Uma das principais dificuldades para quem atua na seara da cultura livre no Brasil é explicar o quê, afinal, é a cultura livre. Várias vezes já mencionamos aqui o quanto conceitos como o copyleft, criado cerca de 30 anos atrás, ainda suscita questionamentos do tipo “Mas na cultura livre tudo é de graça? Propriedade intelectual ajuda os artistas a sobreviverem!” “Copyleft é coisa de comunista, vai pra Cuba seu barbudo vermelho!”. Fizemos, inclusive, algumas falas por aí para explicar que muito do que se propaga por aí sobre a cultura livre é mito, causado por desinformação, em alguns casos deliberadamente difundida por defensores do copyright.
Mas em outros casos essa desfinformação também é fruto de uma dificuldade de entender a cultura livre como uma prática contracultural, anti status quo, num mundo ainda dominado pela ideia romântica de que criar é um ato individual e de que seu criador é um ser genial de ideias mirabolantes surgidas do nada. É certo que a internet ampliou o banco de dados da criação a números praticamente infinitos, e que práticas como o remix (e seus antepassados, que descrevemos aqui nos “Pequenos Grandes Momentos Ilustrados da História da Recombinação“) tem nos mostrado cada vez mais que nada se cria e tudo se copia, mas perante a maior parte das pessoas o ato de criar ainda é individual e proprietário. Para essa parte, portanto, a cultura livre ainda é difícil de compreender: como deixar “livre” (lembremos do mantra: livre não é grátis!) uma criação fruto de tanto esforço? Como não estocar num cofre uma ideia supostamente genial?
É nesse contexto que entra Nina Paley, artista nascida e atuante nos Estados Unidos e uma das mais talentosas vozes na defesa da cultura livre global. Com a animação “Sita Sings the Blues”, lançado sob uma licença livre (veja e/ou baixe você também), ela conseguiu mostrar, pra quem ainda não acredita, que é possível produzir produtos culturais de excelente qualidade (técnica, inclusive) utilizando-se dos princípios da cultura livre. E com o livro recém-lançado no Brasil, “Mimi e Eunice em Pumpriedade Intelectual”, pela Editora da UFBA, ela nos apresenta uma forma fácil, em tirinhas, de dialogar sobre propriedade intelectual, criação e cultura livre.
Com diálogos curtos e diretos, as personagens Mimi e Eunice convidam todos nós a pensar sobre o tema de forma inteligente e bem-humorada sobre o assunto. A tradução do jornalista André Solnik, colaborador deste site, consegue dar fluência ao texto. A entrevista com Paley que compõe o livro – primeiramente publicada aqui, em 2013 – esclarece algumas ideias que embasam a crítica da artista à propriedade intelectual. Por exemplo:
“Proteções anticópia colocam uma barreira entre o artista e a maioria das formas de apoio. Ao remover as barreiras de copyright, o artista torna possível o recebimento – tanto diretamente quanto por meio de distribuidores – de dinheiro e de outros tipos de apoio, aumentando assim suas chances de sucesso.
O prefácio é de autoria de Jorge Machado, professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP, e faz uma discussão histórica e conceitual sobre propriedade intelectual e suas armadilhas. Como neste trecho:
Com a “propriedade intelectual” surge a lógica de que todo conhecimento deve ter um “proprietário”. É como se a cultura herdada de nossos ancestrais não existisse como um bem coletivo. O resultado dessa lógica foi de que quanto maior a“propriedade intelectual”, mais restrito fica o conhecimento comum da humanidade. Mas o que mais chama a atenção é a aceitação de que bens intangíveis e inesgotáveis, como são as ideias, devem ter tratamento legal e moral equivalente a bens físicos, sujeitos às leis de escassez, como uma bicicleta ou um celular.”
O livro foi lançado no Brasil em licença CC BY SA e pode ser baixado aqui. Abaixo e no corpo desse post, algumas das tirinhas de Paley que estão no livre. Nina é desde 2009 é artista residente do site QuestionCopyright.org, onde escreve e desenvolve projetos ligados ao tema, e ainda tem um blog divertidíssimo na rede.
