Faz umas quatro semanas que parei para começar a escrever sobre os diversos links que todo dia chegavam (e continuam chegando) pra mim sobre IAs e o ChatGPT. Quando parava pra ler um chegava outro texto, e outro, outro, cada um mais “definitivo” do que outro, apocalípticos e desdenhosos, otimistas e proféticos, de perspectivas diferentes . Enquanto o tempo necessário para acompanhar as discussões diminuía, a coleção de links só aumentava. Passou o carnaval e fevereiro e nada de conseguir ler tudo ou escrever sobre.
Mas eis que chegou março e, bem, os links vão continuar aumentando, como sugere o meme logo acima. Mas pelo menos aqui está um pequeno resumo/panorama do que consegui parar e ler. Até o final do ano teremos muitas mudanças nesse tópico, mas neste início de março de 2023 creio ser um bom panorama.
[Leonardo Foletto]
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O que é o Chat GPT? Esbocei, junto com duas colegas de trabalho, uma pequena definição neste texto: ele é, tecnicamente, um chatbot, um programa que tenta simular a conversação de um ser humano a partir de um modelo de Processamento de Linguagem Natural (PLN). Esse modelo é um conjunto de técnicas e princípios que permitem que uma máquina se comunique com um humano do modo mais “natural” possível. As assistentes de voz Alexa (Amazon) e Siri (Apple), por exemplo, também funcionam a partir do PLN. Contudo, o ChatGPT traz uma capacidade de simular a comunicação humana de uma forma MUITO mais sofisticada do que às encontradas nas assistentes virtuais, e aí é que começa a discussão – e as “espetaculares promessas”, como diz esse texto na Discourse Magazine, um dos primeiros de uma leva cotidiana que está debruçado a entender as promessas, transformações e revoluções possíveis a partir do sistema da OpenIA.
Aliás, começamos nessa linha: promessas, revoluções e transformações no mundo a partir do ChatGPT. Ana Busch, na Exame, faz um resgate da internet (saudosa) de outros tempos para dizer que “não adianta criticar, dizer que o bot erra, que está desatualizado, que ainda precisa caminhar muito (tudo verdade). O futuro vai se impondo dessa forma, e você tem que mergulhar antes de tomar um caldo”. Jesús Díaz, no El Confidencial da Espanha, faz uma boa análise na mesma linha: “Los analistas del Bank of America afirman que la inteligencia artificial es una revolución comparable a la electricidad. Energía, armas, medicinas o naves espaciales, todas las industrias están ya siendo transformadas por una tecnología, aseguran, que en sólo siete años aportará 15,7 billones de dólares a la economía mundial, más que el producto interior bruto anual de toda la zona euro en 2022”. Seria exagero? O tempo dirá. Porém, Jesús não deixa de apontar problemas: “En algún momento del futuro cercano, perderemos nuestra capacidad para distinguir entre los hechos y la ficción creada por las máquinas, sin importar cuántas herramientas forenses podamos idear. Resulta que, después de hablar con algunos de los principales expertos en el campo, ese “futuro cercano” ocurrirá en los próximos 10 años”.
Aqui entra um alerta para uma discussão que particularmente nos interessa: o que é cópia e original na era das IAs? Alguns pesquisadores da área computacional indicam que, em breve, a quantidade de texto/imagem gerada por IAs tende a superar toda produção humana. Dado que estes sistemas funcionam principalmente com novas apresentações de ideias que já foram geradas (e registradas em computadores), será possível reconhecer as fontes e identificar a autoria de uma informação trazida por estas IAs? Os sistemas “artificiais” – e também os “humanos”, ou seria melhor dizer para ambos “híbridos”? – de controle da informação poderão impor limites a esta proliferação e checar a veracidade daquilo que é informado? Já há casos de IAs, como a do Google Assistente, que reconhece os samplers de uma música, trechos de até menos de 1s, e essa tecnologia está apenas em sua infância. Como poderemos falar de cópia e original num mundo cada vez mais dominado por múltiplas cópias reproduzidas ad infinitum por sistemas algorítmicos “inteligentes”? Quais os riscos da reprodução e do aumento de vieses (racistas, machistas, liberais, xenofóbicos) presentes na sociedade no transporte para estes sistemas de processamento de linguagem natural (PLN) como o GPT-3?
