto), essa analogia não deve ser interpretada de maneira absoluta, uma redução da realidade cotidiana a meros sistemas informacionais, mas sim como abertura à modificação.

*

Além de jornalista, Bernardo é escritor, e essa área é outra que ele tem usado o termo copyleft. Ele acaba de lançar o livro #24h, pela editora DPR, de Barcelona, um relato ficcional sobre as 24h, entre os dias 16 e 17 de maio de 2011, antes que a a Puerta del Sol em Madrid fosse tomada pelos “indignados”.

O “copyleft” de #24h diz respeito a própria forma que o livro é construído, incorporando comentários, tweets e links de pessoas que participaram do processo que Bernardo deixou aberto, em um blog na rede, enquanto escrevia o livro. O resultado é um quase como um blog offline: entradas como parágrafos, textos próprios e alheios, tudo misturado numa narrativa que tenta recriar 24h na vida de um mundo caótico de excessos como o do século XXI.

Bernardo assim explica :

#24H es una excusa troyana, vaya, para hablar de algunos asuntos presentes en el escrito y para abordar estos tiempos convulsos en los que vivimos:  el copyleft, la participación ciudadana, 15M, Anonymous,  urbanismo P2P, crisis de la democracia participativa, la Europa que se desmorona, el procomún, la corrupción, la sociedad en red, la remezcla o la cultura digital…  #24H, además, es un intento de viabilizar otro modelo de gestión cultural sin tantos intermediarios.

Desnecessário dizer que o livro está em licença Creative Commons, que permite modificações e compartilhamento, desde que sem fins comerciais e distribuindo por esta mesma licença. O objetivo de Bernardo é que seu livro seja como um código fonte de software, remixável ao gosto do freguês. “Cualquier lector podrá despedazarlo, remezclarlo o continuarlo en la sala de remezclas que hemos preparado“, escreve.

**

Bernardo vai lançar o livro hoje, no Centro Cultural da Espanha, em São Paulo, às 19h. Com esse pretexto, convidou para uma charla sobre literatura remix/copyleft/de código aberto (escolha um nome e seja feliz) as espanholas Silvia Nanclares, do interessantíssimo bookcamping.cc, uma biblioteca aberta e colaborativa cheia de livros bacanas; e Susana Serrano, pesquisadora cultural, responsável pela parte de comunicação do Centro de las Artes de Sevilla e uma das autoras de 10openkult.cc, um livro colaborativo sobre gestão e produção cultural em tempos de internet. Além deste que vos escreve, que vai arriscar algumas palavras sobre algo que ainda me parece nebuloso, apesar de deveras interessante.

Quando Bernardo me convidou para falar sobre o assunto, pensei: legal, mas o que é literatura copyleft? Existe isso?

Aqui no BaixaCultura temos falado muito da escrita não-criativa, aquela que se aproveita de todos os textos já criados no mundo para rearranjá-los em contextos diferentes. Nosso famigerado guru Kenneth Goldsmith já foi apresentado e contraposto lindamente pelo Reuben:

Que a dicotomia “escrita criativa”//”escrita não-criativa” seja um falso problema dá-se a ver no fato de o questionamento da autoria nascer c/ a própria autoria; isto é, se a autoria é um fenômeno moderno tal como a conhecemos, o plágio criativo também o é, como atesta a energia que gigantes da modernidade como Lautréamont ou Walter Benjamin nele empregaram, o impulso de nutrição que o roubo representa em suas obras.

Assim como de William Burroughs e seu cut-up, um “método de escrever” de recortar e colar e daí fazer (remixar?) sua obra. Também falamos de plágio na literatura através da tese de Kevin Perromat, defendido na Sorbonne de Paris e que nos mostra que copiar sempre foi uma prática na história da literatura, inclusive como método de criação.

