Gil Wolman – BaixaCultura https://baixacultura.org Cultura livre & (contra) cultura digital Fri, 19 Jun 2015 13:20:24 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.0.9 https://baixacultura.org/wp-content/uploads/2022/09/cropped-adesivo1-32x32.jpeg Gil Wolman – BaixaCultura https://baixacultura.org 32 32 Saiu o zine BaixaCultura nº1 https://baixacultura.org/2015/06/19/saiu-o-zine-baixacultura-no1/ https://baixacultura.org/2015/06/19/saiu-o-zine-baixacultura-no1/#respond Fri, 19 Jun 2015 13:20:24 +0000 https://baixacultura.org/?p=10260 IMG_20150612_182536

Faz algum tempo que prometíamos uma continuidade no nosso selo editorial que lançou o Efêmero Revisitado em 2011/2012. Diversos contratempos e outros trabalhos infindáveis adiaram esse processo, mas eis que, em junho de 2015, a segunda publicação do selo é lançada: trata-se do Zine BaixaCultura nº1.

O tema escolhido pra edição foi o détournement, a partir de uma reedição de um texto já publicado aqui, o guia para os usuários do deturnamento, e de uma apresentação feita exclusivamente para a publicação. A ideia é dar continuidade a série “Pequenos Grandes Momentos da História da Recombinação”, mas também reeditar alguns textos do site e lançar conteúdos exclusivos relacionados à cultura livre e a (contra) cultura digital, em especial aqueles que achamos que combinam melhor com uma leitura em papel. Não vamos prometer uma periodicidade de lançamentos, mas já tem novos sendo gestados.

O primeiro lançamento do zine vai ocorrer hoje mesmo, 19 de junho de 2015, em Joinville, junto ao curso de jornalismo das faculdades Bom Jesus/Ielusc, conforme o cartaz de divulgação abaixo. A ideia é apresentar o conteúdo e falar um pouco sobre remix, plágio criativo e a ligação disso tudo com o copyleft e o software livre. A partir de segunda-feira o zine vai estar disponível em PDF (gratuito) na página Selo do site. E impresso, com envelope carimbado e adesivo, a módicos R$10 (taxas de envio incluso) ou na banca de zines mais próxima de sua cidade. Novas cidades e eventos de lançamentos serão divulgados aqui.

[Leonardo Foletto]

cartaz joinville
Fotos do evento de lançamento (Mauro Artur Schlieck)

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Como montar:

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Expediente (do zine): Calixto Bento (diagramação), Sheila Uberti (foto da capa – que abre esse post – sobre mosaico criado durante a oficina da artista Silvia Marcon, em Porto Alegre/RS) e Leonardo Foletto (edição).

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Um guia para usuários do détournement (2) https://baixacultura.org/2012/08/16/um-guia-para-usuarios-do-detournement-2/ https://baixacultura.org/2012/08/16/um-guia-para-usuarios-do-detournement-2/#comments Thu, 16 Aug 2012 15:11:15 +0000 https://baixacultura.org/?p=6845

Publicamos aqui a segunda (e última) parte do “guia”, de Guy Debord e Gil J. Wolman.

O texto, escrito em 1956 e publicado pela 1º vez numa revista surrealista belga chamada Les Lèvres Nues #8, faz uma interessante  incursão teórico-prática-irônica sobre “desvios” de obras já existentes para a produção de novas, as vezes de sentido oposto a original. É, como se vê, uma certa pré-história de práticas hoje popularizadas através do remix, remistura, remezcla, mashup, machinima, etc.

Nesta segunda parte, Debord e Wolman tratam de exemplos do détournament, mais ou menos moderados, mais ou menos efetivos. Falam da prática na literatura, mais efetiva no processo da escrita do que no resultado final (“Não há muito futuro no deturnamento de romances inteiros, mas durante a fase transitiva poderia haver um certo número de empreendimentos deste tipo.”)

Metagrafia de Isidore Isou, “sem título”, de 1964.

Na poesia, citam a metagrafia – uma técnica de colagem gráfica inventada pelo romeno Isidore Isou e adotada pelo movimento do letrismo, que inspirou os situacionistas – como uma prática adequada a aplicação do détournament. E tratam o cinema como a área onde o deturnamento pode atingir sua maior efetividade e beleza, já que “os poderes do filme são tão extensos, e a ausência de coordenação desses poderes é tão evidente, que virtualmente qualquer filme que esteja acima da miserável mediocridade provê tema para infinitas polêmicas entre espectadores ou críticos profissionais“.

A tradução para o português desse texto foi realizada por Railton Sousa Guedes, do Arquivo Situacionista Brasileiro/Projeto Periferia (e revisada por nós, que também colocamos alguns links).pescada do e-book. A tradução é a partir do texto em inglês de Ken Knabb, que, por sua vez, traduziu do francês original. Ela (a tradução para o português) foi publicada originalmente no e-book Recombinação, do Rizoma (disponível pra download na nossa biblioteca).

Um guia para usuários do detournament (parte 2)

Guy Debord e Gil J. Wolman

Agora pode-se formular várias leis no uso do deturnamento.

O mais distante elemento deturnado é aquele que contribui mais nitidamente à impressão global, e não os elementos que diretamente determinam a natureza desta impressão. Por exemplo, em uma metagrafia [poema-colagem*] relativa à Guerra Civil Espanhola, a frase que mais destaca o sentido revolucionário é o fragmento de um anúncio de batom: “Belos lábios são vermelhos”. Em outra metagrafia (“A Morte de J.H.”) 125 anúncios classificados expressam um suicídio mais notável que os artigos do jornal que o narram.