A discussão em torno da cópia, plágio e direito autoral a partir do ChatGPT e outros sistemas de IA é uma das que mais tem rendido debate. Neste ótimo texto, Lukas Ruthes Gonçalves, doutorando pela UFPR e membro do Grupo de Estudos em Direito Autoral e Industrial (GEDAI/UFPR), retrata os casos em que artistas processaram IAs por infringir copyrights, caso dos apps Stability.ai e Midjourney, e do como outros casos ainda estão surgindo – caso da Getty Images, que está processando a Stability.ai por supostamente usar imagens da empresa. Ele afirma que a doutrina de uso justo (fair use) e suas limitações e exceções tornaram-se um dos pilares legais dos quais os aplicativos de IA dependem. E que sua “defesa e ampliação são primordiais para que criadores e inventores possam continuar a recombinar conhecimentos existentes para criar novas e excitantes possibilidades, como faziam anteriormente com a câmera e programas de edição de imagens como o photoshop”.
Sobre usos possíveis, há também bastante gente falando. Márcio Telles, pesquisador e professor de comunicação da Tuiuti do Paraná, fez um compilado de usos possíveis (e comentários sobre) dentro da criação e edição de um texto acadêmico. “Tenho a impressão de que a IA democratiza a figura do “assistente de pesquisa” para o “Sul Global” e fura o entrave erguido entre Norte/Sul pela barreira da língua”, escreve Márcio, que vem experimentando com o sistema e postando em suas redes com alguma frequência. O que também vem fazendo o pesquisador Mushtaq Bilal em seu Twitter, em inglês, mas com uma abertura ao ptbr em uma boa thread de “Como usar o ChatGPT em dois tipos de abordagem, minimalista e maximalista”. O pessoal do Núcleo.Jor também deu boas dicas (24 usos). Nessa editoria, mas com abertura para decorrências do uso do sistema, também entra o cientista cognitivo, pesquisador e professor brasileiro Diogo Cortiz. Dele, destaco dois posts: um sobre um primeiro artigo estruturado (segundo ele) sobre impacto do ChatGPT em tarefas de escrita, em que os pesquisadores fizeram um experimento com profissionais de qualificação média e encontraram aumento da produtividade, da qualidade da entrega e da satisfação dos profissionais. E outro sobre como o ChatGPT pode literalmente alucinar – alucinação maquínica é um termo usado na área técnica para indicar quando a máquina dá uma resposta confiante, mas sem qualquer justificativa nos dados de treinamentos. Quem já usou o ChatGPT sabe que ele inventa informações e sobretudo referências bibliográficas; mente convicto de que está certo.
No tema “problematização do uso no ensino”, vale conferir as colunas de Ronaldo Lemos na Folha de S.Paulo, especialmente esta. “Na minha aula no Schwarzman College o uso do ChatGPT é obrigatório. Todos os trabalhos DEVEM ser feitos por ele. No entanto, a nota vai ser dada pela qualidade dos “prompts” que os alunos fizeram para chegar no resultado. Em outras palavras, vou dar a nota pela qualidade das perguntas, e não da resposta”. Em contrapartida, escolas públicas de Nova York proibiram o uso do ChatGPT. Escolas e Universidades dos Estados Unidos estão começando a repensar por completo seus métodos de ensino. “Antony Aumann, professor de filosofia na Universidade Northern Michigan, pensa em talvez abrir mão de redações em semestres subsequentes. Também pretende incluir o ChatGPT em suas aulas, pedindo aos estudantes que avaliem as respostas dadas pelo chatbot. “O que vai acontecer em sala de aula não será mais ‘aqui estão algumas perguntas –vamos discutir isso entre nós, seres humanos’”, disse ele, mas “alguma coisa como ‘e o que esse robô alienígena pensa sobre a questão?'”, como conta nesse texto do NY Times traduzido pela Folha de S.Paulo. No Brasil, o professor Márcio Carneiro, do LabCom da UFMA, está fazendo vários testes com o ChatGPT – um livro, gerado de modo experimental com o apoio do sistema da Open IA, chamado “Inteligência Artificial Generativa”, disponível pra download; e um curso, o primeiro do Brasil, de “Introdução ao Prompt Design”, onde se ensina do zero a gerar textos para várias finalidades e imagens usando ferramentas de IA, sobretudo MidJourney e o ChatGPT. Engenheiro de Prompt é a nova profissão do futuro – até que o futuro mude outra vez.
