mastodon – BaixaCultura https://baixacultura.org Cultura livre & (contra) cultura digital Fri, 26 Jul 2024 20:39:02 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.0.9 https://baixacultura.org/wp-content/uploads/2022/09/cropped-adesivo1-32x32.jpeg mastodon – BaixaCultura https://baixacultura.org 32 32 Reflorestar a internet https://baixacultura.org/2024/07/26/reflorestar-a-internet/ https://baixacultura.org/2024/07/26/reflorestar-a-internet/#comments Fri, 26 Jul 2024 18:45:45 +0000 https://baixacultura.org/?p=15683 Li nas últimas semanas um artigo instigante, chamado “We Need to Rewild the Internet”, publicado pela também interessante Revista Noemag, feita pelo Instituto Berggruen, sediado nos Estados Unidos – o artigo também saiu em ptbr pelo Outras Palavras. As autoras são Maria Farrel e Robin Berjon; a primeira é escritora que trabalhou com políticas de tecnologia em espaços como a Câmara Internacional de Comércio e o Banco Mundial; o segundo, especialista em governança digital que trabalhou em diversos lugares, inclusive no board de diretores do World Wide Web Consortium. Estamos falando então de duas pessoas da área de governança e policy digital, não cientistas, ativistas nem filósofos ou antropólogos da tecnologia. 

A “alternativa refloresta”, como fala a versão publicada no Brasil, traz a inspiração da agroecologia para repovoar a internet de forma mais saudável, de modo a afastar os oligopólios, refazer as estruturas e esperar, assim, que a diversidade da internet, tal como uma floresta, renasça. O artigo começa pela história da silvicultura científica alemã para apresentar  “uma verdade atemporal: quando simplificamos sistemas complexos, os destruímos e as consequências devastadoras por vezes só são óbvias quando é tarde demais”. A “patologia do comando e controle” realizada nas florestas alemãs está ocorrendo com a Internet, levando ambas ao mesmo destino: devastação. 

Maria Farrell e Robin Berjon trazem também exemplos do urbanismo para defender a diversidade como resiliência. “Os bairros de uso misto eram os mais seguros, mais felizes, mais prósperos do que os bairros planejados e controlados”, citando o clássico publicado em 1961 “The Death and Life of Great American Cities”, de Jane Jacobs, para defender a diversidade como resiliência. “Quanto mais soluções proprietárias são construídas e implantadas em vez de soluções colaborativas baseadas em padrões abertos, menos a Internet sobrevive como plataforma para inovação futura”.

Daí vem o rewilding, um termo que, na biologia, visa restaurar ecossistemas saudáveis criando espaços selvagens e biodiversos, o que pode abrir espaço a redes alimentares complexas para o surgimento de relações inesperadas entre espécies. Fazer um rewilding com a Internet, argumenta o texto, é mais do que uma metáfora, mas uma estrutura e um plano, que busca respostas para diversas questões, entre elas: como continuamos a trabalhar quando os monopólios têm mais dinheiro e poder? Como agimos coletivamente quando eles subornam nossos espaços comunitários, financiamentos e redes? E como comunicamos aos nossos aliados a sensação (e a necessidade) de consertar tudo isso?

Pôr em prática este plano passa por muitos fatores, entre eles dois principais: descentralizar o acesso e dar mais autonomia aos usuários. Algo como o que já fazem sistemas como o conhecido Fediverse, um conjunto de servidores federados usados para publicação na web e hospedagem de arquivos, base por trás de Mastodon e GnuSocial – uma proposta, aliás, que já está em nosso “Pequeno Compêndio da Independência Independência Digital”, criado 2021 em parceria com o Goethe Institut de Porto Alegre.