A respeito de cópia/plágio/originalidade, o estupendo escritor argentino Ernesto Sábato tem uma ótima fala, pescada do site que Perromat mantém de apoio e complemento a seu trabalho:

Quê, querem uma originalidade absoluta? Não existe. Nem em arte nem em nada. Tudo se constrói sobre o anterior, e em nada humano é possível encontrar pureza. Os deuses gregos também eram híbridos e estavam “infectados” por religiões orientais ou egípcias. Também Faulkner provém de Joyce, de Huxley, de Balzac, de Dostoievski. Há páginas em “O som e a fúria” que parecem plagiadas de Ulisses. Há um fragmento de “O Moinho de Flos” em que uma mulher experimentava um chapéu diante de um espelho: é Proust. Quer dizer, o germe de Proust. Todo o resto é desenvolvimento. Desenvolvimento genial, quase canceroso, mas mesmo assim desenvolvimento.”

Num outro corner, o da escrita colaborativa, nossos queridos Wu Ming (ou seu alter-ego Luther Blisset) tem pelo menos dois exemplos de livros extremamente interessantes, “Q – Caçador de Hereges” e “New Thing” – ainda que este último seja atribuído ao “Wu Ming 1“. Mas é claro que, se tu for procurar na história da literatura, irá achar outros tantos livros escritos assim, desde parcerias clássicas como Jorge Luis Borges e Bioy Casares no alter-ego fictício “H. Bustos Domecq” até brasileiros de hoje, tipo Emílio Fraia e Vanessa Bárbara em “O Verão de Chibo“.

Seria Luther Blisset uma literatura colaborativa?

Então, ficamos assim: ao falar de literatura remix/mesclada/remisturada/plagiada/colaborativa/coletiva, não estamos falando de uma coisa “nova”. O que podemos chamar de novidade hoje é essencialmente uma coisa: o contexto digital, de facilidade de acesso e, consequentemente, de apropriação e reapropriação, que permite que estas práticas subterrâneas ao largo da história possam ser tomadas hoje como práticas cotidianas, que o mais comum usuário de computador, escritor ou não, possa realizar.

E é claro que é essa possibilidade que tem bagunçado tudo. A literatura sempre foi o paradoxo da arte individual, da expressão particular de uma pessoa apresentada através de um arranjo de palavras. Quando essa expressão é facilmente cambiável, quando o próprio autor cria uma “sala de edição” para seus textos e estimula a recombinação deles por outras pessoas, como faz Bernardo, as portas se abrem.

Para que caminhos ainda é incerto dizer, mas é um pouco disso tudo que conversaremos hoje a noite.

 [Leonardo Foletto]

Créditos imagens: 1, CCE-SP2, 3 (na ordem).
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Wu Ming e um maremoto anticopyright https://baixacultura.org/2012/07/09/wu-ming-e-um-maremoto-anticopyright/ https://baixacultura.org/2012/07/09/wu-ming-e-um-maremoto-anticopyright/#comments Mon, 09 Jul 2012 09:15:27 +0000 https://baixacultura.org/?p=6457

Damos sequência aqui ao trabalho iniciado neste post, a saber: republicar os textos da excelente biblioteca do site Rizoma.net, editado pelo saudoso Ricardo Rosas.

O texto de hoje é  do coletivo italiano Wu Ming. Os italianos, como já falamos por aqui, são um grupo que desde meados da década de 1990 milita sob a sigla do copyleft – até 1999 eles atendiam pelo nome de Luther Blissett Project

Foram, provavelmente, um dos primeiros coletivos “organizados” a fazer a ponte do anarquismo/punk da década de 1980 para a cultura digital/livre das décadas seguintes (e de hoje). [NE: O Wu Ming nos escreveu, via twitter, que não são anarquistas, mas sim marxistas libertários].Fizeram isso em uma porção de ações e textos, dos quais destacamos o Notas sobre Copyright e Copyleft, que já publicamos/traduzimos em 2009.

Olhaí: “Partimos do reconhecimento da gênese social do saber. Ninguém tem idéias que não tenham sido direta ou indiretamente influenciadas por suas relações sociais, pela comunidade de que faz parte etc. e então se a gênese é social também o uso deve permancer tal qual“.