O Sciences Po, renomada universidade e centro de pesquisa francês, que teve Bruno Latour como criador de seu MediaLab, baniu o uso do ChatGPT sem evidenciar as fontes. Disse o comunicado da Instituição: “Sem referenciar de modo transparente, os alunos estão proibidos de usar o software para a produção de qualquer trabalho escrito ou apresentações, exceto para fins específicos do curso, com a supervisão de um líder do curso”. Mais do que banir, porém, o Sciences Po abriu a discussão sobre o Chat e outros sistemas de IA e determinou regras para seus usos baseados em três princípios:
_ Repensar com os professores os critérios de avaliação em prol da avaliação de competências – perante uma situação complexa, desenvolvendo um trabalho reflexivo pessoal e uma análise crítica aprofundada – em vez de uma verificação de conhecimentos.
_ Incluir ferramentas de IA nos exercícios propostos. Por exemplo, pedindo aos alunos que testem os limites da ferramenta corrigindo seus erros, verificando sua bibliografia ou examinando criticamente sua contribuição.
_ Oferecer cursos dedicados a estas ferramentas, para que os alunos tenham consciência das suas potencialidades e limitações.
Há também a discussão, claro, de mercado e concorrência. Diante da ameaça do ChatGPT, e dos testes que a Microsoft vem fazendo com o chat acoplado ao seu buscador (o Bing), o Google acelerou suas pesquisas na área e apresentou o Bard em Janeiro. A iniciativa veio de uma diretriz geral do Google em focar seus investimentos em IA para concorrer com a Open IA e a Microsoft. O Bard é basicamente um chatbot alimentado por IA que foi projetado para ser usado em pesquisas – uma cópia do ChatGPT + Bing, portanto. Ou pelo menos era: diante dos erros em sua apresentação, que dizem especialistas custou R$100 bilhões de prejuízo em valor de mercado, a empresa tratou de desmentir que seria um buscador, mas na verdade uma outra coisa – que ninguém sabe bem o quê.
Rodrigo Ghedin, em sua coluna de 3 de março no Manual do Usuário: “O ChatGPT pode até se provar apenas uma moda passageira daqui a alguns meses, mas hoje é tido como o futuro, o que torna ameaça bastante real: trata-se do produto digital que mais rápido atingiu 100 milhões de usuários (em apenas dois meses) e, em paralelo, está chegando às pessoas de outras formas, em produtos de parceiros diversos, alguns de peso como a Microsoft e a Snap. Age como toda boa disrupção: mudando o campo de batalha. É difícil superar o Google no ato de devolver dez links relevantes e alguns anúncios numa página web após uma pesquisa. O ChatGPT troca esse paradigma por uma conversa, uma espécie de WhatsApp em que seu interlocutor é uma inteligência artificial em overdose após consumir boa parte do conhecimento já produzido pela humanidade — até meados de 2021, pelo menos”.
Há, por fim (e por hora), as questões mais problemáticas envolvendo as IAs. Elas envolvem, por exemplo, os vieses, “alucinações”, erros cometidos pelo ChatGPT e exploração de trabalhadores para “corrigir” manualmente as IAs, que nos fazem vislumbrar um cenário cada vez mais próximo de uma “Dark Digital Age”.O histórico de alucinação de cunho fascista das últimas IAs não é dos melhores; será diferente agora? Se sim, como? Quais as medidas regulatórias possíveis para que estas máquinas não virem monstros racistas, misóginos e propagadores de fake news? Há muita discussão no tema, especialmente sobre legislações possíveis. Na Europa está em discussão um projeto de lei de regulação dos sistemas de inteligência artificial (“AI Act”), proposto pela Comissão Europeia. Nos EUA, o governo Biden publicou o “Blueprint for an AI Bill of Rights”, um conjunto de princípios éticos sobre inteligência artificial. Há também um projeto de lei em andamento no Congresso americano, que busca regular as decisões automatizadas tomadas por meio de algoritmos. No Brasil, houve a aprovação do Projeto de Lei 21/20 e a criação de uma comissão de Juristas para discutir o tema e propor subsídios para um substitutivo, o que ocorreu após 9 meses de trabalho, em que foram ouvidos mais de 50 especialistas em audiências públicas multisetoriais e seminários internacionais. O resultado é um robusto relatório de 900 páginas pouco lido – mas que mereceria mais atenção. Laura Schertel Mendes, professora de Direito na UNB, comenta sobre ele e o processo de regulação nesse bom texto em O Globo.