O texto fala que devemos garantir incentivos, tanto regulatórios e financeiros, para apoiar alternativas que incluam o gerenciamento de recursos comuns, redes comunitárias e “uma infinidade de outros mecanismos de colaboração que as pessoas têm usado para fornecer bens públicos essenciais, como estradas, defesa e água potável”. A construção de novos imaginários tecnopolíticos – algo que falamos com alguma frequência aqui e balizador do projeto de Experimentações Tecnopolíticas dentro da Coalizão Direitos na Rede – aqui é incentivada por autores que não estão trabalhando diretamente no campo ativista ou político, mas no de policy makers. Embora em áreas teóricas distintas, o trecho a seguir dialoga com Geert Lovink em seu “Extinção da Internet” que publicamos ano passado: “Acomodados em plantações tecnológicas rígidas em vez de ecossistemas funcionais e diversificados, é difícil imaginar alternativas. Mesmo aqueles que conseguem enxergar com clareza podem se sentir desamparados e sozinhos. Rewilding une tudo o que sabemos que precisamos fazer e traz consigo uma caixa de ferramentas e uma visão totalmente novas”.

Nessa linha, a ideia de “escolha algorítmica”, citada no texto a partir da rede Bluesky, lembra o ecossistema de produção de software de código aberto: é uma proposta que permite que a comunidade traga novos algoritmos aos usuários, com o objetivo de substituir o “algoritmo mestre” convencional, controlado por uma única empresa, por um “mercado de algoritmos” aberto e diversificado, dando mais transparência para o processo de escolha das informações a serem mostradas em feeds diversos. Tal qual na ecologia, o papel do Estado aqui é pensado para potencializar as alternativas de substituição aos monopólios/monoculturas, sejam elas de produção de alimentos ou de algorítmicos. A posição da alternativa rewilding é a de usar agressivamente o Estado de Direito para primeiro nivelar o capital e o poder desiguais e, em seguida, correr para preencher as lacunas com melhores maneiras de fazer as coisas.

Outra ideia importante da proposta é a de descentralização da infraestrutura. Não é novidade que Google, Amazon, Microsoft e Meta estão consolidando profundamente seu controle na infraestrutura da internet a partir de aquisições, integração de cima pra baixo, construção de redes proprietárias, criação de pontos de estrangulamento e concentração de funções de diferentes camadas técnicas em um único “silo” de controle. Você também deve saber que quem controla a infraestrutura determina o futuro – inclusive o energético, tema cada vez mais comentado hoje devido às gigantescas necessidades de água e energia que os data centers necessitam para fazer tantas IAs generativas funcionarem.

Contra isso, a proposta do texto é não consertar, mas refazer a infraestrutura. Proposta ousada: regenerar uma infraestrutura aberta e competitiva para as gerações “que foram criadas para assumir que duas ou três plataformas, duas lojas de aplicativos, dois sistemas operacionais, dois navegadores, uma nuvem/megaloja e um único mecanismo de busca para o mundo compreende a Internet” . Se a Internet para você é o enorme silo de arranha-céus em que você mora e a única coisa que você pode ver do lado de fora é o outro enorme silo de arranha-céus, então como você pode imaginar outra coisa?

Na etapa final, o artigo fala que apesar da enorme dificuldade da tarefa, “muito do que precisamos já está aqui”. Os autores comentam, nesse ponto, dos limites das políticas regulatórias: “além de os reguladores buscarem coragem, visão e novas e ousadas estratégias de litígio, precisamos de políticas governamentais vigorosas e pró-competitivas em relação a aquisições, investimentos e infraestrutura física.”

Aqui também citam duas questões ligadas à soberania digital – embora não usem o termo. Defendem que as universidades devem rejeitar o financiamento de pesquisas de empresas de tecnologia, “pois ele sempre vem acompanhado de condições, sejam elas ditas ou não”. Em vez disso, precisamos de mais pesquisas tecnológicas financiadas publicamente com resultados divulgados publicamente – pesquisas que, por exemplo, possam investigar a concentração de poder no ecossistema da Internet e as alternativas práticas a ela. 

