Internet – BaixaCultura https://baixacultura.org Cultura livre & (contra) cultura digital Fri, 26 Jul 2024 20:39:02 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.0.9 https://baixacultura.org/wp-content/uploads/2022/09/cropped-adesivo1-32x32.jpeg Internet – BaixaCultura https://baixacultura.org 32 32 Reflorestar a internet https://baixacultura.org/2024/07/26/reflorestar-a-internet/ https://baixacultura.org/2024/07/26/reflorestar-a-internet/#comments Fri, 26 Jul 2024 18:45:45 +0000 https://baixacultura.org/?p=15683 Li nas últimas semanas um artigo instigante, chamado “We Need to Rewild the Internet”, publicado pela também interessante Revista Noemag, feita pelo Instituto Berggruen, sediado nos Estados Unidos – o artigo também saiu em ptbr pelo Outras Palavras. As autoras são Maria Farrel e Robin Berjon; a primeira é escritora que trabalhou com políticas de tecnologia em espaços como a Câmara Internacional de Comércio e o Banco Mundial; o segundo, especialista em governança digital que trabalhou em diversos lugares, inclusive no board de diretores do World Wide Web Consortium. Estamos falando então de duas pessoas da área de governança e policy digital, não cientistas, ativistas nem filósofos ou antropólogos da tecnologia. 

A “alternativa refloresta”, como fala a versão publicada no Brasil, traz a inspiração da agroecologia para repovoar a internet de forma mais saudável, de modo a afastar os oligopólios, refazer as estruturas e esperar, assim, que a diversidade da internet, tal como uma floresta, renasça. O artigo começa pela história da silvicultura científica alemã para apresentar  “uma verdade atemporal: quando simplificamos sistemas complexos, os destruímos e as consequências devastadoras por vezes só são óbvias quando é tarde demais”. A “patologia do comando e controle” realizada nas florestas alemãs está ocorrendo com a Internet, levando ambas ao mesmo destino: devastação. 

Maria Farrell e Robin Berjon trazem também exemplos do urbanismo para defender a diversidade como resiliência. “Os bairros de uso misto eram os mais seguros, mais felizes, mais prósperos do que os bairros planejados e controlados”, citando o clássico publicado em 1961 “The Death and Life of Great American Cities”, de Jane Jacobs, para defender a diversidade como resiliência. “Quanto mais soluções proprietárias são construídas e implantadas em vez de soluções colaborativas baseadas em padrões abertos, menos a Internet sobrevive como plataforma para inovação futura”.

Daí vem o rewilding, um termo que, na biologia, visa restaurar ecossistemas saudáveis criando espaços selvagens e biodiversos, o que pode abrir espaço a redes alimentares complexas para o surgimento de relações inesperadas entre espécies. Fazer um rewilding com a Internet, argumenta o texto, é mais do que uma metáfora, mas uma estrutura e um plano, que busca respostas para diversas questões, entre elas: como continuamos a trabalhar quando os monopólios têm mais dinheiro e poder? Como agimos coletivamente quando eles subornam nossos espaços comunitários, financiamentos e redes? E como comunicamos aos nossos aliados a sensação (e a necessidade) de consertar tudo isso?

Pôr em prática este plano passa por muitos fatores, entre eles dois principais: descentralizar o acesso e dar mais autonomia aos usuários. Algo como o que já fazem sistemas como o conhecido Fediverse, um conjunto de servidores federados usados para publicação na web e hospedagem de arquivos, base por trás de Mastodon e GnuSocial – uma proposta, aliás, que já está em nosso “Pequeno Compêndio da Independência Independência Digital”, criado 2021 em parceria com o Goethe Institut de Porto Alegre.

O texto fala que devemos garantir incentivos, tanto regulatórios e financeiros, para apoiar alternativas que incluam o gerenciamento de recursos comuns, redes comunitárias e “uma infinidade de outros mecanismos de colaboração que as pessoas têm usado para fornecer bens públicos essenciais, como estradas, defesa e água potável”. A construção de novos imaginários tecnopolíticos – algo que falamos com alguma frequência aqui e balizador do projeto de Experimentações Tecnopolíticas dentro da Coalizão Direitos na Rede – aqui é incentivada por autores que não estão trabalhando diretamente no campo ativista ou político, mas no de policy makers. Embora em áreas teóricas distintas, o trecho a seguir dialoga com Geert Lovink em seu “Extinção da Internet” que publicamos ano passado: “Acomodados em plantações tecnológicas rígidas em vez de ecossistemas funcionais e diversificados, é difícil imaginar alternativas. Mesmo aqueles que conseguem enxergar com clareza podem se sentir desamparados e sozinhos. Rewilding une tudo o que sabemos que precisamos fazer e traz consigo uma caixa de ferramentas e uma visão totalmente novas”.

Nessa linha, a ideia de “escolha algorítmica”, citada no texto a partir da rede Bluesky, lembra o ecossistema de produção de software de código aberto: é uma proposta que permite que a comunidade traga novos algoritmos aos usuários, com o objetivo de substituir o “algoritmo mestre” convencional, controlado por uma única empresa, por um “mercado de algoritmos” aberto e diversificado, dando mais transparência para o processo de escolha das informações a serem mostradas em feeds diversos. Tal qual na ecologia, o papel do Estado aqui é pensado para potencializar as alternativas de substituição aos monopólios/monoculturas, sejam elas de produção de alimentos ou de algorítmicos. A posição da alternativa rewilding é a de usar agressivamente o Estado de Direito para primeiro nivelar o capital e o poder desiguais e, em seguida, correr para preencher as lacunas com melhores maneiras de fazer as coisas.

Outra ideia importante da proposta é a de descentralização da infraestrutura. Não é novidade que Google, Amazon, Microsoft e Meta estão consolidando profundamente seu controle na infraestrutura da internet a partir de aquisições, integração de cima pra baixo, construção de redes proprietárias, criação de pontos de estrangulamento e concentração de funções de diferentes camadas técnicas em um único “silo” de controle. Você também deve saber que quem controla a infraestrutura determina o futuro – inclusive o energético, tema cada vez mais comentado hoje devido às gigantescas necessidades de água e energia que os data centers necessitam para fazer tantas IAs generativas funcionarem.

Contra isso, a proposta do texto é não consertar, mas refazer a infraestrutura. Proposta ousada: regenerar uma infraestrutura aberta e competitiva para as gerações “que foram criadas para assumir que duas ou três plataformas, duas lojas de aplicativos, dois sistemas operacionais, dois navegadores, uma nuvem/megaloja e um único mecanismo de busca para o mundo compreende a Internet” . Se a Internet para você é o enorme silo de arranha-céus em que você mora e a única coisa que você pode ver do lado de fora é o outro enorme silo de arranha-céus, então como você pode imaginar outra coisa?

Na etapa final, o artigo fala que apesar da enorme dificuldade da tarefa, “muito do que precisamos já está aqui”. Os autores comentam, nesse ponto, dos limites das políticas regulatórias: “além de os reguladores buscarem coragem, visão e novas e ousadas estratégias de litígio, precisamos de políticas governamentais vigorosas e pró-competitivas em relação a aquisições, investimentos e infraestrutura física.”

Aqui também citam duas questões ligadas à soberania digital – embora não usem o termo. Defendem que as universidades devem rejeitar o financiamento de pesquisas de empresas de tecnologia, “pois ele sempre vem acompanhado de condições, sejam elas ditas ou não”. Em vez disso, precisamos de mais pesquisas tecnológicas financiadas publicamente com resultados divulgados publicamente – pesquisas que, por exemplo, possam investigar a concentração de poder no ecossistema da Internet e as alternativas práticas a ela. 

Ao final da leitura, saúdo o fato de que mesmo pessoas de “dentro do sistema” (ou quase isso) reconheçam que devemos recuperar o controle de grande parte da infraestrutura da Internet e propor uma alternativa à monocultura algorítmica imposta pelas big techs a partir da plataformização da vida. Não deixo de notar também que as saídas apontadas por eles também não são novidades, mas caminhos que outras pessoas já comentam faz alguns anos. Por exemplo: uma destas saídas escrita no texto é manter a internet, a internet – ou seja: defender que se mantenha aberta e colaborativa a forma como foram feitos os protocolos e padrões técnicos que sustentam a infraestrutura da Internet. Algo que muita gente da área vem dizendo há anos, seja o criador da WWW Tim Berners-Lee, ou eu mesmo, em 2011, num texto hoje ingênuo de defesa de uma internet livre, onde citava Yochai Benkler e Lawrence Lessig para falar que podemos manter a internet – também tecnicamente – do jeito que ela foi feita a partir de nossa luta ativista. 

Curioso que, neste mesmo texto, cito como espaço de proteção desses princípios o Fórum da Internet, evento que naquele ano (2011) era criado pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil justamente para defender a internet como ela foi construída. Participei desse primeiro fórum como relator e lembro bem dos 10 princípios defendidos, que incluía a defesa da neutralidade (privilégios de tráfego devem respeitar apenas critérios técnicos e éticos, não sendo admissíveis motivos políticos, comerciais, religiosos ou qualquer outra forma de discriminação ou favorecimento), da inimputabilidade (a internet é meio, não fim; as medidas de combates a crimes na rede deve atingir os responsáveis finais e não os meios), dentre outros oito. De lá pra cá, o CGI continuou defendendo esses princípios, que, por sua vez, foram ou violados – zero rating manda lembranças à neutralidade da rede – ou se tornaram questionáveis – hoje é quase consenso por quem defende a regulação das plataformas a defesa da responsabilidade dos intermediários, os meios, as plataformas, e não apenas os usuários finais.

Outro princípio elencado como saída na alternativa “refloresta” soa um tanto velho também: que os prestadores de serviços – e não os usuários – sejam transparentes. Uma frase que poderia ser bem uma variação do que Julian Assange e o Wikileaks já traziam nos anos 2000: “Transparência para os fortes, privacidade para os fracos”. Este era o lema  quando defendiam uma ética da transparência contra o muito falado fim da privacidade, especialmente a partir do uso de criptografia forte – outro ponto que nós já discutimos por aqui, ainda em 2015, e que por sua vez é a base conceitual dos Manifestos Cypherpunks do início dos anos 1990.