*

As práticas do Wu Ming [expressão chinesa que também significa ‘cinco nomes’, a depender da entonação com que se fala] contra a lógica da cultura oficial – monetarista, individualista, apoiada no mito da celebridade e do gênio criador, este personagem não exatamente falso, mas que serve de fundo ideológico pro ideal de originalidade que sustenta a indústria do copyright – ocorrem em várias frentes.

Não apenas os livros do grupo podem ser oficial e gratuitamente baixados e livremente copiados, como os 5 integrantes do coletivo trabalham de fato coletivamente, assinando como grupo a autoria de vários de seus livros. Entre eles está o romance Q – O caçador de hereges, que desafia o argumento de que a pirataria mata o artista de fome, disponível pra download há vários anos e em várias línguas e ainda assim um best seller.

Mesmo os trabalhos individuais trazem a marca do grupo. O belo New Thinglançado no Brasil pela editora Conrad, é assinado por Wu Ming 1, mas a voz continua coletiva: o livro imita a edição de documentário, e toda a narrativa se desenrola através dos depoimentos dos personagens, apenas editados por um invisível diretor. Além disso, esta que seria uma espécie de narrativa policial (misteriosos assassinatos envolvendo músicos de jazz ocorrem na New York dos anos 60) traz toda a discussão em torno da cultura livre, desde o método da colagem até a tecnologia P2P.

A identidade do autor não é um segredo, e nem a de seus pares. Wu Ming 1 nasceu Roberto Bui – Wu Ming 2 é Giovanni Cattabriga, Wu Ming 3 é Luca de Meo, Wu Ming 4 é Federico Guglielmi e Wu Ming 5, Riccardo Pedrini. O coletivo contra-explica: “quem, ainda hoje, continua dizendo frases do tipo: ‘os 5 escritores que se escondem por trás do pseudônimo coletivo ‘Wu Ming” ou ‘que sentido faz não assinarem seus verdadeiros nomes, se na realidade todos sabem como eles se chamam?’ está convidado a efetuar as seguintes substituições: ’97′ no lugar de ’5′; ‘músicos’ no lugar de ‘escritores’; ‘London Symphony Orchestra’ no lugar de ‘Wu Ming’”. Tá bom assim?

No site do Wu Ming [na China, uma assinatura bastante comum entre os dissidentes que lutam por democracia e liberdade de expressão], como era de se esperar, há (além dos livros) diversos textos disponíveis pra download. No blog em inglês e espanhol, também. A grata surpresa está aqui, vários desses textos disponíveis em português, que vão desde colaborações e entrevistas concedidas à imprensa brasileira até ensaios e textos sobre cultura livre e pirataria – que é o caso do texto que republicamos aqui, copyright e maremoto.

Apesar de escrito no início da década passada (2001, 2002), copyright e maremoto é um texto deveras importante hoje. Primeiro porque faz, de forma didática, um balanço daquilo que já falamos por aqui faz tempos: “durante dezenas de milênios a civilização humana prescindiu do copyright“. Obras como Gilgamesh, o Mahabharata e o Ramayana, a Ilíada e a Odisséia jamais exisitiriam se naquela época o copyright estivesse valendo.

Segundo porque fala sabiamente que “terminou para sempre uma fase da cultura“.  A “cultura de massas” da era industrial (centralizada, normatizada, unívoca, obsessiva pela atribuição do autor, regulada por mil sofismas) está cedendo lugar a uma outra “cultura” (livre, de nichos?) que tem afinidade com a cultura popular (excêntrica, disforme, horizontal, baseada no “plágio”, regulada pelo menor número de leis possível). Taí uma relação importante (cultura livre/cultura popular) de ser feita para compreender o mundo hoje, cada vez mais globo-periférico.

Fizemos pequenas alterações no texto, suprimindo exemplos ligados ao contexto italiano e desatualizados. Tai:

Copyright e maremoto

Wu Ming

Fonte: Site da coleção Baderna (e-book Rizoma: Recombinação).