As distorções introduzidas nos elementos deturnados devem ser tão simples quanto possível, pois o impacto principal de um deturnamento tem relação direta com a lembrança consciente ou semiconsciente dos contextos originais dos elementos. Isto é bem conhecido. Basta simplesmente notar que se esta dependência da memória insinua a necessidade de determinar o público alvo antes de inventar um deturnamento, este é apenas um caso particular de uma lei geral que governa não apenas o deturnamento mas também qualquer outra forma de ação no mundo.

A idéia da expressão pura, absoluta, está morta; sobrevive apenas temporariamente na forma paródica na medida em que nossos outros inimigos sobrevivem. Quanto mais próximo de uma resposta racional menos efetivo é o deturnamento. Este é o caso de um número bem grande de máximas alteradas por Lautréamont. Quanto mais aparente for o caráter racional da resposta, mais indistingüível se torna do espírito ordinário da réplica, que semelhantemente usa as palavras opostas contra ele. Isto naturalmente não se limita à linguagem falada. Foi nesse sentido que contestamos o projeto de alguns de nossos camaradas que propuseram deturnar um cartaz anti-soviético da organização fascista “Paz e Liberdade” — que proclamava, em meio a imagens de bandeiras sobrepostas dos poderes Ocidentais, “a união faz força” — acrescentando por cima em uma folha menor a frase “e coalizões fazem a guerra”.

O deturnamento através da simples reversão é sempre o mais direto e o menos efetivo. Assim, a Missa Negra reage contra a construção de um ambiente baseado em determinada metafísica construindo outro ambiente na mesma base, que apenas inverte — mas ao mesmo tempo conserva — os valores de tal metafísica. Não obstante, tais reversões podem ter um certo aspecto progressivo. Por exemplo, Clemenceau chamado “o Tigre”+ poderia ser chamado “o Tigre chamado Clemenceau”.

Das quatro leis fixadas, a primeira é essencial e se aplica universalmente. As outras três, na prática, aplicam-se apenas a elementos deturnados enganosos. As primeiras conseqüências visíveis da difusão do uso do deturnamento, fora seu intrínseco poder de propaganda, foram a revivificação de uma multidão de livros ruins, e a extensa (não intencional) participação de seus desconhecidos autores; uma transformação cada vez maior de frases ou obras plásticas produzidas para estar na moda; e acima de tudo uma facilidade de produção que supera em muito, em quantidade, variedade e qualidade, a escrita automática que tanto nos chateia.

O deturnamento não conduz apenas à descoberta de novos aspectos do talento; também colide frontalmente com todas as convenções sociais e legais, e pode ser uma arma cultural poderosa a serviço de uma verdadeira luta de classes. A barateza de seus produtos é a artilharia pesada que derruba todas as muralhas da China do entendimento*. É um verdadeiro meio de educação artística proletária, o primeiro passo para um comunismo literário. No reino do deturnamento se pode multiplicar idéias e criações à vontade. No momento nos limitaremos a mostrar algumas possibilidades concretas em vários setores atuais da comunicação — estes setores separados são significantes apenas em relação às tecnologias atuais, com tudo tendendo a fundir-se em sínteses superiores com o avanço destas tecnologias.

Consuelo, de George Sand, poderia ser relançada no mercado literário disfarçada sob algum título inócuo como “Vida nos Subúrbios”

Aparte dos vários usos diretos de frases deturnadas em cartazes, registros e radiodifusão, as duas aplicações principais de prosa deturnada estão em escritos metagráficos e, em menor grau, na hábil perversão da moderna forma clássica.

Não há muito futuro no deturnamento de romances inteiros, mas durante a fase transitiva poderia haver um certo número de empreendimentos deste tipo. Se um deturnamento fica mais rico quando associado a imagens, tais relações para com textos não são imediatamente óbvias. Apesar das inegáveis dificuldades, acreditamos que seria possível produzir um instrutivo deturnamento psicogeográfico da Consuelo de George Sand, que poderia ser relançada no mercado literário disfarçada sob algum título inócuo como “Vida nos Subúrbios”, ou até mesmo sob um título deturnado, como “A Patrulha Perdida”. (seria uma boa idéia reutilizar deste modo muitos títulos de velhos filmes deteriorados dos quais nada mais permanece, ou de filmes que continuam enfraquecendo as mentes dos jovens nos clubes de cinema).

A escrita metagráfica, não importa quão antiquada possa ser sua base plástica, apresenta oportunidades bem mais ricas para a prosa deturnada, como outros objetos apropriados ou imagens. Pode-se obter uma idéia do significado disso pelo projeto, concebido em 1951 mas eventualmente abandonado por falta de meios financeiros suficientes, que pretendeu fabricar uma máquina de fliperama arranjada de tal forma que o jogo de luzes e trajetórias mais previsíveis das bolas formaria uma composição metagráfica-espacial intitulada Sensações Térmicas e Desejos de Pessoas que Passam pelos Portões do Museu do Cluny Cerca de uma Hora depois do Poente em Novembro. Percebemos desde então que um empreendimento situacionista-analítico não pode avançar cientificamente por meio de tais obras. Não obstante, os meios permanecem satisfatórios para metas menos ambiciosas.