O fato dos caminhos apontados em “We Need To Rewild The Internet“ soarem um tanto velhos não desmerece a leitura do texto e a reflexão (e ação) a partir dele. Pelo contrário: nesse momento de aceleração contínua a partir do impulso das tecnologias digitais e dos algoritmos proprietários na modulação de nossas vidas, parece que se faz necessário dizer novamente o que já foi dito. Repetição como estratégia de fixação, documentação,  memória, ou de lembrança de que, de fato, muita coisa “já está aqui”, falta levar adiante.

[Leonardo Foletto]

P.s: Depois de publicado, me lembrei que essa metáfora do reflorestar se relaciona com a ideia de permacultura digital, que vem sido trabalhada faz anos pelas Redes das Produtoras Culturais Colaborativas, especialmente a partir de Fabs Balvedi. Inclusive foi tema da Conferência Nacional de Cultura Digital neste 2024, como contamos aqui. Outro texto que comenta a ideia de ir contra a monocultura algorítmica da internet é este, recentemente publicado no blog Sou Ciência, da Folha de S. Paulo, por Soraya Smaili , Maria Angélica Minhoto , Pedro Arantes e Alexsandro Carvalho. As metáforas estão parecidas não são por acaso.

 

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Por trás do algoritmo https://baixacultura.org/2022/11/29/por-tras-do-algoritmo/ https://baixacultura.org/2022/11/29/por-tras-do-algoritmo/#comments Tue, 29 Nov 2022 13:42:01 +0000 https://baixacultura.org/?p=14968 Já deve ter acontecido com você: falar alguma coisa que está circulando em uma rede social e alguém ficar com cara de dúvida: “mas não vi isso na minha rede”. A rede pode ser o Facebook, o Instagram e também o Twitter, o TikTok e até o YouTube. Em todas o resultado é o mesmo: cada timeline mostrada é única, singular de acordo com os dados deixados pelo usuário em cada rede. Isso acontece desde que estas redes passaram a assumir protagonismo desproporcional no consumo de informação e orientar a esfera pública no lugar do jornalismo, em meados da década passada, sobretudo quando o Facebook passou a adotar o modelo timeline de organização da informação (janeiro de 2012), que priorizava não a ordem cronológica das postagens, padrão das redes até então, mas diversos outros fatores (localização, interesses, interação em outros posts, além de publicidade) embutidos no algoritmo. Este modelo, com algumas alterações pontuais, depois viria a ser adotado por outras redes: o que os usuários veem em suas timelines está ali a partir de recomendações de conteúdos de acordo com preferências do usuário, interesse de anunciantes e tendências de viralização.

Sabemos que, nas caixas-pretas que ainda são os algoritmos que moldam cada uma dessas redes, as preferências não são compartilhadas socialmente, o que significa que não conhecemos exatamente o que entra e o que não entra no cálculo para construir cada timeline. Conhecemos, entretanto, que os interesse de anunciantes raramente coincidem com o que é de interesse público; e que os conteúdos virais podem não ser os mais confiáveis ou democráticos – uma amostra in loco das eleições brasileiras de 2022 já são suficientes para indicar que os hits de compartilhamento muitas vezes trazem conteúdos que são direta ou indiretamente antidemocráticos, quando não fascistas.

Os riscos vão de intenções maliciosas e deliberadas, como invasões e ataques patrocinados pelo Estado ou milícias digitais (como as controladas pelo chamado “Gabinete do Ódio”, comportamento criminoso e assédio on-line, até o design de sistemas que criam incentivos perversos em que o valor do usuário é sacrificado, como modelos de receita baseados em anúncios que recompensam comercialmente o clickbait e a disseminação viral da desinformação. Já não é de hoje que dizemos: entender como funcionam as plataformas é crucial para o redesenho e a regulação desses espaços em prol de uma internet efetivamente democrática e segura para todos.

Para tentar contribuir com esse debate, fizemos, em parceria com o Goethe-Institut Porto Alegre e a Afonte Jornalismo de Dados, o infográfico “Por que isso apareceu na minha timeline?”, disponível para consulta online e também para download aqui, HORIZONTAL / VERTICAL. O infográfico simula uma timeline de rede social, utilizando os elementos de interação da própria timeline para informar sobre como funcionam  os algoritmos das plataformas (na medida do que é possível sem examinar o código deles), sua influência em comportamentos e impactos à democracia.

Faremos também um lançamento, onde será realizada um conversa ao vivo comigo (Leonardo Foletto), Fernanda Rodrigues (IRIS – Instituto de Referência em Internet e Sociedade), Marcelo Träsel (UFRGS) e Taís Seibt (Unisinos / Afonte Jornalismo de Dados) sobre o contexto atual de construção das timelines, a discussão em torno da regulação das plataformas e seus impactos na democracia. A conversa acontece dia 29 de novembro (terça-feira), às 19h, no Auditório do Goethe-Institut Porto Alegre (Rua 24 de Outubro, 112), com entrada franca.

 

 

 

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Cooperativismo de plataforma & tecnologias livres: alimentando a (now) topia https://baixacultura.org/2022/05/27/cooperativismo-de-plataforma-tecnologias-livres-alimentando-a-now-topia/ https://baixacultura.org/2022/05/27/cooperativismo-de-plataforma-tecnologias-livres-alimentando-a-now-topia/#respond Fri, 27 May 2022 15:07:09 +0000 https://baixacultura.org/?p=13974 Neste sábado, 27/5, 10h, encerra a fase online da série de debates Cooperativismo de Plataforma e Políticas Públicas, organizado pelo Digilabour e Observatório do Cooperativismo de Plataforma e apoio da Fundação Rosa Luxemburgo, com um debate sobre Cooperativismo de Plataforma e Tecnologias Livres. Vou estar na mesa buscando aprender e dialogar com Pedro Jatobá, integrante da cooperativa de trabalho em tecnologias livres brasileira EITA e da Rede das Produtoras Culturais Colaborativas, a Collective Tools, da Suécia; a Cooperativa de Software Libre da Argentina (GCOOP); e a pesquisadora Sophie Toupin (Concordia University, Canadá), que pesquisou em sua tese de doutorado sobre a relação entre colonização e tecnologias na África do Sul

Ao longo de três sábados (até aqui), trabalhadores/as, coletivos, cooperativas, formuladores de políticas e acadêmicos têm discutido nestes seminários experiências internacionais e nacionais para fomentar o debate público sobre o futuro do cooperativismo de plataforma no Brasil. Uma área ainda nova, mas que tem cada vez mais se tornado uma possibilidade real de organização do trabalho digital de forma mais justa e igualitária, sobretudo a partir da junção de dois aspectos: a enorme quantidade de trabalhadoras/es de aplicativos, de Uber a iFood, Rappi, Get Ninjas, etc, um trabalho que cresce ainda mais na crise que assola o Brasil e que vende precariedade disfarçada de autonomia; e o histórico potente do cooperativismo e da economia solidária no país, que embora tenha sido cada vez mais devastado nos últimos governos, ainda é muito presente e visível no Brasil – é muito provável que o alimento orgânico que você come veio de uma iniciativa de economia solidária, ou via certificação colaborativa de uma cooperativa como a Ecovida.

A junção desses dois aspectos torna o cooperativismo de plataforma uma potente ideia (como já explicamos aqui, ao falar do livro de Trebor Scholz de 2017) para lutar tanto por melhores condições de trabalho quanto contra o poderio monopolista das Big Techs. Mais do que uma ideia, iniciativas tocadas a partir do DigiLabour e outros grupos, como o Observatório do Cooperativismo de Plataforma e a Fairwork, tem tentado construir alternativas viáveis e reais de cooperativas e pautar no debate público a importância de se buscar alternativas às grandes plataformas. 

Ainda pesa, porém, as enormes dificuldades (sempre presente) de organização coletiva das pessoas (e da inteligência coletiva), os entraves burocráticos, o gigantesco “inimigo” a se combater – as big techs representam a nem tão nova face do capitalismo, agora baseado na abstração do trabalho digital e no lucro da circulação de dados. Ainda há o desafio que ocorre a partir de uma certa desatenção, também por parte das esquerdas, ao fato de que construir as próprias tecnologias, e as formas de cuidar delas, é cada vez mais transversal em todos os aspectos da vida cotidiana; portanto, não deveria ser um mero detalhe, mas tema fundamental (inclusive de governo) nestes tempos de “capitalismo de vigilância”.

A proposta na mesa é discutir a potência que é quando os trabalhadores/as controlam o código – e o mantém aberto, para colaboração e aperfeiçoamento. Colher as histórias de grupos que já vem fazendo isso na Argentina, na Europa e no Brasil, as muitas dificuldades que advém quando coletivos aprofundam estratégias e práticas anticapitalistas num mundo tomado pela mercadoria. De como, inicialmente, o Estado pode ajudar ao fomento de cooperativas de tecnologias livres, para que depois elas possam se tornar autônomas, talvez nutrindo a (now) utopia de um Estado que possa fomentar a vida sem Estado, como já disse Gilberto Gil no belo “Remixofagia” (13min30s), 11 anos atrás.

[Sobre esse tema, aliás, o relato da pesquisadora Denise Gasparian, publicado em maio no Digilabour, dá conta dos ganhos e percalços da implementação na Argentina da CoopCycle (criada na França), com subvenção inicial do Estado (a partir da Federação Argentina de Cooperativas de Trabalhadores em Tecnologia, Inovação e Conhecimento – FACTTIC). A CoopCycle é uma federação com cerca de 70 grupos de entregadores e que desenvolveu um código protegido por uma licença Coopyleft, que garante seu uso exclusivo por cooperativas ou grupos de trabalhadores.]

O debate do dia 28/6 será on-line e com tradução simultânea; inscrições aqui. Em junho de 2022 ocorre a versão presencial do evento, dias 21 a 23 em Porto Alegre; mais adiante divulgamos em detalhes.