Além de artista talentosa, Nina Paley é voz ativa na luta por uma cultura livre. A animação Sita Sings the Blues, seu primeiro trabalho lançado sob uma licença livre, foi um sucesso tremendo. Já foi vista e baixada centenas de milhares de vezes (veja e/ou baixe você também!) e abocanhou uns tantos prêmios. Sua tirinha mais recente, Mimi and Eunice, é uma deliciosa e provocativa incursão pelos problemas da propriedade intelectual. Desde 2009 é artista residente do site QuestionCopyright.org, onde escreve e desenvolve projetos ligados ao tema, e ainda tem um blog.
Nesta entrevista, concedida por e-mail, Nina fala ao nosso novo colaborador André Solnik – jornalista e fotógrafo formado pela PUCSP – sobre seu envolvimento com a cultura livre, dá suas impressões (negativas) sobre a lei de copyright e demonstra todo o seu desapontamento com as licenças Creative Commons. “Licenças são a solução errada. A arte é a solução. Faça arte, não leis”. O recado está dado.
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BaixaCultura: Quando começou seu interesse por cultura livre?
Nina Paley: Por um bom tempo eu achei que os termos de copyright eram extensos demais e a lei deveria ser revista, mas não tinha entendido realmente o que era cultura livre até outubro de 2008, depois de meses no circuito de festivais com a minha então ilegal animação Sita Sings the Blues*.
Cultura livre me parecia um conceito muito audacioso para que eu pudesse pensar sobre. Numa manhã, eu finalmente saquei – tornar livre meu trabalho seria melhor para ele – e passei o semestre seguinte preparando o lançamento livre e legal de SSTB. Isso aconteceu em março de 2009, quando por fim eliminei todas as licenças necessárias (e estúpidas) por US$70.000 pagos do meu bolso.
* A animação Sita Sings the Blues era ilegal pois continha músicas protegidas por copyright. O assunto foi tratado aqui no BaixaCultura há quase três anos.
BC: Explique resumidamente por que os artistas deveriam tornar livres suas obras.
NP: Do meu artigo How To Free Your Work:
Por que os artistas deveriam tornar livre seu trabalho? Para tornar mais fácil possível o seu compartilhamento – o mais fácil possível para que atinja olhos, orelhas e mentes – de modo que ele alcance um público. Para tornar mais fácil possível que o apoio deste público – inclusive monetário – chegue até o artista.
Proteções anticópia colocam uma barreira entre o artista e a maioria das formas de apoio. Ao remover as barreiras de copyright, o artista torna possível o recebimento – tanto diretamente quanto por meio de distribuidores – de dinheiro e de outros tipos de apoio, aumentando assim suas chances de sucesso.
BC: O Creative Commons lançou recentemente o rascunho final da versão 4.0 de suas licenças. Que mudanças você gostaria de ver? Você acha que as licenças consideradas não livres devem continuar a ser apoiadas pelo CC?
NP: O Creative Commons deveria parar de apoiar as licenças não livres. Que tipo de commons* é esse?
* O termo commons ainda não tem uma tradução para o português amplamente aceita. É algumas vezes traduzido como “comum” ou, ainda, “bem comum”.
BC: Embora elas provavelmente sejam as licenças alternativas mais conhecidas, ainda não gozam de uma popularidade comparável ao “todos os direitos reservados”. Por que será? Você acha que as pessoas ficam confusas com as muitas possibilidades oferecidas pelas licenças CC?
NP: A maioria das pessoas que usa licenças CC não entende o que elas querem dizer. Chamam todas elas de Creative Commons, como se isso significasse alguma coisa. O sistema modular do CC era uma boa ideia, eu vejo isso como uma experiência que valeu a pena ser realizada. Mas os resultados estão aí: não funcionou. O que temos agora é uma mistura de licenças incompatíveis, a maioria das quais não contribui para qualquer commons real e ainda aumenta a confusão e a desinformação.