Seria melhor deturnar “O Nascimento de uma Nação” em sua totalidade, adicionando uma trilha sonora que faça uma poderosa denúncia dos horrores da guerra imperialista e das atividades da Ku Klux Klan

É obviamente no reino do cinema que o deturnamento pode atingir sua maior efetividade e, para os que se interessam por este aspecto, sua maior beleza. Os poderes do filme são tão extensos, e a ausência de coordenação desses poderes é tão evidente, que virtualmente qualquer filme que esteja acima da miserável mediocridade provê tema para infinitas polêmicas entre espectadores ou críticos profissionais. Apenas o conformismo dessas pessoas lhes impede descobrir tanto a atração apelativa como as falhas berrantes dos piores filmes.

Para ilustrar esta absurda confusão de valores, podemos observar que “O Nascimento de uma Nação” de Griffith é um dos filmes mais importantes na história do cinema por causa de sua riqueza de inovações. Por outro lado, é um filme racista e portanto não merece absolutamente ser mostrado em sua presente forma. Mas sua proibição total poderia ser vista como lamentável do ponto de vista do secundário, mas potencialmente meritório, domínio do cinema. Seria melhor deturná-lo em sua totalidade, sem a necessidade de sequer alterar a montagem, adicionando uma trilha sonora que faça uma poderosa denúncia dos horrores da guerra imperialista e das atividades da Ku Klux Klan que até hoje continua atuando nos Estados Unidos.

Tal deturnamento — um tanto moderado — é em última análise nada mais que um equivalente moral da restauração de velhas pinturas em museus. Mas a maioria dos filmes merece apenas serem cortados para compor outras obras. Esta reconversão de seqüências preexistentes serão obviamente acompanhadas de outros elementos, musicais ou pictóricos como também históricos. Enquanto a reprodução cinematográfica da história permanecer em grande parte semelhante à reprodução burlesca de Sacha Guitry, alguém poderá ouvir Robespierre dizer, antes de sua execução: “Apesar de tantos julgamentos, a minha experiência e a grandeza de minha tarefa me convence que tudo está bem”. Se neste caso uma apropriada reutilização de uma tragédia grega nos permite exaltar Robespierre, podemos imaginar uma sequência tipo-neorealista, no balcão de um bar de beira de estrada para caminhoneiros, por exemplo, com um motorista de caminhão dizendo seriamente para outro: “Antigamente a ética se restringia formalmente aos livros dos filósofos; nós a introduzimos no governo das nações”. Percebe-se que esta justaposição elucida a idéia de Maximilien, a idéia de uma ditadura do proletariado*.

A luz do deturnamento propaga-se em linha reta. À medida que a nova arquitetura parece ter começado com uma fase barroca experimental, o complexo arquitetônico — que concebemos como a construção de um ambiente dinâmico relacionado a estilos de comportamento — provavelmente deturnará as formas arquitetônicas existentes, e em todo caso fará um uso plástico e emocional de todos os tipos de objetos deturnados: arranjos cuidadosos de coisas como guindastes ou andaimes de metal substituirão uma tradição escultural defunta. Isto choca apenas os mais fanáticos admiradores dos jardins estilo-francês.

Comenta-se que em sua velhice D’Annunzio, aquele suíno pró-fascista, mantinha a proa de um barco torpedeiro em seu parque. Sem considerar seus motivos patrióticos, a idéia de tal monumento não está isenta de um certo charme. Se o deturnamento fosse estendido a realizações urbanísticas, não seriam poucas as pessoas que seriam afetadas pela exata reconstrução em uma cidade de um bairro inteiro em outro. A vida nunca pode estar demasiado desorientada: o deturnamento neste nível realmente a faria bela. Os próprios títulos, como vimos anteriormente, são um elemento básico no deturnamento. Isto resulta de duas observações gerais: que todos os títulos são intercambiáveis e que eles têm uma importância decisiva em vários gêneros.

Todas as histórias de detetive “Série Noir” são extremamente semelhantes, contudo basta simplesmente mudar continuamente os títulos para garantir uma considerável audiência. Na música um título sempre exerce uma grande influência, contudo a escolha é bem arbitrária. Assim não seria uma má idéia fazer uma correção final ao nome “Sinfonia Heróica” mudando-a, por exemplo, para “Sinfonia Lênin”*.

O título contribui fortemente no deturnamento de uma obra, mas há uma inevitável ação contrária à obra no título. Assim pode-se fazer extenso uso de títulos específicos retirados de publicações científicas (“Biologia Litoral dos Mares Temperados”) ou militares (“Combate Noturno de Pequenas Unidades de Infantaria”), ou até mesmo de muitas frases encontradas nos livros ilustrados infantis (“Paisagens Maravilhosas Cumprimentam os Passageiros”).

Para encerrar, mencionaremos rapidamente alguns aspectos do que chamamos de ultradeturnamento, quer dizer, as tendências para um deturnamento que atue na vida social cotidiana. Pode-se dar outros significados a gestos e palavras, e isto tem sido feito ao longo da história por várias razões práticas. As sociedades secretas de China antiga fizeram uso de técnicas bem sutis de sinalização que abrangiam a maior parte do comportamento social (a maneira de organizar xícaras; de beber; de declamar poemas interrompendo-os em determinados pontos). A necessidade de um idioma secreto, de contra-senhas, é inseparável de qualquer tendência em jogo. No final das contas, qualquer sinalização ou palavra é suscetível de ser convertida em qualquer outra coisa, até mesmo em seu contrário.