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Como compartilhar conteúdo e fazer backup por torrent https://baixacultura.org/2020/02/18/como-compartilhar-conteudo-e-fazer-backup-por-torrent/ https://baixacultura.org/2020/02/18/como-compartilhar-conteudo-e-fazer-backup-por-torrent/#comments Tue, 18 Feb 2020 13:54:06 +0000 https://baixacultura.org/?p=13149

Fonte: Oficina da Net

Quando escrevemos o texto sobre como usar torrent e baixar conteúdo compartilhado grátis, pensamos nesse título como uma espécie de clickbait: queríamos que, em pleno 2019, o torrent fosse capaz de atrair novos usuários usando a velha tática de prometer alguma coisa grátis. Afinal de contas, o modus operandi da internet na última década se baseia nessa ideia, casada com um gerador de receitas oculto: eu te dou algo de graça e de fácil acesso e você nem desconfia do que me dá em troca – seus dados de utilização, usados para alimentar bases gigantes com diversas finalidades: aprimorar inteligência artifial, machine learning, publicidade direcionada e todo tipo de personalização com dados, que seja capaz de aprender e prever o comportamento humano, como bem já foi revelado sobre o modelo de negócios do Rappi, o qual usa a entrega de mercadorias (com operação deficitária) como fachada para seu verdadeiro objetivo, coletar uma vasta quantidade de informação sobre usuários para gerar mais comércio direcionado, mais segmentação produtiva.

Pensei: se estamos habituados a entregarmos nossas vidas de graça para algumas empresas de redes sociais ou serviços, em troca de contato com amigos, familiares, flertes, ídolos e rivais, por que não poderíamos usufruir do torrent para acessar qualquer arquivo que gostamos, de graça, através da cópia de arquivos entre máquinas? De muitos já ouvi que a barreira é efetivamente usar o torrent, baixar o programa e achar os arquivos, e entender por que às vezes ele baixa e às vezes não.

Pois bem, agora que já expliquei como funciona o programa, como achar arquivos, como interpretar o cliente de torrent e por que ele baixa ou não, posso explicar a segunda parte importante sobre usar torrent: como compartilhar arquivos, ou seja, como criar um arquivo torrent, hospedá-lo num repositório e semeá-lo. Escrevo então sobre como dividir aquilo que mais gostamos com outras pessoas, desde amigos até completos estranhos do outro lado do mundo, e geramos impacto real na rede, através da cópia. De lambuja, ainda subimos pra rede nossos arquivos, e assim que eles são copiados, estão disponíveis em outras máquinas, e tornam-se acessíveis em outros computadores da internet, gerando uma espécie de backup – desde que alguém semeie o arquivo, claro.

Antes de mergulharmos de cabeça na ação prática, ou seja, começar a criar e compartilhar arquivos torrent, gostaria de trazer uma ideia sobre o uso da tecnologia e o ponto em que estamos hoje, onde parece que nada aconteceu na internet antes dos aplicativos facilitadores. Especialmente àqueles que ainda não se convenceram de que vale a pena usar a tecnologia p2p para navegar na rede. O bielorrusso Evgeny Morozov, no seu ensaio Por que estamos autorizados a odiar o Vale do Silício, um dos textos publicados no Brasil no livro “Big Tech – A Ascensão dos Dados e a Morte da Política“, da editora Ubu, elabora: 
    
“[…] O Vale do Silício destruiu a nossa capacidade de imaginar outros modelos de gestão e de organização da infraestrutura da comunicação. Podemos esquecemos os modelos que não se baseiam em publicidade e que não contribuem para a centralização de dados em servidores particulares instalados nos Estados Unidos. Quem sugerir a necessidade de considerar outras opções – talvez até mesmo modelos já publicamente disponíveis – corre o risco de ser acusado de querer “quebrar a internet”. Nós sucumbimos ao que o teórico social brasileiro Roberto Mangabeira Unger chama de “a ditadura da falta de opção”: espera-se que aceitemos que o Gmail seja a melhor e única forma possível de usar o correio eletrônico e que o Facebook seja a melhor e única maneira possível de nos conectarmos em redes sociais.”
Em um país onde sete em cada dez brasileiros se informam pelas redes sociais, parece quase utópico imaginar o uso de torrent para dividir e consumir livros, revistas, filmes, séries, softwares, e qualquer tipo de arquivo que o usuário imagine compartilhar. E parte disso é porque estamos cegos pela ideia de que não há opção, como dito por Morozov. Por todos os lados, a lógica do serviço mais cômodo faz com que os usuários comuns busquem cada vez menos dificuldades, e a famoso conceito da inclusão digital passa a ser deturpado: a inclusão é junto as Big Techs, e não ao digital.
Então que viremos o jogo aprendendo a criar torrents!

Existem dois grandes passos no processo: criar o arquivo torrent e hospedar o arquivo torrent. Vamos abordá-los sob estes dois atos.

1) Criar o arquivo torrent

Fonte: Wikihow

Depois de decidir o que você quer dividir, seja uma pasta de músicas ou de fotos, um filme ou uma biblioteca de livros, entre no seu cliente de torrent (uTorrent, qBitTorrent, Transmission são alguns dos mais comuns, mas aqui tem uma lista recente com outros também) entre no menu Arquivo > Criar torrent.
Selecione a pasta ou arquivo, crie um nome, aponte onde deve ser salvo, aponte trackers (os rastreadores de arquivos, que mencionamos no artigo anterior) e gere o arquivo. Aqui uma lista de trackers que você pode usar, copiando os links e colando-os no espaço destinado a eles (como mostra a figura abaixo). Quanto mais melhor, pois mais deles vão encontrar o seu arquivo numa busca. 

Pois bem, aí está seu arquivo .tor! Você já pode enviá-lo para amigos, que podem abri-lo em seus clientes de torrent e baixá-los, desde que o seu cliente esteja aberto e copiando o arquivo para eles. Percebe: como criador do arquivo, você acaba sendo também o primeiro seeder, e é importante manter o torrent aberto e copiando para outros pelo menos nos primeiros dias, para o arquivo se espalhar pela internet.

2) Hospedar o arquivo torrent na internet

Com o primeiro passo seus amigos já podem desfrutar do seu arquivo torrent. Mas digamos que você tenha uma biblioteca que quer compartilhar, como no Baixacultura, onde geramos um compilado de todos os livros que foram referência durante o curso “Tecnopolítica e Contracultura” e disponibilizamos online. Nesse caso, há (pelo menos) duas opções: deixar ele em repositórios de torrent, como a baía pirata mais famosa e resiliente da internet, o Pirate Bay; ou começar a semear imediatamente, deixando o seu computador (e os próximos que baixarem) como semeadores e guardiões do arquivo, como mostra a figura acima,
Para compartilhar um arquivo no Pirate Bay, então: 
Crie uma conta; no menu de navegação, clique em “Upload Torrent”; procure o arquivo torrent que tu queres subir no seu computador; crie um nome para o arquivo no site (exemplo: Biblioteca do Baixacultura) – este é o nome que as pessoas vão achar quando procurarem pelo arquivo no site; escolha uma categoria (vídeo, livro, software, música, etc.); marque a opção ou não de subir o arquivo anonimamente; se quiser, marque o seu arquivo em tags para ser mais fácil de encontrá-lo; escreva uma descrição amigável, de preferência dizendo quais arquivos estão contidos no torrent, qual a qualidade e formato do arquivo, etc.

Aqui também vale de, ao enviar o arquivo, deixar seu computador “semeando” o arquivo por um tempo, pelo menos até que outros “leechers” já tenham baixado e passem a semear também; quanto mais semeadores, mais rápido o arquivo vai ser baixado e em mais computadores ele estará.

3) Divulgar o link na internet

Agora que você já criou o torrent, subiu na rede, semeou para outros e viu que outros já tornaram semeadores do arquivo também, espalhe ainda mais! Divulgue para todxs que queiram acessar o arquivo, mostre também que é importante que eles deixem seus programas de torrent um pouco para semear também para outros.

Fácil, não?

[Victor Wolffenbüttel]
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O futuro da economia será compartilhado? https://baixacultura.org/2019/11/07/o-futuro-da-economia-sera-compartilhado/ https://baixacultura.org/2019/11/07/o-futuro-da-economia-sera-compartilhado/#respond Thu, 07 Nov 2019 15:19:06 +0000 https://baixacultura.org/?p=13068

Foto: Corey Kohn

Estar a frente de uma empresa de propriedade compartilhada com xs próprixs usuárixs em alguns momentos pode parecer uma ideia um tanto louca e subversiva para uma startup capitalista, mas saiba: a proposta já está em discussão – e em prática –  em alguns lugares do planeta.

Nathan Schneider, jornalista e professor de novas mídias da Universidade de Boulder Colorado, nos Estados Unidos, autor do livro “Everything for Everyone: The Radical Tradition that Is Shaping the Next Economy“é uma das pessoas que mais vem estudando e promovendo a ideia do cooperativismo de plataforma mundo afora. No final de outubro ele esteve no Brasil para um evento privado organizado pela KES, onde falou da ideia de “user ownership” (em tradução livre, compartilhar a posse da empresa) para uma plateia de empresários, COs e CTOs de startups e empresas como Coca-Cola e Bradesco.

Foi nessa ocasião (que também marcou sua primeira vinda ao Brasil) que Nathan apresentou suas ideias, partindo de uma pergunta: como seria tornar Xs usuáriXs de um dado serviço, como por exemplo das empresas símbolos do que se convencionou chamar de capitalismo de plataforma (como o Uber, Airbnb), também proprietáriXs da empresa para a qual prestam tal serviço? Em outras palavras: e se Xs própriXs “colaboradorXs” (motoristas, anunciantes de imóveis, entregadorXs) dessas plataformas também fossem sóciXs delas, tendo uma pequena parte do negócio, e se organizassem em modelos cooperativos para sua administração?

Foi a partir dessa ideia básica e que poderia remeter até mesmo às teorias marxistas (alguém falou em tomar e compartilhar os meios de produção?) que Nathan trouxe três propostas:

1 – USER BUYOUT
Opção na qual a abertura de capital da empresa se dá de modo mais ágil e menos oneroso, com a oferta de ações para indivíduos que já são usuárioXs-trabalhadorXs do negócio. Como estes já atuam como uma espécie de financiadorXs do valor gerado pela empresa, por meio de sua própria dedicação e/ou disponibilização de recursos a ela, Nathan argumenta que o seu nível de comprometimento e vontade de prosperar só tenderia a crescer. Uber e Airbnb, talvez mais como saída econômica do que democrática, são exemplos de nomes que já buscam, por meio de lobby, regulamentar esse tipo de relação contratual.