Atualmente existe um amplo movimento de protesto e transformação social em grande parte do planeta. Ele possui um potencial enorme, mas ainda não está completamente consciente disso. Embora sua origem seja antiga, só se manifestou recentemente, aparecendo em várias ocasiões sob os refletores da mídia, porém trabalhando dia a dia longe deles. É formado por multidões e singularidades, por retículas capilares no território. Cavalga as mais recentes inovações tecnológicas. As definições cunhadas por seus adversários ficam-lhe pequenas. Logo será impossível pará-lo e a repressão nada poderá contra ele.

É aquilo que o poder econômico chama “pirataria”. É o movimento real que suprime o estado de coisas existente. Desde que – a não mais de três séculos – se impôs a crença na propriedade intelectual, os movimentos underground e “alternativos” e as vanguardas mais radicais a tem criticado em nome do “plágio” criativo, da estética do cut-up e do “sampling”, da filosofia “do-it-yourself”. Do mais moderno ao mais antigo se vai do hip-hop ao punk ao proto-surrealista Lautréamont (“O plágio é necessário. O progresso o implica. Toma a frase de um autor, se serve de suas expressões, elimina uma idéia falsa, a substitui pela idéia justa“). Atualmente essa vanguarda é de massas.

Durante dezenas de milênios a civilização humana prescindiu do copyright, do mesmo modo que prescindiu de outros falsos axiomas parecidos, como a “centralidade do mercado” ou o “crescimento ilimitado”. Se houvesse existido a propriedade intelectual, a humanidade não haveria conhecido a epopéia de Gilgamesh, o Mahabharata e o Ramayana, a Ilíada e a Odisséia, o Popol Vuh, a Bíblia e o Corão, as lendas do Graal e do ciclo arturiano, o Orlando Apaixonado e o Orlando Furioso, Gargantua e Pantagruel, todos eles felizes produtos de um amplo processo de mistura e combinação, reescritura e  transformação, isto é, de “plágio”, unido a uma livre difusão e a exibições diretas (sem a interferência dos inspetores da Società Italiana degli Autori ed Editori)

Até pouco tempo, as paliçadas dos “enclosures” culturais impunham uma  visão limitada, e logo chegou a Internet. Agora a dinamite dos bits por segundo leva aos ares esses recintos, e podemos empreender aventuradas excursões em selvas de signos e clareiras iluminadas pela lua. A cada noite e a cada dia milhões de pessoas, sozinhas ou coletivamente, cercam/violam/rechaçam o copyright. Fazem-no apropriando-se das  tecnologias digitais de compressão (MP3, Mpge etc.), distribuição (redes telemáticas) e reprodução de dados (masterizadores, scanners). Tecnologias que suprimem a distinção entre “original” e “cópia”.

Usam redes telemáticas peer-to-peer (descentralizadas, “de igual para igual”) para compartilhar osdados de seus próprios discos rígidos. Desviam-se com astúcia de qualquer obstáculo técnico ou legislativo. Surpreendem no contrapé as multinacionais do entretenimento erodindo seus (até agora) excessivos ganhos. Como é natural, causam grandes dificuldades àqueles que administram os chamados “direitos autorais”.

Não estamos falando da “pirataria” gerida pelo crime organizado, divisão extralegal do capitalismo não menos deslocada e ofegante do que a legal pela extensão da “pirataria” autogestionada e de massas. Falo da democratização geral do acesso às artes e aos produtos do engenho, processo que salta as barreiras geográficas e sociais. Digamos claramente: barreira de classe (devo fornecer algum dado sobre o preço dos CDs?).

Esse processo está mudando o aspecto da indústria cultural mundial, mas não se limita a isso. Os “piratas” debilitam o inimigo e ampliam as margens de manobra das correntes mais políticas do movimento: nos referimos aos que produzem e difundem o “software livre” (programas de “fonte aberta” livremente modificáveis pelos usuários), aos que querem estender a cada vez mais setores da cultura as licenças “copyleft” (que permitem a reprodução e distribuição das obras sob condição de que sejam abertas”), aos que querem tornar de “domínio público” fármacos indispensáveis à saúde, a quem rechaça a apropriação, o registro e a frankeinsteinização de espécies vegetais e seqüências genéticas etc. etc.