Os insurgentes monarquistas do Vendée, por conduzirem a asquerosa imagem do Sagrado Coração de Jesus, foram chamados de Exército Vermelho. No domínio limitado do vocabulário político de guerra esta expressão foi completamente deturnada durante um século. Fora da linguagem, é possível usar os mesmos métodos para deturnar roupas, com todas suas fortes conotações emocionais. Aqui novamente encontramos a noção de disfarce que é inerente ao jogo.

Finalmente, quando alcançamos à fase de construir situações — a meta última de toda nossa atividade — todo mundo será livre para deturnar situações inteiras mudando deliberadamente esta ou aquela condição que as determina.

Não apresentamos estes métodos brevemente expostos aqui como algo inventado por nós, mas como uma prática geralmente difundida a qual nos propomos sistematizar.

Em si mesma, a teoria do deturnamento bem pouco nos interessa. Contudo achamos que ela está ligada à quase todos os aspectos construtivos do período pré-situacionista da transição. Assim seu enriquecimento, pela prática, parece necessário.

Futuramente prosseguiremos no desenvolvimento dessas teses.

GUY DEBORD E GIL WOLMAN, 1956

*1. A metagrafia foi uma técnica de colagem gráfica inventada pelo romeno Isidore Isou e adotada pelo movimento do letrismo, por ele liderado. Mais sobre os letristas nessa entrevista de Orson Welles com Isou.(Nota do Rizoma)

*2. Os autores estão deturnando uma sentença do Manifesto Comunista: “O baixo preço das mercadorias da burguesia foi a artilharia pesada que derrubou todas as muralhas da China, que forçou a capitulação do intenso, obstinado e bárbaro ódio aos estrangeiros”. (N. do Tradutor)
*3. Na primeira cena imagina-se uma frase de uma tragédia grega (Oedipus em Colonus de Sófocles) sendo colocada na boca de Maximilien Robespierre, líder da Revolução francesa. Na segunda, uma frase de Robespierre sendo colocada na boca de um motorista de caminhão.
*4. Beethoven originalmente nomeou sua terceira sinfonia em homenagem a Napoleão (tido como defensor da Revolução Francesa), mas quando Napoleão coroou a si mesmo como imperador o compositor rasgou furiosamente tal dedicatória renomeando-a como “Heróica”. A alusão a Lenin nesta passagem (como eventualmente é mencionado em “estados operários” no “Relatório na Construção de Situações” de Debord) é um vestígio de um vago anarco-trotskyismo nos primitivos letristas, em um período politicamente menos sofisticado.

Imagens: 1, 3, 4 daqui; metagrafia (daqui) e O Nascimento (daqui).
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Um guia para usuários do détournement (1) https://baixacultura.org/2012/08/10/um-guia-para-usuarios-do-detournement-1/ https://baixacultura.org/2012/08/10/um-guia-para-usuarios-do-detournement-1/#respond Fri, 10 Aug 2012 17:50:23 +0000 https://baixacultura.org/?p=8840

Os situacionistas, você sabe, foram um bando de doidos teóricos-práticos-políticos que assaltaram o status quo reinante do final dos 1950 e nos 1960 com suas ideias de que “a arte é revolucionária, ou não é nada“.

Guy Debord e Raul Vaneigem foram seus, talvez, principais nomes. Debord, muito tageado por aqui, é o autor do ultra-citado e pouco lido “A Sociedade do Espetáculo“, livro essencial até como leitura nas faculdades de comunicação brasileiras.

Em 1956, Debord e Gil J. Wolman, outro situacionista francês, publicaram um “guia para um possível usuário do détournement” numa revista surrealista belga chamada Les Lèvres Nues #8. Nesse texto, introduziam, conceituavam e abusavam da prática citada – claro que com muito sarcasmo e ironia, talvez a fim de que ninguém levasse totalmente a sério aquilo que eles diziam.

As duas leis fundamentais do detournament apontadas inicialmente seriam 1) a perda de importância de cada elemento “detourned” (ou “detunado”, numa tradução literal para o português), que pode ir tão longe a ponto de perder completamente seu sentido original, e, ao mesmo tempo, a 2) reorganização em outro conjunto de significados que confere a cada elemento um novo alcance e efeito.

No “guia”, são apresentados dois tipos principais: os “menores“, onde é feito um desvio de um elemento que não tem importância própria, e que portanto toma todo seu significado do novo contexto onde foi colocado; e os “enganadores“, onde é feito o desvio de um elemento intrínsecamente significativo, o qual toma um dimensão diferente a partir do novo contexto.

Debord e sua gangue situacionista

Publicamos a seguir o “guia”. Dividimos em duas partes, para facilitar a fruição, porque sabemos que a leitura longa na tela costuma ser mais dispersa e difícil que no papel (até quando?).

Por que publicar esse texto aqui no BaixaCultura? Não sabemos bem. Acreditamos que ele, em diversos aspectos, é um dos precursores teóricos mais interessantes do que hoje chamamos de remix, remistura, remezcla, etc. Lembre-se: o texto foi escrito em 1956, há imensos 56 anos atrás, mais ou menos na mesma época que William Burroughs e Bryon Gisin experimentavam com o cut-up.