2 – FEDERATION
Modelo de participação no qual usuáriXs podem ganhar mobilidade de ir e vir de uma empresa para outra, desde que estas sigam um padrão mínimo comum de protocolo de fluxo de informação. Cada negócio define os valores sob os quais Xs usuáriXs estarão submetidXs. Segundo Nathan, esse modelo é algo muito próximo do que ocorreu com o início da atual bandeira de cartões Visa: que nasceu como um produto do Bank of America, porém tinha tamanha iminência de crescimento que logo teve que licenciar seu uso para outros bancos e instituições financeiras. Um exemplo mais conhecido e já utilizado são as redes sociais federadas, como por exemplo a Mastodon, um agrupamento de ‘nós’ independentes que pode ser plugado à rede conforme deliberação das políticas próprias de cada node.

3 -TOKENIZATION
Baseado em um sistema de participação que pode ser moderada ou não pela gestão empresa. Embora já seja uma tecnologia largamente aplicada na mineração de criptomoedas para posterior resgate monetário, é a menos testada no contexto de propriedade de empresas. Funciona por meio da disponibilização de tokens, que vão sendo distribuídos e acumulados conforme Xs usuáriXs vão usando o serviço, e que podem ser resgatados em forma de benefícios para seus proprietáriXs. O mais recente exemplo apresentado por Nathan é a Libra, criptomoeda assinada pelo Facebook e por mais dezenas de grandes empresas mundiais.

Ainda sobre o tema, Nathan faz um interessante paralelo entre Zebras e Unicórnios, como provocação a repensar a real aplicabilidade do conceito baseado no ser mítico, tão cobiçado pelas empresas que se inspiram nos modelos de negócio do Vale do Silício. Zebra, segundo Nathan, são animais que correm em bandos e são reais, em contraponto a ideia de Unicórnio, que são seres fantasiosos e de existência isolada. Zebras então seriam as startups que buscam voltar sua atuação para contemplar valores como diversidade étnica, geográfica, cultural e outras – que ainda não são precisamente atendidas pelos grandes players do mercado.

Depois da palestra Nathan ainda conversou com o BaixaCultura*, para detalhar um pouco mais de suas ideias e propostas de democratização da economia.

1) Existe um diagnóstico que as cooperativas do século XX tornaram-se empreendimentos capitalistas como corporações e que não há, de fato, muita participação dos cooperados. Esse diagnóstico também se aplica para os EUA?

Sim. Eu já vi isso em todos os lugares. Negócios cooperativos não garantem democracia econômica, apenas criam a possibilidade para isso. Nesse sentido, estou no conselho de duas organizações cooperativas que refletem minha visão do que é mais necessário hoje: Start.coop, um acelerador de novas cooperativas, e We Own It, que organiza membros de cooperativas já existentes para fazer mudanças positivas por meio de campanhas que visam reformar essas organizações. O que descobrimos em “We Own It” é que um pouco de trabalho em ativar os seus membros pode ajudar bastante a transformar a maneira como as cooperativas operam. É incrivelmente importante para a nova geração de integrantes de cooperativa (cooperados) não apenas iniciar novos projetos, mas também se engajar no trabalho duro, e muitas vezes frustrante, de reenergizar o poderoso legado da cooperação que existe ao nosso redor.

2) O movimento do Cooperativismo de Plataforma tem cinco anos. Qual o balanço das suas principais conquistas e principais fracassos?

A principal conquista é dar visibilidade e criar espaço da discussão/ação. A ideia do cooperativismo de plataforma criou espaço para uma nova geração entrar no movimento cooperativo tradicional sem necessariamente estarem ligadas ao modo de operar que já era praticado. Conseguimos chamar a atenção dessas cooperativas mais tradicionais e, até certo ponto, revigorar o entendimento de seu próprio potencial – até a nível da Aliança Cooperativa Internacional [organização que une e representa cooperativas no mundo inteiro, criada em 1895 e hoje com mais de 1,2 bilhão de cooperados].

Enquanto isso, no mundo da tecnologia, a partir do modelo de cooperativismo de plataforma estabelecemos uma nova estratégia para lidar com os males da economia on-line, juntamente com propostas de reforma de políticas e mudança de cultura. Há também um número crescente de startups tentando fazer o cooperativismo de plataforma funcionar na prática.

As principais limitações, no entanto, existem no campo da prática. Construir cooperativas em tecnologia não é fácil; a cultura predominante não é propícia a isso, muito menos os modelos de negócios e financiamento predominantes. Temos um longo caminho a percorrer para que o tipo de cooperação ecossistêmica empresarial possa ter uma chance real de desafiar as grandes tecnologias. Foi humilhante ver as dificuldades que muitas das startups cooperativas enfrentaram para conseguir existir. Temos que ter cuidado para garantir que, com todo o sucesso que temos alcançado em difundir a ideia do cooperativismo de plataforma, também devemos criar uma infraestrutura realisticamente utilizável. Nestes cinco anos, meu objetivo principal foi o seguinte: como podemos tornar grandes ideias bem-sucedidas na democracia de modo (pelo menos) tão fácil como através do “capitalismo feudal”?

Foto: Sheila Uberti

3) Você tem escrito muito sobre “user ownsership” desde a campanha #BuyTwitter de 2016. Algumas grandes empresas de tecnologia, como Uber e Airbnb, chegaram a se manifestar positivamente sobre empregados serem donos da empresa. Que potencial você vê para esses arranjos? E o que eles diferem do cooperativismo de plataforma?

Para deixar claro, essas empresas estão falando em conceder pequenas quantidades de ações aos “colaboradores” (ou seja, criadores de valor da própria empresa) que se recusam a reconhecer como funcionários! Embora essa seja uma abertura muito limitada, considero-a ainda uma abertura. Alguns anos atrás, a ideia de compartilhar o patrimônio da empresa com seus usuários seria algo radical; agora as maiores – e piores, no sentido trabalhista – plataformas tecnológicas estão explorando isso. Eu quero pegar essa abertura e abri-la muito, muito mais. Como esse compartilhamento pode criar uma “corrida ao topo” (race to the top), onde as empresas estão competindo entre si para fornecer cada vez mais condições equitativas? Como os formuladores de políticas podem permitir esse compartilhamento e também garantir uma responsabilidade genuína por parte de quem as adote? A tecnologia está enfrentando uma crise de identidade agora e há uma oportunidade realmente interessante de resolver essa crise exigindo um novo tipo de contrato social que envolva uma expansão maciça da democracia econômica.

4) No Brasil, o tema do cooperativismo de plataforma parece ter penetrado no núcleo duro do cooperativismo organizado. A OCB promoveu recentemente um hackathon somente sobre soluções de tecnologia para cooperativismo. Que potencial você vê no Brasil para esse movimento?

Estou muito esperançoso e emocionado. O Brasil já possui um setor cooperativo poderoso, e espero que a ideia do cooperativismo de plataforma possa ajudar a dar-lhe uma nova vida. O que descobri é que muitos setores cooperativos ao redor do mundo estão tentando descobrir como eles podem apoiar e participar desse novo conjunto de possibilidades, mas não sabem ao certo por onde começar. Meu pedido para os participantes desses esforços brasileiros: documentem o que vocês estão fazendo. Compartilhem amplamente. Espalhem a palavra! Os setores cooperativos do mundo estão ansiosos para aprender com vocês.

5) Sua fala no KES foi um ótimo exemplo de como dizer coisas subversivas para pessoas de mercado que não estão acostumadas a isso. Você poderia detalhar como explicar a ideia de “user ownership” para pessoas de um mercado tradicional ou que não estão acostumadas às ideias do cooperativismo e de uma internet livre?

Bem, pessoas do mercado – são realmente apenas pessoas! Fico surpreso com o número de pessoas interessadas em estratégias de cooperação – investidores, executivos, empreendedores e muito mais. Mas não deveria me surpreender, porque durante dois séculos os modelos cooperativos provaram ser formas poderosas de fazer negócios com os quais outros tipos de negócios (inclusive os do “mercado” mais tradicional) podem aprender. Receio que o desafio é garantir que essas colaborações se direcionem para um futuro com mais democracia econômica, em vez de um futuro no qual as estratégias democráticas sejam cooptadas pelo novo “capitalismo feudal”. Pense em como a Amazon adotou ideias cooperativas como a “associação” (no Amazon Prime) e nas lojas de alimentos naturais (Whole Foods, agora propriedade da Amazon, foi fundada por um ex-funcionário de uma cooperativa de alimentos). É um jogo perigoso. Mas em todo o mundo, as pessoas estão ansiosas para repensar o que é a corporação e para que serve. É um momento crítico para aproveitar qualquer oportunidade que pudermos para enxertar brotos democráticos nos pomares doentes e mal concebidos do capitalismo.

* Com Leonardo Foletto, editor do BaixaCultura, e Sheila Uberti, comunicadora. Colaboração de Rafael Zanatta na elaboração das perguntas.
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BaixaCharla ao vivo #1: A Ideologia Californiana https://baixacultura.org/2019/07/26/baixacharla-ao-vivo-1-a-ideologia-californiana/ https://baixacultura.org/2019/07/26/baixacharla-ao-vivo-1-a-ideologia-californiana/#respond Fri, 26 Jul 2019 12:14:51 +0000 https://baixacultura.org/?p=12875

Depois de um tempo organizando, planejando e refletindo. voltamos com as BaixaCharlas, nosso “programa” de conversas sobre tecnopolítica, contracultura e cultura livre. Dessa vez, diferente das outras até aqui seis já realizadas (chega mais em nosso canal no Youtube), fizemos ao vivo, via YouTube e nosso perfil no Instagram. e no Youtube.