Encaminho mais alguns links soltos de bons textos, revistas, que saíram nesses últimos meses sobre o tema:
_ Dossiê Comunicação na Era da Inteligência Artificial: da ideologia neoliberal ao colonialismo de dados. Revista Fronteiras, Unisinos.
_ Nem Humanas Nem Artificiais: 10 pontos para entender a Chat GPT e as qualidades conectivas das hiper Inteligências Castells, Massimo De Felice.
_ André Lemos em sua newsletter no Substack: “O que fazemos, nos processos educativos é sugerir livros acadêmicos, artigos, romances para ler e pedir que se produza juízo crítico, reflexão, debate. Devemos fazer o mesmo com os sistemas de IA. Ninguém pensa hoje em banir os livros por poderem ser copiados, ou pela possibilidade de uma biblioteca substituir um professor. (…) Você conhece algum professor no seu dia-a-dia que não use o dispositivo informacional livro?”
_ Matéria de capa de fevereiro da Super Interessante: O futuro da Inteligência Artificial e o que vem depois do ChatGPT (com paywall).
]]>Sol Verniers, https://is.gd/kO5dUu
Já faz tempo que se argumenta a favor dos bens comuns digitais e pela transformação das exageradas leis de propriedade intelectual (em especial em casos pandêmicos). Várias partes do movimento pelo aberto tem, desde o seu princípio, denunciado que a “lógica do fechado” fortalece mecanismos de controle e domínio que mantém as desigualdades sociais bem vivas, e não servem, como se tenta justificar, para defender os pequenos inventores e artistas. Contribui, na verdade, para a manutenção do poder de corporações e indústrias sobre a cultura e o conhecimento; por isso, a disponibilização e possibilidade de remix do “código fonte” da cultura, das mídias, das ciência das tecnologias de maneira geral é uma forma de se libertar desse domínio e trazer mais igualdade, autonomia, liberdade e diversidade para elas.
Um olhar rápido por esses argumentos nos animam! Afinal, o aberto é então a chave para a descentralização do poder sobre a produção de conhecimento, de arte, de tecnologia, etc. Mas vamos com calma: devemos nos perguntar “Será que só a abertura é o suficiente?” O diálogo que trazemos busca elaborar e continuar discussões já iniciadas sobre a necessidade dos movimentos de código aberto e da cultura livre em reconhecer que não é apenas a lógica do fechado que define rumos da cultura. Na verdade a questão é anterior, está no pensamento por detrás dessa lógica capitalista-colonial de dominação e exploração.
Para tratar do assunto, começamos com as contribuições de Kalindi Vora para o assunto. Ela argumenta que os digital commons devem atentar a duas problemáticas. A primeira é de que nem todas as pessoas têm acesso aos conteúdos abertos; não têm acesso a computadores ou à internet, mas também não tem tempo disponível para navegar, descobrir e colaborar com as tecnologia e conteúdos abertos. Ou seja, enquanto o aberto disponibiliza maior conhecimento para uma parcela da população, por outro lado, aumenta a distância entre essas e aquelas que não tem recursos materiais para usar e participar do aberto e livre; os grupos que não têm acesso a esses recursos estão impossibilitados de colaborar com o desenvolvimento e produção das obras abertas, o que mantém suas visões de mundo e necessidades excluídas do processo.