Publicamos aqui também para dar sequência a ideia de fazer circular a linda biblioteca rizomática, de onde a tradução para o português desse texto foi pescada, feita por Railton Sousa Guedes, do Arquivo Situacionista Brasileiro/Projeto Periferia (e revisada por nós, que também colocamos alguns links). A tradução é a partir do texto em inglês de Ken Knabb, que, por sua vez, traduziu do francês original. Ou seja, estamos falando mais de uma outra edição do que propriamente de uma tradução.

Um guia para usuários do detournament

Guy Debord e Gil J. Wolman

Toda pessoa razoavelmente atenta em nossos dias está alerta ao óbvio fato de que a arte já não pode mais ser considerada como uma atividade superior, ou nem mesmo como uma atividade compensatória à qual alguém honradamente poderia dedicar-se. A razão para esta deterioração é o claro aparecimento de forças produtivas que necessitam de outras relações de produção e de uma nova prática de vida. Na atual fase da guerra civil em que estamos engajados, e em íntima conexão com a orientação que estamos descobrindo para certas atividades superiores por vir, acreditamos que todos os meios conhecidos de expressão irão convergir para um movimento geral de propaganda que terá que abarcar todos os aspectos eternamente interrelacionados da realidade social.

Há várias opiniões contraditórias sobre as formas e até mesmo sobre a verdadeira natureza da propaganda educativa, essas opiniões geralmente refletem uma ou outra variedade do reformismo político da moda. Basta-nos dizer que, em nossa visão, as premissas para revolução, tanto no aspecto cultural como no estritamente político, não apenas estão maduras como começaram a apodrecer.

Não se trata aqui de voltar ao passado, o que é reacionário; até mesmo os “modernos” objetivos culturais são em última análise reacionários na medida em que dependem de formulações ideológicas de uma sociedade passada que prolongou sua agonia de morte até o presente. A única tática historicamente justificada é inovação extremista. A herança literária e artística da humanidade é usada para propósitos de propaganda partidária. É claro que é necessário ir além de qualquer idéia meramente escandalosa. A oposição à noção burguesa da arte e do gênio artístico tornou-se um chapéu roto. O bigode que Duchamp rabiscou na Mona Lisa não é mais interessante que a versão original daquela pintura. Temos agora que empurrar este processo ao ponto de negar a negação.

Bertolt Brecht revelou em uma recente entrevista no “Françe-Observateur” que ele fez cortes em clássicos do teatro de forma a torná-los mais educativos – nesse aspecto ele está mais próximo que Duchamp da orientação revolucionária que proclamamos. É necessário destacar, contudo, que no caso de Brecht tais salutares alterações são estreitamente limitadas por seu infeliz respeito à cultura definida pelos parâmetros da classe governante — aquele mesmo respeito, ensinado tanto nos jornais dos partidos operários como também nas escolas primárias da burguesia, que induz até mesmo os distritos operários mais vermelhos de Paris a sempre preferir “El Cid” à “Mãe Coragem” [de Brecht].

Na realidade, é necessário eliminar todos resquícios da noção de propriedade pessoal nesta área. O aparecimento das já ultrapassadas novas necessidades por obras “inspiradas”. Elas se tornam obstáculos, hábitos perigosos. Não se trata de gostar ou não delas. Temos que superá-las. Pode-se usar qualquer elemento, não importa de onde eles são tirados, para fazer novas combinações. As descobertas de poesia moderna relativas à estrutura analógica das imagens demonstram que quando são reunidos dois objetos, não importa quão distantes possam estar de seus contextos originais, sempre é formada uma relação. Restringir-se a um arranjo pessoal de palavras é mera convenção. A interferência mútua de dois mundos de sensações, ou a reunião de duas expressões independentes, substitui os elementos originais e produz uma organização sintética de maior eficácia. Pode-se usar qualquer coisa.

Desnecessário dizer que ninguém fica limitado a corrigir uma obra ou a integrar diversos fragmentos de velhas obras em uma nova; a pessoa pode também alterar o significado desses fragmentos do modo que achar mais apropriado, deixando os imbecis com suas servis referências às “citações”. Tais métodos paródicos foram freqüentemente usados para obter efeitos cômicos. Mas tal humor é o resultado das contradições dentro de uma condição cuja existência é tida como certa. Como o mundo da literatura quase sempre nos parece tão distante quanto o da Idade da Pedra, tais contradições não nos fazem rir. É então necessário conceber uma fase paródica-séria onde a acumulação de elementos deturnados, longe de contribuir para provocar indignação ou riso em sua alusão a algum trabalho original, expresse nossa indiferença para com um inexpressivo e desprezível original, e se interesse em fazer uma certa sublimação.

Lautréamont foi tão longe nesta direção que ele ainda é parcialmente mal compreendido até mesmo pelos seus mais declarados admiradores. A despeito de suas óbvias aplicações deste método na linguagem teórica de Poiesies — onde Lautréamont (utilizando as máximas de Pascal e Vauvenargues, particularmente) se esforça por reduzir o argumento, através de sucessivas concentrações, tão somente a máximas — um certo Viroux, três ou quatro anos atrás, causou considerável espanto ao demonstrar conclusivamente que “Os Cantos de Maldoror” é um grande deturnamento de Buffon e de outras obras de história natural, entre outras coisas.

O fato dos prosélitos do Figaro, como o próprio Viroux, serem capazes de ver nisto uma justificação para desacreditar Lautréamont, e de outros acreditarem que tinham que defendê-lo elogiando sua insolência, apenas testifica a senilidade destes dois agrupamentos de parvos em elegante combate. Um lema como «o plágio é necessário, o progresso o implica» ainda é pobremente compreendido, e pelas mesmas razões que a famosa frase sobre a poesia, que “deve ser feita por todos”.