A primeira dessa nova fase foi realizada na quarta-feira, 24/7 e tratou de encerrar um ciclo sobre o “A Ideologia Californiana“, obra seminal da crítica à um pensamento (hoje dominante) sobre a internet, de Richard Barbrook e Andy Cameron, primeira publicação da nossa coleção Tecnopolítica junto com a Monstro dos Mares. Tivemos Leonardo Foletto, editor do BaixaCultura, sistematizando alguns apontamentos sobre o texto colhido nos recentes lançamentos e debates sobre a obra em São Paulo, durante a CryptoRave 2019, em Salvador, no simpósio da Lavits, e em Recife, junto à grupos, pessoas e coletivos locais. A ideia foi destrinchar alguns aspectos do texto, detalhando os 10 tópicos com que os autores dividiram o texto, e a partir daí falamos sobre o que ele ainda tem de relevante nesse distópico mundo internético de hoje para refletir sobre o futuro da rede.

Aqui está o roteiro completo que nos baseamos para fazer a transmissão, com trechos do texto. E aqui abaixo o vídeo, no Youtube.

 

 

 

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Pela liberdade de Julian Assange e Ola Bini https://baixacultura.org/2019/04/15/pela-liberdade-de-julian-assange-e-ola-bini/ https://baixacultura.org/2019/04/15/pela-liberdade-de-julian-assange-e-ola-bini/#respond Mon, 15 Apr 2019 11:58:40 +0000 https://baixacultura.org/?p=12800

Julian Assange foi preso pela polícia britânica na quinta-feira 11 de abril, na Embaixada do Equador em Londres, onde o hacker australiano de 47 anos estava abrigado desde 2012. A polícia disse que prendeu Assange depois de ser “convidada a entrar na embaixada pelo embaixador, após a retirada do asilo pelo governo equatoriano”. Há muita coisa envolvida nessa prisão que vamos explicar (ou tentar) aqui nesse texto.

ACUSAÇÃO

Glenn Greenwald e Micah Lee, no The Intercept, explicam que o conteúdo da acusação contra Julian Assange, revelado pelo Departamento de Justiça dos EUA de Trump, “representa grande ameaça à liberdade de imprensa, não apenas nos EUA, mas em todo o mundo”. O documento de denúncia, acompanhado do pedido de extradição pelo governo dos EUA, que foi usado pela polícia do Reino Unido para prender Assange tão logo o Equador suspendeu oficialmente o asilo diplomático, pretende criminalizar diversas atividades que fazem parte da essência do jornalismo investigativo. Por exemplo: Assange é diretamente acusado de tentar ajudar Chelsea Manning a se conectar aos computadores do Departamento de Defesa empregando um nome de usuário diferente, para que ela pudesse manter seu anonimato enquanto fazia o download de documentos de interesse público e os encaminhava ao WikiLeaks para publicação. Na prática, é uma acusação que caracteriza como condutas criminosas ações como a proteção do anonimato, algo que os jornalistas não apenas podem, mas devem tomar para praticar uma atividade jornalística sensível na era digital.

Muitos veículos de mídia, explica o The Intercept, “repercutiram sem pensar a manchete do comunicado de imprensa do DOJ, que alegava que Assange estaria sendo acusado por condutas criminosas de “hacker”, muito embora a denúncia não contenha nenhuma acusação nesse sentido. Assange está sendo acusado simplesmente de tentar ajudar Manning a escapar da identificação. Isso não é “hackear”, é simplesmente uma obrigação fundamental do jornalismo.”

EXTRADIÇÃO

Continuam Greenwald e Lee: “O governo dos EUA está determinado a indiciar Julian Assange e o WikiLeaks pelo menos desde 2010, quando o grupo publicou centenas de milhares de documentos de guerra e telegramas diplomáticos que revelavam inúmeros crimes de guerra e outros atos de corrupção cometidos pelos EUA, pelo Reino Unido e por outros governos de todo o mundo. Para atingir esse objetivo, o Departamento de Justiça dos EUA (DOJ) do período Obama convocou um júri em 2011 e conduziu uma investigação aprofundada sobre o WikiLeaks, Assange e Manning. Em 2013, porém, o DOJ de Obama concluiu que não poderia acusar criminalmente Assange pela publicação dos documentos, porque não havia forma de distinguir o que o WikiLeaks fazia daquilo que o New York Times, o Guardian e diversos veículos de mídia do mundo inteiro fazem regularmente: a saber, trabalhar com fontes para publicar documentos confidenciais.

Com Trump, o DOJ não escondeu esforços para criminalizar o jornalismo em geral e foi assim, que, depois de dois anos de esforços em coagir o Equador a terminar com o asilo diplomático de Assange, conseguiu o que queria. Encontrou em Lenin Moreno, atual presidente equatoriano, um submisso aliado, e a partir daí não foi difícil encontrar motivos para tirar Assange da embaixada, o que permitiria que o Reino Unido realizasse a prisão sob acusações de descumprimento de intimação judicial em um processo em Londres. A acusação de abuso sexual que Assange tinha na Suécia foi encerrado não vale mais, , não por terem concluído que ele era inocente, mas porque passaram anos tentando extraditá-lo sem sucesso. Mesmo dizendo que não vai, o governo britânico pode acatar um pedido de extradição do governo dos EUA para deportá-lo para um país com o qual ele não tem relação (os EUA) para ser julgado pelos documentos vazados.

“Trata-se de um pedido de extradição para os Estados Unidos, com a possibilidade de Julian enfrentar muitos anos na prisão por ter publicado documentos que revelaram crimes de guerra cometidos pelos Estados Unidos no Iraque e no Afeganistão”, diz em entrevista à Pública o editor-chefe do WikiLeaks, o jornalista islandês Kristinn Hrafnsson.”

Outra questão importante nesse caso foi levantada em reportagem da MotherBoard: Um membro da equipe que examinou as condições médicas de Julian Assange nos últimos dois anos disse a três grupos internacionais de direitos humanos que ele apresentava “efeitos negativos psicológicos e físicos”, de seus sete anos de detenção na embaixada equatoriana em Londres. A médica acredita que a “severidade acumulada da dor e sofrimento infligidos ao Sr. Assange – tanto físicos quanto psicológicos – é uma violação da Convenção Contra a Tortura de 1984”.

LIBERDADE É ESCRAVIDÃO

Slavoj Zizek, filósofo esloveno, fez um texto certeiro sobre a prisão de Assange. Escreve ele: “Agora podemos ver porquê Assange precisou ser silenciado: depois do escândalo da Cambrigde Analytica vir à tona, todos os esforços dos que estão no poder se voltaram a reduzir o caso a um “mau uso” particular, de algumas empresas privadas e partidos políticos. (…) Hoje sabemos que não foram hackers russos (com Assange) que empurraram o povo para Trump. Em vez disso, eles foram impulsados por próprias agências ocidentais de processamento de dados, que se uniram a forças políticas”. Algo que Assange, o Wikileaks e diversos outros hackers e criptopunks chamados de paranóicos denunciam faz mais de uma década.

“A maior conquista do novo complexo cognitivo-militar”, continua Zizek, “é que a opressão direta e óbvia não é mais necessária: os indivíduos podem ser muito melhor controlados e orientados na direção desejada, quando continuam a se enxergar como pessoas livres e como agentes autônomos de suas próprias vidas. Esta é mais uma lição-chave do Wikileaks: nossa falta de liberdade é mais perigosa quando vivenciada como o próprio meio de nossa liberdade. O que poderia ser mais livre do que o incessante fluxo de comunicação que permite que cada indivíduo possa popularizar sua opinião e formar comunidades virtuais por vontade própria?. O que pode ser mais livre que nossa navegação irrestrita na rede?” Em nossas sociedades, permissividade e livre escolha foram elevadas a valores supremos. Por isso, o controle social e a dominação não parecem infringir a liberdade subjetiva. Aparecem (e são sustentadas) como a própria auto-experiência de indivíduos livres.

É por isso, finaliza o esloveno, “que se torna absolutamente imperativo manter as redes digitais longe do controle do capital privado e do poder do Estado”. Se não privado nem estatal, então comum? Taí: fortalecer a ideia de que as redes digitais e a internet tornem-se um comum, como chegaram a ser nos primeiros anos, onde quem organiza e controla são as próprias pessoas, a partir de diversas instâncias de participação e cuidado, é uma boa e difícil (aposta de) luta para os próximos tempos.

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Ola Bini, desenvolvedor de software livre e ativista pela liberdade na rede, foi detido no aeroporto de Quito, Equador, no mesmo 11 de abril em que Assange foi preso, quando embarcava para o Japão. Após mais de 24 horas sem direito a acesso a intérprete, advogado e sem notificar o seu país de origem (Suécia), a detenção foi convertida em prisão preventiva, que pode chegar até 90 dias. Sem uma acusação concreta, as autoridades do Equador anunciaram que o caso seria de um ‘hacker ligado ao Wikileaks’ e divulgaram em redes sociais o que seriam as evidências apreendidas em sua casa: laptops, tablets, celulares, hds e livros como “Cyber War” de Richard A. Clarke… Equipamentos que muitos profissionais da área da segurança da informação usam no dia a dia.

Desde 2015 Ola Bini participa como palestrante e apoiador da Cryptorave. Na sexta edição, que vai ocorrer 3 e 4 de maio deste ano, ele participaria com uma atividade sobre desenvolvimento de software com segurança por padrão. Familiares, colegas de trabalho, amigos e ativistas ao redor do mundo estão organizando uma rede por sua liberdade e um site: FreeOlaBini. Abaixo uma carta do próprio:

Carta de Ola Bini da prisão de El Inca, Equador

1. Primeiro, quero agradecer a todas as pessoas que estão me apoiando aí fora. Me contaram da atenção que este caso despertou no mundo todo e isso é algo que agradeço mais do posso expressar com palavras. A minha família, meus amigos, a todos os que estão próximos, mando todo meu amor. Tenho sempre em meus pensamentos.

2. Acredito firmemente no direito a privacidade. Sem privacidade não é possível agir e sem agir, somos escravos. Por isso dediquei a minha vida a esta luta. A vigilância é uma ameaça para todos nós, e nós devemos pará-la.

3. Os líderes do mundo estão promovendo uma guerra contra o conhecimento. O caso contra mim é baseado nos livros que eu tenho lido e da tecnologia que eu tenho. Isso é algo Orwelliano – uma Crimideia. Não podemos deixar que isso aconteça. O mundo se fechará mais e mais ao nosso redor até que não nos reste mais nada. Se o Equador pode fazer isso, outros também podem. Temos que parar essa ideia agora, antes que isso seja tarde demais.