Mas não podemos culpar o Creative Commons – o problema é a lei de copyright. Nada pode corrigi-la neste momento. Até mesmo a licença CC-0, que é uma tentativa valiosa de pular fora do copyright, não funciona na prática, como a minha experiência com o Film Board of Canada mostrou: mesmo após colocar “Sita” sob CC-0, seus advogados se recusaram a aceitar que o filme realmente estava em domínio público e me fizeram assinar uma liberação para que um de seus cineastas se referisse ao meu filme. Eu estarei para sempre sobrecarregada com uma papelada de permissões mesmo utilizando CC-0. Provavelmente vou continuar utilizando-a, é claro, mas não tenho nenhuma expectativa de que vá funcionar como deveria.
BC: A licença BY-NC-SA, apesar de ser não livre, é bastante popular. Por que isso ocorre? Quais são os principais problemas em utilizá-la?
NP: As pessoas estão bem intencionadas quando escolhem a restrição –NC (uso não comercial), mas ela faz exatamente o oposto do que se deseja. Elas querem “proteger” seus trabalhos da exploração abusiva de grandes jogadores corporativos, mas não percebem que eles AMAM a cláusula -NC, porque ela representa um monopólio comercial. Os grandes jogadores corporativos estão todos prontos para lidar com os monopólios comerciais: eles dispõe de advogados e departamentos de licenciamento. São eles que podem pagar para licenciar suas obras não comerciais. Seus pares, os jogadores pequenos, sem departamentos jurídicos e com recursos limitados, não podem. A cláusula -NC ferra mais seus colegas artistas e jogadores pequenos, enquanto favorece as grandes corporações.
A maneira de evitar a exploração abusiva é usar a licença CC-BY-SA, que é do tipo share-alike* e não tem a restrição -NC. Isso permite que seus pares usem o trabalho sem medo, desde que o mantenham livre. Os grandes jogadores corporativos, no entanto, não estão dispostos a liberar qualquer coisa livremente: se quiserem usar o seu trabalho, eles vão ter que negociar a renúncia da cláusula -SA. E, para isso, vão pagar. Funciona como um acordo de licenciamento qualquer: por X reais você renuncia à restrição -SA e permite que eles reutilizem seu trabalho sem qualquer contribuição à comunidade. Muitos licenciadores corporativos já me ofereceram tais contratos embora eu não tenha assinado nenhum porque sempre fui incentivadora do uso de licenças livres.
A única razão pela qual a licença BY-NC-SA é popular é porque as pessoas realmente ainda não pensaram sobre isso.
BC: “Como ganhar dinheiro” parece ser umas das principais preocupações que os artistas têm quando escutam alguém dizendo “torne livre seu trabalho”. Esse medo é justificado? Você recuperou todo o dinheiro investido em Sita Sings the Blues?
NP: Não, esse medo não é justificado. Mas sua pergunta é certamente tendenciosa: “Você recuperou todo o dinheiro investido em Sita Sings the Blues?”. Como se com copyright eu teria recuperado! Eu ganhei mais dinheiro com meu trabalho livre do que com restrições de copyright. Ponto. De onde as pessoas tiram a ideia de que colocando um © em alguma coisa isso magicamente irá gerar dinheiro? Não acontece assim. Se acontecesse, eu apoiaria plenamente o copyright e seria rica.
Copyright é um “direito de excluir”, não um direito de ganhar dinheiro. Você é livre para ganhar dinheiro sem copyright e, além disso, suas chances são bem maiores.
BC: Você anunciou recentemente que SSTB está agora em domínio público. Embora agora você esteja finalmente livre de burocracias legais envolvendo copyright e essa mudança possa dar mais visibilidade ao seu filme, por outro lado isso pode favorecer o aparecimento de obras derivadas com licenças restritivas (por exemplo, um livro baseado em SSTB publicado com todos os direitos reservados). Como você coloca na balança essas consequências?