Ao final da leitura, saúdo o fato de que mesmo pessoas de “dentro do sistema” (ou quase isso) reconheçam que devemos recuperar o controle de grande parte da infraestrutura da Internet e propor uma alternativa à monocultura algorítmica imposta pelas big techs a partir da plataformização da vida. Não deixo de notar também que as saídas apontadas por eles também não são novidades, mas caminhos que outras pessoas já comentam faz alguns anos. Por exemplo: uma destas saídas escrita no texto é manter a internet, a internet – ou seja: defender que se mantenha aberta e colaborativa a forma como foram feitos os protocolos e padrões técnicos que sustentam a infraestrutura da Internet. Algo que muita gente da área vem dizendo há anos, seja o criador da WWW Tim Berners-Lee, ou eu mesmo, em 2011, num texto hoje ingênuo de defesa de uma internet livre, onde citava Yochai Benkler e Lawrence Lessig para falar que podemos manter a internet – também tecnicamente – do jeito que ela foi feita a partir de nossa luta ativista. 

Curioso que, neste mesmo texto, cito como espaço de proteção desses princípios o Fórum da Internet, evento que naquele ano (2011) era criado pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil justamente para defender a internet como ela foi construída. Participei desse primeiro fórum como relator e lembro bem dos 10 princípios defendidos, que incluía a defesa da neutralidade (privilégios de tráfego devem respeitar apenas critérios técnicos e éticos, não sendo admissíveis motivos políticos, comerciais, religiosos ou qualquer outra forma de discriminação ou favorecimento), da inimputabilidade (a internet é meio, não fim; as medidas de combates a crimes na rede deve atingir os responsáveis finais e não os meios), dentre outros oito. De lá pra cá, o CGI continuou defendendo esses princípios, que, por sua vez, foram ou violados – zero rating manda lembranças à neutralidade da rede – ou se tornaram questionáveis – hoje é quase consenso por quem defende a regulação das plataformas a defesa da responsabilidade dos intermediários, os meios, as plataformas, e não apenas os usuários finais.

Outro princípio elencado como saída na alternativa “refloresta” soa um tanto velho também: que os prestadores de serviços – e não os usuários – sejam transparentes. Uma frase que poderia ser bem uma variação do que Julian Assange e o Wikileaks já traziam nos anos 2000: “Transparência para os fortes, privacidade para os fracos”. Este era o lema  quando defendiam uma ética da transparência contra o muito falado fim da privacidade, especialmente a partir do uso de criptografia forte – outro ponto que nós já discutimos por aqui, ainda em 2015, e que por sua vez é a base conceitual dos Manifestos Cypherpunks do início dos anos 1990.

O fato dos caminhos apontados em “We Need To Rewild The Internet“ soarem um tanto velhos não desmerece a leitura do texto e a reflexão (e ação) a partir dele. Pelo contrário: nesse momento de aceleração contínua a partir do impulso das tecnologias digitais e dos algoritmos proprietários na modulação de nossas vidas, parece que se faz necessário dizer novamente o que já foi dito. Repetição como estratégia de fixação, documentação,  memória, ou de lembrança de que, de fato, muita coisa “já está aqui”, falta levar adiante.

[Leonardo Foletto]

P.s: Depois de publicado, me lembrei que essa metáfora do reflorestar se relaciona com a ideia de permacultura digital, que vem sido trabalhada faz anos pelas Redes das Produtoras Culturais Colaborativas, especialmente a partir de Fabs Balvedi. Inclusive foi tema da Conferência Nacional de Cultura Digital neste 2024, como contamos aqui. Outro texto que comenta a ideia de ir contra a monocultura algorítmica da internet é este, recentemente publicado no blog Sou Ciência, da Folha de S. Paulo, por Soraya Smaili , Maria Angélica Minhoto , Pedro Arantes e Alexsandro Carvalho. As metáforas estão parecidas não são por acaso.