Essas desigualdades ficaram evidentes logo no início de 2020, quando o ensino remoto tornou-se o padrão para todas as escolas e o acesso estável e abundante à internet, computadores e local adequado para estudo passaram a ser condições básicas para a educação. Apesar da existência de alternativas livres para videoconferências e plataformas educacionais, isso não foi o suficiente para garantir a todos o acesso à educação. Essas questões nos lembram que as condições de “acesso a todos” e de possibilidade que “qualquer um possa usar, estudar, modificar e distribuir” não são garantidos apenas com a publicação dos códigos fontes e uso de licenças abertas. É preciso também considerar o acesso a recursos materiais, condições de vida digna, tempo e conhecimentos necessários para contribuir com as produções abertas e livres. Quando essas questões são ignoradas, corre-se o risco de que as produções do código aberto sejam cooptadas, esvaziando seus significados e os tornando uma revolução de fachada, inofensivas aos paradigmas atuais.
Falando em fachada, uma segunda questão levantada por Vora precisa igualmente ser considerada. Apesar da idealização de muitos, a tecnologia e a ciência não são intrinsecamente neutras. Pelo contrário, elas carregam os valores das pessoas e estruturas que as produzem. Não por acaso, temos sido defrontados com tecnologias de Inteligência Artificial racistas, como as usadas pela polícia de vários estados nos EUA. Por isso, abrir o conhecimento não é o suficiente; enquanto o código aberto estiver carregado de valores que envolvem a dominação, exploração e aniquilação do outro/diferente – marcadas especialmente nos pensamentos racistas, capacitistas, LGBTfóbicos, xenofóbicos e colonialistas -, não será completamente livre. O desenvolvimento da ciência, da cultura e das tecnologias só será livre para quem não for “diferente”, e o remix será mais uma etapa da apropriação cultural.
O movimento do aberto e livre precisa, então, expandir o diálogo para identificar quais de suas práticas reforçam essas estruturas opressoras. É com a intenção de evoluirmos como movimento, e não de promover o cancelamento do código aberto, que nos questionamentos: abertura e total transparência são sempre as melhores opções?
Por exemplo, vamos considerar os dados abertos. Eles são essenciais para a fiscalização de governos, ONGs e outras instituições, para pesquisas que necessitam de uma rápida resposta, ou que sejam colaborativas; contribui também para o monitoramento coletivo de desastres ambientas, entre outras inúmeras vantagens. Isso significa que todo dado deve ser aberto? Evidente que dados que exponham a privacidade das pessoas devem ser protegidos, mas não é só esse tipo de informação que pode ser sensível. O mapeamento de espécies de animais e plantas, que sejam de interesse da indústria farmacêutica, ou de redes internacionais de tráfico de espécies nativas, pode colocá-las em risco; assim, uma boa intenção científica pode facilitar a extinção de uma espécie e ampliar tensões políticas em territórios de reservas indígenas ou ambientais.
Ainda sobre o uso de dados abertos, recentemente a Open Knowledge Foundation, em parceria com a Microsoft e o UK Foreign, Commonwealth & Development Office, lançou uma competição global para o uso de dados abertos para ações climáticas. A competição oferece um “prêmio” de $1000 para a melhor proposta – e em troca, a Microsoft dá mais um passo no controle de dados e em sua intenção de influenciar decisões sobre políticas climáticas, similar ao que já fizeram em agricultura e produção de alimentos. E mais: se dados não se “autogeram”, mas necessitam de ferramentas para serem obtidos e interpretados, eles dizem muito mais do que “fatos” (como defendem alguns dataístas). Dados podem ser encarados como bens socioculturais, e essa perspectiva desafia oligopólios de tecnologia que cada vez mais se apropriam e exploram esses bens comuns.
A necessidade de ações construtivas e propositivas para lidar com as mudanças climáticas é real e urgente, e o incentivo à produção e uso de dados abertos para isso abrem muitos caminhos de mudanças sociais positivas. Mas, se a análise das tecnologias se limitar a esses aspectos, não será o suficiente para gerar reais mudanças nas estruturas sociais. Como denuncia Yeshimabeit Milner, fundadora do Data for Black Lives , o conjunto de tecnologias do Big data não são inovações tecnológicas, são novas técnicas que reproduzem um sistema fascista de dominação e extermínio; da mesma forma, as tecnologias livres podem acabar cumprindo esse papel. Por isso, é preciso desenvolver novas maneiras de medir e validar produções que não se baseiem unicamente em critérios tecnicistas e de abertura, mas que igualmente considerem a análise das consequências (sociais, ambientais, políticas, etc.) desses produtos, desde como afetam seu usuário, até como afetam a sociedade para além deles.