4. Eu tenho confiança que será óbvio que não há substância para esse caso, e que isso acabará em nada.

5. Não posso evitar de falar algo sobre o sistema penal equatoriano. Eu estou sendo detido nas melhores circunstâncias e ainda assim é terrível. É necessário uma séria reforma. Meus pensamentos vão para todos os demais presos no Equador.

Ola Bini

 

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RSS para fugir dos algoritmos das redes sociais https://baixacultura.org/2018/08/27/rss-uma-ferramenta-para-fugir-dos-algoritmos-das-redes-sociais/ https://baixacultura.org/2018/08/27/rss-uma-ferramenta-para-fugir-dos-algoritmos-das-redes-sociais/#comments Mon, 27 Aug 2018 18:11:34 +0000 https://baixacultura.org/?p=12520

Victor Wolffenbüttel chegou até nós pelo caminho mais tradicional na internet: o e-mail. Nos escreveu para elogiar o trabalho aqui realizado e indicar um texto, de sua própria autoria, sobre o RSS, essa eficiente forma de organizar informação na rede infelizmente esquecida nestes tempos de redes sociais. O texto em questão, publicado aqui abaixo, faz um amplo panorama da história e da praticidade do RSS. É quase um artigo de arqueologia da mídia, pois descreve tanto a história do RSS quanto seu funcionamento técnico de forma simples, mas sem ser simplista. Mas além de descrever a técnica e apontar o lado subversivo de se usar RSS hoje em dia, ele também aponta caminhos, como um tutorial, para você mesmo construir seu próprio feed sem passar por algoritmos cada vez menos transparentes como as das redes sociais.

É a primeira colaboração de Victor aqui no BaixaCultura. Ele é estudante de Administração e mora em Novo Hamburgo, uma das maiores cidades da região metropolitana de Porto Alegre. Escreve sobre tecnologia e cultura, criador e editor da newsletter literária Quasar. Bem-vindo, Victor!

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Como e por que utilizar RSS

UMA FERRAMENTA PARA FUGIR DOS ALGORITMOS DAS REDES SOCIAIS

Em março de 2017, o criador da internet, Tim Berners-Lee, publicou um texto no jornal inglês The Guardian referente ao aniversário de 28 anos do protocolo web inventado por ele, o World Wide Web, principal forma de utilizar a internet até hoje — e que a maioria de nós, usuários comuns, tratamos como “a” internet. No seu texto, Barnes-Lee é sucinto: ele está preocupado com três coisas na rede moderna. Não há declarações de amor ou histórias de superação brega no seu artigo. A internet está com problemas, e precisa de respostas. Os três desafios na rede atual, segundo ele, são: como o usuário perdeu controle de seus próprios dados pessoais; como é fácil para informações falsas se espalharem na web; e a falta de transparência na propaganda política.

Eu poderia traduzir todo o texto numa tacada só, mas vou me conter e utilizar apenas um parágrafo de referência para onde quero chegar. Sobre a desinformação na web, o criador da coisa toda diz (tradução livre):

“Hoje, a maioria das pessoas encontram notícias e informações na web através de algumas redes sociais e buscadores. Esses sites faturam mais quando clicamos nos links que nos mostram, e eles escolhem o que nos mostrar através de algoritmos que aprendem com nossas informações pessoais, as quais eles coletam constantemente. O resultado é que esses sites nos mostram conteúdo que acham que nós vamos clicar — ou seja, desinformação e notícias falsas, as quais são surpreendentes, chocantes ou feitas para atrair nosso interesse, podem se propagar como um incêndio.”

A preocupação de Tim Bernes-Lee quanto a desinformação e aos algoritmos das redes sociais não é nova, e tem sido amplamente divulgada. O processo de adquirir informações está passando por alterações que afetam profundamente o jornalismo e a mídia como um todo. Na verdade, o jornalismo vem sofrendo mudanças drásticas e questionamentos sobre seu modelo de negócios. Dentro dessa preocupação geral e do cenário caótico, escrevo para propor uma ajuda ao usuário.

A INTERNET ATRAVÉS DO TEMPO

Nesses vinte e oito anos de existência da internet, muitos hábitos e muitas ferramentas já foram tendência, e os usuários mais antigos devem lembrar de uma tonelada desses. Para o brasileiro que estava lá quando tudo começou por aqui, aquele que usava internet discada durante a madrugada porque era de graça e acordava todo mundo em casa porque o barulho do modem era insano, podemos citar o Netscape, Cadê e o ICQ como ferramentas comuns. Depois, se estabeleceram Google, Orkut, Youtube, Kazaa, MSN, Fotolog, MySpace, Blogger, WordPress, os portais Uol e Terra, por exemplo. Hoje, nossas ferramentas, chamadas “aplicativos”, são Facebook, Twitter, Instagram, Whatsapp, Telegram, Snapchat, Tumblr, Medium, Netflix.

(É claro que essa linha do tempo de sites e serviços não ficou extremamente precisa, cada usuário conheceu alguma ferramenta a algum tempo, e podem haver questionamentos — um amigo meu ainda usa o ICQ no seu ambiente profissional, por exemplo. É claro que também esqueci um monte de outras saudosas aplicações, mas isso não vem ao caso.)

A tendência gritante entre os serviços citados é a transformação do acesso: o computador vem sendo abandonado. O navegador utilizado, seja ele o Firefox, Chrome, Opera ou Safari, não é mais necessário para acessar nenhum dos aplicativos listados por último. O abandono do desktop e dos browsers aponta para uma das novas tendências da internet: o cercamento do usuário. Tirando aquelas pessoas que trabalham na frente do computador e tem tempo livre para surfar na web e pesquisar páginas à vontade, quantos hoje em dia têm uma lista de sites favoritos? O usuário tem acessado suas informações pelos mesmos aplicativos e redes sociais. Se você não tem o aplicativo da Folha ou do Globo ou de qualquer outro grande jornal no celular, eu duvido que se informe por outro meio que não o Twitter ou Facebook. E a sua visão das notícias está condicionada a um algoritmo muito mais poderoso que a antiga disposição das informações nos cadernos dos jornais.

PÓS-INTRODUÇÃO: REDESCOBRINDO UMA FERRAMENTA

A partir desse ponto, eu poderia começar a direcionar o texto para qualquer um dos aspectos mencionados por Tim Bernes-Lee no seu parabéns-alerta de aniversário, os quais indicam uma internet prejudicada e prejudicial para o usuário comum: compartilhamento involuntário dos dados pessoais e privados; alienamento do usuário através de algoritmos que podem simplesmente apagar um assunto ou uma pessoa da sua vida; centralização da forma de obter informação; propaganda política disfarçada de informação; etc., etc. Mas o meu interesse nesse assunto todo é apresentar uma ferramenta (spoilers estão no título do texto), e fazer o leitor entender porque ela pode ser útil nesse mundo preocupante em que estamos. Quando eu digo preocupante, quero dizer, capaz de fazer um magnata sem nenhum preparo, intolerante e conservador ser eleito presidente do país mais poderoso do mundo.

O uso dessa ferramenta ajuda a evitar que casos como o de Myamar, um país asiático que mudou de um regime ditatorial para uma democracia há poucos anos, se tornem cada vez mais comuns. O Buzzfeed News fez uma matéria impressionante mostrando a inclusão digital do povo do pequeno país. Essa inclusão — feita através do acesso total da internet de uma hora pra outra — é integralmente baseada no Facebook (alguns usuários acreditam que “internet” e “Facebook” são a mesma coisa, deixando de aproveitar a vastidão de conteúdo online), e os novos hábitos virtuais da população têm aumentado a intolerância religiosa do país.

Não estou me referindo a um produto de uma nova startup que vai salvar o mundo. Não é um app que você baixa e milagrosamente muda a rotina da sua vida. É um recurso que está disponível na internet há muito tempo e que nunca foi muito popular, mas que se mostra poderosíssimo num mundo de algoritmos pré-definidos com critérios secretos de exibição de resultados. Do que eu estou falando? Do RSS. Às vezes chamado de feed, ou feed RSS, ou Atom, etc.

EM TERMOS TÉCNICOS E PRÁTICOS: O QUE É RSS

RSS é uma sindicação web. Sindicação é um termo oriundo da televisão, e uma prática muito comum em países como os Estados Unidos, onde canais de TV locais compram e vendem programas para exibição ao vivo e/ou gravada de outros canais em outras localidades. Qualquer ferramenta de sindicação web, então, seria uma adaptação disso: um meio de reproduzir o conteúdo lançado por um site através de outro site ou outro programa, enfim. A sigla RSS significa Really Simple Syndication, ou seja, “Sindicação Realmente Simples”.

Muitos desenvolvedores trabalharam nessa ferramenta desde seu surgimento. Ela começou por iniciativa de alguns técnicos do falecido navegador Netscape, que lançaram a versão 0.9. Depois que o browser foi comprado pela AOL, o projeto foi deixado de lado, mas outros programadores continuaram aprimorando a sindicação, até ela chegar na versão 2.0 em 2005, na qual se mantém até hoje. A história do RSS é cheia de personagens e conflitos por direitos autorais. Por ter sido um trabalho abraçado pela web e desenvolvido abertamente durante algum tempo, os técnicos da Netscape tiveram problemas quando quiseram registrá-lo como propriedade intelectual, especialmente depois de ter abandonado a ideia na versão 0.9.

(Para quem quiser ler toda a história, está disponível na Wikipédia em português.)

Em termos de programação, o RSS é o que e os programadores chamam de “dialeto” dentro da linguagem XML (eXtensible Markup Language), a qual é utilizada para vários fins de organização de páginas. Olhando um arquivo XML puro, ele parece com HTML, exceto que podem ser criados novos dialetos e cada dialeto pode possuir diversas tags — daí o “eXtensível” no nome. RSS é então um arquivo em linguagem XML que é disponibilizado e atualizado automaticamente pelo site que o gera. Ele está disponível na maioria dos sites como uma página própria, a qual é facilmente acessível através do famosos ícone do RSS:

Você certamente já viu esse símbolo antes por aí

Resumindo tecnicidades em termos simples, RSS é um arquivo que se atualiza sempre que o site atualiza também. Qual o interesse nisso? Arquivos em linguagem XML não foram feitos para serem consumidos diretamente por humanos, mas sim interpretados por outras aplicações que então disponibilizam a versão final para as pessoas. O RSS se torna realmente interessante quando utilizado junto aos chamados leitores ou agregadores.