O conflito entre anti-copyright e copyright expressa na sua forma mais imediata a contradição fundamental do sistema capitalista: a que se dá entre forças produtivas e relações de produção/propriedade. Ao chegar a um certo nível, o desenvolvimento das primeiras põem inevitavelmente em crise as segundas. As mesmas corporações que vendem samplers, fotocopiadoras, scanners e masterizadores controlam a indústria global do entretenimento, e se descobrem prejudicadas pelo uso de tais instrumentos. A serpente morde sua cauda e logo instiga os deputados para que legislem contra a autofagia.

A conseqüente reação em cadeia de paradoxos e episódios grotescos nos permite compreender que terminou para sempre uma fase da cultura, e que leis mais duras não serão suficientes para deter uma dinâmica social já iniciada e envolvente. O que está se modificando é a relação entre produção e consumo da cultura, o que alude a questões ainda mais amplas: o regime de propriedade de produtos do intelecto geral, o estatuto jurídico e a representação política do “trabalho cognitivo” etc.

De qualquer modo, o movimento real se orienta a superar toda a legislação sobre a propriedade intelectual e a reescrevê-la desde o início. Já foram colocadas as pedras angulares sobre as quais reedificar um verdadeiro “direito dos autores”, que realmente leve em conta como funciona a criação, quer dizer, por osmose, mistura, contágio, “plágio”. Muitas vezes, legisladores e forças da ordem tropeçam nessas pedras e machucam os joelhos.

A open source e o copyleft se estendem atualmente muito além da programação de software: as “licenças abertas” estão em toda parte, e tendencialmente podem se converter no paradigma do novo modo de produção que liberte finalmente a cooperação social (já existente e visivelmente posta em prática) do controle parasitário, da expropriação e da “renda” em benefício de grandes potentados industriais e corporativos.

A força do copyleft deriva do fato de ser uma inovação jurídica vinda debaixo que supera a mera “pirataria”, enfatizando a pars construens* do movimento real. Na prática, as leis vigentes sobre o copyright (padronizadas pela Convenção de Berna de 1971, praticamente o Pleistoceno) estão sendo pervertidas em relação a sua função original e, em vez de obstacularizá-la, se convertem em garantia da livre circulação.

O coletivo Wu Ming – do qual faço parte – contribui a esse movimento inserindo em seus livros a seguinte locução (sem dúvida aperfeiçoável): “Permitida a reprodução parcial ou total da obra e sua difusão por via telemática para uso pessoal dos leitores, sob condição de que não seja com fins comerciais“. O que significa que a difusão deve permanecer gratuita… sob pena de se pagar os direitos correspondentes.

Eliminar uma falsa idéia, substituí-la por uma justa. Essa vanguarda é um saudável “retorno ao antigo”: estamos abandonando a “cultura de massas” da era industrial (centralizada, normatizada, unívoca, obsessiva pela atribuição do autor, regulada por mil sofismas) para adentrarmos em uma dimensão produtiva que, em um nível de desenvolvimento mais alto, apresenta mais do que algumas afinidades com a cultura popular (excêntrica, disforme, horizontal, baseada no “plágio”, regulada pelo menor número de leis possível).

As leis vigentes sobre o copyright (entre as quais a preparadísima lei italiana de dezembro de 2000) não levam em conta o “copyleft”: na hora de legislar, o Parlamento ignorava por completo sua existência, como puderam confirmar os produtores de software livre (comparados aos “piratas”) em diversos encontros com deputados. Como é óbvio, dada a atual composição das Câmaras italianas, não se pode esperar nada mais que uma diabólica continuidade do erro, a estupidez e a repressão. Suas senhorias não se dão conta de que, abaixo da superfície desse mar em que eles só vêem piratas e barcos de guerra, o fundo está se abrindo. Também na esquerda, os que não querem aguçar a vista e os ouvidos, e propõem soluções fora de época, de “reformismo” tímido (diminuir o IVA* do preço dos CDs etc.), podem se dar conta demasiado tarde do maremoto e serem envolvidos pela onda.