Aparte da obra de Lautréamont — que bem à frente de seu tempo foi em grande parte uma crítica precisa — as tendências para o deturnamento que podem ser observadas na expressão contemporânea são em sua maior parte inconscientes ou acidentais. É na indústria da propaganda, mais do que na decadente produção estética, onde estão os melhores exemplos. Podemos em primeiro lugar definir duas categorias principais de elementos deturnados, levando em consideração se o ajuntamento vem ou não acompanhado por correções inseridas nos originais. Temos aqui détournement secundários e deturnamentos enganosos.

O détournement secundário é o deturnamento de um elemento que não tem nenhuma importância em si mesmo e que tira todo seu significado do novo contexto em que foi colocado. Por exemplo, um recorte de jornal, uma frase neutra, uma fotografia comum.

O détournement enganoso, também chamado détournement de proposição-premonitória, é em contraste o deturnamento de um elemento intrinsecamente significante que deriva de um diferente escopo de um novo contexto. Por exemplo, um slogan de Saint-Just ou um trecho de um filme de Eisenstein. Obras extensamente deturnadas são usualmente compostas por uma ou mais séries de deturnamentos enganosos e secundários.

Notas: A palavra francesa détournement significa desvio, diversão, reencaminhamento, distorção, abuso, malversação, seqüestro, ou virar ao contrário do curso ou propósito normal. Às vezes é traduzida como  “diversão”, mas esta palavra gera confusão por causa de seu significado mais comum como entretenimento inativo. Como a maioria das outras pessoas que de fato pratica o deturnamento, eu simplesmente preferi aportuguesar a palavra francesa. (Nota do Tradutor)
Nota do Rizoma: Embora traduzido por Raílton como “deturnação”, optamos pelo uso corrente, aqui neste site, do termo “deturnamento”, já presente em outros textos sobre o assunto.
Nota do BaixaCultura: Preferimos usar, no título, o termo francês original “détournement”.

(a segunda parte vem tá aqui).

Créditos: 1, 3, 4 daqui; 2 (situacionistas).
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A biblioteca rizomática de Ricardo Rosas https://baixacultura.org/2012/03/09/a-biblioteca-rizomatica-de-ricardo-rosas/ https://baixacultura.org/2012/03/09/a-biblioteca-rizomatica-de-ricardo-rosas/#comments Fri, 09 Mar 2012 15:28:40 +0000 https://baixacultura.org/?p=6375

Ricardo Rosas foi uma das figuras mais proeminentes do ciberativismo brasileiro pré-popularização das redes sociais. Em 2002, quando Mark Zuckerberg recém entrava em Harvard e o Twitter não era nem ideia, o cearense de Fortaleza criou o Rizoma.net, um site que, ao longo de sete anos de existência, abrigou o melhor acervo nacional de artigos sobre hackativismo, contracultura e intervenção urbana.

Em 2003, Rosas fincaria de vez sua importância na cultura digital brasileira ao ser um dos organizadores do Mídia Tática Brasil, histórico encontro inspirado no holandês Next5Minutes, realizado na Casa das Rosas e no SESC, em plena Av. Paulista, entre 13 e 16 de março, que reuniu Gilberto Gil, John Perry Barlow, Richard Barbrook, Peter Pál PebartGiuseppe Cocco, André Lemos, Beá Tibiriçá, Gilson Schwartz, Hernani Dimantas, Lucas Bambozzi, Suely Rolnik, dentre outras tantas figuras e coletivos interessantes e representantivos da cultura digital da época. Foi um dos primeiros encontros no país a aproximar artistas, hackers, aficcionados por tecnologia e ativistas políticos.

Capa do site do Mídia Tática 2003

Além disso, o Mídia tática de 2003 é considerado por muitos o berço das políticas de cultura digital no MinC brasileiro. Foi ali que, segundo conta Claudio Prado, ele e Gilberto Gil – que mediou a mesa de abertura com John Perry Barlow, Richard Barbrook, Danilo Santos de Miranda (diretor regional do SESC), Beá Tibiriçá (na época, coordenadora do Governo Eletrônica da Prefeitura de SP) e Ricardo Rosas – tiveram o primeiro papo acertando os pontos para o trabalho com cultura digital no mistério. Gil já estava antenado no assunto, muito alimentado pelo antropólogo Hermano Vianna.

A mesa de abertura do Mídia Tática foi uma faísca só. Dizem aqueles que lá estiveram que foi um momento histórico: Barbrook,  professor da universidade de Westminster nos EUA (e que é comunista) detonou Barlow, vice-presidente da Electronic Freedom Foundation (e que já foi do partido Republicano); ambos tinham (ainda tem?) visões diferentes de mundo e, também, de cultura digital.

[Para os que ficaram curiosos, os arquivos desse debate podem ser baixados, parte 1 e parte 2; agradeço ao Felipe Fonseca pelos links].

A partir do Mídia Tática, Claudio Prado encontraria José Murilo Jr,  que ate hoje é o coordenador de cultura digital do MinC, Uirá Porã, Sérgio Amadeu e outras figuras que seriam alguma das principais responsáveis por colocar na cabeça do governo, via Gil, os conceitos de software livre, inclusão digital e copyleft – ideias que, hoje, sabemos que andam amplamente esquecidas pela ministra Ana de Hollanda.