 

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O futuro da economia será compartilhado? https://baixacultura.org/2019/11/07/o-futuro-da-economia-sera-compartilhado/ https://baixacultura.org/2019/11/07/o-futuro-da-economia-sera-compartilhado/#respond Thu, 07 Nov 2019 15:19:06 +0000 https://baixacultura.org/?p=13068

Foto: Corey Kohn

Estar a frente de uma empresa de propriedade compartilhada com xs próprixs usuárixs em alguns momentos pode parecer uma ideia um tanto louca e subversiva para uma startup capitalista, mas saiba: a proposta já está em discussão – e em prática –  em alguns lugares do planeta.

Nathan Schneider, jornalista e professor de novas mídias da Universidade de Boulder Colorado, nos Estados Unidos, autor do livro “Everything for Everyone: The Radical Tradition that Is Shaping the Next Economy“é uma das pessoas que mais vem estudando e promovendo a ideia do cooperativismo de plataforma mundo afora. No final de outubro ele esteve no Brasil para um evento privado organizado pela KES, onde falou da ideia de “user ownership” (em tradução livre, compartilhar a posse da empresa) para uma plateia de empresários, COs e CTOs de startups e empresas como Coca-Cola e Bradesco.

Foi nessa ocasião (que também marcou sua primeira vinda ao Brasil) que Nathan apresentou suas ideias, partindo de uma pergunta: como seria tornar Xs usuáriXs de um dado serviço, como por exemplo das empresas símbolos do que se convencionou chamar de capitalismo de plataforma (como o Uber, Airbnb), também proprietáriXs da empresa para a qual prestam tal serviço? Em outras palavras: e se Xs própriXs “colaboradorXs” (motoristas, anunciantes de imóveis, entregadorXs) dessas plataformas também fossem sóciXs delas, tendo uma pequena parte do negócio, e se organizassem em modelos cooperativos para sua administração?

Foi a partir dessa ideia básica e que poderia remeter até mesmo às teorias marxistas (alguém falou em tomar e compartilhar os meios de produção?) que Nathan trouxe três propostas:

1 – USER BUYOUT
Opção na qual a abertura de capital da empresa se dá de modo mais ágil e menos oneroso, com a oferta de ações para indivíduos que já são usuárioXs-trabalhadorXs do negócio. Como estes já atuam como uma espécie de financiadorXs do valor gerado pela empresa, por meio de sua própria dedicação e/ou disponibilização de recursos a ela, Nathan argumenta que o seu nível de comprometimento e vontade de prosperar só tenderia a crescer. Uber e Airbnb, talvez mais como saída econômica do que democrática, são exemplos de nomes que já buscam, por meio de lobby, regulamentar esse tipo de relação contratual.

2 – FEDERATION
Modelo de participação no qual usuáriXs podem ganhar mobilidade de ir e vir de uma empresa para outra, desde que estas sigam um padrão mínimo comum de protocolo de fluxo de informação. Cada negócio define os valores sob os quais Xs usuáriXs estarão submetidXs. Segundo Nathan, esse modelo é algo muito próximo do que ocorreu com o início da atual bandeira de cartões Visa: que nasceu como um produto do Bank of America, porém tinha tamanha iminência de crescimento que logo teve que licenciar seu uso para outros bancos e instituições financeiras. Um exemplo mais conhecido e já utilizado são as redes sociais federadas, como por exemplo a Mastodon, um agrupamento de ‘nós’ independentes que pode ser plugado à rede conforme deliberação das políticas próprias de cada node.

3 -TOKENIZATION
Baseado em um sistema de participação que pode ser moderada ou não pela gestão empresa. Embora já seja uma tecnologia largamente aplicada na mineração de criptomoedas para posterior resgate monetário, é a menos testada no contexto de propriedade de empresas. Funciona por meio da disponibilização de tokens, que vão sendo distribuídos e acumulados conforme Xs usuáriXs vão usando o serviço, e que podem ser resgatados em forma de benefícios para seus proprietáriXs. O mais recente exemplo apresentado por Nathan é a Libra, criptomoeda assinada pelo Facebook e por mais dezenas de grandes empresas mundiais.