Tendo em vista esses riscos, o design de tecnologias livres, e da própria coleta e disponibilização de dados abertos, deve considerar a sensibilidade das informações coletadas, e o desejo das comunidades e grupos envolvidos nelas. Por exemplo, tecnologias de coletas de amostras de águas, ou de identificação de pássaros, podem garantir, por design, a segurança desses dados, e possibilitar que pesquisas comunitárias possam ser feitas e compartilhadas com segurança, sem necessariamente disponibilizar os dados e resultados abertamente para o mundo.
Também devemos dar atenção às licenças usadas e à organização das comunidades de desenvolvimento de tecnologias livres. A aplicação de licenças desatualizadas, ou não adequadas, pode fazer com que grandes corporações se apropriem dos produtos gerados e os tornem fechados. Em outros casos, a tática das Big Techs tem sido se “infiltrar” nas comunidades de desenvolvimento seus próprios empregados, possivelmente com a missão de influenciar os rumos do desenvolvimento de softwares livres e de código aberto para que supram suas necessidades (incluindo a aplicação de licenças falhas, ou a preferência pelo desenvolvimento de soluções compatíveis com softwares e sistemas operacionais proprietários). Assim, é preciso que sejam consideradas a forma como as próprias comunidades se organizam, quais licenças são mais adequadas para cada fim, bem como o direito e garantia da proteção e privacidade dos dados produzidos e compartilhados. Isso pode evitar que os produtos gerados aberta e coletivamente sejam indesejavelmente apropriados, e que não se perca o domínio sobre as comunidades e coletivos formados com a sincera intenção de desenvolver tecnologias livres que promovam maior segurança e autonomia.
Amadurecer como comunidade vai passar por rever nossas táticas e métodos para mantermos os objetivos de mais participação e acesso dentro de um contexto de justiça social. Diálogos abertos e sinceros sobre os temas levantados nesse texto já foram iniciados, mas é preciso que continuem sendo conduzidos de modo que nossa luta não seja apropriada por grupos com interesses de manutenção das estruturas de dominação e exploração atuais, nem que a ingenuidade seja um obstáculo para construir as bases de uma alternativa que reconheça as dimensões social e cultural como fatores indissociáveis nas práticas científicas e no desenvolvimento tecnológico. Precisamos ousar em criar e incorporar novas visões de mundo, superar a reação competitiva às criações proprietárias (não se limitar a só criar “versões” livres de algo proprietário), e passar a guiar o desenvolvimento e produção de conhecimento a partir de diferentes e, até mesmo. inventadas visões de mundo. É também necessário transcender o desenvolvimentismo e a noção de que inovação é a automatização de processos manuais, se propondo a então se reinventar como movimento. Nosso desafio é incluir essas questões nas estratégias dos movimentos do aberto, ou seguir nessa estrada em direção a um cenário cyberpunk, com a bizarra mistura de ideologia californiana e a capacidade industrial de larga escala chinesa.
[Marina de Freitas, Centro de Tecnologia Acadêmica (IF/UFRGS) e Saulo Jacques, Hacking Ecology]
]]>André Solnik é paulista, mas não é tucano. É formado em jornalismo, mas tá desempregado. É palmeirense, mas isso vamos deixar pra lá. Abandonou o Windows há quase uma década, mas sente falta daquele joguinho de ski. É um dos nossos colaboradores esparsos, de duas boas entrevistas publicadas ano passado: a com Benjamin Mako Hill, “um jovem brilhante com causas demais“, entre elas a cultura e o software livre; e com Nina Paley, cineasta, diretora da animação “Sita Sings the Blues”, também tratado e retratado por aqui.
E, agora, ataca também com outro projeto ligado a cultura livre: a Ratão, que auxilia usuários comuns na transição do Windows para o GNU/Linux e divulga a filosofia do software livre por aí. Nessas de divulgar seu novo projeto, ele escreveu uma carta aberta ao Bill Gates pra tentar mostrar didaticamente qual é o problema estrutural do Windows. Ao nosso ver, conseguiu mostrar muito bem – confira você mesmo aqui abaixo.