NP: Bom, honestamente eu não me importo mais. Vamos apenas soltá-lo por aí e ver no que vai dar. Se alguma coisa terrível acontecer porque eu compartilhei meu filme livremente, irei aprender a partir disso. Mas eu acho besteira ficar se preocupando com o que as outras pessoas fazem e tentar controlá-las, especialmente com leis capengas. Até mesmo licenças livres do tipo share-alike necessitam das leis de copyright para serem aplicadas, e as leis de copyright estão irremediavelmente em frangalhos. Eu não quero validá-las ou apoiá-las de nenhuma forma.
Licenças não vão resolver nossos problemas. O que está resolvendo nossos problemas é o número crescente de pessoas que simplesmente vêm ignorando o copyright completamente. Em vez de tentar levar as pessoas a prestar mais atenção à lei, como o CC faz, eu prefiro encorajá-las a ignorar a lei e se concentrarem na arte. Licenças são a solução errada. A arte é a solução. Faça arte, não leis.
BC: Você também se interessa pelo movimento software livre? Algum de seus trabalhos foi realizado utilizando softwares livres?
NP: Eu estarei na 2013 Libre Graphics Meeting em Madri para discutir a construção de uma boa ferramenta de animação vetorial livre. Mais informações neste artigo: It’s 2013. Do You Know Where My Free Vector Animation Software Is?
BC: A sua próxima animação, “Seder Masochism“, também será colocada em domínio público?
NP: Estará sob CC-0 ou CC-BY-SA. Provavelmente sob CC-0, mas tudo depende do que vai acontecer com “Sita”. Se alguma coisa nos próximos anos me mostrar que não foi uma boa ideia tê-lo colocado em domínio público (o que eu duvido bastante), repenso a licença.
De qualquer forma, pouco importa qual licença eu vou (ou não vou) usar. Todo mundo deve ignorá-la e copiar o filme como quiser.
[André Solnik.]
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Talvez você já tenha ouvido a história: Aaron Swartz, o magrão aí da foto, estava pesquisando no centro de ensino da universidade em que estuda, o MIT de Cambridge, entre os dias de 24 de setembro de 2010 e 06 de janeiro de 2011, quando resolveu baixar alguns arquivos de uma página de repositório de artigos. Resultado: Swartz foi processado e enfrenta uma investigação que pode deixá-lo 35 anos na prisão, além de ter que pagar uma multa de US$ 1 milhão.
O site era o JSTOR, criado em 1995 e do qual participam atualmente 7 mil bibliotecas e organizações que formam um acervo de quase 350 mil artigos, segundo o The New York Times. Supostamente, é um serviço sem fins lucrativos [conforme a própria descrição], mas que cobra US$ 19 por mês de quem quer acessar os seus papers. Como indicou um leitor no caderno Link, a CAPES gastava R$ 75 milhões em 2007 com o repositório.
Swartz tem um currículo que fez o JSTOR desconfiar de suas intenções. Criador do Open Library, mantido pelo Internet Archive; criador do Watchdog.net, um portal Excelencias dos Estados Unidos; co-fundador do Reddit, um site de avaliação de links para conteúdo na web; co-autor do sistema de feeds de RSS. Ainda em 2009, tornou públicas 20 milhões de páginas do poder judiciário dos EUA.
Os caras do JSTOR não curtiram muito a ideia de ele baixar de seu laptop 4 milhões e 800 mil artigos e resumos da base de dados do serviço. Um “significativo mau uso”, nas palavras deles. Swartz não tinha nem divulgado o download, mas o JSTOR o acusou de “fraude eletrônica, fraude de computador, de obtenção ilegal de informações a partir de um computador protegido”.
Swartz se entregou na manhã de 19 de julho no Tribunal de Boston e se declarou inocente das acusações. Pra ser liberado, teve que pagar US$ 100 mil de fiança. As investigações seguem, mesmo que o jovem tenha devolvido os arquivos baixados. A próxima audiência está marcada para o dia 9 de setembro.