Capa de Anarquitextura, do Rizoma

Ricardo faleceu em 11 de abril de 2007, em sua cidade natal, Fortaleza, por problemas de saúde. A relevância de seu trabalho também fez com que fosse homenageado em Fortaleza dando nome ao prêmio de arte e cultura digital da cidade.

De 2002 a 2009, o Rizoma.net abrigou um acervo significativo de artigos, traduções, entrevistas sobre hackativismo, contracultura e intervenção urbana. Parte desse acervo saiu do ar com o site, mas foi recuperado pelo coletivo CCR (Centro de Criação de Ruídos), que se dispôs a editorar em PDF os textos das seções do site. Num esforço conjunto com o Vírgula-imagem e com Jesus – assim se identificou o voluntário que enviou as últimas contribuições por email, segundo conta a Select – criou-se uma página onde estão disponíveis todos os PDFs e links.

Tem muita coisa boa. São 18 PDFs disponibilizados para download e visualização no Issuu, em edições intituladas “Neuropolítica“, “Lisergia Visual“, “Hierografia“, “Desbunde“, “Anarquitextura“, “Recombinação“, dentre outros. Todos são documentos importantes da contracultura, digital ou não, brasileira, e interessarão muito aos curiosos sobre o assunto.

Capa de "Recombinação"

Para se ater aquele tema que gostamos mais de falar por aqui, destacamos a edição sobre “Recombinação“. São 153 páginas de artigos, entrevistas e traduções em 37 textos que todos, sem excessão, poderiam ser abordados em posts diferentes por aqui. Tem Critical Art Ensemble com “Plágio Utópico, Hipertextualidade e Produção Cultural Eletrônica“, que re-plagiamos nos posts “Revalorizar o Plágio na Criação“; “Copyright e Maremoto“, dos italianos do Wu Ming, ambos textos do coletivo Baderna.org, que organizou a maravilhosa coleção Baderna da Conrad.

Brasil?  Tem “Manifesto da Poesia Sampler“, do Círculo de Poetas Sampler de São Paulo. “Por que somos contra a propriedade intelectual“, de Pablo Ortellado; “O que é arte xerox“, de Hugo Pontes”. “Entrevista o coletivo Re:Combo“, por Giselle Beiguelman. “A Cultura da Reciclagem“, por Marcus Bastos.

Traduções de textos clássicos? Tem “Montagem“, de Sergei Einsenstein. “Um Guia para o usuário do Detournament“, de Gil Wolman e Guy Debord (que já comentamos por aqui). “O método do cut-up“, de William Burroughs.

E muito mais coisas legais, que não vamos citar mais para não ficar cansativo. Melhor: vamos, nos próximos meses, republicar algum desses textos, com uma apresentação e/ou ensaio crítico – ou, caso precise, de alguma atualização. É uma forma de divulgá-los mais amplamente e, também, homenagear o belo legado que o Rizoma e Ricardo Rosas deixaram.

Capa de "Afrofuturismo", do Rizoma

Pra encerrar este post, vai uma compilação de textos que Rosas deixou, organizado por Marcelo Terça-Nada, do Vírgula-Imagem:

 Táticas de Aglomeração – Publicação do Reverberações 2006
Gambiarra: alguns pontos para se pensar uma tecnologia recombinante (PDF) – Caderno VideoBrasil
Nome: coletivos | Senha: colaboração – FILE / Sabotagem
Notas sobre o coletivismo artístico no Brasi – Trópico/UOL
Hibridismo Coletivo no Brasil: Transversalidade ou Cooptação? – Fórum Permanente/Fapesp
Alguns comentários sobre Arte e Política – Canal Contemporâneo
Hacklabs, do digital ao analógico (tradução) – Suburbia
The Revenge of Lowtech : Autolabs, Telecentros and Tactical Media in Sao Paulo (PDF) – Sarai.net

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O falso problema da escrita não-criativa https://baixacultura.org/2012/03/02/o-falso-problema-da-escrita-nao-criativa/ https://baixacultura.org/2012/03/02/o-falso-problema-da-escrita-nao-criativa/#comments Fri, 02 Mar 2012 18:39:16 +0000 https://baixacultura.org/?p=6395

Depois que Kenneth Goldsmith, o poeta-dândi por trás do belo acervo de arte experimental do ubuweb, lançou a ideia da escrita não-criativa, parece que um caminhão de fichas começaram a cair no entendimento das cacholas lítero-digitais. Não foram poucos os que se impressionaram com a possibilidade de produzir uma literatura somente a partir de outros textos – ou com a ideia de fazer isso abertamente, através de um curso de escrita não-criativa, uma simpática ironia a proliferação nos EUA (e também no Brasil) de cursos de escrita criativa.

Nós mesmos: lemos a entrevista de Goldmsith na Select – a porta de entrada da escrita não-criativa para a maioria, que depois foi reciclada/sensacionalizada pela Folha Ilustrada – e nos impressionamos. O remix que o Mr. Ubuweb fazia da ideia do detournement de Debord e GIl Wolman, do cut-up de Burroughs e Gysin e de outras tantas práticas não assumidas de roubo na criação veio como uma possível via seguraatual para o nosso dilema mortal de criar histórias na era do compartilhamento e do livre acesso a (quase) tudo.

Mas depois da ideia se tornar papo comum (e de boteco) entre os interessados no assunto e aparecer em diversos posts por aqui, começam a vir algumas críticas e provocações. Uma das que pescamos e trazemos aqui é do nosso caro Reuben da Cunha Rocha, jornalista, poeta, tradutor e doutorando em comunicação na USP e um dos fundadores do BaixaCultura.