Como parecia o agregador mais famoso de todos, o Google Reader, antes dele ser extinto

Através dos agregadores, o usuário pode se inscrever nos seus sites favoritos e acompanhá-los diretamente pelo leitor de feeds. Todas as atualizações aparecerão lá diariamente e o usuário não precisa visitar a homepage. A princípio, pode parecer pouco interessante para quem acessa a homepage de apenas um site, por exemplo, o G1. Mas mesmo para esse usuário, é melhor utilizar o leitor de feed, pois não agride visualmente, não distorce as manchetes, e não tem publicidade. Texto puro, organizado para leitura no agregador, separado em postagens, classificados apenas em “lidos” ou “não lidos”.

O RSS se torna realmente interessante para quem gosta de acompanhar mais de uma página na web. Ele te dá o poder de concentrar todos os sites em só um e poder decidir se quer ler certo texto ou não, de forma simples!! Todo o conteúdo é listado verticalmente, tornando-se uma questão de escolha intelectual pura do leitor. Apesar de absurdamente simples, vou descrever um pequeno tutorial para começar a utilizar um agregador RSS e como adicionar os feeds.

UTILIZANDO RSS: INTRODUÇÃO AOS AGREGADORES

Basicamente, o que deve ser feito é baixar ou criar uma conta online em algum agregador de RSS. Existem centenas pela internet. Antigamente, essa função era praticamente monopolizada pelo Google Reader, um dos melhores leitores de feed que já houve, especialmente pela sua função social de compartilhar os textos lidos com outros usuários através de um verdadeiro Facebook de textos. Porém, o Google Reader foi descontinuado pelo Google devido à baixa popularidade (a quantidade de produtos do Google que foram abandonados por popularidade, independente de quão boa a ideia era, assusta).

Um dos agregadores mais populares hoje em dia é o feedly, o qual adicionou uma penca de funções nos últimos anos, as quais, pra mim, só afastaram o usuário comum. Logo que o Reader acabou, eu tentei utilizá-lo, mas a bagunça visual me fez desistir. Outro feed conhecido é o The Old Reader, o qual se propõe a ser exatamente igual ao antigo Google Reader (o nome diz tudo), mas, pelo menos nas vezes em que tentei usar, pareceu extremamente instável e lento. Atualmente, utilizo o Digg Reader — depois de muitas tentativas com softwares baixados ou clientes de email (sim, é possível ler feeds de sites usando o Outlook, por exemplo). Não lembro como descobri que o Digg tinha um agregador, mas é esse que recomendo, por estar utilizando a mais tempo — mais tempo até do que usei o Google Reader. O aplicativo para celular também é muito simples, e permite leituras agradáveis dentro do possível (ler no celular nunca vai ser agradável). É possível se inscrever usando email ou alguma conta já registrada no Google, Facebook ou Twitter.

O Digg Reader é a minha recomendação pessoal, mas existem outros milhões de agregadores por aí. Como dito antes, é possível ler os feeds RSS até mesmo no cliente de email, o que vem bem a calhar quando se é usuário de um desses softwares, como Thunderbird ou Outlook. A configuração pode demorar um pouco mais, mas não é nenhum bicho de sete cabeças.

UTILIZANDO RSS: CATANDO OS LINKS PARA FEEDS 

Baixado o software ou inscrito no site, a segunda etapa é procurar o feed dos seus sites favoritos. Provavelmente, o famoso botão de RSS vai estar bem no alto ou bem embaixo do site, junto com os ícones de Facebook, Twitter e etc. Clique nesse botão, ele vai te direcionar para a página do arquivo XML. Copie o link da URL. Geralmente, ele se parece com http://[site].com/feed ou http://[site].com/rss ou algo do tipo, mas isso não é uma regra. Entre no seu agregador favorito e vá em alguma coisa parecida com “adicionar feed RSS” ou “inscrever-se em RSS” e cole o link lá. Pronto, você já está inscrito. A partir de agora, sempre que o site atualizar, o feed vai automaticamente carregar o texto no seu agregador. Ele estará disponível exatamente como no site, sem precisar sair do leitor.

Em alguns agregadores, está incorporado uma ferramenta de pesquisa de feeds, o que é ótimo, porque aí você não precisa procurar o link no site. Só digite o nome do site na busca, e ele vai providenciar o feed. O que pode acontecer é o site não possuir RSS. O G1, por exemplo, não tem. Nesse caso, recomendo começar a ler outro site, porque esse não está conforme os bons hábitos da internet, o que me leva a outro ponto: o feed não é só uma ferramenta qualquer, ele é histórico para a web.

O RSS ESTÁ POR TODA A INTERNET SÓ VOCÊ NÃO VIU

Antigamente, redes sociais como Twitter e Facebook geravam RSS para cada um dos perfis na rede. Era excelente, porque você poderia seguir as pessoas que você gostava sem nem mesmo possuir conta na rede social. Se adicionasse o link no seu agregador, todos os tuítes da pessoa apareceriam como atualizações, por exemplo. A função foi descontinuada pelas grandes redes. Hoje em dia, existem sites, como Queryfeed, que substituem a função nativa e geram os feeds de perfis. Um excelente incentivo para abandonar as redes e continuar acompanhando as páginas de interesse. Sites de torrent como Pirate Bay disponibilizam o link de RSS de todo o site, o que leva a uma prática interessante para os usuários: baixar automaticamente arquivos a partir do momento em que o feed atualiza com seus links magnéticos. Você pode se inscrever no link da sua série favorita e baixar os episódios assim que foram disponibilizados, por exemplo. Os clientes de torrent possuem agregadores de feed que são utilizados especificamente para essa prática, conhecida como Broadcatching.

Por fim, o melhor exemplo do poder do RSS na internet e da sua influência na história da redes são os podcasts. O conceito de podcast é exclusivamente baseado no uso de RSS para disponibilizar um arquivo de áudio baixável. Os podcasts feitos em site de streaming como Youtube e Soundcloud se proliferaram nos últimos anos, mas nenhum deles, se fosse catalogado, seria um podcast segundo o conceito original. Conforme definido pelo escritor Warren Ellis em sua newsletter [tradução livre], “Um podcast é um arquivo de áudio que um programa de podcasts pode capturar e baixar para um dispositivo. Um arquivo no Mixcloud ou Soundcloud não é um podcast”. É claro que o conceito original pouco importa para o sucesso desses programas, e até acredito que quem está fazendo audioblogs no Youtube hoje deve ter mais sucesso do que a maioria de podcasts perdidos em blogs, buscando alguns assinantes no seu feed que é baixado por aplicativos de celular. A importância da definição de podcast, nesse caso, é mais histórica que tecnológica: em 2004, não existia streaming, e o download automático do seu programa favorito era como a assinatura do seu jornal ou revista favoritas, que chegavam — esse verbo cada vez mais no passado — direto na sua casa.

O RSS É POLÍTICO

Sei que citar exemplos de torrent (uma tecnologia que, apesar de revolucionária, tem sido deixada de lado pela comodidade do streaming) e podcasts (um tipo de conteúdo que sempre foi marginal, com poucos exemplos de verdadeiro sucesso) pode parecer pouco mercadológico para o produto que estou tentando vender — e hoje em dia tudo tem que ser observado dentro de uma perspectiva do marketing. Mas não peço desculpas, porque a lógica é contrária: antes da internet, a criação de conteúdo e a informação eram amplamente monopolizadas. O interesse das massas era facilmente direcionado conforme o conteúdo exposto pela mídia através dos meios de comunicação. Com o surgimento da rede, abriu-se o espaço necessário para buscar novas fontes de informação, controle pessoal do que se consome e liberdade de pensamento. O relato mais preciso sobre a transformação da web foi feita pelo documentarista Adam Curtis no seu filme mais recente, HyperNormalisation [tradução livre]:

A internet atraiu as pessoas porque era hipnotizante. Era um lugar onde você poderia explorar e se perder da forma que quisesse. Mas através da tela, como num espelho de duas vias, agentes estavam te assistindo e prevendo e guiando a sua mão no mouse. […] Com o aumento na quantidade de dados obtidos pelos sistemas online, novas formas de controle começaram a surgir. As redes sociais criaram filtros, algoritmos complexos que observavam o que o indivíduo gostava, e os servia com mais disso. No processo, usuários começaram a ser atraídos, sem notar, para bolhas que os isolavam de enormes quantidades de outras informações. Eles só viam e ouviam o que gostavam. E o feed de notícias, cada vez mais, excluía qualquer coisa que poderia mudar seu ponto de vista pré-existente.

O controle vem sendo retomado por grandes grupos. Em um celular de usuário comum, o sistema operacional, o navegador, o buscador e o canal de vídeos (para dizer o mínimo) são todos da mesma empresa, o Google. Além disso, o Whatsapp, o Facebook, o Instagram e o Messenger são todos também da mesma empresa. Por isso, o uso de RSS, apesar de parecer datado, é essencial retomarmos as rédeas do consumo de informação, descentralizar e desalgoritmizar nossa internet. A comodidade tem nos levado para o mesmo lugar em que estávamos antes, mas o grande ponto da rede é não ser cômoda: é aproveitar a oferta máxima de conteúdo que pode existir para fazer o que você quer, e não deixar que algumas empresas te indiquem o caminho.