Muito se noticiou o enrosco de Aaron. O mais estranho foi ver inúmeros sites jornalísticos se referirem ao incidente como um “roubo” [né G1?], como se copiar dados fosse a mesma coisa que tirá-los de lá. O site QuestionCopyright lembrou muito bem da musica de Nina Paley: “Copiar não é roubar”. Agora, em defesa de Aaron foi criado também uma espécie de petição pública – em um site que ele mesmo criou, o Demand Progress [assina lá se você simpatiza com a ideia].
Outra forma de apoiar a causa foi a que vários sites começarem a republicar o Manifesto da Guerrilla Open Acces, um profético texto escrito por Aaron em seu blog, lá no ano de 2008. E é ele que republicamos e traduzimos abaixo. No texto, o autor critica a forma como o conhecimento ainda é travado tratado, mesmo com todos os recursos informacionais de hoje. E no fim também intica: de que lado tu vai ficar?
Crédito das Imagens: 1, 2.“Informação é poder. Mas, como todo o poder, há aqueles que querem mantê-lo para si mesmos. A herança inteira do mundo científico e cultural, publicada ao longo dos séculos em livros e revistas, é cada vez mais digitalizada e trancada por um punhado de corporações privadas. Quer ler os jornais apresentando os resultados mais famosos das ciências? Você vai precisar enviar enormes quantias para editoras como a Reed Elsevier.
Há aqueles que lutam para mudar esta situação. O Movimento Open Access tem lutado bravamente para garantir que os cientistas não assinem seus direitos autorais por aí, mas, em vez disso, assegura que o seu trabalho é publicado na internet, sob termos que permitem o acesso a qualquer um. Mas mesmo nos melhores cenários, o trabalho deles só será aplicado a coisas publicadas no futuro. Tudo até agora terá sido perdido.
Esse é um preço muito alto a pagar. Obrigar pesquisadores a pagar para ler o trabalho dos seus colegas? Digitalizar bibliotecas inteiras mas apenas permitindo que o pessoal da Google possa lê-las? Fornecer artigos científicos para aqueles em universidades de elite do Primeiro Mundo, mas não para as crianças no Sul Global? Isso é escandaloso e inaceitável.
“Eu concordo”, muitos dizem, “mas o que podemos fazer? As empresas que detêm direitos autorais fazem uma enorme quantidade de dinheiro com a cobrança pelo acesso, e é perfeitamente legal – não há nada que possamos fazer para detê-los. Mas há algo que podemos, algo que já está sendo feito: podemos contra-atacar.
Aqueles com acesso a esses recursos – estudantes, bibliotecários, cientistas – a vocês foi dado um privilégio. Vocês começam a se alimentar nesse banquete de conhecimento, enquanto o resto do mundo está bloqueado. Mas vocês não precisam – na verdade, moralmente, não podem – manter este privilégio para vocês mesmos. Vocês têm um dever de compartilhar isso com o mundo. E vocês têm que negociar senhas com colegas, preencher pedidos de download para amigos.
Enquanto isso, aqueles que foram bloqueados não estão em pé de braços cruzados. Vocês vêm se esgueirando através de buracos e escalado cercas, libertando as informações trancadas pelos editores e as compartilhando com seus amigos.
Mas toda essa ação se passa no escuro, num escondido subsolo. É chamada de roubo ou pirataria, como se compartilhar uma riqueza de conhecimentos fosse o equivalente moral a saquear um navio e assassinar sua tripulação. Mas compartilhar não é imoral – é um imperativo moral. Apenas aqueles cegos pela ganância iriam negar a deixar um amigo fazer uma cópia.
Grandes corporações, é claro, estão cegas pela ganância. As leis sob as quais elas operam exigem isso – seus acionistas iriam se revoltar por qualquer coisinha. E os políticos que eles têm comprado por trás aprovam leis dando-lhes o poder exclusivo de decidir quem pode fazer cópias.