Reuben continua desafiando ideias consensuais em seu novo espaço na rede, o webzine Cavalo Dada, e não poderia deixar de dar seus centavos ao debate sobre a escrita não-criativa. É de lá que roubamos este texto logo abaixo, escrito em 10 de dezembro de 2011.

Beckett,que a tudo observa do alto do ubuweb

A provocação final para trazê-lo para o debate foi a conversa minha (Leonardo) com Marcelo Noah no programa Elefante, ontem à tarde, na webrádio Minima.fm (que tem uma ótima programação e um bom slogan: “Mais que no ar, no wireless“). A ideia era falar sobre cultura livre, música e outros papos decorrentes destes, mas, sem querer querendo como nem porquê, me peguei falando um tantinho da escrita não-criativa by Goldsmith.

Pior: fui tentado a explicar para quem ouvia a rádio o que seria a coisa toda, inclusive com a ressalva de que isso não é a “morte” da escrita criativa, mas mais uma bifurcação de linguagem (?) que está se desenvolvendo potencializado pela cultura digital.

A conversa me soou um alerta, um “peraí, o que significa esse papo mesmo?”. Foi aí que a provocação de Reuben, lida tempos atrás, me retornou enorme, e não tive outra escolha se não compartilhar ela aqui abaixo como uma saudável crítica ao consenso oba oba.

[Leonardo Foletto]

O falso problema de K. Goldsmith

Reuben da Cunha Rocha

Que a dicotomia “escrita criativa”//”escrita não-criativa” seja um falso problema dá-se a ver no fato de o questionamento da autoria nascer c/ a própria autoria; isto é, se a autoria é um fenômeno moderno tal como a conhecemos, o plágio criativo também o é, como atesta a energia que gigantes da modernidade como Lautréamont ou Walter Benjamin nele empregaram, o impulso de nutrição que o roubo representa em suas obras. O falso problema se instaura ainda mais confortavelmente na poltrona das veleidades quando se nota que, enormíssimos saqueadores, seus nomes permanecem inscritos na história da autoria, bem como é Kenneth Goldsmith quem gira o mundo concedendo entrevistas, colaborando em simpósios e oferecendo cursos. Seu rosto, ao contrário do de Lautréamont, já é bastante conhecido.

Me sinto óbvio escrevendo algo como isto, mas circundado pelo que se tem dito sobre o assunto, e evidentemente admirando, como admiro, a obra & presença de Kenneth Goldsmith entre os humanos, tenho a impressão de que o poeta torna em totem um dilema c/ o qual não deveríamos sequer nos comprometer. É como os teóricos franceses, nalgum ponto do século XX, digladiando-se c/ o problema do significante/significado quando bastaria contorná-lo, já havendo disponíveis formulações mais produtivas acerca da natureza da linguagem. No caso de Goldsmith, quando detecta em dada função exercida pela autoria a prepotência p/ a qual o ego serve muitas vezes de escudo, compreende que ela não encerra os limites da criação mas ignora que nada lhe encerra os limites, entrando nesse ramerrão de “o futuro da escrita é assim & assado”.

Não interessa o contrário do autor, ou o contrário da autoria; interessa é que a criação não seja uma instância de autoridade, e que aquilo que o autor propõe, que o proponha primeiro a si próprio. Me vêm à mão, à lembrança, uma bela fala de José Celso Martinez Corrêa acerca do carnaval enquanto entrega à dissolução coletiva na qual o ser atinge seu mais alto brilho, & a simples presença de um livro como Curare, de Ricardo Corona, gesto por meio do qual, através do poeta, uma língua & um povo se dão à luz. Não há nada de libertário nesta ou naquela técnica de escrita, a peleja mais interessante está, me parece, no esquecimento das funções coletivas da arte, sua notória irrelevância, cujo nome mais conhecido é “entretenimento”. Quanto ao sujeito, tudo está em exercê-lo como grande domesticador ou em excitá-lo como porta perceptiva, canal p/ tudo o que existe. Neste ponto, ter uma ideia ou apropriar-se de uma ideia são recursos, dois entre tantos — a criação sempre esteve em aberto, ao contrário de muitas cabeças.

Que a linguagem nos diga coisas das quais sequer suspeitamos, inclusive em se tratando de algo escrito por nós mesmos, é uma experiência que não escapa a ninguém que se pronuncie — é a raiz dos mal-entendidos, das ambiguidades, das polissemias. A isto uns não reagem bem, voltando-se às aberturas de sua obra c/ o clássico “não entenderam nada”, quando nem sempre é este o caso; a outros alegra que a obra escape de seus domínios e sirva a outros que dela se apropriem. O que importa não é eleger o “não-eu” contra o “eu”, mas que “eu” não se cristalize nunca, que se deixe modificar sempre que necessário, inclusive pelo produto de suas mãos — neste sentido, não é que um poema expresse algo, mas que o revele, inclusive ao poeta. Caso contrário é apenas um novo autoritarismo — veja-se o que diz Goldsmith nesta entrevista, “não é tanto o que nós escrevemos, mas sim aquilo que decidimos reformular o que faz um escritor melhor que outro”. De minha parte, desde que percebi que viveria pela poesia, jamais me ocorreu que se tratasse de uma competição

Créditos fotos: daqui e do UbuWeb.
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