Ainda sobre o tema, Nathan faz um interessante paralelo entre Zebras e Unicórnios, como provocação a repensar a real aplicabilidade do conceito baseado no ser mítico, tão cobiçado pelas empresas que se inspiram nos modelos de negócio do Vale do Silício. Zebra, segundo Nathan, são animais que correm em bandos e são reais, em contraponto a ideia de Unicórnio, que são seres fantasiosos e de existência isolada. Zebras então seriam as startups que buscam voltar sua atuação para contemplar valores como diversidade étnica, geográfica, cultural e outras – que ainda não são precisamente atendidas pelos grandes players do mercado.

Depois da palestra Nathan ainda conversou com o BaixaCultura*, para detalhar um pouco mais de suas ideias e propostas de democratização da economia.

1) Existe um diagnóstico que as cooperativas do século XX tornaram-se empreendimentos capitalistas como corporações e que não há, de fato, muita participação dos cooperados. Esse diagnóstico também se aplica para os EUA?

Sim. Eu já vi isso em todos os lugares. Negócios cooperativos não garantem democracia econômica, apenas criam a possibilidade para isso. Nesse sentido, estou no conselho de duas organizações cooperativas que refletem minha visão do que é mais necessário hoje: Start.coop, um acelerador de novas cooperativas, e We Own It, que organiza membros de cooperativas já existentes para fazer mudanças positivas por meio de campanhas que visam reformar essas organizações. O que descobrimos em “We Own It” é que um pouco de trabalho em ativar os seus membros pode ajudar bastante a transformar a maneira como as cooperativas operam. É incrivelmente importante para a nova geração de integrantes de cooperativa (cooperados) não apenas iniciar novos projetos, mas também se engajar no trabalho duro, e muitas vezes frustrante, de reenergizar o poderoso legado da cooperação que existe ao nosso redor.

2) O movimento do Cooperativismo de Plataforma tem cinco anos. Qual o balanço das suas principais conquistas e principais fracassos?

A principal conquista é dar visibilidade e criar espaço da discussão/ação. A ideia do cooperativismo de plataforma criou espaço para uma nova geração entrar no movimento cooperativo tradicional sem necessariamente estarem ligadas ao modo de operar que já era praticado. Conseguimos chamar a atenção dessas cooperativas mais tradicionais e, até certo ponto, revigorar o entendimento de seu próprio potencial – até a nível da Aliança Cooperativa Internacional [organização que une e representa cooperativas no mundo inteiro, criada em 1895 e hoje com mais de 1,2 bilhão de cooperados].

Enquanto isso, no mundo da tecnologia, a partir do modelo de cooperativismo de plataforma estabelecemos uma nova estratégia para lidar com os males da economia on-line, juntamente com propostas de reforma de políticas e mudança de cultura. Há também um número crescente de startups tentando fazer o cooperativismo de plataforma funcionar na prática.

As principais limitações, no entanto, existem no campo da prática. Construir cooperativas em tecnologia não é fácil; a cultura predominante não é propícia a isso, muito menos os modelos de negócios e financiamento predominantes. Temos um longo caminho a percorrer para que o tipo de cooperação ecossistêmica empresarial possa ter uma chance real de desafiar as grandes tecnologias. Foi humilhante ver as dificuldades que muitas das startups cooperativas enfrentaram para conseguir existir. Temos que ter cuidado para garantir que, com todo o sucesso que temos alcançado em difundir a ideia do cooperativismo de plataforma, também devemos criar uma infraestrutura realisticamente utilizável. Nestes cinco anos, meu objetivo principal foi o seguinte: como podemos tornar grandes ideias bem-sucedidas na democracia de modo (pelo menos) tão fácil como através do “capitalismo feudal”?