*: Pars construens é uma expressão que desgina um “argumento construtivo” em algum debate, em contraponto ao “pars destruens“. A distinção foi feita por Francis Bacon, ainda em 1620.

Créditos Imagens: 1 (Steve Workers, by We Are Müesli), 3 (Wu Ming Blog)
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Arte ilegal de Disney a Zeppelin https://baixacultura.org/2012/04/04/arte-ilegal-de-disney-a-zeppelin/ https://baixacultura.org/2012/04/04/arte-ilegal-de-disney-a-zeppelin/#comments Wed, 04 Apr 2012 10:09:51 +0000 https://baixacultura.org/?p=6498

Esse post era para iniciarmos a (re) publicação dos textos da Biblioteca Rizomática de Ricardo Rosas. O primeiro escolhido instigava já no título – Afinal, o que é originalidade? – e foi publicado na coletânea “Recombinação“, do Rizoma.

Acontece que o texto é uma matéria de 10 anos atrás (!) escrita pela jornalista Kendra Mayfield para a revista Wired a respeito da exposição “Illegal Art: Freedom of Expression in the Corporate Age” (Arte Ilegal: A Liberdade de Expressão na Era Corporativa), realizada em Nova York e Chicago em 2002.

Ao investigar a exposição (que tem um site ainda vivo, embora capenga), achamos um material tão interessante que deixamos de lado a íntegra do texto de Mayfield para destacar, justamente, a exposição.

A ideia de “Illegal Art” foi fazer um panorama da “arte degenerada” da era das grandes corporações (pré-internet), apresentando obras e idéias que ficam à margem das leis de propriedade intelectual.

A mostra engloba uma grande variedade de meios – da colagem ao áudio, passando pelo cinema – e inclui trabalhos que desafiam as leis de propriedade intelectual, violando direitos autorais e marcas registradas. Na página dos vídeos, traz personagens da Disney assassinados, uma paródia da logomarca da rede Starbucks e uma estampa de guardanapo feita com logomarcas de companhias de petróleo.

Site da exposição, de 2002

Quase todas as obras de arte são, até certo ponto, não-originais“, disse a curadora da exposição e editora da revista Stay Free Carrie McLaren à Mayfield. “Num ambiente onde se pode ter a livre troca de idéias, a arte sempre tem mais qualidade“.

Como explica a repórter Mayfield, “Se as atuais leis de direito autoral já existissem quando os músicos de jazz emprestavam riffs de outros artistas nos anos 30 e os ilustradores de Looney Toones criavam cartuns nos anos 40, gêneros artísticos inteiros, tais como o hip-hop, a colagem e a pop art talvez jamais houvessem surgido”.

Dick Detzner, "The Sacrifice of Sprout," "Original Sin (Barbie and Ken)" 1999-2000

O site da exposição ainda traz filmes e vídeos considerados ilegais porque se apropriam de propriedade intelectual alheia, seja  através do uso de vídeos encontrados por aí, músicas não-autorizadas ou imagens de material protegido. Uma pena que estes vídeos não estão mais disponíveis no site, mas nos próximos parágrafos catamos alguns deles em outros locais (como o YouTube, que na época da exposição nem tinha sido criado ainda!).

Os visitantes também poderiam escutar/baixar arquivos “ilegais” de MP3, incluindo a hilária paródia feita pelo grupo de rap 2 Live Crew para a música “Oh, Pretty Woman“, de Roy Orbison e  o hit “Ice Ice Baby“, gravado em 1990 por Vanilla Ice, cujo riff principal foi tirado da música Under Pressure, composta por David Bowie e o Queen.