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https://baixacultura.org/2018/08/27/rss-uma-ferramenta-para-fugir-dos-algoritmos-das-redes-sociais/feed/ 4
Ressaca da Internet, espírito do tempo https://baixacultura.org/2018/07/09/ressaca-da-internet-espirito-do-tempo/ https://baixacultura.org/2018/07/09/ressaca-da-internet-espirito-do-tempo/#respond Mon, 09 Jul 2018 14:52:22 +0000 https://baixacultura.org/?p=12462

Escrevo e acompanho as discussões, avanços e retrocessos da internet e do que se convencionou chamar de cultura digital desde 2008, quando nasceu o BaixaCultura. Já se foram 10 anos e tanto mudou nesse período que posso apontar, não apenas questões pontuais, mas todo um espírito do tempo (como dizem os alemães, zeitgeist) diferente hoje. Que pode ser resumido numa expressão que tenho usado faz alguns meses por aí: ressaca da internet. Depositamos tantas possibilidades de libertação (da informação de grandes grupos midiáticos, de liberdade de falar o que bem quiser, de criar tecnologias e mundos novos) que nos descuidamos, ou não conseguimos, prestar atenção na ascensão dos monopólios das empresas de tecnologia, na construção de bolhas de informação que confirmam pontos de vista e na cada vez mais real possibilidade da internet virar uma TV a Cabo, com o já proclamado fim da neutralidade da rede. Tomamos um porre de otimismo. E agora – ou melhor, desde pelo menos 2016 – estamos na fase de ressaca, refém dos monopólios da internet, da comercialização de qualquer dado deixado na rede, das fake news chegando de todos os lados. Distopia pura.

O cerceamento da internet por empresas privadas como o Google, Facebook, Amazon e Apple é um dos elementos principais na construção desse espírito. O que resta da internet hoje se não as plataformas, softwares e dispositivos dessas empresas? Para a maioria da população brasileira e mundial, pouco. Cerca de 70% dos brasileiros acessam a rede pelo celular e, não raro, só entram em serviços como o Facebook, WhatsApp e Instagram quando conectados, todos da mesma empresa. Existem outras opções de buscadores ao Google, por exemplo (o DuckDuck é o principal deles), e de sistemas operacionais de smartphones ao Android e o IoS da Apple, mas olhe para o lado e veja quantas pessoas de fato usam estas alternativas? A internet já é hoje o que muitos de nós ativistas por uma internet livre temíamos: um grande jardim murado, onde cada vez mais quem dá as cartas do que e como acessar são grandes empresas privadas com sede nos EUA.

Lembro bem, no final de 2011, quando escrevi um relato sobre a luta pela defesa dos princípios da internet, como a neutralidade da rede, a partir da fala de Yochai Benkler na abertura do Festival Cultura Digital.br. Já naquela época o questionamento sobre o fim da neutralidade da rede e o crescimento dos grandes monopólios era assunto corrente, embora não com tanta presença quanto hoje. Na época, comecei o texto com a pergunta: “é utopia pensar em uma internet democrática e livre, sem privilégios de acesso e tráfego de dados para nenhum lado, assim como foi definido nos princípios do desenvolvimento da rede?” Partindo daí, contei um causo que presenciei em sala de aula, numa das inúmeras vezes que falei de cultura e licenças livres para alunos de comunicação, em que um aluno perguntou se manter a internet livre não seria uma utopia, ou então uma ingenuidade. Respondi, na época, que não: “A internet foi criada assim, como uma rede descentralizada e autônoma. E não estamos falando de uma utopia, mas de uma realidade; a internet, hoje, funciona deste jeito”. O aluno estava certo?

Em 2011, a luta por uma internet livre era menos ingrata a que de a hoje, e eu mesmo acreditava que conseguiríamos, enquanto sociedade civil, manter a internet tal qual ela foi criada, ou pelo menos garantindo alguns de seus princípios básicos como a neutralidade. Passados quase sete anos, faço um mea culpa.  Não sabia, ou não queria acreditar, ou não queria escrever nem falar publicamente que não acreditava, que os grandes atores da internet transformariam a internet no que ela é hoje, um espaço fechado onde nós estamos presos em bolhas algorítmicas privadas das quais pouco ou nada sabemos do seu funcionamento – e só de um ano pra cá, com Trump e Brexit, começamos a ver as potencialdiades nefastas para a política desse arranjo entre pessoas e sistemas técnicos como o Facebook. Como muitos, duvidei e não quis ver que o capitalismo se reinventa e se apropria de tudo que enxerga pela frente, inclusive uma rede que nasceu libertária como a internet.

O TED, aquele famoso formato de conferências rápidas gravadas em vídeos que se espalhou pelo mundo, teve uma última edição importante em abril de 2018, no Canadá. Duas falas manifestaram esse zeitgeist de ressaca da internet. Com a palavra Jaron Lanier, um dos criadores da ideia de realidade virtual, músico e cientista da computação. “Nós cometemos um erro em especial no início. A cultura digital nascente acreditava que tudo na internet deveria ser público, gratuito. Ao mesmo tempo, amávamos nossos empreendedores de tecnologia. Amávamos este mito nietzchiano do homem de tecnologia que transforma o universo. Como celebrar empreendedorismo se tudo é gratuito? Um modelo baseado em publicidade. Daí que o Google nasceu gratuito, o Facebook nasceu gratuito. Os anúncios no princípio eram para seu dentista local ou algo assim. Só que os algoritmos melhoram. E o que começou como propaganda não pode mais ser chamado de propaganda. Hoje é modificação de comportamento. Não chamo mais essas coisas de redes sociais. São impérios de modificação de comportamento. Esta é uma tragédia global nascida de um gigantesco erro. E me permitam acrescentar outra camada. No behaviorismo, você oferece a uma criatura, um rato ou uma pessoa, pequenos presentes ou punições dependendo do que fazem. Nas redes, punição social e prêmios sociais ocupam esta função. Você fica todo feliz — ‘alguém gostou das minhas coisas’. Os consumidores destes impérios de modificação de comportamento recebem o retorno de tudo o que fazem, percebem o que funciona, fazem mais daquilo. E respondem mais a emoções negativas, porque estas despertam reações mais rápidas. Assim, até os mais bem-intencionados alimentam a negatividade: os paranóicos, os cínicos, os niilistas. Estas são as vozes amplificadas pelo sistema. E não dá para pagar a estas empresas para que façam o mundo melhor ou consertem a democracia pois é mais fácil destruir do que construir. Este é o dilema no qual nos encontramos.

“O maior perigo que a democracia liberal enfrenta é que a revolução na tecnologia da informação fará com que ditaduras sejam mais eficientes do que democracias”. Essa foi a afirmação que a Folha de S. Paulo resolveu destacar na palestra do historiador israelense Yuval Noah Harari no TED. Para prevenir a ascensão do fascismo e evitar novas ditaduras, o historiador propôs a engenheiros que encontrem maneiras de impedir que informações fiquem concentradas nas mãos de poucos e se certifiquem de que o processamento de informação distribuído seja tão eficiente quanto o centralizado. “Essa será a principal salvaguarda da democracia”, diz.

Talvez não seja novidade para você o chamado para a ação da fala de Harari. A questão é o como fazer: de quais maneiras práticas os engenheiros de computação podem tornar o processamento da informação mais descentralizado? Será que eles (ou elas) querem fazer isso? Será possível ainda enfrentar os grandes hubs de informação das redes sociais a partir de pequenas iniciativas descentralizadas? Ou devemos concentrar nossos esforços – nós e todxs aqueles que não somos engenheiros – em não permitir sermos manipulados por aqueles que controlam a informação? Trago aqui mais perguntas que respostas porque, claro está, tudo está acontecendo agora; enquanto buscamos sair da ressaca, continuamos a fazer perguntas e tatear princípios de certeza para, daqui a pouco, agir. Ou para agirmos com mais clareza, já que muitos já estão agindo mundo afora. Nas próximas semanas falo um pouco mais desses muitos.

Leonardo Foletto,
editor do BaixaCultura

 

Crédito foto: KYM
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Diálogos Abertos #1: O Caso facebook https://baixacultura.org/2018/05/01/dialogos-abertos-1-o-caso-facebook-por-que-devemos-nos-preocupar-com-isso/ https://baixacultura.org/2018/05/01/dialogos-abertos-1-o-caso-facebook-por-que-devemos-nos-preocupar-com-isso/#comments Tue, 01 May 2018 14:46:45 +0000 https://baixacultura.org/?p=12398

Junto com o Hackerspace Matehackers e a Casa da Cultura Digital Porto Alegre, começamos na última quinta-feira, 26 de abril,  uma série de debates sobre temas ligados à cultura digital, tecnopolítica, direitos digitais, cultura livre, ética hacker e outros do nosso cotidiano digital. Nosso intuito foi, e continuará sendo com os próximos, dissecar esses temas num momento em que a internet que conhecemos está acabando, e que novas “internets” estão sendo construídas, num campo em ferrenha disputa que acontece hoje.

O primeiro assunto dos Diálogos Abertos não poderia deixar de ser o recente caso envolvendo o Facebook, que supostamente vazou (compartilhou, melhor dizendo) dados de cerca de 87 milhões de pessoas para a empresa de marketing político Cambridge Analytica por meio de testes de personalidade. A situação levou o criador da rede social, Mark Zuckerberg, a defender sua empresa no Congresso dos Estados Unidos e despertou um sonoro “eu já sabia” nos meios do ciberativismo de proteção de dados e antivigilante, além de queda do valor das ações da empresa na Bolsa de Valores e alterações na política de proteção de dados da rede social, que vão afetar os mais de 1 bilhão de pessoas com perfis no Facebook.

A conversa realizada no miolo do Vila Flores, condomínio cultural criativo que abriga o Matehackers, girou em torno desse e outros temas correlatos, e teve a condução de Janaína Spode, integrante da CCD POA, produtora cultural e ciberativista nas lutas pelos avanços políticos para reforçar os Direitos Humanos no mundo digital;  Fabricio Solagna, doutorando em sociologia pela UFRGS com pesquisa focada em governança da Internet e Marco Civil na Internet e que já realizou projetos de participação digital no governo do RS e na presidência da República; e Leonardo Feltrin Foletto, doutor em comunicação pela UFRGS, integrante do Matehackers, da CCD POA e editor desta página.

Diálogos Abertos marcou também o lançamento da Newsletter quinzenal CCD POA + BaixaCultura (inscrição e todas as infos aqui), e da campanha de financiamento contínuo do BaixaCultura no Apoia.se. Teve a presença de cerca de 20 pessoas e outras tantas online, na transmissão que fizemos no YouTube e que está disponível aqui abaixo. As fotos são de Sheila Uberti. A 2º edição será realizada em maio.

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