Não há justiça em seguir leis injustas. É hora de vir para a luz e, na grande tradição da desobediência civil, declarar nossa oposição a este roubo privado da cultura pública.
Precisamos levar informação, onde quer que ela esteja armazenada, fazer nossas cópias e compartilhá-la com o mundo. Precisamos levar material que está protegido por direitos autorais e adicioná-lo ao arquivo. Precisamos comprar bancos de dados secretos e colocá-los na Web. Precisamos baixar revistas científicas e subi-las para redes de compartilhamento de arquivos. Precisamos lutar pela Guerilla Open Access.
Se somarmos muitos de nós, não vamos apenas enviar uma forte mensagem de oposição à privatização do conhecimento – vamos transformar essa privatização em algo do passado. Você vai se juntar a nós?Aaron Swartz
Julho de 2008, Eremo, Itália.P.s: Agradecimentos ao Andre Deak pelos conselhos na parte final da tradução – que, aliás, não é nem pretende ser definitiva, mas apenas uma contribuição para a divulgação do texto.
[Marcelo De Franceschi]
]]>Esta cela costuma ser um freio pra muita criatividade. Novos e velhos filmes, músicas e livros são deixados de serem criados e consumidos pelo fato de que muito do que já foi feito estar ali dentro, inacessível e na maioria das vezes esquecido, mofando. Os prisioneiros só costumam ver a luz quando estão de pé se segurando nas barras até que cansam e vão para o fundo escuro e silencioso. O grande problema, além das grades, é o cadeado, cujo poder de liberdade é de quem tem as chaves, e não de quem produziu e deixou o que está aprisionado. Para abrir, só na base da fiança, quando se tem.
Quem quase foi vítima dessa prisão foi Sita, nascida de uma flor de lótus num lago. Ela é personagem da epopéia Ramáiana, poesia clássica da mitologia Hindu, que conta a história dela com Rama, um avatar azul [!] de um dos deuses indianos. Acontece que Sita resolveu cantar uns blues antigos na mais recente adaptação da história. Numa animação lançada há pouco mais de dois anos, as letras das músicas são interpretadas na íntegra pela personagem e se integram mui bien à narrativa original. Mas o “problema” por ela ter quase ficado presa era que as canções que Sita entoava só foram autorizadas para a cantora de jazz Annette Hanshaw. Quem foi ela? Ora, foi uma cantora que teve o auge de sua carreira em 1920, ou seja, quase um século atrás. Tudo que Hanshaw cantou naquela época ainda está atrás das grades do copyright, o que impossilita a reprodução em quaisquer meios audiovisuais públicos, como televisão, cinemas e teatros, sem que se pague os sagrados direitos do autor. Mesmo que esse autor já não exista mais e que haja a possibilidade de relembrá-lo.
E esse foi o empecilho enfrentado pela diretora da animação, Nina Paley, para conseguir distribuir sua arte, o filme Sita Sings The Blues. Paley teve que bolar um complicado esquema de negociação para liberar Sita da jaula. Os detentores dos direitos das músicas pediram 220 mil mangos para regularizar o filme. Paley pechinchou e o preço diminuiu para 50 mil doletas. A diretora teve que apelar então para um empréstimo e conseguir pagar o valor, na condição de que seriam produzidas no máximo 5 mil DVDs de cópias promocionais. Esse tipo de cópia geralmente é entregue a comentaristas, comitês de festivais e jornalistas, mas Paley pegou os arquivos dessas cópias, hospedou on-line e licenciou em Creative Commons 3.0, ou seja, qualquer pessoa pode compartilhar, distribuir, exibir à vontade. Só não pode vender, porque aí tem que pagar o pessoal das gravadoras.