Foto: Sheila Uberti

3) Você tem escrito muito sobre “user ownsership” desde a campanha #BuyTwitter de 2016. Algumas grandes empresas de tecnologia, como Uber e Airbnb, chegaram a se manifestar positivamente sobre empregados serem donos da empresa. Que potencial você vê para esses arranjos? E o que eles diferem do cooperativismo de plataforma?

Para deixar claro, essas empresas estão falando em conceder pequenas quantidades de ações aos “colaboradores” (ou seja, criadores de valor da própria empresa) que se recusam a reconhecer como funcionários! Embora essa seja uma abertura muito limitada, considero-a ainda uma abertura. Alguns anos atrás, a ideia de compartilhar o patrimônio da empresa com seus usuários seria algo radical; agora as maiores – e piores, no sentido trabalhista – plataformas tecnológicas estão explorando isso. Eu quero pegar essa abertura e abri-la muito, muito mais. Como esse compartilhamento pode criar uma “corrida ao topo” (race to the top), onde as empresas estão competindo entre si para fornecer cada vez mais condições equitativas? Como os formuladores de políticas podem permitir esse compartilhamento e também garantir uma responsabilidade genuína por parte de quem as adote? A tecnologia está enfrentando uma crise de identidade agora e há uma oportunidade realmente interessante de resolver essa crise exigindo um novo tipo de contrato social que envolva uma expansão maciça da democracia econômica.

4) No Brasil, o tema do cooperativismo de plataforma parece ter penetrado no núcleo duro do cooperativismo organizado. A OCB promoveu recentemente um hackathon somente sobre soluções de tecnologia para cooperativismo. Que potencial você vê no Brasil para esse movimento?

Estou muito esperançoso e emocionado. O Brasil já possui um setor cooperativo poderoso, e espero que a ideia do cooperativismo de plataforma possa ajudar a dar-lhe uma nova vida. O que descobri é que muitos setores cooperativos ao redor do mundo estão tentando descobrir como eles podem apoiar e participar desse novo conjunto de possibilidades, mas não sabem ao certo por onde começar. Meu pedido para os participantes desses esforços brasileiros: documentem o que vocês estão fazendo. Compartilhem amplamente. Espalhem a palavra! Os setores cooperativos do mundo estão ansiosos para aprender com vocês.

5) Sua fala no KES foi um ótimo exemplo de como dizer coisas subversivas para pessoas de mercado que não estão acostumadas a isso. Você poderia detalhar como explicar a ideia de “user ownership” para pessoas de um mercado tradicional ou que não estão acostumadas às ideias do cooperativismo e de uma internet livre?

Bem, pessoas do mercado – são realmente apenas pessoas! Fico surpreso com o número de pessoas interessadas em estratégias de cooperação – investidores, executivos, empreendedores e muito mais. Mas não deveria me surpreender, porque durante dois séculos os modelos cooperativos provaram ser formas poderosas de fazer negócios com os quais outros tipos de negócios (inclusive os do “mercado” mais tradicional) podem aprender. Receio que o desafio é garantir que essas colaborações se direcionem para um futuro com mais democracia econômica, em vez de um futuro no qual as estratégias democráticas sejam cooptadas pelo novo “capitalismo feudal”. Pense em como a Amazon adotou ideias cooperativas como a “associação” (no Amazon Prime) e nas lojas de alimentos naturais (Whole Foods, agora propriedade da Amazon, foi fundada por um ex-funcionário de uma cooperativa de alimentos). É um jogo perigoso. Mas em todo o mundo, as pessoas estão ansiosas para repensar o que é a corporação e para que serve. É um momento crítico para aproveitar qualquer oportunidade que pudermos para enxertar brotos democráticos nos pomares doentes e mal concebidos do capitalismo.

* Com Leonardo Foletto, editor do BaixaCultura, e Sheila Uberti, comunicadora. Colaboração de Rafael Zanatta na elaboração das perguntas.
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