Há ainda uma interessante seção sobre as “batalhas” de plágio na música pop, com os já citados 2 Live Crew X Roy Orbinson e Vanilla Ice X Bowie/Queen e outros causos históricos, como a Led Zeppelin X Willie Dixon por “Whola Lotta Love“, música que é um plágio “melhorado” de “You Need Love” que Dixou compôs e outro blueseiro de primeira, Muddy Waters, regravou com sucesso em 1963.

Dixon nunca ganhou um tostão dos direitos da música, nem mesmo os créditos da banda de Page & Plant. Sua brabeza com a história o fez criar a “Blues Heaven Foundation” para ajudar outros blueseiros a recuperar os direitos de suas músicas e, com isso, preservar o blues de raiz.

Vale lembrar que o Led Zeppelin “roubou” (ou seria melhorou?) tantas músicas que existe até um mini-doc dando conta desses “plágios”, do qual a primeira parte tu pode ver (e escutar) a seguir para tirar suas próprias conclusões:

[Por ironia, uma música “do” Zeppelin foi o motivo para o YouTube retirar um vídeo nosso tempos atrás. A música em questão era “Gallows Pole”, que, por sinal, é uma das muitas versões de The Maid Freed from the Gallows, uma velha e tradicional canção folk que teve origem na Europa e foi trazida para o inglês pelo cantor folk  Huddie Ledbetter, em 1939. O Zep ia fazer sua versão somente em 1970]

[youtube=http://www.youtube.com/watch?v=JyvLsutfI5M&feature=player_embedded#!]

Tendo sido realizada em 2002, numa era pré-rede sociais e em que a internet engatinhava rumo a sua presença constante no cotidiano global, é até difícil imaginar como seria “Illegal Art: Freedom of Expression in the Corporate Age” hoje. Muitos e muitos mais vídeos, imagens e músicas poderiam ser incluídos; o “mashup” poderia ter um destaque a parte, assim como os tantos remixes, paródias e “funks” criados a partir de qualquer coisa nestes últimos anos. Com a crescente digitalização de tudo, certamente enxergamos hoje bem mais aquilo que foi copiado, plagiado ou inspirado em outros do que em 2002.

A exposição aumentaria tanto de tamanho que, possivelmente, não faria mais sentido – afinal, como dizem por aí, hoje tudo é remix.

Dê uma olhada em mais alguns vídeos & imagens da exposição aqui abaixo. Mais infos sobre as imagens tem aqui. E artigos sobre a exposição, aqui.

Naomi Uman, “Removed”
Naomi, , usa um “soft porn” dos anos 1970 e, com a ajuda de esmaltes, água sanitária e uma lupa,  transforma mulher nua em um buraco – um espaço vazio animado. [youtube=http://www.youtube.com/watch?v=QEkMKdf_9Fs]

NegativeLand e Tim Maloney, “Gimme the Marmaid
Enquanto preparava a versão para a TV de “A Pequena Sereia, o animador Tim Maloney fez um clipe para os “pais do plágio musical”, a banda NegativeLand (que falaremos mais em breve, aguarde). A música escolhida foi a número quatro do disco/livro “The Story of the Letter U and the Numeral 2“. [youtube=http://www.youtube.com/watch?v=9J6sEdlzjlk]

Phil Patiris, “Iraq Campaign 1991”
O artista visual de São Francisco Patiris mistura imagens de rede de notícias dos EUA, trecho de “Jornada nas Estrelas”, comerciais do Mc Donalds e outras imagens tipicamente americanas para fazer uma crítica da mídia durante a Guerra do GOlfo de 1991, numa espécie de avô dos mashups audiovisuais de hoje. [youtube=http://www.youtube.com/watch?v=tg7_ouYmO6Q]

Dick Detzner, "The Last Pancake Breakfast"

Kieron Dwyer, "Consumer Whore", 1999

Bill Barminski, "Mickey Gas Mask" (2001)

Michael Hernandez de Luna, "Viagra" (1996-1999)

The Residents, "Meet the Residents" (1974)

Diana Thorneycroft, "Mouse," "Boy," "Dog," "Man," "White Mouse," "Man with Large Nose" (2001-2)

Ray Beldner, "How Mao" (2002)

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