Agora, Nina Paley conta com o retorno da audiência para ajudar a pagar o custo do filme – de 80 mil dólares – e do empréstimo. Através de uma parceria com o ótimo site QuestionCopyright, Paley espera as doações do público – há inclusive um contador da porcentagem que falta para chegar no valor do empréstimo – e tem uma loja de vendas de produtos do filme, como adesivos, bótons, camisetas, pôsters, dvds e cds da trilha sonora. Na imagem de cada produto, é indicado o quanto do valor será revertido para a autora. E segundo o site, as doações tem sido estáveis desde a liberação de Sita:
This is the opposite of the traditional “burst and fade” distribution model that so many works endure, dragged out of circulation prematurely to avoid competing with new releases from the same publisher. Because Nina’s film is audience-distributed, it’s in circulation forever, whenever and wherever people want to see it. And all those audience members are potential customers and donors, as the financial results bear out.
[Isto é o oposto do modelo tradicional de distribuição “estouro e desaparecimento” que suporta tantos trabalhos, deixados fora de circulação prematuramente para evitar competir com os novos lançamentos da mesma editora. Como o filme de Nina é distribuído pela audiência, está em circulação para sempre, quando e onde as pessoas quiserem vê-lo. E todos os membros da audiência são os potenciais clientes e doadores, como confirmam os resultados financeiros.]
A confiança nos usuários era tanta que foi criada uma página Wiki no site do filme. Ali estão disponíveis os links para as versões de vários tamanhos, os locais e datas das exibições pelo mundo afora, mais de 20 legendas diferentes, os audios dos comentários da diretora, além de sugestões, perguntas frequentes, curiosidades e leituras recomendadas. Aliás, o arquivo .srt da legenda em português está aqui, e foi feito por uma brasileira. Todas as versões do longa estão hospedadas no site Archive.org, que indica que o filme já foi baixado mais de 150 mil vezes.
E não é pra menos. O filme faz uma feliz comparação entre as dificuldades de relacionamento dos dois deuses hindus com uma situação amorosa parecida pela qual passou a diretora. O Ramáiana é contado resumidamente por três bonecos de teatro de sombras que vão improvisando o que sabem sobre a lenda, intercalados por outras montagens, clipes musicais com as músicas de Hanshaw e partes que contam a história da separação de Paley. São quatro tipos distintos de animações combinadas numa comédia romântica musical. Uma arte muito bem detalhada, pois em apenas um trecho existem 15 elementos colados, como conta a diretora em um post de seu blog. Advertimos que há uma parte do filme que pode causar estranheza naqueles que não estão acostumados com o cinema indiano. Lá pelo meio dos 80 minutos de filme, descem umas cortinas e surge uma tela com a palavra “Intermission” e uma contagem regressiva de uns três minutos – tipo de cena comum em Bollywood, nome dado à poderosa indústria cinematográfica da Índia, e aqui colocada como homenagem. Durante esse tempo, os personagens aproveitam e vão no banheiro ou compram pipoca, costume dos espectadores locais durante esses intervalos. De resto, o enredo é um tanto normal para a maioria dos mortais espectadores.
Desde o lançamento, em 2008, o longa-metragem já ganhou 28 prêmios em festivais, de acordo com a página da Wikipédia. Outra produção da mesma autora que vem circulando já faz um tempo na rede é o videozinho de um minuto “Copying is not Theft” [Copiar não é Roubar], em que é explicado o conceito de que cópia não exclui, mas sim se soma ao que já existia, praticamente o mesmo conceito de outro video da mesma série chamado “All Creative Work Is Derivative” [Todo o trabalho criativo é derivado”]. E mais dez curtas estão planejados para Paley produzir na mesma linha.
Assim, Nina Paley está divulgando a milenar cultura indiana e os primeiros blues, compostos há 90 anos, obtendo junto reconhecimento, retorno financeiro e mais trabalho, mesmo depois de dois anos do lançamento de sua obra. Nada mal para a dona de um pássaro que por pouco não ficou preso dentro da gaiola.
[Marcelo De Franceschi.]
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