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CARTA ABERTA A BILL GATES
Bill Gates,
Sei que você já largou a direção da Microsoft faz um tempo e agora paga de bom moço doando seus bilhões a causas sociais e pulando cadeiras de escritório (?), mas recentemente fiquei sabendo do lançamento do Windows 10 e seu nome rondou – e perturbou – a minha mente mais uma vez.
Também larguei a Microsoft faz um tempo e confesso que não estou por dentro das novidades da nova versão do seu sistema operacional, mas posso dar alguns palpites: mais rápido, mais bonito, mais intuitivo, mais seguro, mais integrado. Acertei? Bom, pelo menos é isso vocês vêm prometendo há um tempão…mas digamos que finalmente isso aconteceu. O Windows 10 é o suprassumo dos sistemas operacionais: estável, elegante, robusto, inteligente, veloz. Isso faria com que eu reconsiderasse a minha decisão e, finalmente, retornasse aos seus braços?
Não adianta, Bill…não tente me conquistar com amenidades. A Apple já fez um sistema com todas essas vantagens práticas e mesmo assim não me conquistou. Sabe por quê? Porque o grande problema do Windows – e do OS X – é estrutural. Ele é proprietário e, justamente por isso, desrespeita a liberdade dos usuários. Todo mundo deve ter a liberdade de executar, copiar, estudar, distribuir, mudar e melhorar um programa. Essa liberdades garantem que não existe ninguém controlando as coisas de um degrau mais alto do que o meu: o controle agora passa para as mãos dos usuários.
Admito que eu mesmo não consigo interpretar o código-fonte de um software, mas isso pouco importa. O fundamental é que ele esteja disponível pra quem quiser e que centenas de programadores estejam constantemente buscando por falhas, fazendo mudanças e liberando atualizações. E não venha me dizer que só porque eu não sei programar estou sendo dominado por quem sabe. Se um software é livre, qualquer um tem a liberdade de aprender e fuçar, e essa diferença é importante. Além disso, mesmo pra um usuário que não tenha vontade alguma de se aprofundar no assunto, o leque de escolhas no mundo do software livre é praticamente infinito. Aqui chegamos em outro ponto crucial: um software livre, ao contrário do seu monstro em forma de sistema operacional, estimula o conhecimento compartilhado: aprendemos, copiamos e criamos todos juntos. Ele conecta pessoas do mundo todo, criando um senso de comunidade muito forte.
Sei exatamente o que você retrucaria agora: “mas esse controle é essencial pra segurança e pra usabilidade do sistema”. Você deve enganar muita gente com essa, né? Um software proprietário não assegura nada disso. Se ninguém sabe como funciona seu programa, o que me garante que ele não é malicioso, não rouba, repassa e vende meus dados, não acessa meu computador sem minha permissão e não segue meus passos? Nada! E isso acontece – e muito – na prática (aliás, como andam seus amigos da NSA?). A chance de essas coisas acontecerem com um software livre é muito pequena, exatamente porque seu funcionamento não é nenhum segredo guardado a sete chaves.
Quanto à usabilidade, talvez você tenha razão. Afinal, o Windows é utilizado por 1 bilhão e meio de pessoas no mundo todo! É…mas vamos com calma. Quem realmente escolheu o Windows? Quantas pessoas sabem que existem outras opções além dele? Pois é…seus acordos milionários com fabricantes de computadores e de hardwares fizeram a diferença. Praticamente todos os PCs que chegam às lojas já vêm com o Windows instalado. Você convenceu o planeta inteiro de que computador era sinônimo de Windows e desse jeito conseguiu empurrar esse sisteminha ingrato pra todo mundo. Até a liberdade de escolher o sistema operacional que queremos usar você quer cercear…assim já não dá. Tenho muito mais pra te falar, mas fica pra outra hora. Enquanto isso, que tal você dar uma lida sobre o GNU/Linux e aprender com um sistema operacional que respeita a liberdade dos usuários?
Passar bem,
André Solnik
ps: Steve Jobs, esteja onde você estiver, essa carta serve pra você também!
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